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Hermeneutica_A Busca pelo Entendimento_Artigo

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SUMÁRIO
FILOSOFIA ciência & vida n°. I I - Ano 2007
Capa: T yago Bonifâdo
6
Entrevista
Daniel Rossi Nunes Lopes
fala sobre a importância do
discurso poético na Filosofia
14 Olho gregoO debate como exemplo
de crescimento intelectual
I
16 SuicídioUma opção diante do
absurdo do mundo
24 Ordem eprogresso
Influente no Brasil do
século XIX, o Positivismo
usa a Ciência para
explicar os fenômenos
32 Para refletirC/arice Lispector. Batismo
de Sangue e Stendhal
34 A existênciahumana
É por meio do contato
com o outro que tomamos
consciência da nossa
condição
40 Filosofia na era digitalO que é pensar?
"
42 Farias BritoReflexão sobre o legado do
pensador cearense, um dos
principais filósofos brasileiros
48 Quem não escuta ...Visto muitas vezes
como um ato passivo,
ouvir é importante para
compreender o outro
54 Fotografia da almaEvento discute a relação
do pensamento de Ludwig
Feuerbach e o ofício do
fotógrafo
60 Super práticoComentório sobre o perdão
e o esquecimento
62 A busca peloentendimento
A Hermenêutica pode
ajudó-Io a viver melhor
em sociedade
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7O Na própria carne
O erro médico, a
epistemologia da profissão e
falibilidade no dia-a-dia
78 Feitos e dilemas
Paulo Francis, Millôr
Femandes e Filosofia
o uso da Hennenêutica é importante
desde a Grécia antiga O tenno tem a
sua origem no mensageiro de Zeus e
um dos doze deuses do Olimpo, Hennes
Como a Hermenêutica, por
vezes resumida ao simples ato
de interpretar um texto antigo,
pode ajudar o ser humano a
viver melhor em sociedade
Talita Cícero é
jornalista e escreve para
esta publicação
Aarte de interpretar os livrossagrados e as leis; interpre-tação dos textos, símbolos eo sentido das palavras. Estes
são alguns dos significados para a pala-
vra Hermenêutica, que, quando vista sob
a ótica filosófica, ganha um papel muito
maior do que o simples ato de se interpre-
tar algo. Para Friedrich Schleiermacher
(1768-1834), considerado o pai da herme-
nêutica moderna, esta é a arte de evitar os
mal-entendidos.
A problemática hermenêutica teve
início com a exegese, "uma disciplina
que se propunha a compreender um
texto a partir de sua intenção e sobre
o fundamento daquilo que ele signifi-
ca" explica o mestre e doutorando em
Filosofia pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP), André
Constantino Yazbek, pois toda a leitura
de um texto se faz dentro da socieda-
de na qual o autor está inserido, ten-
do como influência a cultura, tradição
e correntes de pensamentos de deter-
minada época ou local, fato que traz
consigo pressuposições e exigências.
A Hermenêutica ainda destinava-se a
enfrentar metodologicamente questões
relacionadas com o correto acesso aos
textos, com o modo adequado de inter-
pretá-los e a relação desses esforços de
interpretação com outros métodos.
Dessa maneira, a hermenêutica apre-
sentou uma ligação com a Teologia, prin-
cipalmente entre os protestantes que, ao
não aceitarem a interpretação da Igreja
Católica, criaram sua própria leitura.
Partindo dessa idéia, a leitura dos mitos
gregos na escola estóica implica uma
hermenêutica que difere da interpretação
rabínica da Torá, do mesmo modo que
a interpretação cristã à luz do aconte-
cimento maior da cristandade, efetuada
por parte da geração apostólica, redun-
dará em uma leitura distinta daquela dos
•
FILOSOFIAciência&vida 63
IORRENTE
A Hermenêutica influencia os diálogos humanos ao auxiliar
na interpretação e melhor compreensão do próximo
A dança, como uma forma
de comunicação, também
é objeto de estudo da
Hermenêutica
rabinos, exemplífica Yazbek. Nesse con-
texto, há um problema filosófico que, de
acordo com ele, já está presente no pen-
samento aristotélico. "É o problema da
vinculação íntima entre a interpretação,
no sentido preciso da exegese textual, e
a compreensão, tomada no sentido aris-
totélico de inteligência dos signos".
Não obstante o papel importante que
a Hermenêutica apresenta desde a Grécia
antiga (o termo remete a essa época, e
sua origem vem de Hermes, mensageiro
de Zeus e um dos 12 deuses do Olimpo -
também conhecido como Mercúrio para
os romanos). somente durante os séculos
XIX e XX é que ela atingirá a dignidade
de um tipo filosófico de questionamen-
to. E, Schleiermacher teve grande mérito
do seu desenvolvimento, pois se preo-
cupou com o texto, tentou entender o
real significado do ato de compreender,
além de propor um método de análise
que considerava o meio em que a obra
foi criada. "Ele foi o primeiro a acentuar
a genuína dimensão filosófica da Her-
menêutica, na medida em que salientará
o problema da correta compreensão e
interpretação não somente para os tex-
tos da tradição escrita, mas, sobretudo,
em direção à ampliação da tarefa her-
menêutica para todas as formas de co-
municação, em especial, o diálogo vivo"
ressalta Yazbek. Desse modo, este ramo
da Filosofia rompe os limites de um mé-
64 flLOSOFIAciência&vida
AHermenêutica filosófica podeajudar na compreensão no
mundo, inclusive no ato de escutar e
entender o próximo. Por intermédio
dessa vertente, o ser humano tem a
oportunidade de realmente conhecer
o ambiente no qual está inserido, in-
terpretar o passado e, assim, perceber
melhor o que ainda está por vir. Ao
olhar para o outro, pode-se até abs-
ter-se dos preconceitos, adquirindo
novos conhecimentos que certamen-
te mudarão sua visão de mundo.
A Filosofia implica uma atitude
de humildade, socrática - Só sei que
nada sei. Essa deve ser a primeira
postura filosófica, e a própria visão
gadamemiana aborda isso. Primeira-
mente, seria necessária uma aber-
tura para as coisas novas, sem se
prender a idéias que você considere
inalteráveis, pois tudo pode ser con-
testado. "Ao dialogar com outro,
você vai compreendê-Io melhor, in-
clusive entender melhor aquilo que
você pensa", explica o advogado e
mestre em Filosofia do Direito, Luiz
Antônio Lucena de Oliva.
Assim, é essencial ser humilde
para fazer o bom uso da Herme-
nêutica. A pessoa deve ter consci-
ência de seus preconceitos e abrir-
se ao outro, já que o próximo é o
fundamento de mim mesmo. "Essa
abertura ao outro é fundamental,
quer no conhecimento filosófico
•
Abrir-se ao próximo é fundamental; é
questão de ed1rcação. Dessa maneira;
se forma um cidadão responsável
ou científico, quer no terreno da
sociedade, das relações sociais. Isso
é educação. Quando se fala em for-
mar um cidadão responsável, fala-se
num cidadão que consiga viver na
sociedade", completa.
A Hermenêutica é uma prepa-
ração para o raciocínio filosófico
social, uma tentativa de se condu-
zir ao futuro de uma maneira que
não seja predatória, com desprezo,
para o entendimento mútuo. nA
missão da Filosofia é abrir terreno
para que as ciências se compreen-
dam melhor. Ela não está acima das
outras ciências, mas busca abrir os
caminhos. E nisso a Hermenêutica
é necessária", completa.
•
FILOSOFIAciência&vida 65
IORRENTE
o passado não é algo que fica apenas como
"peça" de museu. Ele é uma fusão de horizontes
de quem interpreta ou daquilo interpretado
DURALEX
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'ijt\lJe 1:1'Her.rrénêutitaapresen~' ~
66 FILOSOFIAciência&vida
todo utilizado somente por cientistas e
especialistas, uma vez que o essencial é
solucionar o problema geral da compre-
ensão relacionado, fundamentalmente,
ao campo da intersubjetividade.
Outro pensador que se ocupou
de refletir acerca da temátíca foi Hans-
Georg Gadamer (1900-2002), autor do
livro Warhheit und Methoâe (Verdade
e Método), no qual constrói uma novahermenêutica filosófica. Vale destacar
que esta obra também foi muito dis-
cutida no ramo das ciências humanas.
O advogado e mestre em Filosofia do
Direito, Luiz Antônio Lucena de Oliva,
diz que a partir dessa nova concepção,
a hermenêutica, que até então era teoló-
gica, deveria seguir como uma premis-
sa, uma condição das ciências humanas.
"Para ele, o passado não é algo que fi-
que apenas como museu, como coisa
morta", diz. Ao se voltar para um texto
elaborado em épocas anteriores, conti-
nua Oliva, uma fusão de horizontes de
quem interpreta e de quem é interpreta-
do, reaviva esse passado sob uma nova
ótica. Isso significa que a vertente filo-
sófica, diferentemente da teológica, não
implica em colocar o passado em uma
vitrine. Este pode ser fruto de novas in-
terpretações, o que faz com que esteja
sempre presente.
Para Oliva, o estudo do passado, es-
sencial para a interpretação de um tex-
to, é feito com as categorias e as visões
do mundo presente. Por esse motivo um
texto traduzido hoje daqui a dez anos
pode ser interpretado de uma outra for-
ma. "A história seria sempre viva e recu-
perada", diz. A preocupação de Gadamer
é referente às relações humanas, por isso
o filósofo considerava que a Hermenêu-
tica deveria ser uma espécie de premissa
das ciências humanas. Pode-se dizer que
no eixo central da Hermenêutica está a
meta de entender as condições em que
uma obra foi elaborada, o meio social e
histórico em que o autor vivia, qual visão
de mundo prevalecia então. "Essa análise
envolve ainda os valores daquele que in-
terpreta. Por isso Gadamer fala em uma
fusão de horizontes: seu mundo mais a
visão de mundo do autor", diz Oliva.
A perspectiva do assunto em Gada-
mer se faz tributária do desenvolvimen-
to da questão ontológico-hermenêutica
em Martin Heidegger (1889-1976). É ele
quem explica o raciocínio. "A pressupo-
sição de uma hermenêutica entendida
como teoria do conhecimento, algo que
está posto em Wilhelm Dilthey (1833-
1911), será questionada por Heidegger
e, em seguida, por Gadamer", diz Ya-
zbek. Heidegger faz com que a teoria
do conhecimento seja, desde o início,
transformada por uma interrogação que
a precede, e que visa o modo como um
ser encontra outro ser, antes mesmo
que esses dois se oponham sob a forma
da relação sujeito/objeto. Assim sendo,
"não devemos esperar de Heidegger ou
de Gadamer qualquer aperfeiçoamento
da problemática metodológíca susci-
tada pela exegese dos textos sagrados
ou profanos, ou mesmo pela filologia",
analisa. De certa forma, a hermenêuti-
ca migra do campo da teoria do conhe-
cimento para uma teoria do ser. Essa
transformação torna-se necessária, pois
uma nova questão nasce. Ao invés de
FILOSOFIAciência&vida 67
,....,
•
~
I
i,
ORRENTE
A verdade é o conceito mais problemático da
Filosofia, pois não há verdade absoluta, ela é
sempre relativa ou, pelo menos, parcial
perguntarmos como sabemos, passamos
a nos preocupar também com quem é o
autor, o meio em que ele vive, ou seja,
nos preocupamos também em compre-
ender o outro.
Atualmente, a Hermenêutica é uma
das principais correntes da Pilosofia
contemporânea e, assim como a Filo-
sofra Analítica e a Fenomenologia. se
constitui atualmente não como uma
disciplina particular, com limites e te-
mas determinados, mas sim enquanto
uma 'corrente' ou 'tendência' que se
ocupa de questões dos mais diferentes
setores da existência.
Para bem compreender
é preciso colocar-se no
lugar do outro
NOVOS HORIZONTES
DE INTERPRETAÇÃO
De acordo com Hans-Georg Gadamer, o ser humano pode secompreender melhor por intermédio de uma fusão de hori-
zentes possibilitada durante a interpretação do passado ou de textos
antigos. Sob essa ótica, uma interpretação não pode ser vista como
acabada. Exemplo disso é que há a possibilidade, por meio de alguma
descoberta ou recuperação de documentos que mudem nossa vi-
são por meio da Paleontologia, de reinterpretar filósofos mais antigos
como Platão e Aristóteles. Isso ocorre porque devido às peculiarida-
des culturais de cada sociedade, todo ser humano tem uma visão úni-
ca de um mesmo acontecimento. Até na mesma geração, não há um
indivíduo igual ao outro. Da mesma maneira que não há um filósofo
igual ao outro. Sendo assim, cada pessoa, ao interpretar uma mesma
obra, criará sua própria versão, influenciada pela visão de mundo que
ela tem. Partindo desse conceito, não há uma verdade única, há uma
verdade para cada pessoa. A verdade é o conceito mais problemático
da Filosofia, pois não há verdade absoluta, ela é sempre relativa, ou,
pelo menos, parcial. Não há verdade acabada, texto morto. Não há
significado permanentemente elaborado.
68 FILOSOFIAciência&vida
Referindo-se a sua utilidade no dia-a-
dia, o filósofo Oliva revela que, na visão
de Gadamer, a primeira postura relevante
do método é a auto-reflexão. Ou seja, o ser
humano olhar dentro de si, no sentido de
ver o mundo no qual está imerso; os valo-
res, as crenças, aquilo que foi passado pela
sociedade em que vivemos. "De um modo
indireto, a Hermenêutica simplifica a pró-
pria comunicação humana no momento
em que ela elucida determinados terrenos
obscuros sobre os quaís homens às vezes
não entendem bem o sentido ". Sendo as-
sim, ajuda na comunicação porque vai
ajudar os pensadores a se compreenderem
e os auxilia a melhor dialogar com as ou-
tras pessoas. Assuntos, até então obscuros
numa sociedade, aos poucos são esclareci-
dos por intermédio do avanço das pesqui-
sas, e das interpretações que são refeitas,
sendo o passado elaborado novamente.
"Em qualquer ciência, tudo está sujeito a
ser revisto. Quanto mais a gente vive, mais
temos condições de compreender nossa
história de vida. Isso, ampliado num nível
sócio-histórico, é o objetivo preliminar da
Hermenêutica", analisa Oliva.
Agora, seria esse método,
apesar da sua importância reconheci-
da por muitos pensadores, infalível? A
resposta é positiva e o filósofo alemão
Jürgen Habermas apresenta uma análise
crítica, mas sem desprezá-Ia. Habermas
diz que "ela é um passo, mas que não vê
tudo". Por isso a necessidade de criticá-Ia,
pois não é perfeita. Para ele, o hermeneuta
gadamerniano teria que praticamente se
transportar a determinada visão de mun-
do, daí a importância de um estudo criti-
co. Sob essa perspectiva, a Hermenêutica
é a primeira etapa. Oliva cita o francês
Paul Ricoeur (1913-2005) como pensador
que procura fazer uma conciliação entre
ambas as visões (Habermas e Gadamer).
No Brasil, Ernildo Stein, da Pontifícia Uni-
versidade do Rio Grande do Sul (PUC-RS)
faz essa ponte. Ricoeur acredita que todo
desejo é mascarado, escondendo suas ver-
dadeiras intenções. Cabe à interpretação
e a Hermenêutica arrancar o verdadeiro
anseio das pessoas.
Uma outra vertente da Filosofia, a ana-
lítica, promove uma critica da Hermenêu-
tica, embora ambas apresentem similarida-
des. Yazbek, resumidamente, explica que
elas são teorias da significação, pois o con-
ceito de sentido é o centro nas duas. Ainda
de acordo com ele, a filosofia analítica é
essencialmente a fixação de um método,
a análise lógica da linguagem. "Por outro
lado, enquanto que na reflexão analítica o
sentido se refere especificamente ao
sentido dos enunciados lingüísticas,
cujo caráter é proposicional, na Her-
menêutica o conceito de sentido será
mais amplo. Além do sentido propo-
sicional, também estará em questão o
sentido dos atos, dos fatos históricos,
dos objetos culturais, etc" •
FICHA TÉCNICA:
Verdade e Método I - Traços fundamentais de
uma hermenêutica filosófica
Por Hans-Georg Gadamer
(Editora Vozes, 73ó páginas, 2004)
Verdade e Método \I - Complementos e índice
Por Hans-Georg Gadamer
(Editora Vozes, 624 páginas, 2004)
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lIans-Georg
GadalJJer
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FILOSOFIAciência&vida 69

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