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19 BRASIS SULINOS - Copia

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FACULDADE DE FILOSOFIA PAULO VI
Cultura Brasileira 	2º semestre			14.10.16
 BRASIS SULINOS: GAÚCHOS, MATUTOS E GRINGOS
A expansão dos antigos paulistas atingiu e ocupou também a região sulina de prévia dominação espanhola e a incorporou ao Brasil. Em interação com outras influências, porém, deu lugar ali a uma área cultural tão complexa e singular que não pode ser tida como um componente da paulistânia. Ao contrário das outras áreas conformadas pelos paulistas, como a de mineração, a de economia natural caipira e a de expansão da cafeicultura, que, apesar de suas diferenciações econômico‐sociais, apresentam uma base cultural comum, na região sulina surgiram modos de vida tão diferenciados e divergentes que não se pode incluí‐los naquela configuração e nem mesmo tratá‐los como uma área cultural homogênea.
A característica básica do Brasil sulino, em comparação com as outras áreas culturais brasileiras, é sua heterogeneidade cultural. Os modos de existência e de participação na vida nacional dos seus três componentes principais não só divergem largamente entre si como também com respeito às outras áreas do país. 
Tais são os lavradores matutos de origem principalmente açoriana, que ocupam a faixa litorânea do Paraná para o sul; os representantes atuais dos antigos gaúchos da zona de campos da fronteira rio‐platense e dos bolsões pastoris de Santa Catarina e do Paraná, e, finalmente, a formação gringo brasileira dos descendentes de imigrantes europeus, que formam uma ilha na zona central, avançando sobre as duas outras áreas.
A coexistência e a interação desses três complexos operam ativamente no sentido de homogeneizá‐los, difundindo traços e costumes de um ao outro.
A distância que medeia entre os respectivos patrimônios culturais e, sobretudo, entre seus sistemas de produção agrícola ‐ a lavoura de modelo arcaico dos matutos, o pastoreio gaúcho e a pequena propriedade explorada intensivamente dos colonos gringos ‐ funciona, porém, como fixadora de suas diferenças. Mesmo em face dos efeitos homogeneizadores da modernização decorrentes da industrialização e da urbanização, cada um desses complexos tende a reagir de modo próprio, integrando‐se com ritmos e modos diferenciados nas novas formas de produção e de vida, dando lugar a estilos distintos de participação na comunidade nacional.
O Brasil sulino surge à civilização pela mão dos jesuítas espanhóis, que fazem florescer no atual território gaúcho de missões a principal expressão de sua república cristã‐guaranítica. É certo que eles visavam objetivos próprios, claramente alternativos à civilização portuguesa e à espanhola.
Mas, atuando a seu pesar como agentes da civilização, por seu êxito e por seu malogro, contribuíram para que aquelas alternativas se consolidassem.
Os jesuítas criaram um desses raros modelos utópicos de reorganização intencional da vida social que efetivamente viabilizaram novas formas de existência humana. Apesar de sua inspiração antigentílica, o modelo de estrutura social que criaram se caracterizava pelo alto sentido de responsabilidade social diante das populações indígenas que aliciavam. Ao contrário da formação colonial-escravista, que tratava o índio como um fator energético para ser desgastado na produção mercantil, o modelo jesuítico buscava assegurar-lhe uma existência própria dentro de uma comunidade que existia para si, isto é, que se ocupava fundamentalmente de sua própria subsistência e desenvolvimento.
Duas outras características distintivas teriam, porém, efeitos inesperados. Por um lado, sua eficácia destribalizadora, que permitia atrair rapidamente para os núcleos missioneiros milhares de índios. Pelo outro, sua eficácia econômica na produção de artigos para os mercados regionais e externos, que permitia às missões manter um ativo intercâmbio comercial, mediante o qual se proviam de tudo que não podiam produzir.
A concentração de grandes massas de indígenas deculturados, uniformizados culturalmente e motivados para o trabalho disciplinado teve o efeito de desencadear sobre as missões toda a fúria dos mamelucos paulistas que as viam como enorme depósito de índios facilmente preáveis. 
Assim se liquidaram as primeiras missões pela escravização dos catecúmenos e sua venda aos engenhos açucareiros do Nordeste. Por outro lado, o êxito mercantil das novas missões, seu caráter de modelo alternativo à colonização em curso provocou invejas e cobiças locais e também na própria metrópole, acabando por provocar a expulsão da Companhia de Jesus. A consequência foi verem‐se os ex‐catecúmenos avassalados pelos fazendeiros que se apropriaram das antigas missões. Nas duas instâncias, as missões contribuem para a formação do Brasil sulino. Na primeira, como depósito de escravos exportáveis ou subjugáveis, com os quais se constituiu uma população subalterna local ‐ os primeiros gaúchos ‐ que serviria de mão de obra à exploração mercantil das vacarias.
Na segunda, pela apropriação por brasileiros das terras e gado do território das Missões e pela assimilação compulsória de grande parte da gente que nelas vivia.
O motor fundamental da formação do Brasil sulino foi, porém, a empresa colonial portuguesa conduzida desde muito cedo com o propósito explícito de levar sua hegemonia até o rio da Prata. Esse propósito buscado inicialmente pela operação bandeirante de conversão dos índios em mercadoria escrava, que estabeleceu o primeiro circuito mercantiltransbrasileiro, corporificou‐se, a seguir, com a instalação da Colônia do Sacramento no rio da Prata.
No século seguinte, o projeto português esteve seriamente ameaçado de fracasso por falta de viabilidade econômica, já que a exploração do gado selvagem para exportação de couro e de sebo, fazendo‐se principalmente sob controle dos colonos das áreas de dominação espanhola, atraía os núcleos sulinos para sua órbita de influência. A ameaça foi, contudo, superada por uma nova viabilização econômica. Esta surge com a constituição do novo e rico mercado da região mineira para o gado em pé, para bois de carro, para cavalos de montaria e para muares de tração e carga.
Os índios escravos do século XVII e o gado do século XVIII, sendo ambos mercadorias que podiam transportar‐se a si próprias ao mercado, por mais longínquo que fosse e através de qualquer caminho ou vereda, dariam ao extremo sul condições econômicas de vincular‐se com o norte e com o centro do Brasil.
O esgotamento das minas representou um novo repto para o Brasil sulino, que se veria condenado a uma regressão pré‐mercantil ou a buscar formas extrabrasileiras de viabilização econômica se não aparecessem novos modos de vinculação com outras regiões do Brasil. Estas surgem com a introdução pelos cearenses da técnica de fabrico do charque, que não apenas valoriza os rebanhos gaúchos como também os vincula ao mercado nordestino e ao amazonense e, mais tarde, ao antilhano.
A integração econômica da região Sul do Brasil se alcançou, como se vê, através da criação de sucessivos vínculos mercantis que a ataram mais ao restante do país do que às províncias hispano‐americanas vizinhas. Todos esses vínculos não seriam, porém, suficientes para garantir uma verdadeira incorporação, se além deles não operassem outras forças de unificação.
Entre elas se destaca, como vimos, a política portuguesa de potência, deliberada a levar sua hegemonia ao rio da Prata, tanto através da manutenção da Colônia do Sacramento, quanto pela realização do enorme esforço representado pela colonização da área com imigrantes açorianos; e por décadas de negociações diplomáticas para a fixação das fronteiras. 
Contribuiu, além disso, a postura "portuguesa" dos lusos‐brasileiros do extremo sul frente à postura "castelhana" dos hispano‐americanos em que se defrontavam, fixando uma identificação étnica tanto mais profunda porque permanentemente posta à prova. Esta autoidentificação se vê reforçada mais ainda porque, estando associada às disputas hegemônicas das suas metrópoles, compelia cada estancieiro não só a definir‐se claramente por uma ou outra como também, definidasua identidade, defender a bandeira respectiva, fazendo da estância sua trincheira.
Apesar dessas forças integrativas, mais de uma vez se teve de apelar ao uso das armas para manter o Brasil sulino atado ao Brasil. Sendo o único núcleo populacional ponderável na imensa fronteira desabitada, portugueses e castelhanos ali se defrontaram ao longo de séculos, sob fortes tensões conflitivas que periodicamente explodiam em correrias. Em função dessas tensões e das disputas que elas geravam, o Brasil se viu diversas vezes envolvido nas guerras platinas. Em certas ocasiões, movidas por ambições expansionistas próprias; em outras, como partes que eram de um conjunto de nacionalidades em confronto no processo de autodiferenciação, unificação e fixação de suas fronteiras.
O poder central teve também de fazer frente e submeter pelas armas movimentos aspirantes à autonomia da região, muito mais vigorosos e instrumentados que os de outras áreas. Diversos fatores se conjugaram para ativar essas tendências separatistas. Entre eles, o fato de ser uma vasta e longínqua região com interesses próprios irrenunciáveis e que, não sendo adequadamente atendidos, ensejavam tensões disruptivas ‐ conducentes à ruptura com o poder central. Soma‐se a isso a circunstância de viver apartada do resto do Brasil e submetida a influências intelectuais e políticas de centros urbanos culturalmente avançados, como Montevidéu e Buenos Aires. Nessas condições, não podiam deixar de surgir aspirações de independência, inspiradas às vezes na concepção de que o Sul melhor realizaria suas potencialidades como um país autônomo do que como um estado federado; motivadas outras vezes por ideários políticos arrojados, como as lutas antiescravistas e a campanha republicana dos farrapos.
A condição de fronteira do Brasil sulino, fazendo concentrar ali a maior parte das tropas do país, por uma parte deu continuidade e função ao antigo ímpeto combativo do gaúcho das correrias; por outra, conferiu um poderio maior ao Rio Grande do Sul, no conjunto da nação, do que corresponderia à sua importância econômica, tornando inevitável a imposição de candidatos gaúchos ao poder central quando a escolha exorbitava dos meios institucionais para ser decidida por considerações militares.
Paradoxalmente, também terá exercido um papel no abrasileiramento do extremo sul o ingresso maciço de imigrantes centro‐europeus promovido depois da Independência. Situados nas zonas desabitadas entre as fronteiras sulinas e os principais núcleos do país, eles ativaram economicamente aquelas áreas, contribuindo para viabilizar e modernizar a economia sulina e capacita‐la para melhores formas de intercâmbio com o restante do país.
Sem essa presença estrangeira, mas compelida a identificar‐se como brasileira, sem sua postura de gente mais pacífica e trabalhadora que desordeira e predisposta a gauchadas, teria sido mais difícil incorporar ao conjunto do Brasil os brasis sulinos.
Incorpora‐los, sobretudo, tal como se logrou: como componente igual aos outros e preparado como os demais a viver um destino comum dentro do mesmo quadro nacional.
Os gaúchos brasileiros têm uma formação histórica comum à dos demais gaúchos platinos. Surgem da transfiguração étnica das populações mestiças de varões espanhóis e lusitanos com mulheres Guarani. Especializam‐se na exploração do gado, alçado e selvagem, que se multiplicava prodigiosamente nas pradarias naturais das duas margens do rio da Prata.
O principal contingente foi formado na própria região de Tapes por índios missioneiros Guarani ou guaranizados pelos jesuítas e, posteriormente, mestiçados com espanhóis e portugueses. Outra fonte foi o núcleo neo-guarani de paraguaios de Assunção, que se expandiu sobre os campos argentinos juntamente com o gado que ocuparia o pampa. Uma terceira fonte foi a prole dos portugueses instalados na Colônia do Sacramento (1680) no rio da Prata.
Somam‐se, assim, três fatores na formação da matriz gaúcha. Primeiro, a existência do rebanho de ninguém sobre terra de ninguém; segundo, a especialização mercantil na sua exploração; terceiro, o grau de europeização de uma parcela mestiça desse contingente que a fazia carente de artigos de importação e capaz de estabelecer um sistema de intercâmbio para trocar couros por manufaturas (Ribeiro 1970).
Uma outra configuração histórico‐cultural constitui‐se no Brasil sulino formada por populações transladadas dos Açores, no século XVIII, pelo governo português. O objetivo dessa colonização era implantar um núcleo de ocupação lusitana permanente para justificar a apropriação da área em face do governo espanhol e também para operar como uma retaguarda fiel das lutas que se travavam nas fronteiras. Esses açorianos vieram com suas famílias para reconstituir no Sul do Brasil o modo de vida das ilhas, atraídos por regalias especialíssimas para a época. Prometiam‐lhes a concessão de glebas de terra demarcadas como propriedade de cada casal. Ao instalar‐se, deveriam receber mantimentos, espingarda e munição, instrumentos de trabalho, sementes para cultivo, duas vacas e uma égua, bem como sustento alimentar no primeiro ano. Para a gente paupérrima das ilhas, essa dadivosidade parecia assegurar a riqueza. Alguns grupos estabeleceram‐se na faixa litorânea, nas terras marginais do rio Guaíba, outros no litoral de Santa Catarina.
A colonização açoriana foi um fracasso no plano econômico, como seria inevitável. Ilhados em pequenos nichos no litoral deserto, despreparados, eles próprios, para o trabalho agrícola em terras desconhecidas, estavam condenados a uma lavoura de subsistência, porque não tinham mercado consumidor para suas colheitas.
Depois de comer o suprimento de manutenção, deviam olhar‐se, perguntando o que fazer. Eram chamados a se tornarem granjeiros numa terra em que o branco só admitia o status de senhor para dirigir a escravaria. Entregues, porém, a seu próprio destino, acabaram aprendendo os usos da terra que estavam a seu alcance, através do convívio com os grupos já conformados pelas protocélulas brasileiras que se vinham expandindo ao longo do litoral catarinense. 
Fizeram‐se matutos, ajustando‐se a um modo de vida mais indígena que açoriano, lavrando a terra pelo sistema de coivara, plantando e comendo mandioca, milho, feijões e abóboras. Mesmo no artesanato praticado hoje nos núcleos de seus descendentes, não se pode distinguir peculiaridades açorianas. É essencialmente o mesmo das populações caipiras e assim deve ter sido no passado, para suprir suas necessidades de panos, de tralha doméstica feita de trançados e de cerâmica e de instrumentos de trabalho.
Alguns açorianos empreendedores escaparam, porém, à caipirização, seja levando adiante cultivos próprios de cereais, principalmente de trigo, seja fazendo‐se comerciantes dedicados a traficar mantimentos com a gente da área pastoril. Nasceu, assim, um movimento mercantil que deu alguma viabilidade aos vilarejos que surgiam e começou a integrá‐los dentro do sistema econômico incipiente da região.
Sua contribuição à cultura neobrasileira foi nula porque esta se havia saturado dos traços do patrimônio português que podia absorver. Sua influência na cultura regional e seu papel social foram, todavia, decisivos no aportuguesamento linguístico e no abrasileiramento cultural da campanha e, sobretudo, na constituição do núcleo leal ao poderio português e, mais tarde, imperial, que se requeria naquelas fronteiras, por um lado tão remarcadamente castelhanas e, pelo outro, tão independentes em sua lealdade a caudilhos autônomos.
Analfabetos, numa sociedade já integrada por metade nos sistemas letrados de comunicação, essas populações marginalizadas perdem até mesmo suas seculares tradições folclóricas, esquecidas e substituídas por novos corpos elementares de compreensões e de valores auridos através do rádio e da transmissão oral. Nessas condições, uma homogeneização cultural processada pela pobreza ‐ tal como uma deculturação uniformizadora se processou, no passado, pela escravidão ‐ unifica os brasileiros mais díspares pelodenominador comum da penúria, pela comunidade de hábitos e de costumes reduzidos à sua expressão mais singela e pela difusão dos modernos meios de comunicação que as atingem com músicas acessíveis e com apelos a um consumo inacessível.
Essa homogeneização os está congregando, também, face ao futuro, pela sua comunhão de destino, que é o enfrentamento da ordem social responsável por sua proscrição do sistema ocupacional e dos padrões de vida da parcela integrada nos setores modernizados da sociedade nacional.
As formas de expressão dessa destinação insurrecional são ainda elementares, mas tendem a acentuar‐se.
Tal como o campesinato europeu ‐ nas primeiras fases de sua marginalização, pela reordenação mercantil‐capitalista ‐ a rebeldia virtual dessas massas marginais brasileiras, tanto as do Sul como as das demais áreas, só encontra em seu patrimônio cultural formas arcaicas de expressão, revestidas quase sempre de uma feição messiânica.
A principal delas eclodiu de 1910 a 1914, na zona fronteiriça entre os estados do Paraná e de Santa Catarina, em virtude de uma suspensão eventual da legitimidade das respectivas autoridades reguladoras da apropriação das terras devolutas. Ao estabelecer‐se a disputa entre os dois estados pelo domínio da área contestada, esta ficou juridicamente em suspenso, ensejando movimentos populares de ocupação das terras de ninguém pela população matuta e de alargamento de suas posses, pelos afazendados.
A ação concreta devolve significação e destino a velhas crenças da religiosidade popular praticada desde sempre na região, mas que são chamadas agora a inspirar lideranças novas para uma guerra santa destinada a promover uma reestruturação da sociedade.
Nessas condições é que se transfiguram e ganham sentido revolucionário os antigos cultos oficiados pelos "monges" caminheiros. Eram rezadores profissionais, não pertencentes a qualquer congregação religiosa, que reuniam por onde passavam a gente simples para rezar terços e novenas e para difundir versões populares das crenças católicas e das tradições bíblicas mais dramáticas. Especialmente as referentes a ameaças de castigo e de cataclismos, ou às esperanças de salvação coletiva e de restauração da idade do ouro.
Esses "monges", tornados conselheiros e guias dos posseiros, tanto em assuntos religiosos como em qualquer outra matéria, foram seus líderes quando os conflitos começaram a eclodir. Sob sua liderança, a luta pela manutenção da posse contra uma ordem legal que os queria expropriar se transforma numa guerra santa que se desenvolve, simultaneamente, em duas esferas. Primeiro, a dos combates contra as tropas estaduais e, mais tarde, contra o Exército nacional. 
Sob a tensão da luta, os matutos liderados pelos "monges" organizam dentro dessas linhas toda a vida social, desde a guerra ao trabalho e ao culto, autodisciplinando‐se através de uma rígida hierarquia guerreiro sacerdotal e impregnando todas as atividades de um redentorismo que tudo submete ao juízo do "monge", única autoridade capaz de estabelecer os caminhos da salvação coletiva.
A terceira configuração histórico‐cultural da região sulina é constituída pelos brasileiros de origem germânica, italiana, polonesa, japonesa, libanesa e várias outras, introduzidos como imigrantes do século passado, principalmente nas suas últimas décadas. Embora brasileiros como os demais, porque não saberiam viver nas pátrias de seus pais e avós e porque são brasileiras as suas lealdades fundamentais, configuram uma parcela diferenciada da população por sua forma de participação na sociedade nacional. Distingue‐os o bilinguismo, com o emprego de um idioma estrangeiro como língua doméstica, alguns hábitos que ainda os vinculam a suas matrizes europeias e, sobretudo, um modo de vida rural fundado na pequena propriedade policultora, intensivamente explorada, e um nível educacional mais alto do que o da população geral.
A colonização europeia, iniciada no período imperial, respondia a uma atitude comum da oligarquia das nações latino-americanas, alçada ao poder com a independência: sua alienação cultural que a fazia ver a sua própria gente com olhos europeus. Como estes, olhavam suspeitosos os negros e mestiços que formavam a maior parte da população e explicavam o atraso prevalecente no país pela inferioridade racial dos povos de cor. Sob a pressão desse complexo de alta identificação "denigrante" puseram‐se a campo para substituir aos seus próprios povos, radicalmente se praticável, por gente eugenicamente melhor. E essa seria a população alva da Europa Central, que se transladava, então, em grandes contingentes para a América do Norte, assegurando o seu progresso. O empreendimento colonizador foi um dos objetivos mais persistentemente perseguido pelo governo imperial, que nele investiu enormes recursos, assegurando aos colonos o pagamento de transporte, facilidades de instalação e de manutenção e concessões de terras.
Condições semelhantes jamais foram oferecidas a populações caipiras brasileiras, que, então, formavam grandes massas marginalizadas pelo latifúndio.
A população gringa resultante do empreendimento da colonização branqueadora ocupa, hoje, uma vasta ilha nos centros dos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que se vai alastrando pelas terras vizinhas, além de pequenos enclaves enquistados em outras regiões, como núcleos do Espírito Santo e de São Paulo. Na faixa leste, se defrontam com as velhas áreas litorâneas de colonização açoriana. A oeste e ao sul, com as zonas de pastoreio gaúcho. Influenciam e são influenciados pelas duas áreas contíguas, dando e recebendo contribuições culturais adaptativas, mas raramente seus descendentes se fazem matutos ou gaúchos. Exceto aqueles que, vendo‐se marginalizados, participam, como vimos, de uma cultura de pobreza comum a toda a região ‐ e quase ao Brasil inteiro ‐ pela uniformidade mesma da sua regressão às formas mais primitivas e singelas de subsistência e de vida.
Cada grupo pode, por isso, organizar autonomamente sua própria vida, instalar suas escolas e igrejas, constituir suas autoridades, formando as primeiras gerações ainda no espírito e segundo as tradições dos pais e avós imigrados. Vivendo ilhados, o próprio domínio da língua portuguesa só seria alcançado muito mais tarde, como meio de comunicação com os brasileiros e entre os próprios colonos de diferentes idiomas. Tensões herdadas do mundo europeu também opunham essas etnias umas às outras, por discriminações que contribuíam para segrega‐las ainda mais. Os núcleos coloniais japoneses, instalados fora da área sulina, concentrando‐se muitas vezes nas proximidades de grandes centros urbanos como produtores de legumes, tiveram envolvimento paralelo, porém ainda mais marcado pela autossegregação.
A primeira geração de imigrantes enfrentou a dura tarefa de subsistir enquanto abriam clareiras na mata selvagem, enfrentando, por vezes, índios hostis, de construir suas casas e estradas, vivendo uma existência trabalhosa e severa. Sua luta foi ainda mais dificultada pela inexistência de um mercado regular para a sua produção. A grande tarefa inicial que cumpriram foi definir as atividades produtivas com que melhor poderiam integrar‐se na economia nacional. Somente a penúria que enfrentava o campesinato de seus países de origem, desarraigados do campo pelos efeitos reflexos da Revolução Industrial ou envolvidos nas crises do período de consolidação das nacionalidades europeias, explica a persistência com que enfrentaram tão difíceis condições. Aqui, porém, eram proprietários, é verdade que de terras virgens e de quase nenhum valor, mas terras férteis que eles confiavam valorizar pelo próprio esforço.
As gerações seguintes, beneficiárias dos resultados desses sacrifícios pioneiros, encontraram condições mais propícias. Já eram filhos da terra, afeitos às tarefas que tinham que exercer.
No período de transição entre a fase pioneira e a quadra de prosperidade, algumas populações gringas mais isoladas entraram também em processo de anomia de caráter messiânico, masdiferente dos movimentos similares ocorridos no país por sua inspiração bíblico‐protestante e por seus conteúdos culturais oriundos de tradições populares alemãs. Tal foi o que sucedeu em 1872 com a erupção messiânica dos Mucker (santarrões) do rio dos Sinos, a 35 quilômetros de Porto Alegre, a capital provincial do Rio Grande do Sul, liderada principalmente por uma mulher‐profeta que também organizou uma comunidade igualitária e fanática. Em seu período crítico, esse movimento revivalista ocasionou uma sucessão de crimes e assassinatos e só foi erradicado através da chacina da maioria dos crentes.
Apesar do isolamento, sabiam bem que aqui teriam de viver, tanto mudara o seu país de origem e tanto haviam mudado eles próprios, afastando‐se dos padrões europeus, nos hábitos, na linguagem e nas aspirações. Os novos contingentes recém‐chegados serviam para contrastar o seu sotaque e a sua ignorância do mundo cultural longínquo de que se desgarraram suas famílias. Mas o convívio simultâneo com índios, matutos e gaúchos recordava‐lhes, também, quanto se diferenciavam dos antigos ocupantes da terra, por cujos modos de vida miseráveis não podiam sentir qualquer atração. Esses eram, de um lado, seus patrícios e, de outro, os brasileiros que conheciam. Eles mesmos sentiam constituir uma terceira entidade, irredutível a qualquer daquelas formas.
Essa situação de marginalidade étnica dos núcleos de colonização, principalmente dos alemães, japoneses e italianos, foi explorada antes e durante a última guerra mundial pelos governos dos seus países de origem, criando graves conflitos de lealdade etnico‐social. Com esse objetivo, os movimentos nazista e fascista bem como o governo japonês montaram aparatosos serviços de propaganda e estimularam o surgimento de organizações terroristas dedicadas a uma intensa doutrinação ideológica, nacionalista e racista.
Criou‐se, assim, uma situação de trauma que gerou sérios atritos entre os luso‐brasileiros, de um lado, e os gringo‐brasileiros ou nipo‐brasileiros, de outro. As condições de relativa segregação em que se desenvolveram esses núcleos, seu conservadorismo cultural e linguístico facilitavam essa ação dissociativa.
Para fazer‐lhes frente foi necessária uma maciça ação oficial nacionalizadora que ‐ como sempre ocorre nesses casos – agiu muitas vezes desastradamente, agravando ainda mais os conflitos de lealdade. Cumpriu, porém, uma função assimiladora decisiva, compelindo o ensino da língua vernácula nas escolas, quebrando o isolamento das comunidades e recrutando os jovens gringos e nipo‐brasileiros para servir nas forças armadas. Afastada para grandes centros urbanos, essa juventude alargou seu horizonte cultural e sua visão do próprio Brasil, contribuindo, no seu regresso, para facilitar uma identificação nacional que já se tornava imperativa.
Os núcleos gringo‐brasileiros tornaram‐se importantes centros de produção de vinho, mel, trigo, batatas, cevada, lúpulo, legumes e frutas europeias, além do milho para a engorda de porcos, e da mandioca para a produção de fécula. Acrescentaram‐se, assim, à economia nacional os cultivos das zonas temperadas, aprimoraram velhas lavouras e, sobretudo, demonstraram o alto padrão de vida que podem fruir núcleos de pequenos proprietários quando habilitados a cultivar intensamente a terra e a beneficiar sua produção antes de comercializá‐la. Consideradas as áreas ocupadas, essa economia granjeira permite manter uma população muitas vezes maior que a das zonas pastoris e mesmo das zonas agrícolas fundadas no latifúndio e assegurar‐lhe um padrão de vida também muito alto. Todavia, as colônias, em sua expansão, acabaram esbarrando com o mundo do latifúndio, vendo esgotar‐se, desse modo, sua fronteira móvel.

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