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CAPÍTULO 4 MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS METODOLÓGICOS E ÉTICOS A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: Discutir as principais fragilidades e potencialidade que são reconhecidas à memória e à história oral como fontes na produção do conhecimento histórico. Compreender as formas de estruturação, preparação, cuidados preliminares e éticos pertinentes, que acompanham o campo de pesquisa em memória e história oral. Apresentar os principais modelos e métodos que são utilizados na captação, no registro, no inventariado e na sistematização de fontes orais e pesquisa em memória. Enumerar as principais abordagens e elementos que podem ser considerados a partir do momento em que as fontes passam pelo tratamento analítico, crítico e refl exivo. 104 Memória e História Oral 105 MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS METODOLÓGICOS E ÉTICOS Capítulo 4 CONTEXTUALIZAÇÃO Pesquisar memórias e se utilizar de fontes orais para narrar a história exige que nos posicionemos de forma diferente do que se estivéssemos utilizando fontes documentais e escritas, assim como de forma diferenciada em relação ao próprio passado. Antes de mais nada, faz-se necessário repensar e problematizar a matriz de pensamento positivista, que previa o fazer do historiador comprometido em explicar e mostrar o passado como “realmente” havia acontecido e, em contrapartida, incluir as problemáticas que agora emergem das novas fontes historiográfi cas. Memória e história oral passaram a ser enfatizadas em meio ao movimento da Nova História e se fortaleceram mundialmente a partir dos anos de 1980. Ambas envolvem a dimensão de tempo vivido, a experiência e o testemunho ocular, compreendem o “vi/vimos com os nossos próprios olhos”. O sujeito/pesquisador e o objeto de estudo encontram-se na mesma temporalidade; existe a possibilidade de se estabelecer o confronto entre o conhecimento histórico/narrado, o noticiado, e o testemunho vivo, a vivência do fato ou acontecimento. Porém a memória e a história oral carregam consigo certa fragilidade documental, no que diz respeito ao campo da objetividade. Elas são questionadas no quesito de que apresentam pouco recuo temporal, que favorece parcialidade, a tomada de posição diante dos fatos e acontecimentos em questão. No que tange aos entrevistados, podem suscitar sentimentos como de heroísmo ou vitimização. O ato de remexer nas memórias pode tocar em traumas, na frustração de esperanças. Pois bem, caro(a) pós-graduando(a), estas são algumas das questões que serão discutidas ao longo do último capítulo deste caderno de estudos. Agora falta pouco, reforce a atenção e a dedicação, que o aprendizado pode ser ainda mais proveitoso! MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL COMO FONTE DE PESQUISA A história oral e a memória podem ser entendidas como meio e métodos de pesquisa (histórica, antropológica, sociológica) que privilegiam a realização de entrevistas com pessoas que participaram ou testemunharam acontecimentos, possuem experiência em meio a determinadas conjunturas, que possuem determinadas visões de mundo. Segundo Alberti (1990), trata-se de estudar 106 Memória e História Oral acontecimentos históricos, instituições, grupos sociais, categorias profi ssionais, movimentos, entre outros, lançando mão de recursos, fontes e evidências oriundas da história oral. A história oral, como fonte e conhecimento histórico, na circulação no interior dos espaços acadêmicos e de produção do conhecimento científi co, possui uma trajetória caracterizada por momentos de forte valorização e outros de amplo descrédito e esquecimento. Prins (1992 apud BURKE, 1992) discute que os historiadores das principais sociedades modernas, industriais, urbanas e maciçamente alfabetizadas se apresentam como céticos em reconhecer as fontes orais na elaboração do conhecimento histórico. Na concepção positivista de conhecimento histórico, em especial da escola rankeana, do fi nal do século XIX, que privilegiava as fontes ofi ciais e escritas, as fontes orais representavam uma escolha infeliz, que Prins (1992 apud BURKE, 1992, p. 166) analisa e problematiza nos seguintes termos: A questão é que o relacionamento entre as fontes escritas e orais não é aquele da prima-dona e de sua substituta na ópera: quando a estrela não pode cantar, aparece a substituta: quando a escrita falha, a tradição sobe ao palco. Isso está errado. As fontes orais corrigem as outras perspectivas, assim como as outras perspectivas as corrigem. Nesse contexto, as sociedades africanas e indígenas são as mais prejudicadas, ao ponto de serem, por muito tempo, chamadas de povos a-históricos. Prins (1992 apud BURKE, 1992) apresenta que os historiadores vivem em sociedades alfabetizadas e, como muitos dos habitantes de tais sociedades, inconscientemente tendem a desprezar a palavra falada. Para eles, a palavra escrita é soberana, rebaixam a palavra falada como sendo meramente utilitarista e de fraco interesse, nem as nuanças e os tipos de dados orais são levados em conta. Diehl (2002) alerta que a memória, como qualquer outra fonte histórica, sofre de uma fraqueza, que é o desgaste ao longo do tempo. À medida que estiver localizada mais distante do fato, da época, do contexto tomado como objeto de pesquisa, tanto mais desgastada ela estará. Ela sofre um processo natural de corrosão temporal, vai perdendo a força, a capacidade ilustrativa e explicativa de fornecer informações substantivas e concretas; ao ponto de restarem apenas rumores, ruídos, ruínas, murmúrios, vestígios e fragmentos. Caro(a) acadêmico(a), uma vez ciente deste processo histórico a que a memória não escapa incólume, é que se justifi cam e fazem necessárias atividades Diehl (2002) alerta que a memória, como qualquer outra fonte histórica, sofre de uma fraqueza, que é o desgaste ao longo do tempo. 107 MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS METODOLÓGICOS E ÉTICOS Capítulo 4 de rememoração, inventariamentos, registros escritos e digitais, sistematizações e socialização. Tanto Thompson (1992) como Bosi (1994) reconhecem que recaí ao relato oral a percepção de que se trata de uma instância empírica fragmentada, desconexa, incoerente e ambígua. Nesse contexto, Tedesco (2001) defende que o pesquisador em memória e história oral precisa entender temporal e culturalmente tais fragmentos e dar-lhes coerência analítica e compreensiva. Bosi (1994) defende que o historiador necessita reconstruir os fragmentos como se estivesse com um vaso antigo despedaçado em suas mãos, fazendo esforço e tomando o cuidado hermenêutico, de zelo e fi delidade entre os fragmentos e o contexto a que ele pertenceu. Prins (1992 apud BURKE, 1992) explica que a história oral possui forte poder ilustrativo, permite uma evocação descritiva, comovente e que é historicamente libertadora; porém restringe-se à pequena escala, não é capaz de fornecer explicações explanatórias e abrangentes. Prins (1992 apud BURKE, 1992) nos chama a atenção para o fato de que atribuir uma visão muito confi ável às fontes escritas, sem suporte crítico, pode ser perigoso também. É necessário não perder de vista que as fontes documentais não são tão voluntárias e naturais como se costuma pensar, elas também sofrem de seleção à preservação. Muitas vezes, as seleções que os arquivos possuem podem ser oriundas de escolhas erradas e mal-intencionadas diante de determinadas ordens, que deliberam entre o que preservar e o que queimar. Prins (1992 apud BURKE, 1992) levanta outro aspecto que advoga em suspeita às fontes documentais. Desta vez, reside no fato de que existe grande distância entre o texto original oral e o correspondente escrito tornado ofi cial; e que é comum a reelaboração conforme a conveniência do público interlocutor. Por outro lado, o autor defende que os problemasde má utilização de dados orais são mais fáceis de serem localizados e resolvidos. Prins (1992 apud BURKE, 1992) discute, ainda, que se vive em um momento histórico em que ocorre o deslocamento para uma cultura pós-alfabetizada, que tende a ser globalizante, digital, eletrônica, visual e oral, em especial, com a popularização de aparelhos de comunicação móveis e aplicativos que favorecem a comunicação instantânea; o que, por sua vez, é responsável por colocar em apuros toda a tradição historiográfi ca que ainda se sustenta nas bases documentais. O pesquisador em memória e história oral precisa entender temporal e culturalmente tais fragmentos e dar-lhes coerência analítica e compreensiva. A história oral possui forte poder ilustrativo, permite uma evocação descritiva, comovente e que é historicamente libertadora. 108 Memória e História Oral Caro(a) pós-graduando(a), quem sabe possa ser o momento estratégico para que a história oral galgue seu merecido prestígio! Nora (1993) entende que a memória é e foi sempre suspeita à história, que a história possui como missão destruir e repelir a memória. Segundo o autor, a história é a deslegitimação do passado vivido. Postura que é responsável por inúmeros debates e polêmicas, tanto no campo da história como da memória. Pollak (1992) discute que se a memória é socialmente construída, é óbvio que toda documentação também o é. Para o autor, não existe diferença entre fonte escrita e fonte oral. A crítica da fonte, tal como todo historiador aprende a fazer, deve ser aplicada a fontes de todo tipo. Desse ponto de vista, a fonte oral é exatamente comparável à fonte escrita; dito em outros termos, ambas, a fonte escrita ou a fonte oral, podem ser tomadas tal e qual elas se apresentam. Agora, é óbvio que a coleta de representações por meio da história oral, que é também história de vida, tornou-se claramente um instrumento privilegiado para abrir novos campos de pesquisa. Por outro lado, à multiplicação dos objetos que podem interessar à história, produzida pela história oral, implica indiretamente aquilo que eu chamaria de uma sensibilidade epistemológica específi ca, aguçada. Por isso mesmo acredito que a história oral nos obriga a levar ainda mais a sério a crítica das fontes. E na medida em que, através da história oral, a crítica das fontes torna-se imperiosa e aumenta a exigência técnica e metodológica, acredito que somos levados a perder, além da ingenuidade positivista, a ambição e as condições de possibilidade de uma história vista como ciência de síntese para todas as outras ciências humanas e sociais (POLLAK,1992, p. 205). Pollak (1992) nos adverte que as partes mais construídas dizem respeito àquilo que é mais verdadeiro para uma pessoa, mas, ao mesmo tempo, apontam para aquilo que é mais falso, sobretudo quando a construção de determinada imagem não tem ligação ou está em franca ruptura com o passado real. O que mais nos deve interessar, numa entrevista, são as partes mais sólidas e as menos sólidas, pois no mais sólido e no menos sólido se encontra o que é mais fácil de identifi car como sendo verdadeiro, bem como aquilo que levanta problemas de interpretação. Tedesco (2001) descreve que a transmissão da memória depende da maneira como uma cultura representa a linguagem; do modo como uma sociedade/ comunidade utiliza a linguagem como veículo de expressão e comunicação sem fi car totalmente dependente do contexto social imediato. A fonte escrita ou a fonte oral, podem ser tomadas tal e qual elas se apresentam. 109 MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS METODOLÓGICOS E ÉTICOS Capítulo 4 Tedesco (2001, p. 32) analisa que a família é responsável por grande parte do processo de mediação da memória. Veja: Nela cristaliza-me memórias afetivas e sociais; constrói-se personagens centrais, responsáveis por guardar a memória e transmiti-la no tempo. Há museus de família e há museus na família. Os avós reconstroem suas vidas, relembrando a trajetória familiar e estabelecendo, na lembrança, o espaço familiar, a representação da família e suas relações internas. Os avós, ao reconstruírem as suas histórias de vida, reconstroem também a história do modelo familiar, através de caminhos já marcados por lembranças suas e de seu grupo familiar. O sobrenome, por exemplo, não é apenas uma identifi cação pessoal que se esgota no indivíduo que o carrega; há imagens, há contatos com a história, com formas de comunicação temporal, integridades e persistências. Alberti (1990) apresenta que história oral apenas pode ser empregada em pesquisas sobre temas contemporâneos, ocorridos em um passado não muito remoto, isto é, que a memória dos seres humanos alcance, para que se possa entrevistar pessoas que dele participaram, seja como atores, seja como testemunhas. É claro que, com o passar do tempo, as entrevistas assim produzidas poderão servir de fontes de consulta para pesquisas sobre temas não contemporâneos. Prins (1992 apud BURKE, 1992, p. 198) descreve que: Alguns historiadores acham que seu ofício é descrever e, talvez, explicar por que as coisas ocorreram no passado. Esta é uma justifi cativa necessária, mas não sufi ciente. Há dois componentes essenciais da tarefa do historiador. A continuidade deve ser explicada. A continuidade histórica, especialmente nas culturas orais, requer mais atenção do que mudança. A tradição é um processo - vive apenas enquanto é continuidade reproduzida. É efervescentemente vital em sua aparente quietude. Em segundo lugar, a tarefa do historiador é proporcionar ao leitor confi ança em sua competência metodológica. Tedesco (2001) discute que a esfera da memória e dos depoimentos orais, genealógicos e biográfi cos pode contribuir ao campo de análise em história, ligando temporalidades, entrecruzando- as, revelando dimensões do real que permaneciam opacas e pouco visíveis, resgatando e dando voz ativa a atores sociais que haviam sido silenciados. Tedesco (2001) discute que a esfera da memória e dos depoimentos orais, genealógicos e biográfi cos pode contribuir ao campo de análise em história, ligando temporalidades, entrecruzando- as, revelando dimensões do real que permaneciam opacas e pouco visíveis, resgatando e dando voz ativa a atores sociais que haviam sido silenciados. 110 Memória e História Oral Os chamados “novos temas e fontes” são novos no olhar do pesquisador, que, agora, conta com outra percepção ao revolver o passado, mas que estes temas sempre estiveram no passado e o que não estava desperto e atento era este olhar e consciência para com os outros sujeitos, objetos, problemas e fontes. Trata-se de um campo de análise que possibilita amplamente o diálogo interdisciplinar em termos de áreas do conhecimento, tais como a história, antropologia, sociologia, paleontologia, psicologia, linguística, e os temas transversais, como a história política, geopolítica, cultura, tradição e modernidade novo/antigo, cidadania e direitos humanos. História oral acaba por reunir e conciliar elementos da mitologia, da genealogia e da narrativa histórica. Com o pós-guerra mundial e com o movimento de renovação do conhecimento histórico nos anos de 1960, com a Nova História, História das Mentalidades, História Local, História da Vida Privada, História das Mulheres, entre outros, as fontes orais passam a ser valorizadas. No Brasil, a história oral passou a ser utilizada nos centros de pesquisas e documentação a partir dos anos de 1980, um tanto em defasagem se comparada a outros países que, desde os anos de 1960, vinham empregando-a na produção do conhecimento histórico da época contemporânea. Isso se deve ao fato de que o Brasil (1964-1985) e alguns países da América Latina viveram experiências de regimes políticos de ditadura militar, o que, por sua vez, impedia o amplo acesso às fontes e às discussões que envolvessema conjuntura política do momento. As atividades de registro de memórias e testemunhos de forma oral consistem em operações intelectuais que exigem disponibilidade dos depoentes. Métodos, equipamentos de captação, atividade de transcrição, ordenação, sistematização, crítica e refl exão por parte do pesquisador. Nesse ponto, já ocorre o seguinte questionamento: conforme se avança no inventariamento, na captação e nos registros dos resquícios da memória e da história oral, que, conforme se adentra ao campo da história, não estaria sendo perdido o que é genuíno e específi co do campo da memória e da oralidade, o que é a imaterialidade, o intangível?!. Caro(a) pós-graduando(a), mas quem sabe deixemos estas questões para um momento futuro, quando da continuidade de seus estudos, em nível de mestrado, pois o debate avança para o campo epistemológico do conhecimento e requer ampliação, aprofundamentos e cuidados teóricos nos estudos. Agora As atividades de registro de memórias e testemunhos de forma oral consistem em operações intelectuais que exigem disponibilidade dos depoentes. Métodos, equipamentos de captação, atividade de transcrição, ordenação, sistematização, crítica e refl exão por parte do pesquisador. 111 MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS METODOLÓGICOS E ÉTICOS Capítulo 4 vamos avançar no que diz respeito ao campo da pesquisa em memória e história oral propriamente dito! Mas antes disso, gostaria de fazer uma pequena intervenção sobre um fato/ fenômeno admirável na história da humanidade, prossiga na leitura abaixo: No sentido de purgar a experiência histórica e de contemplar a causa das vítimas do holocausto praticado em meio aos campos de concentração da Alemanha nazista da segunda guerra mundial, foi criado um dia em memória ao holocausto, que é o 04 de maio: Figura 11 - Dia 04 de maio: Dia em memória ao holocausto Fonte: Disponível em: <https://goo.gl/bpdNr3>. Acesso em: 09 maio 2016. Os sobreviventes do holocausto, os descendentes ou a comunidade judaica não saíram às ruas a procura de vingança ou revanche diante da tragédia de que haviam sido vítimas. A postura daqueles indivíduos foi a do perdão e da disposição voluntária em servir como testemunho sobre o que lhes havia ocorrido. No Brasil, ao longo do século XX, conta-se com diversos momentos em que a expressão da opinião pública e a postura de oposição ao regime político não era tolerada, em especial, ao longo do regime de ditadura militar (1964-1985). No sentido de investigar, apurar e julgar os crimes cometidos contra os direitos humanos é criada a Comissão Nacional da Verdade, observe a seguir: 112 Memória e História Oral COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE/CNV A Comissão Nacional da Verdade/CNV foi criada pela Lei n. 12.528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012. Sua principal fi nalidade é apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Maiores informações sobre as atividades da CNV encontram-se disponíveis em: <http://www.cnv.gov.br/>. Atividade de Estudos: 1) Existe, em sua comunidade, cidade ou região datas, atos, festas e eventos que são organizados e comemorados em alusão ou em memória a alguma pessoa, algum fato e/ou fenômeno socialmente reconhecido? Quais? ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ Caro(a) pós-graduando(a), neste momento, quem sabe deixemos um pouco em segundo plano os conteúdos teóricos e conceituais que tratam desde a conceituação até a problematização dos usos da memória em nossa época, e nos dediquemos a estudar e a compreender as orientações e as recomendações que são feitas ao campo da pesquisa propriamente dito. Sedo assim, prossiga nos estudos com atenção redobrada! 113 MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS METODOLÓGICOS E ÉTICOS Capítulo 4 PREPARANDO O CAMPO DE PESQUISA Caro(a) pós-graduando(a), a captação de entrevistas orais não pode ser compreendida como um ato simples de registro de dados, gratuito e natural, em que os dados e as informações encontram-se latentes à espera de serem gravados e registrados; o fazer histórico em memória e história oral reside em captar as nuances, as sutilezas, os ditos e não ditos, as oscilações, as entonações, os silêncios, os trejeitos faciais, os traquejos da fala, os signifi cados, as implicações, os interesses e julgamentos presentes nos discursos. Thompson (1992) apresenta que o trabalho de campo, para ser bem-sucedido, exige habilidades humanas e sociais ao trabalhar com os informantes, tanto quanto conhecimento profi ssional. Toda a comunidade carrega dentro de si uma história multifacetada de trabalho, de vida familiar e relações sociais à espera de alguém que a traga para fora. Segundo Santos (2000), uma vez que nos dedicamos aos estudos e pesquisas em memória e história oral, temos a oportunidade de perceber como os discursos históricos e historiográfi cos são produzidos, em especial, perceber que a história está presente em todos os lugares, em todos os momentos. De que o lugar, o local seja quando, qual e onde for, encontra-se historicamente inserido em espaços e contextos mais amplos, que se encontra profundamente enredado em condições econômicas, políticas, sociais e culturais vividas no dia a dia por seus habitantes, seja no município, seja no país, seja no mundo. [...] as entrevistas como formas capazes de fazer com que os estudos de história local escapem das falhas dos documentos, uma vez que a fonte oral é capaz de ampliar a compreensão do contexto, de revelar os silêncios e as omissões da documentação escrita, de produzir outras evidências, captar, registrar e preservar a memória viva (SAMUEL, 1989, p. 233). Halbwachs (1990) explica que a necessidade de escrever a história de uma pessoa desperta somente quando os interessados estão muito distantes no passado, como se houvesse a oportunidade de encontrar testemunhas que dela conservem alguma lembrança. Félix e Grijó (1999) analisam que lidar com a história oral é uma atividade ao mesmo tempo agradável e tensa, pois remonta-se, reconta-se toda uma vida e este desnudar-se profi ssional, familiar e pessoal diante do outro, envolve sensibilidades pessoais e alheias. Lida-se com bons e desagradáveis momentos, com traições, desilusões, pressões, culpas, ressentimentos, marcas, feridas, O fazer histórico em memória e história oral reside em captar as nuances, as sutilezas, os ditos e não ditos, as oscilações, as entonações, os silêncios, os trejeitos faciais, os traquejos da fala, os signifi cados, as implicações, os interesses e julgamentos presentes nos discursos. 114 Memória e História Oral cicatrizes e perigos. Sendo assim, ao trabalharmos com memórias e fontes orais também nos tornamos cúmplices da emoção e da comoção que o entrevistado reviverá. As atividades do lembrar são muito mais um exercício do e no presente do que um exercício de trazer/deslocar para o presente fatos já vividos. Rememorar não é o mesmo que viver novamente o passado, depende da leitura do sujeito que a produz, em uma sociedade, um contexto e um momento que se diferencia daquele a qual se refere à lembrança do fato ocorrido. Certeau (1994) argumenta que a memória produz, num lugar que não lhe é próprio, e procura tornar mais inteligível a teoria, utilizando-se da metáfora e analogia. A memória é como os pássaros que põem ovos no ninho de outras espécies. Vansina (2010 apud KI-ZERBO, 2010) explica que a tradição oral é o testemunho oral transmitido verbalmente de uma geração para a seguinte, ou mais; e adverte que se torna cada vez menos pronunciada, à medida que a cultura se move paraa generalização da alfabetização. Prins (1992 apud BURKE, 1992) descreve que outro tipo de fonte oral reside na reminiscência, que consiste na evidência oral específi ca das experiências de vida do informante, tais como os traumas e as sequelas que permanecem depois da ocorrência de uma determinada experiência e vivência. Em termos de memória e história oral, diz respeito à dimensão das reminiscências que são reconhecidas como responsáveis por proporcionar a evocação de memórias e recordações, ou seja, tornar possível trazer ao momento presente as experiências e vivências passadas, imbuídas de emoção e comoção. Imaginamos que você deve estar se perguntando: O que são reminiscências? Bem, em seguida, vamos tratar de discutir esta questão, mas fi que atento, trata- se de um elemento que requer atenção e cuidado delicado, prossiga na leitura! Em se tratando de reminiscências no campo da memória e história oral, pode-se considerar a situação, por exemplo, de quando o barulho de disparos de metralhadoras ou de sobrevoo de aviões são responsáveis por sensibilizar a memória e as lembranças de um ex-combatente de guerra; assim como um determinado cheiro pode sensibilizar as reminiscências dos tempos de infância de um indivíduo; determinada música, os momentos de tortura que foram vividos em meio à ditadura militar, causando forte comoção dos sentidos e precipitação das emoções. As reminiscências pessoais podem proporcionar inúmeros elementos da riqueza de detalhes que não estão registrados nos materiais escritos; podem dar A memória é como os pássaros que põem ovos no ninho de outras espécies. 115 MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS METODOLÓGICOS E ÉTICOS Capítulo 4 conta do que Geertz (1989) chamou de “descrição densa”, ou seja, informações que possuem profundidade, contornos e nuances substanciais, ímpares e excepcionais. Prins (1992 apud BURKE, 1992) descreve que a reminiscência pessoal permite ao historiador extrair elementos e evidências para estudar a variação de escalas e problemas na história contemporânea, no sentido de que os dados orais servem para conformar outras fontes, assim como as outras fontes servem para confi rmá-las, proporcionando detalhes insignifi cantes que, de outra forma, são inacessíveis e, por isso, estimular a reanalisar outros dados de maneiras novas. ALGUNS CAMINHOS METODOLOGICOS Caro(a) pós-graduando(a), em termos de estratégias metodológicas de enquadramento de memória e história oral, serão apresentadas duas possibilidades, ou seja, a entrevista individual e em grupo focal. Prossiga na leitura de seu caderno de estudos porque cada estratégia será aprofundada e explicada a seguir. Independente da forma de enquadramento e captação, entrevista individual ou grupo focal, o objetivo ou o problema de pesquisa/entrevista deve previamente estar bem claro, objetivo e sistematizado. Sendo assim, neste momento, procura- se apresentar dois principais caminhos no sentido de realizar entrevistas, seguidas de registros de áudio e vídeo. Entretanto, existem alguns procedimentos e cuidados que devem ser tomados, independente da forma de enquadramento em que será realizada a entrevista. Observe as considerações abaixo: • Escolha dos entrevistados: Na escolha do entrevistado, devem ser levados em consideração aspectos, tais como o grau de envolvimento e participação que teve com o tema e problemática da pesquisa; Preze por entrevistar indivíduos que possuem informações que ultrapassam os trabalhos já existentes, bem como possuam algum ponto de vista ou perspectiva que seja inédita ou excepcional sobre o tema em questão; Considere, também, pessoas que são referência e que ocupam cargos de liderança em uma determinada região, cidade, bairro, comunidade na qual ocorreram acontecimentos e fenômenos, estas podem fornecer elementos que 116 Memória e História Oral foram colhidos em meio aos mais diversos indivíduos, bem como estiveram acompanhando as repercussões que o ocorrido provocou; O entrevistado precisa expressar a vontade e a disposição em prestar o testemunho e que este fato não cause constrangimentos ou que o exponha de forma indiscriminada, apelativa e sensacionalista, tanto em termos de conteúdo como de imagem. Thompson (1992) adverte para que se evite a imposição de entrevista a quem não esteja e não se sinta disposto para tal, por mais relevante e excepcional que seja o que esta pessoa possa testemunhar. É de fundamental importância que ocorra a elaboração prévia de uma pauta que oriente e conduza a entrevista, e que contemple perguntas historicamente relevantes. Por outro lado, deve-se evitar o ato de gravar apenas depoimentos seguros e bem articulados. Para tanto, observe as sugestões que são feitas para os roteiros semiestruturados: • Roteiro semiestruturado: Organizar um roteiro mínimo de perguntas que subsidiem e articulem a aproximação e o fechamento do tema em questão; O roteiro deve ser disponibilizado ao entrevistado ou aos entrevistados com uma média de 15 dias de antecedência à data da entrevista; Podem ser feitas perguntas como da fi liação, do nascimento, da cidade natal, cidades em que viveu, sobre as experiências de trabalho, da escolaridade e da tradição religiosa, da fi liação partidária, do exercício de cargos de liderança/ destaque na comunidade, da relação direta e indireta com o fato/acontecimento em questão, da relação e da percepção do fato com o transcorrer do tempo; A mudança de pergunta ou de tópico deve ocorrer conforme cada item anterior for sufi cientemente respondido e esgotado. Caro(a) pós-graduando(a), observe abaixo que se procura apresentar um modelo de roteiro semiestruturado que pode ser feito no momento da entrevista de trabalhador de sapataria, e, é claro, que alcance os problemas e as questões de pesquisa propriamente ditas. 117 MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS METODOLÓGICOS E ÉTICOS Capítulo 4 Quadro 1 - Roteiro de entrevista oral Fonte: A autora. O roteiro abaixo é orientador para as principais perguntas que podem ser feitas na hipótese de um entrevistado que seja de alguma profi ssão que não é mais realizada e ou que se encontra em baixa atividade na atualidade, tais como: sapateiros, alfaiates, parteiras, costureiras, ferreiros, relojoeiros, engraxates, cobradores de ônibus, telefonistas, ourives, datilógrafos, vendedores ambulantes e artesãos em geral. Cada pergunta deve ser compreendida no campo amplo de interpretação que suscitam. Atividades de Estudos: 1) Descreva aqui quais são as pessoas da sua comunidade, cidade e região que são fontes potenciais a estudos de memória e história oral. 1. Nome completo: 2. Naturalidade: 3. Data de nascimento: 4. Nome dos pais: 5. Escolaridade: 6. Trajetória profi ssional: 7. Quando e como iniciou as atividades na profi ssão? 8. O que fez com que optasse pela profi ssão? 9. Mais alguém na família atuava, atuou ou atua neste ramo? 10. Quais eram as principais matérias-primas e ferramentas utilizadas? 11. Quem eram seus clientes? Como chegavam até você? 12. Alguém mais participava e lhe ajudava no trabalho? 13. Que modelos e estilos eram mais procurados? 14. Que mudanças e permanências foram ocorrendo com o passar do tempo? 15. Que importância e signifi cado econômico, político, social e cultural você reconhece para o exercício desta profi ssão? 16. Que benefícios e que difi culdades encontrou exercendo esta profi ssão? 17. Ocorreu-lhe algum trauma, acidente ou doença decorrente da atividade profi ssional? 18. Quais os fatos curiosos, vivenciados por você ao longo de sua experiência? Agradecimentos e encerramento. 118 Memória e História Oral NOME PROFISSÃO, FUNÇÃO, FATO OU FENÔMENO ENDEREÇO DE CONTATO 2) Elabore um roteiro de entrevista oral que se destine a uma antiga parteira. ROTEIRO DE ENTREVISTA ORAL PARA PARTEIRA 119 MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOSMETODOLÓGICOS E ÉTICOS Capítulo 4 Caro(a) pós-graduando(a), até aqui procuramos apresentar e discutir no que consiste e como se procede quando se opta pela metodologia de entrevista oral individual. A seguir, procura-se apresentar elementos sobre a tomada de entrevista de forma coletiva. Prossiga seus estudos e atente para as possibilidades que esta forma de pesquisa pode proporcionar. GRUPOS FOCAIS COMO FORMA DE PESQUISA “O sentido é uma construção social, um empreendimento coletivo, mais precisamente interativo, por meio do qual as pessoas – na dinâmica das relações sociais historicamente datadas e culturalmente localizadas – constroem os termos a partir dos quais compreendem e lidam com as situações e fenômenos à sua volta”. Spink e Medrado Como o próprio nome da estratégia já indica, tratam-se de temas, conteúdos centrais, em foco, em torno dos quais os participantes irão expor as experiências, vivências, sentimentos, interpretações e percepções que possuem. Podem ser utilizadas para compreender o processo de construção da percepção, valores morais e representações sociais. As entrevistas focais favorecem uma grande quantidade de interações sobre um determinado tema. Trata-se da tomada de depoimentos e testemunhos em um grupo, ou seja, na dimensão coletiva. Consiste numa estratégia em que o pesquisador lança um tópico ou tema em específi co a um grupo de indivíduos e coleta os dados por meio das interações e dos relatos que estes manifestam em meio ao grupo e em um determinado tempo de conversa. Logo, a opinião e o pensamento unilateral, bem claro e objetivo, não é favorável, ganha-se quando se promove ampla participação e interação dos participantes, quando se evidenciam os mais variados pontos de vistas e nuances diante de uma mesma experiência. Nesse caso, o entrevistador ocupa uma posição intermediária, de mediação entre a observação participante e a pesquisa aprofundada, estruturada por tópicos e questões geradoras. A tomada de entrevistas por meio de grupos focais vem sendo utilizada desde o fi m da Segunda Guerra Mundial. Veiga e Gondim (2001) apresentam que foram utilizados grupos focais durante a Segunda Guerra Mundial para examinar os efeitos de alcance e nível de persuasão O entrevistador ocupa uma posição intermediária, de mediação entre a observação participante e a pesquisa aprofundada, estruturada por tópicos e questões geradoras. 120 Memória e História Oral da propaganda política e para avaliar a efi cácia do material de treinamento de tropas, bem como identifi car os fatores que afetavam a produtividade nos grupos de trabalho. A partir de 1980, os grupos focais passaram a ser empregados para entender e avaliar a interpretação da audiência em relação às mensagens da mídia. Mais recentemente, a técnica tem sido utilizada pelas áreas do marketing, publicidade e propaganda, psicologia e saúde pública, almejando verifi cação de satisfação do consumidor ou de intervenção e tomada de decisão diante de questões e projetos que atingem grupos ou comunidades de indivíduos. Nesta modalidade de entrevistas, o entrevistador assume o papel de facilitador de diálogos e dos processos de discussão diante de um grupo que compartilha uma mesma experiência, portanto, sugere-se que esta técnica seja conduzida por mais de um pesquisador, para que estes aspectos sejam melhor observados e acompanhados. Segundo Gui (2003, p. 140), “o principal interesse é que seja recriado, um contexto, ou ambiente social, onde um indivíduo pode interagir com os demais, defendendo, revendo e ratifi cando suas próprias opiniões e infl uenciando as opiniões dos demais”. No transcorrer da entrevista, o facilitador precisa estar sensivelmente atento para aspectos, tais como: • Moderar a postura hegemônica e dominadora de determinados participantes; zelar pela participação proporcional, democrática e respeitosa; • Mediar situações como a de abrir mão do controle e se afastar do tema central ou restringir-se à entrevista, tendo em vista evitar o bloqueio da espontaneidade e a fl uidez da discussão; • Apresentar tato e percepção para quando o assunto tender a se esgotar e chegar em pontos ameaçadores e delicados. Um ponto de difi culdade que se apresenta às tomadas de entrevista por meio de grupo focal reside na conciliação de datas e horários em que os participantes estejam disponíveis. É importante, também, que se priorize a participação de pessoas estranhas ou que não possuam vínculos ou relações de convívio muito próximas entre elas. É prudente que o número de participantes não exceda a 12 pessoas. O entrevistador assume o papel de facilitador de diálogos e dos processos de discussão diante de um grupo que compartilha uma mesma experiência. 121 MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS METODOLÓGICOS E ÉTICOS Capítulo 4 Para estruturar a atividade de pesquisa focal, é importante que pelo menos existam quatro pessoas envolvidas, um moderador principal, um co-moderador, um responsável pelos equipamentos de gravação e outro responsável pelo controle do tempo. No que tange aos temas de memória e história oral, o direcionamento que a pesquisa por meio da estratégia de grupo focal deve priorizar são as vivências diante de fatos, acontecimentos e/ou processos históricos. A análise deve alcançar tanto a participação do indivíduo no grupo como o teor das opiniões em concordância e em divergência diante do tema. A análise deve seguir a preocupação das impressões manifestas no coletivo, atentando para as formas de comunicação e linguagem do grupo, as preferências compartilhadas, questões emergentes e latentes, os impactos e efeitos que o tema em questão exerceu e exerce sobre os indivíduos participantes. Caro(a) pós-graduando(a), abaixo procura-se apresentar um modelo de roteiro de entrevista focal, almejando assegurar que alguns tópicos sejam minimamente discutidos. O roteiro foi pensado a partir da hipótese de entrevista focal com indivíduos que são devotos de alguma personalidade religiosa reconhecida em sua região. Observe com atenção: A análise deve alcançar tanto a participação do indivíduo no grupo como o teor das opiniões em concordância e em divergência diante do tema. Quadro 2 - Roteiro de entrevista oral 1. Apresentação dos participantes (nome, naturalidade, atividades na comunidade e confi ssão religiosa): 2. Que relação possuem ou possuíam com o(a) religioso(a)? 3. O que sabem sobre a vida pessoal, familiar e pública do(a) religioso(a)? 4. Ocorreu algum fato e fenômeno atípico ou curioso na vida do(a) religioso(a)? 5. Quais são os principais feitos ou poderes que são atribuídos ao religioso(a)? 6. Quando os feitos e poderes se intensifi caram? 7. Como souberam dos feitos e/ou dos poderes espirituais do(a) religioso(a)? 8. Qual era o envolvimento/engajamento político, econômico, social e cultural do(a) religioso(a) na comunidade? 9. Se se encontra falecido(a), como veio a falecer? 10. Quais são os motivos e causas que levam as pessoas a procurar pelo(a) religioso(a)? 11. O local onde ele/ela se encontra é apropriado para atender aos que o/a procuram? 12. O que é mais correto que seja feito no e com o local onde o religioso(a) se encontra? Agradecimentos e encerramento. Fonte: A autora. 122 Memória e História Oral Atividade de Estudos: 1) Elabore um roteiro de entrevista focal que se destina a indivíduos que presenciaram um evento de incêndio de um antigo cinema ou teatro. ROTEIRO DE ENTREVISTA FOCAL Um dos desafi os que recai ao facilitador da entrevista em grupo é o de favorecer uma atmosfera/clima natural de acolhimento, humanização, contribuição, partilha e solidariedade de memórias e lembranças, mostrando que todas as experiências são relevantes e importantes no todo e na teia de informações que compõem. Gui (2003) ressalta que se deve estar atento às fragilidades e desvantagensque acompanham a tomada de entrevistas por meio de grupo focal, como, por exemplo, o fato de o entrevistador criar e dirigir o roteiro de fala, o que, por sua vez, implica a perda da espontaneidade das manifestações dos indivíduos entrevistados; assim como o fato de que um indivíduo, na presença de outras pessoas que compartilham da mesma experiência, pode melindrar-se, retrair-se, e que isso afeta o que e como ela se expressaria se perguntada de modo individual e particular. Um dos desafi os que recai ao facilitador da entrevista em grupo é o de favorecer uma atmosfera/ clima natural de acolhimento, humanização, contribuição, partilha e solidariedade de memórias e lembranças, mostrando que todas as experiências são relevantes e importantes no todo e na teia de informações que compõem. 123 MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS METODOLÓGICOS E ÉTICOS Capítulo 4 Caro(a) pós-graduando(a), estando ciente de tais aspectos fi ca mais fácil superá-los quando ocorrerem no campo de pesquisa. Agora iremos discutir cuidados e tratamentos éticos que são cabíveis à prática de pesquisa em memória e entrevista oral. Prossiga na leitura de forma atenta! QUESTÕES ÉTICAS NA PESQUISA EM MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL A metodologia da história oral privilegia a realização e gravação de entrevistas que podem ser tomadas de modo individual ou em grupos de mais pessoas. O entrevistador deve organizar-se no sentido de seguir um protocolo mínimo, que norteia a entrevista como um todo. É prudente que a entrevista seja semiestruturada para orientar antecipadamente o entrevistado, assim como sirva de guia aos entrevistadores. A estruturação das perguntas deve iniciar por aspectos biográfi cos (fi liação, nascimento, cidade natal, cidades em que viveu, experiências de trabalho, escolaridade, tradição religiosa, entre outros) para, depois, avançar para informações de vivências com fatos e fenômenos históricos. O roteiro deve ser entregue ao participante, no caso da entrevista individual, e aos participantes, no caso de grupo focal, com um tempo de pelo menos duas semanas de antecedência. Procure contatar os entrevistados anteriormente para inteirá-los da pesquisa e estudo que está sendo proposto; justifi que a importância/relevância da participação para o estudo e procure convidá-los de modo espontâneo a participar. Neste momento, é importante apresentar, em duas vias, o Termo de Esclarecimento e Livre Consentimento/TELC, seguido de explicações que o entrevistado possa solicitar e, por fi m, reunir as devidas assinaturas. O entrevistador deve organizar- se no sentido de seguir um protocolo mínimo, que norteia a entrevista como um todo. 124 Memória e História Oral Quadro 3 - Termo de esclarecimento e livre consentimento Você está sendo convidado a participar da pesquisa e estudos intitulados __________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ _____________________ cujos objetivos são identifi car aspectos da história, memória e cultura local e regional transcorridos na época de ____________________________________________ ______________________________________________________________________________ _________________________________ A sua participação no referido estudo se dará por meio de entrevista oral gravada e fi lmada a partir de um roteiro de questões semiestruturadas. Essa pesquisa tem como objetivos _______________________________________________________ ______________________________________________________________________________ _______________________________ e tende a gerar benefícios ao conhecimento histórico, tais como __________________________________________________________________________ ________________________________________________________________ e à localidade, co- munidade e região ________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________ _____________________ A pesquisa será realizada somente a partir da leitura, da concordância e de sua autorização, obtida por meio da assinatura deste termo. Por outro lado, você não será sub- metido a qualquer tipo de pressão e assédio, a entrevista será a partir da realização de convite de participação voluntária, considerando a possibilidade da aceitação ou não diante desta e você será tratado com todo respeito, dignidade e ética cabíveis. Depois de gravada e transcrita, a entrevista será entregue para você revisar e autorizar o conteú- do descrito. Você também pode se recusar a participar do estudo, ou retirar seu consentimento a qualquer momento, bem como optar por sair da pesquisa sem precisar justifi car e não sofrerá qualquer prejuízo por isso. O pesquisador responsável pelo estudo é _____________________________________________ _______________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________ ____________________ , que atua na instituição ______________________________________ _______________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________ __________________________________________ localizada no endereço _________________ _______________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________ É-lhe assegurada a assistência durante a realização da pesquisa, bem como são garantidos o sigilo e o livre acesso a todas as informações e esclarecimentos sobre o estudo, enfi m, tudo o que você queira saber antes, durante e depois da sua participação na pesquisa. Você não receberá e nem pagará nenhum valor econômico para participar do estudo. No entanto, caso ocorra algum dano decorrente da sua participação no estudo, será devidamente indenizado, conforme prevê e determina a lei. O Termo de Esclarecimento e Livre Consentimento se encontrará impresso e assinado em duas vias. Uma fi cará em sua posse, outra de posse do responsável pela pesquisa ou por seu representante legal, que providenciará o devido arquivamento. Eu ______________________________________________________________concordo voluntar- iamente em participar da pesquisa/estudo _____________________________________________ ______________________________________________________________________________, 125 MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS METODOLÓGICOS E ÉTICOS Capítulo 4 conforme informações contidas neste TELC, que está impresso em duas vias, fi cando uma com o participante do estudo e a outra com o pesquisador. Cidade, ____ de __________ de 20__. ________________________ _________________________ Participante Responsável pela pesquisa Fonte: A autora. No momento de agendar as entrevistas propriamente ditas, atente para datas e horários que favoreçam de forma mais confortável o entrevistado, respeitando os horários de rotina alimentar, saídas e deslocamentos, compromissos médicos, sociais e de trabalho que o entrevistado possa ter. No caso de entrevistas orais individuais, é prudente que não se estendam muito além de uma hora, e, em caso de grupos focais, que não ultrapassem duas horas. Procure solicitar o acompanhamento e a presença de algum outro familiar do entrevistado no momento da atividade, especialmente, quando se tratar de pessoas com idade avançada ou que demandem cuidados. É importante que seja dado início aos trabalhos com cumprimentos e agradecimentos a todos. Apresentando os objetivos da entrevista, o pesquisador deve ressaltar a importância da fi delidade e verdade às experiências, de que os participantespodem interromper o processo de entrevista a qualquer momento e que não serão lesados por isso, de que estes terão livre acesso ao registros feitos, assim como aos resultados da pesquisa, e, por fi m, da explicação de como vai se dar o funcionamento da entrevista. A entrevista individual pode ser realizada tranquilamente na casa do entrevistado ou outro local que seja de preferência deste; já a entrevista de grupo focal é importante que ocorra em um espaço da comunidade, de fácil acesso e que proporcione acomodação confortável, que não seja de muita circulação de pessoas externas, bem como possua ambientação acústica que impeça a interferência de ruídos e barulhos que desviem a atenção dos participantes ou que comprometam a captação do áudio. No momento de agendar as entrevistas propriamente ditas, atente para datas e horários que favoreçam de forma mais confortável o entrevistado, respeitando os horários de rotina alimentar, saídas e deslocamentos, compromissos médicos, sociais e de trabalho que o entrevistado possa ter. 126 Memória e História Oral Caro(a) pós-graduando(a), quando estiver em meio a uma entrevista e observar que o entrevistado começar a silenciar, calar-se, comover-se e emocionar-se, consulte-o se gostaria de interromper, dar uma pausa, ou até retomar em outro momento e outro dia. Isso é uma atitude de um profi ssional que se comporta de forma responsável e que revela resguardo à dignidade e à segurança emocional do entrevistado. Os registros podem ser feitos por áudio e vídeo ou somente áudio, dependendo de como você, como coordenador e pesquisador responsável, dispor dos equipamentos e como pretende conduzir a atividade de estudo no momento posterior à entrevista. A entrevista deve ser realizada somente a partir da leitura, concordância e autorização obtida por meio da assinatura do Termo de Esclarecimento e Livre Consentimento/TELC, conforme modelo anterior, seguido da entrega e assinatura da Autorização de Uso de Imagem, Som de Voz e Nome que segue. Veja: 127 MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS METODOLÓGICOS E ÉTICOS Capítulo 4 Eu, abaixo assinado e identifi cado, autorizo o uso de minha imagem, som da minha voz e nome por mim apresentados na entrevista concedida, além de todo e qualquer material entre fotos e documentos por mim apresentados, para compor as fontes e material de pesquisa do projeto deno- minado ________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________ ____________________________________________ E que estas sejam destinadas à divulgação ao público em geral e/ou à composição de base de dados e acervo histórico. A presente autorização abrange os usos acima indicados, tanto em mídia impressa (livros, catá- logos, revista, jornal, entre outros) como em mídia eletrônica (programas de rádio, vídeos e fi lmes para televisão aberta e/ou fechada, documentários para cinema ou televisão, entre outros), inter- net, banco de dados informatizado multimídia, “home vídeo”, DVD (digital video disc), suportes de computação gráfi ca em geral e/ou divulgação científi ca de pesquisas e relatórios para arquivamen- to e formação de acervo sem qualquer ônus a __________________________________________ _______________________________________________________________________________ __________________________________ responsável pelo projeto acima referido, ou terceiros por esse expressamente autorizados, que poderão utilizá-los em todo e qualquer projeto e/ou obra de natureza sociocultural voltada à preservação da memória, em todo território nacional e no exterior. Por esta ser a expressão da minha vontade, declaro que autorizo o uso acima descrito sem que nada haja a ser reclamado a título de direitos conexos a minha imagem, som de voz ou a qualquer outro e abaixo assino a presente autorização. Cidade, ____ de __________ de 20__. ___________________________________________ Assinatura Nome: Endereço: Cidade: RG Nº: CPF Nº: Telefone para contato: Nome do representante legal (se menor de idade): Fonte: A autora. Quadro 4 – Autorização de uso de imagem, som de voz e nome Tanto na tomada de entrevista oral individual como no grupo focal, é importante que o entrevistador mantenha sempre uma postura diretiva e orientadora, que convirja para o tema. Porém, é imprescindível que evite o posicionamento, manifestar-se de forma favorável ou contrária em relação à questão em discussão. A credibilidade depositada pelos participantes das entrevistas à pesquisa e ao estudo em questão pode ser reforçada com a prática da devolutiva da transcrição da entrevista aos participantes. Neste momento, enfatize que estes leiam a transcrição e manifestem se estão de acordo com seu conteúdo, bem como se é necessário fazer ajustes. Evite o posicionamento, manifestar-se de forma favorável ou contrária em relação à questão em discussão. 128 Memória e História Oral O pagamento pela participação na pesquisa é responsável por gerar polêmicas no campo científi co, pois envolve questões de proteção, responsabilidade e zelo da liberdade e dignidade dos seres humanos. No Brasil, é uma prática vedada, porém é permitida em países da Europa e nos Estados Unidos. Segundo Abadie (2015), os pesquisadores que advogam de forma contrária ao pagamento pela participação em entrevistas e pesquisas sociais alegam que este consiste numa espécie de coerção e que recai, em especial, a populações pobres e vulneráveis. As pessoas devem ser capazes de decidir, de forma livre e informada, sobre sua participação ou não nas entrevistas, e cabe aos pesquisadores acatarem e respeitarem, independente do potencial, contribuições e relevância do conteúdo que seriam oriundos do aceite à participação. Caro(a) pós-graduando(a), geralmente as pessoas não se indispõem, até esperam e gostam do fato de serem solicitadas a testemunhar, sentem-se reconhecidas, gostam de compartilhar suas memórias e fi cam satisfeitas por saberem que o que presenciaram é importante e pode fazer a diferença para outras pessoas. ASPECTOS TÉCNICOS NO TRATAMENTO DAS FONTES Um dos primeiros passos após a captação e o registro das entrevistas reside no ato de transcrever. Mas, o que é transcrever? De acordo com o dicionário Houaiss, Villar e Franco (2009, p. 1.866), consiste no processo de “escrever novamente (um determinado conteúdo) e em outro lugar; transladar, copiar, reproduzir ou passar para o papel ou equivalente (algo) que está sendo ouvido”. A transcrição deve ser realizada pelo próprio entrevistador e, logo em seguida a realização da entrevista, pois, com o passar do tempo, a memória tende a se tornar menos densa e vivaz, e acaba por negligenciar determinados nuances e detalhes que foram expressos e percebidos no decorrer da entrevista. No ato de transcrever, as passagens pouco audíveis devem ser colocadas entre colchetes; as dúvidas, os silêncios, assinalados por reticências; as pessoas mencionadas e citadas, designadas por iniciais (se necessário); as passagens ou as expressões que ganharam forte entonação devem ser sinalizadas com negrito; os risos, tensões, momentos de dúvidas, intervalos e suspensões da fala também devem ser registrados; os erros fl agrantes para datas, nomes próprios, endereços, devem ser corrigidos; podem ser criados subtítulos temáticos para facilitar a leitura da transcrição. 129 MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS METODOLÓGICOS E ÉTICOS Capítulo 4 Os arquivos de áudio e/ou as fi tas de gravação devem ser guardadas, jamais destruídas, pois constituem documentos primários e originais que podem ser consultados em momentos futuros. Tomando estes cuidados com o processo de transcrição e destino dos registros, as entrevistas poderão servir de fonte para outros pesquisadores com temáticas correlatas, bem como outras questões podemser feitas/verifi cadas e, por fi m, resultar em novas abordagens. No que diz respeito ao modo de uso da entrevista no interior de pesquisas e textos, Santos (2000) orienta que pode ser feita de forma direta ou indireta; que é imprescindível a fi delidade do que foi dito e que a referenciação seja correta, que permita a verifi cação, a comprovação e o aprofundamento por parte de qualquer leitor interessado. Para tanto, a NBR 10520 recomenda que, na apresentação de trechos de entrevistas (textos não escritos), deve-se indicar as falas no texto sob a mesma regra que rege as citações diretas e textuais, ou seja, apresentar sobrenome, ano e página. Se houver necessidade de fazer omissões, cortes e suspensões, estes devem ser identifi cados utilizando as seguintes sinalizações [...]; quando da necessidade de acréscimos, interpolações e comentários, devem ser feitos utilizando os símbolos de [ ]; observe no exemplo hipotético abaixo: Exemplo: Desse modo, “[...] a explicação sobre as estruturas culturais do Brasil foi apresentada nos anos de 1960 [e ainda fornece base de interpretação aos dias atuais] na qual fi cam nítidos os vínculos de dependência que ocorriam (FOCHI, 2016, p. 2). É importante, também, mencionar os dados existentes em nota de rodapé. Quando da formulação da referência bibliográfi ca, deve ser elaborada seguindo o seguinte exemplo: Exemplo: FOCHI, Graciela Márcia. Graciela Márcia Fochi: depoimento [mai. 2016]. Entrevistadores: T. P. Costa. Indaial: Uniasselvi, 2016. 2 cassetes sonoros. Entrevista concedida ao projeto Memória e História Oral da Uniasselvi-Indaial-SC. Em casos onde se faz necessário manter o anonimato dos entrevistados, numere-os ou utilize pseudônimos, conforme o exemplo a seguir: Exemplo: TAL, Fulana de. Entrevista I. [Maio. 2016]. Entrevistador: Graciela Márcia Fochi. Indaial/SC, 2016. 1 arquivo.mp3 (60 min.). 130 Memória e História Oral Caro(a) pós-graduando(a), feitos os estudos que dizem respeito aos aspectos metodológicos e técnicos da pesquisa em história oral, é chegado o momento de atentarmos para elementos que dizem respeito ao tratamento e análise dos dados coletos e obtidos em meio aos trabalhos de pesquisa propriamente dito. Sendo assim, prossiga na leitura do texto que segue. ASPECTOS QUALITATIVOS NO TRATAMENTO DAS FONTES O campo de pesquisa em memória e história oral reserva inúmeras questões instigantes, tais como: confrontar testemunho versus testemunho, testemunhos com documentos escritos; leituras de contexto, o uso de fontes múltiplas, convergentes e divergentes; implicações de se omitir os elementos subjetivos (risos, ironias, tensões e severidades) presentes nos depoimentos. Ao dedicar-se à memória e à história oral, tem-se a oportunidade de perceber como os discursos históricos e historiográfi cos são produzidos, em especial, perceber que a história está presente em todos os lugares, em todos os momentos, e nas formas mais intangíveis e sensíveis possíveis. Santos (2000) explica que o lugar, o local seja quando, qual e onde for, encontra-se historicamente inserido em espaços e contextos mais amplos, e está profundamente enredado em condições econômicas, políticas, sociais e culturais vividas no dia a dia dos indivíduos de uma cidade, de um país, uma nação e no mundo. Samuel (1989) analisa que, além do campo de pesquisa e produção do conhecimento histórico, o uso de memórias e história oral pode ser recurso muito proveitoso também no espaço da sala de aula. Observe as palavras do autor: [...] as entrevistas como formas capazes de fazer com que os estudos de história local escapem das falhas dos documentos, uma vez que a fonte oral é capaz de ampliar a compreensão do contexto, de revelar os silêncios e as omissões da documentação escrita, de produzir outras evidências, captar, registrar e preservar a memória viva. A incorporação das fontes orais possibilita despertar a curiosidade do aluno e do professor, acrescentar perspectivas diferentes, trazer à tona o pulso da vida cotidiana, registrar os tremores mais raros dos eventos, acompanhar o ciclo das estações e mapear as rotinas semanais (SAMUEL, 1989, p. 233). 131 MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS METODOLÓGICOS E ÉTICOS Capítulo 4 Quando se analisa, de forma crítica, as entrevistas, não se pode desconsiderar os interesses próprios e até do grupo ao qual pertencem os depoentes, que tenderão a embutir e camufl ar em meio aos seus discursos. Trata-se de uma posição a que se referem, de fazer valer determinada versão. Os entrevistados selecionam e decidem sobre o que irão falar, o que lembrar, o que enfatizar, o que recortar, o que ocultar, omitir e não contar. Perguntas e problematizações sobre quem e por que depõe, para quem conta, de qual história é testemunho, como este se insere e se percebe no contexto mais amplo dos fatos não podem ser negligenciadas pelo pesquisador. Aspectos, tais como: “a que ponto e em que grau de proximidade possuem com os fatos”; o que querem defender e convencer; que distância existe entre a vivência e o momento da entrevista; o que se passou de relevante relacionado à experiência desde o momento vivido até o momento presente, não podem escapar ao ofício e fazer do pesquisador em memória e história oral. Faz-se necessário reconhecer as posições de caráter da diferença e/ou de alteridade que cada testemunho comporta, tais como a relação de um padre/pastor e um transexual; um comandante e um fuzileiro; um investigador a serviço do governo e um militante de oposição; um trabalhador do campo e um da cidade; um industrial e um operário; o comerciante e seu freguês; homem e mulher, entre outros. Pollak (1992) explica que quando se realizam entrevistas de história de vida, é comum, no decorrer de uma conversa muito longa, que a ordem cronológica deixe de ser obedecida. Os entrevistados voltam várias vezes aos mesmos acontecimentos, e há nessas voltas a determinados períodos da vida, ou a certos fatos, algo de invariante. Segundo o autor, é como se em uma história de vida, seja coletiva ou individual, houvesse elementos irredutíveis, em que o trabalho de solidifi cação da memória foi tão importante que impossibilitou a ocorrência de mudanças. Em certo sentido, determinados números de elementos tornam-se realidade, passam a fazer parte da própria essência da pessoa, muito embora outros tantos acontecimentos e fatos possam ser modifi cados em função do movimento da própria fala, assim como em função dos ouvintes e interlocutores que estão participando da pesquisa. No momento de narrar os resultados encontrados nas fontes, fazem-se necessárias as competências e habilidades de: • Decodifi car, contextualizar, articular, estabelecer relações; Perguntas e problematizações sobre quem e por que depõe, para quem conta, de qual história é testemunho, como este se insere e se percebe no contexto mais amplo dos fatos não podem ser negligenciadas pelo pesquisador. 132 Memória e História Oral • Comparar, interpretar, revelar circunstâncias, contingências, possibilidades de causa, efeito, consequências, sutilezas; • Reconhecer semelhanças, diferenças, peculiaridades; • Perceber intenções, pretensões, conteúdos implícitos; • Refl etir, compreender, narrar tendo como fi nalidade última a verdade, além de reclamar por justiça diante de situações em que os direitos humanos foram violados. É preciso associar os resultados às categorias teóricas de análise próprias aos temas de memória e história oral, assim como em relação ao tema em específi co a que os dados se referem. É prudente que, no decorrer do texto que apresenta um determinado tema e assunto, sejam utilizadas somente frações, trechos da entrevista. Esteja atento para selecionar frases e passagens mais representativas da entrevista e que ilustrem, evidenciem, exemplifi quem e enfatizem elementos e questões centrais do texto. Sepreferir e solicitado for, inclua a entrevista na íntegra nos anexos no fi nal de seu estudo e trabalho. É preciso associar os resultados às categorias teóricas de análise próprias aos temas de memória e história oral, assim como em relação ao tema em específi co a que os dados se referem. Caro (a) pós-graduando (a), obtenha maiores informações para os temas e questões abordadas ao longo deste caderno de estudos acompanhando os debates e estudos que estão sendo feitos em nível nacional e internacional, consultado os seguintes sítios: ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE HISTÓRIA ORAL- ABHO - Criada em 1994 e hoje está ancorada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFGRS. Consulte o site, este reúne um amplo acervo de entrevistas, a Revista História Oral, anais de eventos de história oral que ocorrem no Brasil, informações e agenda de eventos, boletins e notícias entre outras informações. Disponível em: <http://www.historiaoral.org.br/>. ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA ORAL – IOHA - Fundada em 1996. No site você encontrará notícias, publicações, informações de eventos e congressos que ocorrem nas mais diversas cidades do mundo. Disponível em: <http://www.ioha.fgv.br/>. 133 MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS METODOLÓGICOS E ÉTICOS Capítulo 4 REVISTA DE HISTÓRIA ORAL – Criada em 1998, procura fomentar publicações de estudos interdisciplinares sobre teoria e metodologia em história oral. Disponível em: <http://revista. historiaoral.org.br/index.php?journal=rho>. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Pesquisar, registrar, transmitir e preservar conteúdos de memória e patrimônio é documentar a sociedade da qual somos os herdeiros e sucessores mais diretos. Existe um mobiliário histórico e social, coletivo e individual (símbolos materiais, narrativas, iconografi as, escritas, oralidades) que precisa ser documentado e preservado. A posse de um registro como uma experiência, testemunho por meio de entrevista, pode valorizar o trabalho de um pesquisador no sentido de promovê-lo para além do campo das pesquisas comuns, que, muitas vezes, resumem-se em apresentar revisionismos bibliográfi cos e dados de fontes documentais clássicas, as quais vem sendo utilizadas há muito tempo. Estimular e deixar as pessoas falarem não é meramente um exercício de retórica, de boa vizinhança, “jogar papo pro ar”, “conversa fora”, recolher e guardar objetos antigos, visitar monumentos, lugares históricos e de memória, isso tudo, hoje, mais do que ontem, signifi ca uma questão de cidadania, do reconhecimento do vivido, da experiência, da história local, da importância do micro, no qual se dá o compartilhamento e comunhão cotidiana e do imediato do um com o outro, e de um com os outros. Pensa-se que a partir dos caminhos metodológicos e dos cuidados de análise das fontes orais é possível ir além, “alçar voos maiores”, “mergulhar em águas mais profundas”. É possível valorizar a experiência do homem, do homem com os seus semelhantes, do homem com o tempo, signifi car as subjetividades, contemplar as particularidades, iluminar contextos e espaços históricos e sociais que pairavam na escuridão; cruzar fatos e documentos com oralidades; entender confl itos, favorecer tréguas e reconciliações; acender lembranças, superar esquecimentos, brancos, vazios entre outros... Como descreve Garcia (1992), trata-se de buscar uma outra memória, que permita recuperar não só o ocorrido, como ressaltar as esperanças não realizadas do passado e que se inscrevem em um novo presente, como um apelo para um futuro diferente. Existe um mobiliário histórico e social, coletivo e individual (símbolos materiais, narrativas, iconografi as, escritas, oralidades) que precisa ser documentado e preservado. Estimular e deixar as pessoas falarem não é meramente um exercício de retórica, signifi ca uma questão de cidadania, do reconhecimento do vivido, da experiência, da história local, da importância do micro. 134 Memória e História Oral Caro(a) pós-graduando(a), é chegado o fi nal deste caderno de estudos. Não se dê por satisfeito, prossiga nos estudos e aprofundamentos, prepare-se bem, retome as sugestões de materiais, fi lmes e literaturas, busque as bibliografi as aqui mencionadas na íntegra, e siga em frente, confi ante de que é possível fazer um excelente e brilhante trabalho no campo da pesquisa em memória e história oral. As possibilidades são muitas. Em nosso país existe uma vasta seara a ser cultivada e desenvolvida. Votos de um gratifi cante e satisfatório trabalho pela frente! REFERÊNCIAS ABADIE, R. Além do pagamento: abordando de questões éticas na pesquisa qualitativa em saúde. Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 3, p. 701-703, set./out., 2015. ALBERTI, V. História oral: a experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1990. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 10520: Informação e documentação – citações em documentos – apresentação. Rio de Janeiro, 2002. BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Cia das Letras, 1994. CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. DIEHL, A. A. Cultura historiográfi ca: memória, identidade e representação. Bauru: EDUSC, 2002. FÉLIX L. O.; GRIJÓ L. A. Histórias de vida: entrevistas e depoimentos de magistrados gaúchos. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, 1999. GARCIA, M. A. Tradição, memória e história dos trabalhadores. In: SPIX & MARTIUS et al. O direito à memória. Patrimônio histórico e cidadania. 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