Buscar

Autogestão em Avaliação Ibase Anteag 2004

Prévia do material em texto

AUTOGESTÃO
EM AVALIAÇÃO
IBASE / ANTEAG
 EDIÇÕES 
O copyright Anteag 2004
 
Anteag - Associação Nacional dos Trabalha
dores em
Empresas de Autogestão e Participação A
cionária
R. Mauá, 842, casa 29
01028-000 São Paulo SP
Telefax.: (11) 3313-4230
anteagSanteag.org.br
www.anteag.org.br
CONSELHO ANTEAG
Presidente:
ivan Roberto Westphal
Vice-presidente:
Antonio Nicásio Alves Bandeira
Secretário:
João Henrique Barbosada Silva
Vogais:
Elói Lyra
José Reitor Rizzardi
Conselho fiscal:
Albertino Batista Campos
ArnaldoLiberato da Silva
Fábio Júnior Costa
Equipe do Ibase responsável
pela pesquisa:
João Roberto LopesPinto
(coordenação)
Maria Helena Craidy
Luciana Badin
Vivian Braga
Laura Gonçalves(pesquisa de
campo)
Mariana Raymundo (pesquisa
de campo)
Ricardo Moitta (processamento
dos dados)
Francisco Menezes
(supervisão geral)
Concepção do projeto: Altamira Editorial
Ilustração da capa: Educação na Cooperminas 2
003
Revisãode textos: Luigi Verardo
Wustrações: Ibase /Anteag
Projeto gráfico: Paul González
Capa: Altamira liditorial
autogestão em avaliação
Indice
Agradecimentos....
Apresentação ........
Autogestão como projeto de sociedade e
de vida...
Principais objetivos ............
Autogestão e economia solidária
Indicadores para a Autogestão.
Indicadores institucionais ..........
indicadores comportamentais
20
 
 
 
 
 
Cultura autogestionária
1. Apresentação ..........e.
1.1 O foco da pesquisa ...........
1.2 A metodologia de trabalho .
2. Sobre alguns termos do debate da e
conomia solidária e a
investigação cultural .......ee.eecemeaseens
eerseneentreeenteneso
21 A economia solidária em meio à cri
se do emprego
2.2 Economia popular e economia so
lidária .................
2.3 Investigando mudanças culturais
......... ces seeeteeecereeeeeorrene 42
 
 
 
 
 
Ibase / ANTEAG
3. Indicações sobre mudançasinstitucionais e
comportamentais a partir dos dados
3.1 Quadro geral da realidade estudada ..
3.2 Sobre as mudanças institucionais nas empresas
autogestionárias ..
a) Momento inaugural. .
b) Regime de propriedade...marreta56
c) Relações de hierarquia ......imersa59
 
 
q) Canais de participação e informação.
e) Divisão de trabalho ..........eram a
9) Organização do espaço da produção ........mas 72
9) Síntese do argumento .........emeeeisirras
3.3 Traços de uma cultura do trabalho autogestionária .
a) Compromisso e colaboração/União«e .
b) Empenho e liberdade ..........iecereais 78
 
 
 
0) Participação...ramreiasreinarenis 81
3.4 A cultura do trabalho autogestionária e as mudanças nas
relações fora da empresa...enem87
a) Relação com outros empreendimentos autogestionários .. 88
b) Relações domésticas...nem90
c) Relações políticas...eeesereno 92
4. Considerações Finais ...
Notas
Bibliografia .
Gráficos...
 
 
autogestão em avaliação
 
Agradecimentos
À equipe da pesquisa
Várias foram as contribuições e muitas são as pessoas
que merecem agradecimentos. Em vez de nominar, optamos,
para evitar injustiças, por referências gerais aos que direta ou
indiretamente contribuíram com este trabalho.
Agradecemos aos técnicos da Antcag, particularmente
aos dos estados do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e
Pernambuco, pelo apoio ao trabalho de campo. Aos trabalha-
dores e às trabalhadoras dos empreendimentos envolvidos na
pesquisa, pela paciência em responder a um longo questioná-
fio e pela disposição ao diálogo.
Somos gratos à Marilena Nakano e Aparecido de Faria
pela leitura atenta da primeira versão deste texto, bem como
pelas valiosas sugestões oferecidas. Agradecimento especial à
Vera Maciel, pelo seu generoso apoio à equipe ao longo de
todo o trabalho.
Caso haja algum mérito neste trabalho ele terá sido fruto
dessas contribuições. Do contrário, somos os únicos responsáveis. 
 
autogestão em avaliação
 
Apresentação
ANTEAG
Autogestão como projeto de sociedade e de vida
A Associação Nacional dos Trabalhadores em Empre-
sas de Autogestão (ANTEAG) ampliou significativamente suas
atividades através do desenvolvimento de parcerias com enti-
dades públicas e privadas. Dentre elas, citamos o período de
1999 a 2001 quando atuou junto ao Governo do Fstado do
Rio Grande do Sul e com o Governo do Estado do Amapá. No
período, através de um convênio com a Secretaria de Desen-
volvimento Econômico vc dos Assuntos Internacionais
(SEDAT) a ANTEAG operandoa execução do Projeto de Eco-
nomia Popular Solidária (ECOPOPSOL) organizou 420 em-
preendimentos distribuídos em 22 centros administrativos cons-
tituindo 18.519 postos de trabalho diretos. No segundo,
trabalhou novas dimensões do cooperativismo e economia
solidária associando-os à questão do meio ambiente e etnia.
1 
 
 
Ibase / ANTEAG
 
Mais recentemente, dentre os contratos e parceiras com
instituições públicas destacam-se as atividades realizadas com
prefeituras com mais presença nos Estados de Pernambuco,
Santa Catarina e São Paulo.
Se no início trabalhávamos quase exclusivamente com
empresas que provinham de situação pré-falimentar ou, sim-
plesmente, de falência, a partir daquelas experiências, amplia-
mos o raio de atuação através do trabalho de incubação de
empreendimentos populares.
Podemos dizer que pelo menos dois elementos promo-
veram o processo de ampliação de área de atuação:
1) as políticas públicas mais sensíveis aos problemas
oriundos de uma situação de desemprego crônico com
o crescimento do número de pobres e da desigualdade
social e econômica, notadamente sentidos nos princi-
pais centros urbanos do país, passatam a demandar
projetos de inclusão social que resultaram em convê-
nios e contratos com a ANTEAG;
2) a participação do Fórum Social Mundial (FSM), em
Porto Alegre. Se no início contribuímos para a inclu-
são da economia solidária em suas atividades, não
menossignificativa foi a presença no processo prepa-
tatório do HI FSM, quando se constituiu umafrente de
atuação política através do Grupo de Trabalho (GT)
de Economia Solidária. A partir disto, foram sendo
desenhadas as parcerias com maior convergência e sin-
tonia através do movimento de articulação nacional,
realizando-se plenárias, fóruns de interlocução com a
Secretaria Nacional de Economia Solidária do Minis-
tério do Trabalho e Emprego.
12
autogestão em avaliação
Em junho de 2003, após o nosso 10º Encontro, reali-
zamos o 1º Congresso Brasileiro de Trabalhadores e Em-
presas de Autogestão. Com isso, a ANTEAG constituiu-se
definitivamente como representação política dirigida por um
conselho de representantes dos trabalhadores e empreendimen-
tos autogestionários das diversas regiões do país.
Principais objetivos
Oobjetivo social das atividades da ANTEAG é tecu-
perar c manter o trabalho e renda, buscando o compromisso
das pessoas com atividades produtivas, envolvendo a vontade
e a inteligência coletiva. Isto é, proporcionar aos trabalhado-
res as condições de desenvolver práticas autogestionárias e
conhecer coletivamente a atividade produtiva, desenvolven-
do instrumentos e planos de melhoria contínua para a consoli-
dação da empresa ou empreendimento.
De forma mais específica, temos os eixos de atuação:
- educação dos trabalhadores para as práticas autoges-
tionárias;
- capacitação dos trabalhadores na organização, plane-
jamento e execução de metas voltadas à empresa en-
quanto unidade produtiva;
- acompanhamento das empresas, prestando assessori-
as pontuais;
- estímulo à participação das empresas numa estraté-
gia de desenvolvimento coletivo não só enquanto uni-
dade produtiva, mas através de inter-relação com ou-
tras atividades econômicas e sociais como, por exemplo,
participação em rede (de troca e/ou de saber) e ativi-
dades inscritas nos fóruns de economia solidária.
13 
 
Ibase / ANTEAG
Autogestão e economia solidária
A ANTEAG nasceu das experiências dos trabalhado-
tes em suas iniciativas autogestionárias. A autogestão suben-
tende a existência de autonomiae pressupõe capacitação para a
administração coletiva do negócio: autonomia tanto nas unida-
des produtivas quanto em sua instancia representativa, isto é,
sem dependência dos órgãos governamentais ou para-estatais.
Acreditamos que quandose defende a autogestão deve-
se garantir o direito à informação e democracia nas decisões.
Democracia não apenas como voto ou mera representação, mas,
principalmente, como partilha de poder e controle da vida do
empteendimento coletivo. Por conta disso, educar para
autogestão significa promover autonomia c a inteligência co-
letiva dos trabalhadores.
Em autogestão o método e a forma de relaciona-
mento determinam profundamente o trabalho educativo e o
resultado da assessoria que se pretende. Aqui, os meio deter-
minam osfins: coerência e adequação do método com os obje-
tivos são decisivas.
Se inscrever no campo da economia solidária signifi-
ca tealizar parcerias de projetos econômicos c sociais em que a
prática faz diferença. À cooperação e confiança devem preva-
lecer sobre competição porque concorrência e individualismo
e dependência não apenas inibem. Simplesmente, destroem.
14
autogestão em avaliação
 
 
Indicadores para a Autogestão
João Roberto Lopes Pinto
Coordenador do Programa Economia
Solidária do Ibase.
Às considerações que se seguem estão baseadas nos
resultados da pesquisa “Iniciativas Autogestionárias no Rio
Grande do Sul” realizada pelo Ibase em parceria com a Anteag,
em 2001'. Com a pesquisa foram ouvidos(as) 367
trabalhadores(as) de 13 empreendimentos autogestionários nas
cinco regiões do estado gaúcho. Dois foram os objetivos da
pesquisa. Avaliar o impacto dos aspectos organizativos/
institucionais da empresa de autogestão no comportamento
dos trabalhadores e qualificar as eventuais mudanças de com-
portamento verificadas. Embora o foco da referida pesquisa
tenha sido empresas autogestionárias resultantes de processos
falimentares e sob o regime cooperativo, entende-se que mui-
tas das questões suscitadas referenciam também outras for-
mas de empreendimentos solidários.
Tem-se como ponto de partida, e também o de chega-
da, o entendimento que, em que pese a fragilidade econômica
e técnica da maioria desses empreendimentos, o elemento po-
15 
 
 
Ibase / ANTEAG
lítico-pedagógico assume papel determinante para a sustentabi-
lidade dos mesmos, Se o diferencial aqui é o fator trabalho,
esse só alcança centralidade se o próprio trabalhador torna-se
o centro do processo produtivo e de gestão, ou seja, se existe
autogestão. Portanto, um dos maiores desafios, se não for o
maior, é o de se criar um ambiente que promova a cooperação
e participação. Além do que, o envolvimento do trabalhador
com o próprio trabalho e com os outros trabalhadores tende a
ser fonte de desenvolvimento pessoal, gerando benefícios que
vão além da mera reprodução material.
As ações em favor desse ambiente cooperativo e
participativo, seja via atividades formativas de entidades de
assessoria e governo ou por meio dos próprios gestores dos
empreendimentos, normalmente respeitam, ou pelo menos
buscam respeitar, algumas premissas gerais. Destacam-se como
exemplos dessas premissas o reconhecimento das necessida-
des do empreendimento; respeito e valorização da fala dos tra-
balhadores; envolvimento da diversidade de opiniões; empre-
go de técnicas adequadas às necessidades e assimiláveis por
cada trabalhador; e acompanhamento de caráter sistemático,
não tópico ou ocasional.
Para além dessas orientações getais, postula-se aqui a
necessidade de que essas ações político-pedagógicas estejam
referidas em parâmetros claros e objetivos definidores da
autogestão, cuja efetivação, como já dito, é meio e fim desses
empreendimentos e de seus trabalhadores”. Tais parâmetros
tornam-se indispensáveis não apenas para se ter clareza das
questões a serem enfrentadas, como também para permitir a
avaliação sobre quão cooperativo e participativo se mostra o
ambiente de trabalho.
Pata avançar na construção desses parâmetros faz-se
necessário distinguir os aspectosinstitucionais e comportamen-
tais. Normalmente trabalhadas de modo indistinto, as condi-
16
 
autogestão em avaliação
 
ções organizativas do empreendimento, bem como a qualida-
de do comportamento do trabalhador, possuem naturezas dis-
tintas e pertinências específicas para o tratamento da autogestão.
São comunsnaliteratura sobre o associacionismo abor-
dagens que tendem a tomar, sem maiores questionamentos, a
solidariedade e autogestão como supostos da associação vo-
luntária voltada a objetivos comuns. Em tais abordagens se
esquece que há sempre o risco das associações assumirem es-
truturas hierárquicas, fixarem-se em objetivos cristalizados e,
mesmo, orientarem-se por um egoísmo de grupo. Ao mesmo
tempo, os comportamentos são tomados como cooperativos €
participativos sem a preocupação de qualificá-los em termos
das mudanças valorativas que estatiam em jogo.
De um lado, a organização do empreendimento tem a
ver com a maneira como decisões que afetam o grupo são to-
madas e tornadas regras. À instituição (seus regramentos) atua
como parâmetro cognitivo e normativo/valorativo que orien-
ta o comportamento do indivíduo, De outro, qualificar o com-
portamento implica em diferenciar comportamentos que nor-
malmente são nomeados da mesma forma;inferir das diferenças
de comportamento valores/padrões culturais subjacentes; e
avaliar como tais diferenças repercutem sobre a própria
institucionalidade”,
Propóem-se então indicadores para a autogestão, agru-
pando-os em um conjunto de variáveis institucionais c outro
de variáveis comportamentais. Certamente não se pretende
esgotar as variáveis possíveis em cada um desses campos, mas
sim afirmar a pertinência da abordagem proposta.
17 
 
Ibase / ANTEAG
Indicadores Institucionais
Sobre os indicadores institucionais que impactam o
comportamento em favor da cooperação e participação desta-
cam-se o começo do empreendimento (o “momento inaugu-
ral); o regime de propriedade; a divisão de papéis dentro do
empreendimento; e os meios/canais de participação e infor-
mação. Cada um desses indicadores comporta variáveis espe-
cíficas (como demonstrado no Quadro 1) e impacta de modo
particular o comportamento dos trabalhadores.
 
Quadro 1
Indicadores Variáveis
O começa do - Resultado da mobilização dos trabalhadores.
empreendimento (o |. Apoios externos que não signifiquem dependência ou
“momento inaugural” |subordinação.
- Aescolha do regime cooperativo ou associado.
- Desarticulaçãoinicial de funções e papéis”.
O regime de - Obtenção da propriedade de direito (“propriedade coletiva").
propriedade - Contribuiçãodiferenciada não representandodesigualdade
no direito de participação(“cada cabeça um voto”).
- Decisão dos trabalhadores sobre O destino das sobras ou
prejuízos por ventu ra existentes.
- Integralização das“quotas-partes (no caso das cooperativas).
À divisão de papéis |- Adivisão de função não significando grandesdiferenças na
dentro do distribuição de responsabilidades quanto à gestão do
empreendimento empreendimento (no como,quanto, quando e para quem
produzir ou ofertar o serviço).
- Adivisão de funções não implicando grande diferença entre
a maior e menorretirada (média da pesquisa: quatro vezes).
Os meios/canais de |- Regularidade dos canais de pariicipação e informação.
participação e “Informações de gestão repassadas aos trabalhadores.
informação - Útilização regular de meios de comunicação (boletins,
iornais, programas de rádio etc).
- Capacitação dostrabalhadores em gestão associada
(realização de cursos).
- Canais em quetrabalhadores de um mesmo setortracam
informações e definem caminhos a seguir.
- Encontros com outras experiências similares.
- Existência de encontros preparatórios para as reuniões |
deliberativas.
- À rotatividade dos cargosdiretivos.
 
 
 
 
 
 
 
18
 
autogestão em avaliação
 
O “momento inaugural” do empreendimento é aquicompreendido não apenas como uma marcação temporal, mas
como um marco que influi na definição da identidade
institucional e, por conseguinte, do comportamento esperado.
Um “momento inaugural” mobilizador favorece o reconheci-
mento pelos trabalhadores da cooperação como sendo um
comportamento esperado naquela situação.
Já o regime de propriedade propícia a valorização da
cooperação à medida que permite ao trabalhadorentender que
o objetivo coletivo está associado ao individual. Ou melhor,
favorece a percepção de que se trabalha para si mesmo e não
mais para o patrão, ou ainda de que o resultado do trabalho
coletivo pertence a cada um dos trabalhadores.
Contudo, a passagem da cognição c valoração para à
prática parece depender do quanto o “sentir-se igualmente
dono” se traduz em um compartilhamento efetivo do poder
decisório e de seus frutos. Isso depende, do ponto de vista
institucional, do quanto as relações de hierarquia assumem um
caráter mais horizontal, como relações de igualdade.
Com efeito, a divisão de papéis dentro do empreendi-
mento tende a ser a mudança mais resistente, levando a um
comportamento ambivalente. Isso porque o trabalhador,
embora reconhecendo e valorizando o comportamento coope-
rativo,traz a referência da divisão de trabalho anterior de quan-
do estava excluído do processo de gestão, de quando era em-
pregado”. À gestão tende a ser confundida invariavelmente com
a administração, à qual caberia, portanto, a prerrogativa de gerir
o empreendimento.
Os meios/canais de participação e informação tendem,
por sua vez, a afrouxar a divisão do trabalho tradicional, ao
permitir a circulação da informação e, desse modo,a apropri-
ação do processo produtivo pelo conjunto dos trabalhadores.
19 
 
 
Ibase / ANTEAG
 
Nesse sentido é a existência desses canais que atua na dispo-
sição dos trabalhadores para a cooperação e participação.
Indicadores comportamentais
Os termos mais incidentes na fala dos trabalhadores
sobre o próprio comportamento foram cooperação, empenho,
liberdade e participação. Contudo, existem diferentes manei-
ras de cooperar, se empenhar, exercitar a liberdade e partici-
par. Interessa aqui exatamente qualificar tais comportamen-
tos, dando conta dessas diferenças. Do mesmo modo quepara
os institucionais, para cada um dos indicadores
comportamentais foi identificado um conjunto de variáveis.
Introduziu-se, ainda, no detalhamento das variáveis uma
gradação de fraco/forte para dat conta exatamente da varia-
ção do comportamento zzs a vis ao grau de autogestão (ver
Quadro 23º.
Ão que parece, as mudanças do fraco para o forte ocor-
reminicialmente no caso da cooperaçãoe participação, com-
portamentos mais nitidamente referidos à relação com o “ou-
tro”, Como o produto do trabalho coletivo tende agora a
retornar para os próprios trabalhadores, muito rapidamente eles
reconhecem a importância de uma boae afinada relação entre
si. À frequência e o caráter voluntário dessa interação favore-
cem a adoção da cooperação/participação no sentido forte.
Contudo, como já foi dito, para que tal mudança seja consu-
mada a existência de canais pelos quais a interação possa se
processar é algo indispensável.
À cooperação/participação incidindo no processo
decisório parece ser, de fato, o fator capaz de causar uma
inflexão na divisão do trabalho, de permitir ao trabalhador a
apropriação do sentido integral do próprio trabalho. Interpela-se,
20
autogestão em avaliação
 
 
 
Quadro 2
 
Indicadores
Variáveis
 
fraca Forte
 
Cooperação|. Esperar uma união em que
todos tenham o mesma
pensamento.
- Evitar a discordância com os
colegas.
- Esperar uma colaboração
como “ajuda mútua”, sema
de esforços.
- Reconhecere valorizara diferença de
opiniões.
- Aceitar o conflito como saudável quando
se busca um objetivo comum.
- Trocar experiências e informações com
os outrostrabalhadores.
 
Empenho |. Efetuar bem astaretas
relativas à função.
- Trabalhar mais, dedicar
mais horas no desempenho
da lunção.
- Desenvolver as tarefas a realizar, levando
em conta as necessidades e
potencialidades do empreendimento.
- Estar disponível para a interação com os
que desempenham autras funções e para
a aquisição de novos saberes.
 
Liberdade” |- Estabeleceras taretas a
realizar como acharpor bem.
- Cumprir o horário de
trabalho quelhe seja mais
conveniente.
- Estipular a retirada e o
destino das sobras ou
prejuizos que lhe sejam mais
satisfatórios.
- Atuar na definição das tarefas a serem
cumpridas.
- Cumprir 9 horário de trabalho acordado
para favorecer o processo de produção.
- Estipularretirada e destino das sobras
ou prejuizos, considerando a
sustentabilidade do empreendimento.
 
Participação|. Estar presente em reuniões
onde decisões são tomadas.
- Ficar a par do que está
acontecendo no
empreendimento.
- Assumir posicionamentos rígidos, pouco flexíveis. - Tomarposição, expor sua opinião, suavisão sobre as coisas.: Fazer circular as informações, ou seja,assimilá-las, produz-las e repassá-las.- Estar disposto a rever posicionamentos e assumir novas visões. 
 
assim, a desconexão entre a gestão e a realização mesma do
trabalho. Os objetivos e regramentos que balizam o processo
de produção, até entãoestranhos ao trabalhador, podem ser
então porele apropriados.
Daí decorreriam as mudanças nos comportamentos re-
lativos ao empenhoe à liberdade, os quais estão mais direta-
mentereferidos à relação do trabalhador com o próprio traba-
lho. Como o exercício do empenho e da liberdade no sentido
21 
 
 
Ibase / ANTEAG
 
“forte” respeita a balizamentos acordados coletivamente, a
cooperação e participação dos trabalhadores no processo de
gestão apresenta-se como condição para que tal exercício ocor-
ra. Embora os trabalhadores reconheçam a responsabilidade
de gerir o próprio empreendimento como um ônus, eles osci-
lam entre o lamento e o reconhecimento de que assumia é
condição para a produção de acordos que respeitem seusinte-
resses e suas opiniões.
Cultura Autogestionária
A oscilação entre fraco e forte apresentada no Quadro
2 é também reveladora de mudanças valorativas e culturais.
Qualificar as mudanças de comportamento um termos cultu-
tais se mostra algo essencial para aferir o alcance dessas mu-
danças e para avaliar o desempenho político-institucional em
relação à autogestão”,
À temática da cultura quando aplicada às sociedades
contemporâneas é tratada, geralmente, como o conjunto de
orientações cognitivas e valorativas dos indivíduos emrelação
a aspectos da vida social, Disso resultam, geralmente, mcras
descrições sobre percepções e condutas ou, indo um pouco
mais longe, análises sobre graus de consciência moral dos indi-
víduos.
É comum encontrar estudos que, embora se propo-
nham a estudar o tema da cultura política (ou do trabalho),
tratam os impactos institucionais sobre o comportamento dos
indivíduos sem, contudo, investigarem as implicações
valorativas daí decorrentes. Limitam-se a uma abordagem des-
critiva. Nesse caso, a apresentação do comportamento dos ato-
tes sugere umaoscilação entre práticas não colaborativas, opor-
tunistas, particularistas e outras participativas, cooperativas,
22
 
autogastão em avaliação
 
dirigidas pata construção de interesses coletivos. Na verdade,
tal abordagem, que descreve comportamentos aparentes, pou-
co esclarece sobre os valores que os otientam.
Quando os estudos se propõem a ir além da simples
descrição de comportamentos característicos, eles tendem a
tecorter a modelos de análise retirados da filosofia política.
Tais análises estão comumente voltadas para avaliar o quanto
os indivíduos são capazes de abstrair juízos morais. Como no
caso das categorias de Gramsci sobre os três momentos da
consciência política (“econômico-corporativa”, “solidarieda-
de do grupo social” e “ético-político”) ou dostrês estágios do
desenvolvimento moral e cognitivo nos termos de Habermas/
Kohiberg (“pré-convencional”, “convencional”e “pós-conven-
cional”.
Contudo, parece haver aqui um risco dessas interpreta-
ções caírem em um argumento tautológico. Ou seja, os indiví-
duos assumiriam uma visão mais larga pois se associariam a
princípios universais. Portanto, antes de se perguntar qual a
visão do indivíduo sobre o direito ou a justiça, cabe investigar
quais as implicações dessa mudança, do particularismo ao
universalismo, sobre o entendimento do indivíduo sobre si
mesmo e sobre a relação que estabelece com o “outro”. Ou,
em última análise, resta saber quem é o indivíduo que assume
uma visão particularista, auto-referida, e quem é aquele com
um olhar mais universalista, descentrado.
Isso implica em reconhecer que qualquer interpretação
aceitável sobre os indivíduos não pode prescindir da investi-
gação de como eles descrevem a si mesmos e ao mundo. À
forma como os indivíduos se expressam no mundo, ou como
manifestam sua racionalidade, deriva necessariamente de como
eles concebem a si mesmose a relação com os outros.
23 
 
 
Ibase / ANTEAG
 
Nesses termos, a mudança cultural que estaria em
jogo nos empreendimentossolidários seria a emergência de uma
cultura de autonomia ou autogestionária. À partir da coopera-
ção e participação (fortes) o trabalhador tende a relaxar o auto-
centramento, preso à sua posição funcional ou à perseguição
do ganho privado, em favor de um descentramento. Ou seja,
ele passa a privilegiar os ganhos materiais e imateriais deriva-
dos dessa interação forte com o outro trabalhador e com o
próprio trabalho,
O trabalhador passa a tratar, de forma compartilhada e
interativa, seus interesses e suas identidades pessoais, renovan-
do-os ou confirmando-os. Esse descentramento gera autonomia,
auto-governo,já que o indivíduo deixa de ser refém de papéis
sociais rígidos, guiando-se então por objetivos e regtamentos por
ele mesmo constituídos na interação com o “outro”,
À pesquisa constatou que 66% dos entrevistados con-
sideram que a forma como trabalhamhoje é distinta de quan-
do eram empregados. Para 79%deles a principal alteração foi
“maior empenho e compromisso com o trabalho”. Esse ine-
quívoco envolvimento do trabalhador com o próprio trabalho
é fonte de desenvolvimento pessoal.
Os benefícios gerados pelo trabalho associado vão, de
fato, além da mera reprodução material. São ganhos subjeti-
vos, simbólicos, relativos à cooperação/participação tal como
acima definida. Para 63%, o comportamento pessoal se alte-
tou depois que passou a trabalhar no empreendimento coope-
rativo/associado. Desses, 19% “está mais tranquilo e bem
humorado”, 18%“ficou mais responsável” e 16% “se tornou
mais cooperativo e solidário”. Vale ressaltar que tais mudan-
ças de atitudes reforçam o sentido já enunciado da mudança
valorativa. Ou, para usar a palavra de um trabalhador, “por-
que resgatamos nossa dignidade”.
24
 
autogestão em avaliação
 
1. Apresentação
O presente trabalho de pesquisa, realizado no âmbito
da cooperação IBASE/ANTEAG, objetiva, a partir de dados
empíricos, identificar e qualificar eventuais mudanças de com-
portamento do trabalhador a partir da constituição de empre-
endimentos autogestionários. Investigar as possibilidades de
ensaio de uma cultura do trabalho centrada na autonomia do
trabalhador comosujeito do próprio trabalho, seja no processo
de produção ou na gestão do negócio. Além do que,avaliar se
e em que medida as mudanças, que por ventura se processam
nointerior dos empreendimentos, transbordam e impactam re-
lações do trabalhador para fora deles.
Embora o tratamento da mudança a partir de pesquisa
empírica exija uma abordagem de ordem teórica, deve-se res-
salvar que este trabalho não se enquadra nos moldes acadêmi-
cos. À pretensão é a de lançar algumas questões que possam
contribuir para o debate atual sobre a autogestão. Nesse senti-
25 
 
 
Ibase / ANTEAG
do, busca-se aqui apresentar umaleitura,entre as vátias possí-
veis, sobre as mudanças institucionais e comportamentais
implicadas nas experiências da autogestão.
Vale pontuar que essa pretensão analítica não se esgo-
ta no levantamento de questões e na produção de argumentos
para o debate público. Outra motivação presente refere-se à
construção de indicadores de gestão e comportamento que
permitam a avaliação de desempenho dos empreendimentos
no sentido da autogestão. Busca-se, assim, assegurar um senti-
do prático ao trabalho, municiando a Anteag e outros interes-
sados na questão para o acompanhamento de empreendimen-
tos autogestionários no país.
1.1 O foco da pesquisa
Em meio às mudanças no mundo do trabalho, desen-
volvem-se práticas associativas de trabalhadores, voltadas a
criar ou assegurar postos de trabalho, bem como gerar renda!.
Várias são as tentativas de classificação voltadas a dar um
ordenamento à variedade de formatos e finalidades apresenta-
da por tais práticas. A fim de evitar uma tipificação que inclua
tantas categorias quantas são as experiências, opta-se aqui por
uma categorização minimalista, tomando por base à finalidade
dos empreendimentos.
Os empreendimentos podem ser agrupados, portanto,
em três tipos”. Um primeiro, voltado para à produção de bens,
outro que oferta serviços aos próprios associados e, um tercei-
ro, que oferta serviço para consumidores externos”. Vale dizer
que os de produção são, normalmente, empreendimentos pro-
cedentes de falência ou de negociação com os antigos donos,
dos quais os trabalhadores assumem o controle, Já os de servi-
ço, tendem a ser fruto da agregação de trabalho, e eventual-
26
 
 
 
autogestão em avaliação
 
mente de capitais, de desempregados, subempregados, de au-
tônomos, ou ainda, de pequenos proprietários.
No presente estudo se buscou contemplar a diversida-
de de tipos*. Contudo, há uma clara ênfase nos empreendi-
mentos de produção — originários, ou não, de falência -porque
seus trabalhadores guardam na memória, de forma clata, lem-
branças do tempo em que ocupavam a posição de emprega-
dos. Isso permite, em grande medida, checar o quanto se
tequalifica, após a constituição do trabalho associado, a natu-
reza coletiva da produção. Nesses termos, o estudo desses
empreendimentos oferece uma maior possibilidade de aproxi-
mação com as eventuais mudanças de comportamento em fa-
vor da cooperação e participação.
A análise se concentrou nas experiências de trabalho
associado do estado do Rio Grande do Sul. Sem dúvida, esse
representa um dos estados com maior vitalidade nesse tipo de
experiência”. Além do que, tais experiências foram objeto de
um programa do governo do Estado”. Ao mesmo tempo,reco-
nhece-se no Estado gaúcho a presença de traços significativos
de uma cultura associativa mais incidente do que no restante
da maioria dos Estados brasileiros. Portanto, se estamos inte-
ressados em investigar as potencialidades de uma cultura do
trabalho autogestionária a partir das práticas associativas, O
Estado gaúcho oferece uma realidade bastante rica nesse sen-
tido. Vale dizer que, para cfeitos de controle da metodologia,
foram ainda estudados dois empreendimentos no Rio de Janei-
ro e um em Pernambuco”.
 
 
 
1.2 A Metodologia de Trabalho
A composição da amostra para o estudo valeu-se das
informações sobre o universo de 420 empreendimentos acom-
 
 
Ibase / ANTEAG
 
panhados pelo escritório regional da Anteag, no Rio Grande
do Sul”. Em conversações com ostécnicos do escritório regio-
nal, definiu-se uma amostra de treze empreendimentos repre-
sentativos do referido universo, observando-se os seguintes
parâmetros: localização, respeitando a diversidade regional;
diversidade de ramos de atividade; tempo de existência; e va-
riedade de tipos (produção e serviço). Vale destacar que os
casos selecionados são bem representativos dos diferentes ra-
mos de atividade do conjunto das empresas acompanhado pela
Anteag no Rio Grande do Sul, Na tabela abaixo pode-se ter um
quadro geral da amostragem utilizada.
Otrabalho de pesquisa foi realizado em duas fases:
uma primeira, quantitativa, com aplicação de questionários; e,
uma segunda, qualitativa, através da composição de grupos de
discussão”.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Cidade Empresa Trabalhadores |Amostra |Setor
Canguçu Coopal 500 49 Agropecuária
Santana do Livramento |Coofiter 70 31|Lanifício
Santa Maria Asmar a 6|Separação de Lixo
Separação e
Santo Ângelo Ecos do Verde 25 20|reciclagem de Lixo
Porta Xavier Coopercana 280 42] Agroindústria
Erechim Alumifer 21 19|Metalúrgica
Caxias da Sul Fundecooppe 92 20] Metalúrgica
Caxias do Sul Refricoop 25 20/Móveis e Refrigeração
Caxias do Sul Coopeca 33 25|Móveis
São Marcos Coopserra 280 55|Calçados
Novo Hamburgo Renacoop 70 32|Calçados
São Leopoldo Cooperleo 77 30]Ind. Cames e Derivados
Montenegro Ecocitrus 39 18] Agroindústria
Total 1523/367 (24%)
 
À pesquisa quantitativa consistiu na aplicação de dois
questionários. Um questionário por empresa, voltado a obter
informações sobre a forma de otganização do empreendimen-
to, e outro, destinado a obter informações sobre o comporta-
28
 
autogestão em avaliação
mento dostrabalhadores. Em ambososcasos, eram os pesqui-
sadores que preenchiam o questionário. À aplicação do pti-
meiro era apenas com a ditetoria do empreendimento, já o se-
gundo foi aplicado com os trabalhadores, de acordo com a
amostra referida na tabela acima. À seleção dos trabalhadores
para a entrevista foi feita buscando respeitar a diversidade de
funções existente. Ressalte-se que o contato inicial com as em-
presas contou com o auxílio dos técnicos da Anteag.
A confecção dos questionários resultou de questioná-
rios piloto, testados em dois empreendimentos. No caso do
questionário voltado para os trabalhadores, as questões só fo-
tam fechadas depois dessa fase de testagem do questionário.
Deve-se acrescentar que na apuração dos resultados do ques-
tionário foi feita a ponderação do peso das empresas, já que há
discrepâncias entre elas quanto ao número de trabalhadores.
Quanto à fase qualitativa, foram realizados grupos de
discussão em dez empresas e dois grupos mistos, reunindo
trabalhadores de empresas diferentes'” . Cada grupo era com-
posto em média por dez trabalhadores, respeitando novamente
a diversidade de funções. Essa fase se realizou após a
tabulação dos dados da quantitativa, pois os grupos foram
pensados como forma de checare refinar as tendências apu-
radas nos questionários.
Para tanto, utilizou-se uma metodologia participativa,
combinando aspectos metodológicos do “grupo focal” « do
“planejamento participativo”, que dispusesse os trabalhado-
tes a debaterem a própria realidade . Assim como nos questi-
onários, buscou-se explorar nos grupos de discussão a me-
mória oral dos trabalhadores a fim de comparar a situação
anterior de empregado com a atual de controlador do empre-
endimento",
29 
 
 
autogestão em avaliação
 
2. Sobre alguns termos do debate da
economia solidária e a investigação
cultural
2.1 A economia solidária em meio à crise do
emprego
A realidade variada e contraditória das atuais mudan-
ças no mundo do trabalho, em que se desenrolam as experiên-
cias de conteúdo autogestionário, está refletida nas diferentes,
e muitas vezes conflitantes, visões sobre o significado de tais
experiências. Nesse sentido, é certo que a própria conceituação
delas está em construção, demandando ainda novas aproxima-
ções e refinamentos analíticos.
As mudanças no mundo do trabalho procedem de al-
guns vetores principais, mutuamente implicados. De um lado,
a atual reestruturação produtiva que substitui o modelo fordista
anterior. Centrada na introdução da informática e da automação
no processo produtivo, ela conduz a mudanças na organização
do trabalho (produção flexível e trabalho polivalente), bem
como à descentralização produtiva.
31 
 
 
Ibase / ANTEAG
Associada a esse processo se observa a tendência à
desregulamentação dos mercados nacionais, seja em termos
comerciais, financeiros, trabalhistas ou ambientais. É nesse
contexto, que o desemprego assume hoje um sentido estrutu-
ral, do mesmo modo que as formas precarizadas de trabalho, o
subemprego. No caso das “economias em desenvolvimento”
como a brasileira, a redução da capacidade reguladora do Es-
tado assume repercussões ainda mais sérias sobre o imercado
de trabalho, visto que a insuficiente cobertura social no país
nunca chegou a se constituir em um estado de bem-estar social.
Daí o mercado detrabalho e a estrutura ocupacional no
país assumir uma configuração muito particular, a partir especi-
almente dos anos 90. Com a retração dos postos de trabalho
formais, ou seja, com direitos e garantias sociais, cresce geome-
tricamente as ocupações informais. O chamado setor informal,
embora seja alvo de diferentes definições, tende a abarcar os
diferentes regimes de trabalho caracterizados pelos assalariados
sem carteira c trabalhadores por conta própria, que trabalham
de forma individual, familiar ou associativa? Embora à ques-
tão da legalidade não seja o critério pata definir o informal, as
atividades nele implicadas estão de um modo ou de outro em
um ambiente de ausência de direitos publicamente assegurados.
Deve-se assinalar que informalidade não significa es-
tar descolado da economia formal, desenvolvendo-se à mat-
gem dosistema. À destegulamentação do mercado não é ape-
nas, como já referido, produto, mas também condição do novo
padrão de acumulação capitalista, como elemento redutor dos
custos de produção. Como exemplo disso, as relações
interindustriais, ou as cadeias produtivas, combinariam não
apenas organizações produtivas de diferentes tipos, como tam-
bémdiferentes formas de gestão da mão-de-obra. Ou seja, se
transferem as tarefas gerais e desqualificadas para as pequenas
empresas (inclusive cooperativas), sob um regime informal de
se
 
 
 
autogestão em avaliação
trabalho, ficando as grandes com o trabalho especializado e
qualificado, em um regime formal (Leite e Silva, 1996).
É nesse ambiente de desemprego e subemprego que se
desenrolam iniciativas em que trabalhadores desempregados ou
na iminência de perderem o emprego se associam na geração de
recursos para a reprodução da vida. Diante do crescimento da
informalidade, a questão que parece mobilizar os estudiosos de
empreendimentos associativos é a de se e em que medida eles
assumem umasignificação que vai além de uma simples acomo-
dação à crise do emprego formal. Se tais empreendimentos por-
tam uma lógica econômica distinta da capitalista, pois fundada
na solidariedade, cooperação e reciprocidade.
Apresentamos a seguir algumas das leituras sobre es-
sas iniciativas. À pretensão aqui não é a de fazer um panorama
exaustivo das visões sobre a temática, mas indicar alguns ter-
mos do debate, que deverão ser discutidos e analisados ao lon-
go deste trabalho.
Chama atenção inicialmente uma catência de estudos
empíricos sobre as experiências de autogestão e, mais particu-
larmente, que levem em conta o discurso dos próprios traba-
lhadores. Em um desses estudos (Kasmir, 1996), voltado para
o caso de Mondragon, um grande complexo de empresas coo-
perativas espanhol produtor de fogões, geladeiras e cozinhas
industriais, emerge uma leitura sobre possíveis contradições
presentes no cooperativismo.
A questão da autora refere-se ao fato de que a divisão
entre administrador e trabalhador, ou seja, entre as funções de
elaboração e execução, permanece no regime cooperativo, ape-
sar do discurso de igualdade. Para ela, o fato dos trabalhadores
possuírem a propriedade não dá garantias de poder de decisão.
Mais preocupada com as dimensões políticas e ideológicas, como
elementos definidores da posição de classe, a autora investiga
as diferentes experiências e percepções entre os administradores
33 
 
Ibase / ANTEAG
e os trabalhadores da cooperativa, Constata que a participação é
a igualdade existem para os primeiros e nãopara os segundos.
Esses, por sua vez, sentem-se dominados por um discurso coope-
rativo que nega a existência dessa divisão, Conclui que o “mito”
da cooperação e integração encobre a permanência de antago-
nismos, desacreditando a organização da classe trabalhadora e
os próprios sindicatos. Junte-se aisso o fato de que os trabalha-
dores cooperados tenderiam a sc distanciar politicamente dos
trabalhadores da mesma categoria de empresas convencionais.
Embora não se possa fazer generalizações a partir des-
se estudo de caso, certamente cle aponta para uma realidade
possível nesse tipo de iniciativa. Reforçando ainda mais as
contradições indicadas no campo do cooperativismo, o tema
da cooperação encontra-se também apropriado pelas novas
formas de organização da produção e de gestão.
Diferentemente da fase fordista, os empreendimentos
industriais (pós-fordistas) se caracterizariam atualmente pela
redução da distância entre concepção e execução. O fim do
trabalho fragmentado em favor do polivalente e a participação
dos trabalhadores na gestão da produção scriam sinais desses
novos tempos. Ou seja, a presença de um trabalho ou traba-
lhador mais qualificado e participativo seria hoje uma exigên-
cia das próprias empresas capitalistas, em seus programas de
“reengenharia” e “qualidade total”.
Na verdade, subjacente ao incentivo à cooperação e
participação, essa forma de organização do trabalho tenderia à
“intensificação da exploração da força de trabalho”. Exemplo
disso, “atividades de manutenção, acompanhamento c inspe-
ção de qualidade, funções que passaram a ser diretamente in-
corporadas pelo trabalho produtivo” (Antunes, 1999). O con-
trole tem se tornado mais intenso, com um sistemadeinformação
que monitora desvios eventuais na produção. A participação,
por sua vez, é excluída de qualquer forma de decisão que
34
 
autogestão em avaliação
extrapole as relativas às atividades de rotina (Leite e Silva, 1996).
Ou nos termos de Kasmir, “não se trata apenas dos trabalhado-
tes obedecerem, mas agora de quererem obedecer”.
As mudanças no mundo do trabalho, comose vê, estão
sendo operadas e movidas, com contradições é certo, de acor-
do com a lógica do capital. À regulação das relações de traba-
lho sai da arena pública e é transposta para o âmbito privado
das empresas. O trabalho como vetor de uma sociabilidade
fundada em dircitos sociais, tende a ser neutralizado. Com isso,
para alguns se faz necessário, antes de mais nada, combater
direta « politicamente a redução de direitos conquistados, res-
gatando a centralidade política do trabalho na regulação social
(Oliveira in Costa, 2000).
A preocupação em resgatar a centralidade do trabalho
na reprodução e organização social, ideologicamente negada pelo
liberalismo redivivo, tem conduzido a análises bastante céticas
quanto à natureza transformadora da chamada “economia soli-
dária”. Embora se reconheça que as iniciativas incluídas nesse
campo movem-se preferencialmente por valores não-mercantis,
elas cumpririam, na verdade, “um papel de funcionalidade em
relação ao sistema, que hoje não quer ter nenhuma preocupação
pública e social com os desempregados” (Antunes, 1999). A
economia solidária serviria, de acordo com essa leitura, mais
como uma tesposta frágil e de curto alcance, pois passiva e subor-
dinada à dinâmica do mercado capitalista e à questão do desem-
prego. Nesses termos,seria um “equívoco grande concebê-la (a
economia solidária) como uma teal alternativa transformadora
da lógica do capital e de seu mercado” (Op. Cit).
De outra parte, a proliferação de iniciativas de caráter
associativo nos campos da produção, distribuição e financia-
mento (cooperativas de produção, consumo e serviço; redes
de comercialização; moedas sociais; comércio justo c consumo
ético; cooperativas de crédito) tem levado a uma visão que,
35 
 
 
Ibase / ANTEAG
embora matizada por abordagens diversas, aponta as possibili-
dades de uma “economia política” voltada para a “reprodução
ampliada da vida” e não para a acumulação”. A natureza não
mercantil e autogestionária assumida, de modo mais ou menos
intenso, por tais iniciativas, parece ser o que anima essa visão.
Vale dizer que na defesa de uma economia de outro
tipo não se está, salvo exceções, tomando-a como um dado da
realidade, mas comoalgo passível e necessário de ser construído.
A natureza solidária das iniciativas tende a ser restringida pelo
ambiente da economia capitalista, do mercado competitivo e
dos valores individualistas e consumistas a ele inerentes.
À cooperação, característica dessas práticas, tem propor-
cionado, com grandesdificuldades é verdade, umasustentabilidade
mínima, ou seja, a sobrevivência dos trabalhadores nelas impli-
cados, mesmo no quadro das relações capitalistas. Como assina-
la Gaiger (Cadernos Cedope, 1999, em um outro exemplo de
estudo empírico”, o fator trabalho ganha centralidade nas experi-
ências cooperativas, representando uma vantagem comparativa
em relação às empresas convencionais de mesmo porte,
Da cooperação voluntária proporcionada pela nova si-
tuação, em que o trabalhador tende a se apropriar dos resulta
dos de seu trabalho, decorreriam “vetores específicos da viabi-
lidade e competitividade” desses empreendimentos. A
tendência aqui seria a de constituição de um “círculo virtuo-
so” que combinaria co-responsabilidade dostrabalhadores com
os destinos da iniciativa e flexibilidade de funções e ritmos na
produção. Isso, por sua vez, implicando em maior comunica-
ção com redução de conflitos e problemas no processo de tra-
balho, em circulação de saberes, bem como no estímulo moral,
além do material. Nesses termos, investiga-se à possibilidade
de combinar a lógica da cooperação com a da eficiência, des-
fazendo-se o aparente dilema entre os termos (Op. Cit).
[
26
 
autogestão em avaliação
Como o próprio Gaigeralerta, deve-se, contudo, tomar
a eficiência proporcionada pela cooperação como voltada para
outros fins, irredutíveis aos de acumulação e competição. No
entanto, não se deve perder de vista que a cooperação, a pro-
dução de ação coletiva, pode se ajustar à maximização de gan-
hos privados, mesmo quea princípioeles se apresentem como
coletivos. Um trabalhador pode cooperar com o grupo no in-
tuito de privadamente obter maiores ganhos, ou seja, colabora
à medida que o interesse coletivo coincida com o seu interesse
individual. Nesses termos, tecair-se-ia em uma outra forma de
compatibilizar economia capitalista e cooperação.
Em que termos então se pode projetar, de dentro mes-
mo dessas iniciativas, a exigência de uma outra “economia
política”? À resposta parece estar na nova qualidade que o
trabalho tende a assumir dentro do ambiente acima descrito.
As mudanças narelação do trabalhador com o próprio trabalho
e com o outro trabalhados levar-lo-ia a sentir-se responsável pela
empresa, participar das decisões, estar comprometido com o
trabalho, valorizar a liberdade de trabalho e o ser cooperativo.
O trabalho deixaria de ser visto como meio, sendo assu-
mido também como um fim em si, tornar-se-ia ele próprio um
bem. Daí decorre umainversão da lógica produtivista, centrada
nos resultados e fundada em uma racionalidade instrumental,
onde o trabalho é meio e aqueles que o realizam são meios igual-
mente, tornados mercadorias. Meios e instrumentos destituídos
de sentido e valor. O único valor possível seria dado pelo mer-
cado e pelo quanto eles se adequam a finalidades e normas que
lhes são estranhas, pois voltadas à remuneração do capital.
A inversão a partir da autogestão se dá em favor de
uma vinculação entre fins e meios. O processo produtivo ten-
de aqui a se voltar menos para a “rentabilidade do capital” e
mais para a “rentabilidade do trabalho”. Ou seja, a finalidade
está no retorno do trabalho para o próprio trabalhador, seja em
37 
 
Ibase /ANTEAG
termos materiais ou imateriais, quanto para aquele que conso-
me o serviço e/ou produto ofertado. A participação sobre os
objetivose regras que balizam o trabalho, bem como sobre os
seus tesultados, assumiria um caráter processual voltada para
o livre desenvolvimento de cada um e de todos (Tiriba 2001).
Quando o trabalho ganha centralidade, tensionando as
antigas relações de produção sob o regime da propriedade pri-
vada, o trabalhador se vê confrontado com a possibilidade de
se tornar sujeito do próprio conhecimento e desenvolvimento,
seja em relação ao próprio trabalho ou ao outro trabalhador.
Não se trata, portanto, de ver apenas a educação para o traba-
lho, mas de um trabalho que resgata o indivíduo como sujeito
do conhecimento e da criação (Op. Cit).
O aprofundamento dessa nova qualidade do trabalho,
ou de uma “outra cultura do trabalho”, parece depender de
que ela mesma seja tomada como principal finalidade dessas
iniciativas e não apenas como subproduto da cooperação. Para
tanto, far-se-ia necessário, não apenas condições mínimas de
sustentabilidade, mas principalmente o transbordamento da
cooperação para além das próprias experiências. A articulação
delas em rede, de negócios e saber, a estruturação de novas
relações econômicas (extensivas aos consumidores!?), apresen-
ta-se como condição da realização da natureza não mercantil e
autogestionárias de tais iniciativas (Op. Cit).
Nessa perspectiva, o trabalho autogestionário se apre-
sentaria, mesmo que ainda de formadébil e desarticulada, como
uma novidade antes de mais nada política no contexto dacrise
do emprego formal e não apenas como mera alternativa de
trabalho e renda”. Aspráticas autogestionárias apontariam para
a afirmação do trabalho como reprodução da vida, não apenas
no sentido material mas também intelectual, moral e estético,
tequalificando e revalorizando o direito ao trabalho.
 
autogestão em avaliação
Desse modo, não precisaria haver um divórcio entre
as perspectivas dos trabalhadores formais ou informais e
os trabalhadores autogestionários. Na verdade, a luta des-
ses últimos teria muito a contribuir não apenas pata a recu-
peração, mas também a ampliação dos direitos dos traba-
lhadores em geral,
Necessário ressaltar que não se trata de revalorização do
direito ao trabalho a pastir das contribuições da autogestão so-
mente para os chamadosexcluídos. Importa que a nova qualidade
do direito ao trabalho possa ser assumida como bandeira dostra-
balhadores assalariados, como forma de pressionar as relações
capitalistas cerceadoras do desenvolvimento humano", O novo
sentido assumido aqui pelo direito ao trabalho em vez de ocultar
explicitaria e acirraria as contradições entre capital e trabalho ca-
racterísticas das relações de produção capitalista, que se definem
necessariamente como hierárquicas e de competição.
Ao requalificar o direito ao trabalho, a autogestão ten-
deria a atualizar e inovar as próprias estratégias de luta e orga-
nização dos trabalhadores. À luta para a constituição de rela-
ções econômicas de tipo solidária e autogestionária é
indissociável de lutas políticas « culturais no mesmo sentido",
O sentido autogestionário dos empreendimentos somente po-
deria se tornar sustentável e legítimo sc os trabalhadores cria-
rem, também de forma associativa, as condições sociais e po-
líticas para tanto (Singer, 1999).
As mudanças produzidas pelas experiências
autogestionárias ainda estão, em que pese umarelativa rede de
apoio com a qual contam, encerradas em quatro paredes. Tra-
tar-se, pois, de cxtrapolá-las e impregná-las no extra muros. As
organizações que, de uma maneira ou de outra, dão suporte a
tais experiências estariam desafiadas a contribuir para que os
trabalhadores autogestionários promovam sua legitimidade
social, disputando os recursos é valores na sociedade em favor
39 
 
 
Ibase / ANTEAG
da autogestão e da não mercantilização da vida. Ressalte-se aí o
caráter precursor e inovador da ANTEAG, que busca atuar como
campo dearticulação das práticas autogestionárias, bem como a
iniciativa das demais entidades que organizaram o GT/Brasilei-
ro de Economia Solidária: ABCRED,; ADS/CUT; CARITAS;
CONCRAB; FASE; IBASE; PACS; Rede Brasileira Socioeco-
nomia Solidária; Rede de Gestores de Políticas Públicas de Eco-
normia Solidária; Rede Universitária de Incubadoras Tecnológicas
de Cooperativas Populares; UNITRABALHO?.
2.2 Economia popular e Economia Solidária
À expressão “economia popular” nasce como reivindi-
cação de distinção em relação à vala comum do chamado se-
tor informal e de um certo utopismo que estaria contido na
expressão “economia solidária”, A economia popular engloba
umasérie de práticas e atividades dos setores populares que se
desenvolveriam nos interstícios do capitalismo, ou mais preci-
samente em meio à crise do emprego formal, como forma de
satisfazer suas necessidades básicas?l, A economia popular ou
do trabalho se desenrola, em que pese a diversidade de práti-
cas aí consideradas, combinando produção « reprodução soci-
al sem se destinar à acumulação. |
Dentro da economia popular ganha destaque iniciati-
vas que se distinguem por adotarem valores e relações de cará-
ter solidário, não apenas como algo secundário, mas como uma
forma própria e inerente à busca do enfrentamento dos pro-
blemas comuns — “organizações econômicas populares” (Razeto
apud Tiriba, 2001). Além de representar a ambiência sócio-
econômica onde prosperam os empreendimentos solidários, a
economia popular se apresenta como campo, por excelência,
para a estruturação de um desenvolvimento em bases solidárias.
 
autogestão em avaliação
Assiste-se, na verdade, a uma crise da reprodução so-
cial, ou melhor, a uma redução dos custos de reprodução em
favor do processo de acumulação. Apesar da economia popu-
lar ser uma expressão dessa crise, a dimensão porela alcançada
compreende também novas formas de produção da riqueza,
cuja centralidade está no fator trabalho. Essa economia está,
pois, a exigir uma nova tegulação pública que considere o seu
“fundo de trabalho??' como base de um “desenvolvimento
humano”, que permita “superar os comportamentosreativos e
potencializar ativamente a capacidade dos trabalhadores”
(Coraggio, 2000: 100).
De todo modo, a perspectiva da economia popular de
não acumulação e sim de reprodução da vida parece só ganhar
sentido e sustentabilidade se a ela se agrega a dimensão solidá-
ria contida em algumas de suas práticas. Ou seja, se se projeta
uma nova institucionalidade das relações de produção e distri-
buição da riqueza na sociedade, fundada nos valores da coo-
peração, reciprocidade e valor de uso dos bens e da força de
trabalho. Do contrário, as iniciativas populares reduzem-se,
como anteriormente assinalado, a uma resposta subordinada e
defensiva diante da economia capitalista.
Dito isso, assumimos aqui o termo “economia solidá-
tia” como definidor do campo de mudanças de caráter coope-
tativo e solidário no mundo do trabalho e do mercado em fa-
vor da “reprodução ampliada da vida”. Mudanças que, sem
dúvida, emergem e se irradiam pela economia popular. Vale
dizer, a opção pelo termo se justifica antes pelo seu caráter
prospectivo — necessário como norteador da ação — e não por
configurar uma realidade histórica já dada.
A armadilha que ronda certas defesas da economia so-
lidária parece ser a de exatamente tomar algo que é um hori-
zonte a ser alcançado como tealidade concreta, ou seja, dei-
xar-se levar pela idealização sobre o real. O perigo aqui, bem
41
 
 
 
Ibase / ANTEAG
entendido, não é apenas o de anunciar o inexistente, mas prin-
cipalmente o de, ao fazê-lo, encobrir e turvat as potencialidades
contidas na realidade. A realidade sempre é mais rica e surpre-
endente que a teoria possa supor ou anunciar,
Outro perigo associadoa essa atgumentação,tão comum
quanto embaçador, é o de quereratribuir aos trabalhadores uma
intencionalidade em favor da transformação social, que embora
necessária não pode ser tomada como um «priori. Deve-se aten-
tar que antes de uma consciência das implicações de novosva-
lores e atitudes, os trabalhadores os vivenciam na prática, À
consciência é algo a ser construído a partir exatamente dessa
vivência, dessa nova cultura em gestação. Porisso sc faz essen-
cial conhecer, em vez de apenas presumi-las, as percepções que
estão orientando hoje os trabalhadores dessas experiências.
À verdade é que a ptática tende à surpreender a teotia,
pois a autonomia dos indivíduos, tão anunciada por alguns
esquemas teóricos, é realmente experimentada, mesmo que de
maneira frágil e incipiente. A partir daí,a teoria passa a correr
atrás dos significados assumidos por essa liberdade vivida. A
teoria pode dar conta em boa medida do porque das mudan-
ças, mas não das próprias mudanças. Porque o novo, mesmo
que nunca seja um novo absoluto, traz qualidades que esca-
pam de olhares acostumados a não enxergá-las no mundo.
Mesmo que, em alguns casos, por desejá-las as prenunciam em
certa medida, mas sempre de modoinsuficiente. Tanto melhor
a teoria quanto mais seja capaz de reconhecer o novo, ou me-
lhor, de deixá-lo emergir.
2.3 Investigando mudanças culturais
Ão se proportratar do comportamento dos trabalha-
dores, investigando as possibilidades de mudanças na cultura
do trabalho, é inescapável que se faça remissão às referências
42
autogestão em avaliação
teórico-conceituais e categorias analíticas que orientam o pre-
sente estudo. Quando menos, pelo fato de que tal abordagem
com ênfase na cultura é muito pouco convencional. E principal-
mente pelo fato de que, pelo exposto até aqui, é das mudanças
na cultura do trabalho que decorreriam a sustentabilidadee legi-
timidade social das iniciativas autogestionárias.
Não é o caso aqui de se deter ao velho dilema da rela-
ção entre estrutura e cultura, pois tal relação deve ser encara-
da como se orientando por uma determinação recíproca. No
entanto, há uma tendência a se valorizar as mudanças como
sendo resultado de processosinstitucionais,atribuindo-se pouca
atenção e importância às mudanças culturais. E são elas efeti-
vamente as capazes de imprimir o novo à estrutura social.
A temática da cultura quando aplicada às sociedades
contemporâneas tende a ser tratada, geralmente, como o con-
junto de orientações cognitivas e valosativas dos indivíduos
em relação a aspectos da vida social, Disso resultam, geral-
mente, ou meras descrições sobre percepções e condutas ou,
indo um pouco mais longe, análises sobre graus de consciência
moral dos indivíduos.
É comum encontrar estudos que, embora se propo-
fiham a estudar o tema da cultura política (ou do trabalho),
tratam os impactos institucionais sobre o comportamento dos
indivíduos sem, contudo, investigarem as implicações
valorativas daí decorrentes. Limitam-se a uma abordagem des-
eritiva. Nesse caso, a apresentação do comportamento dosato-
tes sugerc uma oscilação entre práticas não colaborativas, opor-
tunistas, particularistas e outras participativas, cooperativas,
dirigidas para construção de interesses coletivos. Na verdade,
tal abordagem, que descreve comportamentos aparentes, pou-
co esclarece sobre os valores que os orientam.
Quandoosestudos se propõem it além da simples des-
etição de comportamentoscaracterísticos, eles tendem a recor-
43 
 
Ibase / ANTEAG
ter a modelos de análise retirados da filosofia política. Tais aná-
lises estão comumente voltadas para avaliar o quanto os indiví-
duos são capazes de abstrair juízos morais. Como no caso das
categorias de Gramsci sobre os três momentos da consciência
política (“econômico-corporativa”, “solidariedade do grupo so-
cial” e “ético-político”) ou dos três estágios do desenvolvimen-
to moral e cognitivo nos termos de Habetmas/Kohlberg (“pré-
convencional”, “convencional” e “pós-convencional”.
Na perspectiva gramsciana, a fase “econômico-
corporativa” representa o momento em que se adquire a “uni-
dade homogênea do grupo profissional e o dever de organizá-
la, mas não ainda a unidade do grupo social mais amplo”, o
que só ocorre no segundo estágio. Já no terceiro, “se adquire a
consciência de que os próprios interesses corporativos, no de-
senvolvimento atual e futuro, superam o círculo corporativo,
de grupo meramente econômico, e podem e devem tornar-se
interesses de outros grupos subordinados” (Gramsci, 1989).
Segundo a tipificação habermasiana (inspirada nos es-
tágios morais de Kohlberg/Piaget), a consciência “pré-conven-
cional” percebe o direito como “obediência literal às regras e à
autoridade, evitar o castigo e não fazer mal físico” ou como
“cooperação governada por interesses próprios e imediatos”.
Nafase “convencional”, os indivíduos percebem o direito como
adoção e subordinação a papéis sociais, comprometendo-se
com o bem-estar da sociedade e do grupo. Já o momento “pós-
convencional”, “presume a orientação por princípios éticos
universais que toda a sociedade deve seguir” independente do
que ditam os papéis sociais (Habermas, 1989)”,
Certamente essas tipificações não possuem uma mes-
ma matriz teórica”, Contudo,elas se aproximam em boa medi-
da quando supõem estágios de consciência em um gradiente
que vai do particularismoao universalismo. Recorre-se, de forma
sintética, a essas abordagens a fim de demonstrar que existe
44
 
autogestão em avaliação
umacoincidência em supor queo indivíduo evolua de um ponto,
auto-referido ou auto-centtado, para outro, descentrado ou
posicionado a partir de uma referência compartilhada.
Contudo, parece haver aqui um risco dessas interpreta-
ções recaírem em um argumento tautológico. Ou seja, os indi-
víduos assumiriam uma visão mais larga pois se associariam a
princípios universais. Antes de se perguntar qual a visão do
indivíduo sobre o direito ou a justiça, cabe investigar quais as
implicações dessa mudança, do particularismo ao
universalismo, sobte o entendimento do indivíduo sobre si
mesmo e sobre a relação que estabelece com o “outro”. Ou,
em última análise, resta saber quem é o indivíduo que assume
uma visão particularista, auto-referida, e quem é aquele com
um olhar mais universalista, descentrado.
Nesse sentido, postulamos aqui a necessidade de se in-
corporar as contribuições da antropologia para o estudo da cultu-
ra na e da contemporaneidade. Isso implica em reconhecer que
qualquer interpretação aceitável sobre os indivíduos não pode
prescindir da investigação de comoeles descrevem a si mesmos e
ao mundo. À forma comoos indivíduos se expressam no mundo,
ou como manifestam sua racionalidade, deriva necessariamente
de como cles concebem a si mesmose a relação com os outros.
Segundo Geertz, “o pensamento humano é remata-
damente social: social em sua origem, em suas funções, social
em suas formas, social em suas aplicações”. Com base nesse
suposto, o referido autor, embora reconheça a variedade de
padrões culturais em função de diferentes sociedades, idennifi-
ca padrões que, ao responderem necessidades existenciais “ge
nericamente humanas”, gozam de um maior conteúdo
normativo e cognitivo. Tais necessidades estão referidas à for-
ma como osindivíduos concebem não apenas a si mesmos, ou
seja, a caracterização de “pessoa”, mas também o comporta-
45 
 
 
lhase / ANTEAG
mento interpessoal, ou seja, a relação com o outto (“condu-
ta?) e o próprio “tempo”.
Caso se considere válida a perspectiva cultural enunci-
ada, arrisca-se aqui a dat uma outra tradução aos três tipos
ideais de cultura política. Sugere-se, assim, outros três tipos
ideais, quais sejam, O comunitarista, O individualista O autonomeista.
No tipo comunitarista, o indivíduo se concebe com uma
identidade fixa, associada a papéis sociais rígidos e 20 sentimen-
to de pertencimento ao grupo, A relação com o outro é aqui
umarelação de obrigação para preservar a unidade do grupo.
Noindividualismo, o indivíduo se concebe como um ser moral
independente, não socialZ. Aqui a relação é uma relação de com-
petição, onde o outro é umrival que deve ser eliminado ou ncu-
tralizado, ou, ainda, um meio para obter ganhos privados.
No caso da culturaautonomista, o indivíduo se conce-
be comoplural, experimentando diferentes identidades possi-
veis a partir da interação social. Nesse caso, o indivíduo reco-
nhece o senso interdependente da relação com o “outro”%, A
relação torna-se responsável por dar ao indivíduo a medida de
seus interesses e, mesmo, de suas identidades. O sentido de
autonomia dessa última perspectiva estaria exatamente no fato
de que o indivíduo passa a se otientar por objetivos e percep-
ções construídos por ele na interação social e não mais por
papéis sociais fixos fundados na tradição ou no costume”.
Já a noção de tempo oscilaria respectivamente entre o
“tempo imóvel”, sem uma clara distinção entre passado, pre-
sente e futuro; o “tempo instrumental”, onde o presente, des-
tituído de historicidade, encontra-se subordinado à um futuro
perseguido como momento de satisfação e maximização de
interesses; e o “tempo histórico”, cuja duração é impressa pe-
las relações interpessoais, Aqui o presente ganha centralidade
e temporalidade, associadas ao contexto das relações sociais
de que o indivíduo toma parte direta ou indiretamente.
46
 
autogestão em avaliação
Tal tipologia parece ter um valor explicativo bastante
pertinente ao debate sobre as possibilidades de mudança cul
tural no âmbito da autogestão. Basta lembrar o que já foi dito
acima, ou seja, o fato de um indivíduo cooperar e participar
em um grupo não significa, necessariamente, que ele deixe de
se ofientar por valores individualistas, de maximização de gan-
hos privados, ou mesmo, comunitaristas, de apego a papéis
funcionais e hierárquicos.
Resta ainda checar como se processaria a mudança de
um estágio ao outro. É certo que a tipologia acima proposta,
assim como as outras enunciadas, refere-se à identificação de
tipos ideais. Nesse sentido, não se trata de buscar enquadrar o
comportamento dos indivíduos em apenas umdos três padrões
valorativos indicados. O comportamento tenderia sempre a ex-
pressar um misto, um hibridismo desses padrões. Segundo
Geertz existe sempre um padrão cultural dominante que con-
vive com outros “subdominantes” que lhes são conflitantes
ou subordinados. À mudança adviria, segundo o autor, de qual-
quer alteração em uma das noções existenciais de “pessoa”,
“conduta” e “tempo”, já que elas encerram uma unidade
significante de entendimento do mundo*.
Já o ambiente da mudança refere-se ao ambiente
institucional. Instituição entendida como parâmetros normativos
e cognitivos responsáveis por orientar a relação dos indivíduos,
que atuariam de forma socialmente (ou institucionalmente) ade-
quada. Conjunto de regras e normas que, no comunitarismo,
estariam voltadas para um bem comum fixo, qual seja, a própria
unidade do grupo. À serviço da qual haveria uma hierarquia
com papéis bem definidos e igualmente fixos.
Noindividualismo, o fim comum seria à maximização dos
lucros privados. À unidade aqui é função da coincidência de obje-
tivos de ganho entre os indivíduos pertencentes ao grupo. À insii-
tuição age aqui como redutora dos eventuais custos envolvidos
47
 
 
Ibase / ANTEAG
na relação entre os indivíduos — via incentivos seletivos (tecom-
pensas e/ou punições) —, de modo a propiciar a unidade.
No caso do civismo, o objetivo comumsetia algo di-
nâmico, que muda continuamente, resultado da interação/tran-
sação entre os indivíduos, Nesse caso,a instituição deve favo-
recer a emergência de relações iguais entre os indivíduos.
Às hipóteses sobre as mudançasinstitucionais que favo-
recem as relações de igualdade são três: a diversidade da partici-
pação:a diferença como fator que conduzo indivíduoa relativizar
sua posição identitária e a reconhecer as outras maneiras possí-
veis de expressão de si; a transparência das informações estraté-
gicas; e o acordo sobre as regras que orientam as decisões: esses
dois últimos pontos para evitar as relações verticais de
exclusívismo. Sobre essas condições institucionais, vale ainda
fazer duas observações: a importância desses fatores insti-
tucionais deve ser pensada a partir da necessária combinação
entre eles; os procedimentos institucionais devem não apenas
favorecer, mas também promover essas condições.
Não se trata, portanto, de igualdade dos indivíduos,
mas de igualdade entre us indivíduos. Os indivíduos se dispo-
riam, assim, a confrontarem seus interesses é recursos, não tre-
ceando expó-los. O senso de interdependência da interação
social somente sendo reconhecido é valorizado pelos indiví-
duos à medida que exponham e negociem reciprocamente seus
interesses e suas identidades, ou, quando sentirem confiança.
À unidade do grupo, nesse caso, confunde-se com a regulari-
dade de um “relacionamento inteligente” propiciado pela
interação em um ambiente de igualdade”.
Nas seções que se seguem, busca-se travar a discussão
sobre as mudanças institucionais e comportamentais tendo es-
ses referenciais teóricos como horizonte. Vale ressalvar, porém,
que as categorias de análise aqui expostas servem menos de molde
para conformar as idéias e, muito mais, de inspiração.
48
 
 
 
autogestão em avaliação
3. Indicações sobre mudanças .
institucionais e comportamentais a partir
dos dados
3.1 Quadro geral da realidade estudada
A maioria dos empreendimentos pesquisados — nove
das treze — é de empresas de produção, que estão ou não em
processo de falência, normalmente com maquinário obsoleto
e sucateado e com problemas financeiros para comprar maté-
tia-prima, renovar o maquinário e dar continuidade ao pro-
cesso produtivo. É um quadro difícil para iniciar a gestão de
uma empresa. No caso dos trabalhadores desses empreendi-
mentos, manter o posto de trabalho e a renda representava a
sua subsistência e de sua família. 62 Y%dos pesquisados não
possuem outro trabalho remunerado (gráfico* 1). Apenas 15%
4 possuem algum outro tipo de renda, como por exemplo, apo-
sentadoria « pensão. Estes dados revelam a importância da
remuneração mensal dos trabalhadores nas empresas autoges-
tionárias, pois para a maioria constitui-se na única fonte de
49 
 
lhaso / ANTEAG
tenda. Além do que assumem a empresa, muitas vezes não
tendo conhecimento da extensão das dificuldades à enfrentar.
Ao iniciar o processo de implantação de uma emptesa
de autogestão, os trabalhadores têm poucas informações sobre
O que esse novo regime institucional representa. 67%dos traba-
lhadores disseram não ter idéia do que scja uma empresa de
autogestão (gráfico 2), já quanto à cooperativa, 94%afirmaram
que têm noção do que seja (gráfico 3). Além do que, 71% dos
trabalhadores responderam que nunca haviam patticipado an-
tes de um empreendimento desse tipo” (gráficos 4 e 4.1),
Os empreendimentos autogestionários, como já dito, são
recentes no país. Entre as empresas pesquisadas otiundas de
falência, a que tem mais tempo de existência foi criada há 6
anos (gráfico 5). E entre as que já iniciaram atividades como
autogestionárias a mais antiga tem 7 anos. Este pouco tempo
faz com que elas ainda encontrem-se frágeis, pois como inicia-
ram com sérios problemas econômicos e financeiros, não têm,
na maioria das vezes, a propriedade da empresa (do equipamen-
to e do prédio) e tampouco garantias para conseguir emprésti-
mos para modernizar o maguinário ou para capital de giro.
Quando os trabalhadores foram consultados sobre o
que consideram necessário para o crescimento da sua empresa
(gráfico 6), 36%responderam que é aumentar a produção, 21%
que é apoio financeiro, com créditos compatíveis com a neces-
sidade da cooperativa, 17% maior união e colaboração entre
os trabalhadores e 15%investimento em instalações. Percebe-
se através desses dados o quanto é grande a preocupação com
a questão financeira. Estas empresas estão inseridas no mer-
cado capitalista, sendo, portanto,instadas a ter competitividade,
um produto de qualidade, conhecer o mercado e os clientes.
Na passagem da empresa convencional para a
autogestionária as perdas podem ser à diminuição da produ-
50
 
autogastão em avaliaçãoção, decorrente de fatores como a diminuição de clientes, per-
da de autonomia (terceirização), falta de matéria-prima entre
outros fatores que contribuem para debilidade do empreendi-
mento. Soma-se a isto o desconhecimento dos trabalhadores
sobre como gerir uma empresa. Durante o período em que tra-
balharam como empregados assalariados não tiveram acesso e
nem interesse em saber sobre como funcionava a empresa em
termos administrativos e financeiros, como era a aceitação do
produto pelo mercado, o tamanho do mercado,a concorrên-
cia, informações básicas para a gestão do negócio.
Entre as empresas pesquisadas, as que apresentam
melhores condições empresarias, em termos de organização é
financeiros, são as agroindústrias, que ofertam serviços aos
seus associados comprando sua produção ao mesmo tempo
em que é transformada em produto final e ofertado aos consu-
midores; as com maiores problemas na mesma área, sãoas que
prestam serviços externos(reciclagem de lixo). Nos gruposde
discussão foi possível confirmar e aprofundarestas indicações
identificadas nos questionários. |
Háde se considerar que o nível de escolaridade (gráfi-
co 7) e de informação dostrabalhadores é bastante baixo. Ape-
sar da maioria ter 1º grau incompleto (65%), na realidade isto
significa terem cursado até, no máximo, a 4º série do antigo
curso primário. Apenas 10% dos entrevistados chegaram a
concluir o 2º grau. Ao analisarmos a idade dos pesquisados
vemos que a maioria está entre 31 e 50 anos 68%), tendo,
portanto, deixado a escola há muito tempo (gráfico 8).
A renda individual mensal na empresa (gráfico 9), para
a maioria dos trabalhadores (63%), é entre 1 « 3 salários méni-
mos é 17% retiram de 3 a 5 salários mínimos. Âo analisar a
tenda familiar (gráfico 10) as percentagens se alteram: 30%
está na faixa de 3 a 5 salários mínimos e 24%na faixa de 1a 3
51 
 
Ibase / ANTEAG
salários mínimos, sendo a renda individual, portanto, essencial
na composição da renda familiar. Ao mesmo tempo, 74% dos
entrevistados possuem casa própria, 92%tem água encanada
e 91% tem fossa séptica ou esgoto (gráficos n e 12). Estas
informações revelam um acesso a bens e serviços bem acima
da média nacional.
Ao considerarmoso sexo dos entrevistados (gráfico 13)
que responderam aos questionários, temos 71% de homens e
29ºde mulheres, o que pode ser considerado como uma amos-
tra bastante representativa. Uma vez que, o total de mulheres
trabalhando nos setores de indústria de transformação é
agropecuária no Rio Grande do Sul em 1999 era de 311% 1,
Em síntese, as empresas estudadas apresentam um tem-
po médio de existência baixo (três anos e meio) e uma fragili-
dade econômica. Além disso, a grande maioria dos trabalhado-
fes apresenta baixa escolaridade e dependem da renda auferida
na empresa para sobreviver. Resta saber o quanto as novas
condições institucionais são capazes, em que pese tais limita-
ções e por causa delas, de envolver os trabalhadores na gestão
do negócio e no processo produtivo, para além da manutenção
do posto detrabalho.
3.2 Sobre as mudançasinstitucionais nas
empresas autogestionárias
A fim de sondar possíveis alterações nos valores e ati-
tudes dos trabalhadores, faz-se necessário investigar as mu-
danças institucionais que estariam ocorrendo no ambiente do
empreendimento. Isso implica avaliar sc e em que medida ha-
veria uma tendência institucional para o estabelecimento de
telações de igualdade entre os trabalhadores, em contraposição
ao sentido desigual que marca a relação de produção capitalis-
52 
autogestão em avaliaçãa
ta. Ou seja, a produção de um ambiente de transparência e de
patticipação da diversidade na definição das regras que orien-
tam as decisões, bem como no resultado delas”,
As mudançasinstitucionais precisam ser avaliadas em
pelo menos dois níveis distintos, emboraarticulados: na gestão
do negócio e no processo de produção. Isso se justifica pelo fato
de que representam espaços distintos de atuação do trabalha-
dor. Na gestão do negócio, pode-se identificar como indicadores
importantes o momento inaugural, o regime de propriedade, as
relações de hierarquia e os canais de participação e informação.
Já no processo de produção, a atenção recai sobre a divisão do
trabalho e a organização do espaço da produção.
As mudanças dos termos institucionais propostos a
seguir têm ritmoe alcance distintos seja em função do quanto
e como elas são assimiladas pelos trabalhadores, ou porque
elas mesmas enconttam-se mutuamente implicadas. Só para
efeito de ilustração, o regime de propriedade pode se tornar
coletivo, masa participação continuar restrita aqueles que ocu-
pam um papel de direção (Tiriba, 2001; Kasmir, 1996).
Vale lembrar que as mudanças institucionais serão
investigadas em empreendimentos que podem ser agrupados
em três tipos, segundo sua finalidade. Um empreendimento
voltado para a produção de bens, outro que oferta serviços
aos próprios associados e um terceiro que oferta serviço pata
consumidores externos.
Como já assinalado na metodologia, o presente tra-
balho está dedicado à investigação de possíveis mudanças
institucionais e comportamentais a partir prioritariamente
do primeiro tipo — que compreende nove dos treze casos
estudados. Os outros dois tipos de empreendimento serão
tratados a fim de checar e pondetar, quando pertinente, os
termos da análise.
53 
 
Ibase / ANTEAG
2) Momento inaugural
O momentoinaugural do empreendimento é aqui com-
preendido não apenas como uma matcação temporal, mas como
um marcoinstitucional que, em maior ou menor medida, influi
na definição da identidade institucional e, por conseguinte, do
comportamento esperado. Importa saber, pois, sobre o
envolvimento dos trabalhadores na constituição do empreen-
dimento, se existiu e de que forma se processou.
Se considerarmos as empresas de produção, o mais
comum na origem dos empreendimentosfoia iniciativa de um
grupo dos antigos empregados na constituição da empresa
como cooperativa. À mobilização dos trabalhadores para as-
sumir a administração do negócio se dá, invariavelmente, em
um contexto de inviabilização econômica do empreendimento
pelos antigos donos. Tal inviabilização implicando na instau-
ração de um processo falimentar ou, mais raramente, em acor-
dos entre os proprietários e os trabalhadores.
Ão grupo cabe, portanto, negociar, seja com a sindi-
cância da massa falida ou diretamente com os proprietários, o
arrendamento de máquinas e instalações a partir de passivos
trabalhistas. Esse grupo se vê ainda frente ao desafio de resta-
belecer o processo produtivo e todaa estrutura de fornecedo-
res e clientes, que, no mais das vezes, encontra-se desarticula-
da. Vale dizer também que o grupo tende a não apresentar
vínculos com o sindicato da categoria e menos ainda com os
antigos donos. Com efeito, a carência de apoios externos totna
os esforços de mobilização por parte desse grupo ainda maio-
res. Mesmo considerando o envolvimento de apenas parcela
dos trabalhadores na constituição do empreendimento,isso por
si só já indica uma origem associada à participação e coopera-
ção entre trabalhadores, Some-se a isso O fato de que esses
empreendimentos constituem-se sob o tegime de cooperativa,
54
 
autogestão em avaliação
cuja gestão e forma de propriedade orientam-se, em termos
formais, no sentido compartilhado. Daí a participação e ce
peração apresentarem-se, em boa medida, como padrão de
comportamento esperado. ]
No momento inaugural desses empreendimentos é co-
mum alguns trabalhadores não aderirem à cooperativa ou,
mesmo, não serem absorvidos por razão de debilidade econô-
mica do empreendimento. Muitas vezes, é O pessoal aclminis-
trativo e de gerência que tende a optar porsaídas particulares,
talvez pelo fato de se verem com maiores chances de reingresso
no mercado formal ou por terem relações aproximadas com os
antigos donos. Isso implica, em uma desarticulação dos papéis
hierárquicos, particularmente os referentes à gestão

Continue navegando