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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Instituto de Filosofia e Teologia Dom João Resende Costa Matheus Prado Ribeiro O BELO NA ESTÉTICA HEGELIANA Belo Horizonte 2018 Matheus Prado Ribeiro O BELO NA ESTÉTICA HEGELIANA Monografia apresentada ao Curso de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Ibraim Vitor de Oliveira Belo Horizonte 2018 A minha família e amigos por todo incentivo, em especial meus pais, pela inspiração. “[...] o artista não só deve ter experiência do mundo em todas as suas manifestações extrínsecas e intrínsecas, como ainda é preciso que haja padecido grandes sentimentos, que o seu coração e o seu espírito tenham sido profundamente emocionados e comovidos, que muito tenha jubilado e penado, para se achar em estado de exprimir em formas concretas as profundidades insondáveis da vida.” (HEGEL, 2009, p. 318) RESUMO Este estudo trata da arte e da sua relação com a história e a verdade sob a ótica da estética hegeliana. O principal objetivo é identificar onde a arte se situa na realidade e sua significação para o homem, assim como compreender a lógica hegeliana e a importância da arte nesse sistema filosófico. A metodologia utilizada foi a revisão bibliográfica de fontes primárias e secundárias. A proposta de desenvolver este trabalho tem como motivação elaborar uma exposição didática do tema da arte, partindo de uma contextualização histórica e filosófica até a abordagem do núcleo central do trabalho, permitindo uma melhor compreensão do tema da arte e sua relação com o belo. Atingindo esses objetivos é possível compreender o novo status da arte, em que deixa de ser pura objetividade e negatividade para uma nova significação como momento do espírito absoluto. Por fim, o estudo aborda o fim da arte numa perspectiva histórico-dialética como consequência da superação dos momentos do espírito. Palavras-chave: Arte. Espírito. Ideia. Belo. Movimento dialético. Absoluto ABSTRACT This study deals with art and its relation with history and truth under the Hegelian aesthetic viewpoint. The main objective is to identify where art is situated in reality and its meaning for man, as well as comprehend the Hegelian logic and the importance in that philosophical system. The methodology used was a bibliographical review of primary and secondary sources. The development proposal of this study has as motivation elaborate an didactic exposal of the art theme, starting from the historical and philosophical context to the central nucleus of the study, allowing a better understanding of the art’s theme and its relation to beauty. Reaching these objectives it is possible to comprehend art’s new status, taking it from pure objectivity and negativity to a new meaning as a moment of the absolute spirit. In conclusion, the study deals with the end of art under the historical-dialectical perspective as a consequence of the spirit moments overcoming. Keywords: Art. Spirit. Idea. Beauty. Dialectical movement. Absolute. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO……………………………………………………………………………..9 2 FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO…………………………………………………….10 3 ARTE: PRIMEIRO MOMENTO DO SABER ABSOLUTO.......................................18 3.1 O belo: da mímesis à produção do espírito......................................................19 3.2 Momento do espírito...........................................................................................22 3.3 O fim da arte sob a ótica histórico-dialética.....................................................25 4 CONCLUSÃO..........................................................................................................28 REFERÊNCIAS.......................................................................................................30 9 1 INTRODUÇÃO A arte suscita reflexões desde a antiguidade e na modernidade ganha um de seus mais importantes tratados, o Curso de estética. Hegel, em 1823, dedica uma obra, dividida posteriormente em três volumes, para a arte. O intuito do filósofo é, como apresentado anteriormente na Fenomenologia do espírito, dar à arte um novo estatuto e uma nova dimensão. No presente trabalho será desenvolvido o pensamento de Hegel quanto à arte. Com o intuito de facilitar a compreensão do tema, são apresentados no primeiro capítulo conceitos fundamentais da filosofia de Hegel, tratados na Fenomenologia do espírito. Será feito uma breve exposição do contexto filosófico no qual o filósofo estava inserido, mostrando as influências de alguns pensadores do idealismo alemão na formação do pensamento de Hegel. Feitas as devidas considerações, o estudo avançará para o entendimento da arte segundo a lógica hegeliana. Hegel coloca as obras de arte para além de uma compreensão puramente sensível e contingente. A arte será situada como momento importante do espírito absoluto, sua relação com a consciência e seu papel no movimento do espírito. A reflexão terá como foco principal a conceitualização do belo dentro da estética hegeliana e a diferenciação do belo artístico e do belo natural. No momento seguinte, será exposto o sistema das artes particulares, detalhando como Hegel classifica a arte simbólica, a arte clássica e a arte romântica. A compreensão das artes particulares será de grande importância para o entendimento da tese do fim da arte, último tópico do estudo. Contudo, Hegel não dedica nenhum livro ou mesmo um capítulo para o tema do fim da arte. Estudos posteriores evidenciam que o fim da arte pode ser entendido sob diversos aspectos, apresentando diferentes teses. O presente trabalho abordará a perspectiva histórico-dialética do fim da arte, onde a superação dos momentos do espírito culminam no fim do fazer artístico como expressão do absoluto. A abordagem será feita seguindo a análise hegeliana dos sistemas das artes particulares apresentada no Curso de estética. 10 2 FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO Falar sobre a arte em Hegel requer, antes, o entendimento sobre o que o filósofo entende por arte. A filosofia de Hegel é um sistema. Cada pensamento do filósofo é um tijolo que compõe o edifício. Assim, a estética hegeliana se torna clara quando compreendemos a lógica do sistema hegeliano. Para tal, faz-se necessário a leitura da Fenomenologia do espírito. A Fenomenologia do espírito é uma das mais importantes obras de Hegel. A ideia que norteia essa obra foi a de traçar os sucessivos estágios do desenvolvimento do espírito, refletido no desenvolvimento das consciências individuais e, especialmente, na história da humanidade. A fenomenologia se apresenta então como um sistema que produz e organiza toda a racionalidade humana numa espécie de transcrição do real no racional. Nesse movimento, a Fenomenologia do espírito se torna a introdução ao sistema do saber absoluto, buscando superar a aporia kantiana1. Sobre a fenomenologia, Vaz (2014, p. 54) comenta: “esse aparecimento da consciência diante de si, que Hegel denomina fenomenologia, é a experiência da própria consciência no desvendar do seu próprio saber absoluto.” A Fenomenologia é uma introdução ao sistema do saber absoluto, conjugando a relação lógica e a relação histórica deste saber que se desdobra de forma dialética no mundo. Assim comenta Vaz (2014, p. 13) na apresentação da obra: O movimento dialético da Fenomenologia prossegue como aprofundamento dessa situação histórico-dialética de um sujeito que é fenômenopara si mesmo no próprio ato em que constrói o saber de um objeto que aparece no horizonte das suas experiências. O caminho da razão na história da filosofia é o de tentar explicar o real. Nota-se porém que explicar a causa de algo requer a explicação de algo precedente ad infinitum. Hegel entende que buscar as causas do real é algo estéril e adota a busca pela razão de ser. Na esperança de apegar-se a algo real, a lógica se volta para a ontologia e procura encontrar na razão a totalidade do ser. Postula que a razão explica o universo uma vez que explica a si mesma e, neste sentido, a razão está livre do ciclo vicioso do princípio de causalidade: a razão é causa de si mesma, sempre foi e sempre será, aquilo que realmente é. 1 A aporia kantiana refere-se à diferença entre noúmeno e fenómeno assim como à impossibilidade humana de conhecer a coisa-em-si. 11 Será exposto nos próximos parágrafos uma breve análise do contexto filosófico no qual o pensamento de Hegel teve sua gênese2. Observa-se que o tema da verdade tem sua aurora nesse período conhecido como Idealismo Alemão, e a arte surge como possibilidade de união entre o homem e a natureza. Em seguida, será feita a exposição do plano geral do sistema hegeliano, tendo como objetivo situar a arte e o belo na totalidade da filosofia de Hegel. O Idealismo Alemão é um movimento filosófico e cultural que influenciou a vida na Alemanha e na Europa em geral. Seu início se deu em 1770, com os primeiros escritos de Kant sobre seu sistema criticista transcendental, e teve seu fim em 1831, com a morte de Hegel. A importância deste período é assim descrita por Lima Vaz: Não foi um simples movimento filosófico. Foi um movimento de pensamento que refletia, de certo modo, toda a riqueza, toda a complexidade, as mudanças da vida ocidental, nos fins do século XVIII e começo do século XIX, de grandes transformações e revoluções. Foi um período de fecundidade filosófica muito grande na Alemanha, o que justifica a importância que esse movimento tem na história da Filosofia posterior, até os dias atuais. (VAZ, 2014, p. 138) As filosofias dos pensadores do Idealismo Alemão influenciaram de forma direta o pensamento de Hegel. Inserido no contexto do criticismo kantiano, nosso filósofo busca superar as limitações do pensamento impostas por Kant e desenvolve os conceitos referentes à razão e ao espírito apresentados por Fichte e Schelling. De forma breve será visto como as ideias desse período culminaram na teoria do espírito absoluto de Hegel, na qual a arte se insere. O problema fundamental do Idealismo “se define pela primazia do sujeito pensante, cogito cartesiano ou “eu penso”, que Kant chama de unidade da apercepção” (VAZ, 2014, p. 140). Como fundamentar toda a realidade pensável na identidade do sujeito? É neste ponto que Kant, no prefácio da segunda edição da Crítica da razão pura3, diz ter operado aquilo que chamou de revolução copernicana do pensamento. Enquanto a Metafísica clássica fundava toda a realidade pensável em Deus, Kant propôs o fundamento da realidade no próprio sujeito. A ênfase do 2 Para uma exposição completa sobre a gênese do pensamento hegeliano sugere-se a leitura da obra de Henrique Lima Vaz, A formação do pensamento de Hegel (2014). 3 “We here propose to do just what Copernicus did in attempting to explain the celestial movements […] We may make the same experiment with regard to the intuition of objects. If the intuition must conform to the nature of the objects, I do not see how we can know anything of them a priori. If, on the other hand, the object conforms to the nature of our faculty of intuition, I can easily conceive the possibility of such an a piori knowledge.” (KANT, 1990, p. 7) 12 pensamento kantiano não se volta para o conhecimento da realidade objetiva mas para o conhecimento das estruturas cognitivas do sujeito. Cabe ao sujeito pensar a realidade e justificá-la. Sobre o pensamento de Kant e sua importância, Hegel (2009, p. 76) assim comenta: Como fundamento da inteligência, e também da vontade, Kant colocara, de um modo geral, o racional em si, a liberdade, a consciência que se descobre e se sabe infinita, e este reconhecimento do caráter absoluto da razão como tal, que deu o impulso a toda a orientação da filosofia moderna. Na tentativa de unir o racionalismo e o empirismo para responder à pergunta de como é possível conhecer, Kant redige a Crítica à razão pura e conclui que a redução da realidade no sujeito pensante não pode ser realmente efetivada. O sujeito só pode pensar a realidade dentro de suas limitações, impostas pela estrutura do nosso entendimento e da nossa sensibilidade. Sobre esse aspecto, Vaz (2014, p. 142) observa que “o que vai parecer intolerável aos idealistas alemães posteriores a Kant é que o Absoluto não tenha sua fundamentação no próprio sujeito”. A atividade do Eu é a marca do idealismo alemão, nesta corrente não somos passivos diante do mundo. Fichte procurou transformar a filosofia kantiana em ciência e em sua obra Doutrina da ciência buscou por um princípio único que unificasse a razão teórica e a razão prática. Nesse movimento, o autor transforma o eu vazio de Kant na coisa em-si primordial e a objetividade passa a ser posta pelo sujeito. O Eu passa a ser pensado como atividade pura, inaugurando o Idealismo da ação. Numa lógica inversa ao do cógito cartesiano, o cógito fichteano afirma que a existência do Eu não é uma conclusão do pensar, mas sim um pressuposto para o pensar. Toda consciência possível, como objeto de um sujeito, pressupõe uma consciência imediata em que subjetivo e objetivo sejam pura e simplesmente um; sem isso, a consciência é pura e simplesmente inconcebível [...] Essa consciência imediata é a intuição do Eu que acaba de ser descrita; nela o Eu põe a si mesmo necessariamente e é, portanto, o subjetivo e o objetivo em um só. Toda outra consciência é vinculada a esta e medida por ela; e única e exclusivamente pela vinculação com ela se torna uma consciência. (FICHTE, 1980, p. 182) A filosofia de Fichte, introduzindo o pensamento de uma consciência que pensa a si mesma e que coloca a realidade, torna-se a base para o conceito de Espírito Subjetivo no pensamento hegeliano. 13 Por sua vez, Schelling pretende superar essa concepção de Fichte apresentando a ideia de um Eu sujeito. Em sua obra Sistema do idealismo transcendental, Schelling propõe um Eu que reconhece o mundo exterior e retorna a si mesmo, trazendo para si a realidade. Para Schelling o que vem primeiro é a natureza, o real na sua totalidade. O não-eu (natureza) é o fundamento originário que coloca o Eu (espírito). O pensamento de Schelling fundamenta a teoria do Espírito Objetivo no pensamento hegeliano. Vaz (2014, p. 156) esclarece que: Por isso mesmo, para Schelling o sujeito que já é substância tem, por assim dizer, duas faces: a face ideal, que é o espírito, o mundo espiritual, o mundo da cultura que ele descobria, sobretudo na arte e na religião; e a face que era a Natureza. O sistema hegeliano gira em torno dessa passagem entre sujeito e substância e retorno da substância ao sujeito. Na obra Fenomenologia do espírito, Hegel (2014) apresenta sua solução para o idealismo através da filosofia do espírito, também conhecida como filosofia da história. Vaz (2014, p. 11) assim a apresenta: A intenção de Hegel na Fenomenologia é articular com o fio de um discurso científico – ou com a necessidade de uma lógica – as figuras do sujeito ou da consciência que se desenham no horizonte do seu afrontamento com o mundo objetivo. Nessa abordagem hegeliana, é possível notar a tentativa de se encontrar uma solução para o problema do dualismo kantiano que refletiu tambémem como compreender esse novo sujeito, ordenador da realidade, na sociedade e na história. É o momento em que a filosofia, história e cultura se unem. É no movimento dialético que a consciência se desenvolve em direção ao Espírito Absoluto. Consciência é a mente em sua relação essencial com seus objetos, externos ou internos, “pois a consciência distingue algo de si e ao mesmo tempo se relaciona com ele; ou, exprimindo de outro modo, ele é algo para a consciência. O aspecto determinado desse relacionar-se – ou do ser de algo para uma consciência – é o saber” (HEGEL, 2014, p. 75). Para Hegel, cada forma de consciência produz dialeticamente negações determinadas, disso resultando uma forma superior de consciência, que ultrapassa as anteriores, ciente das inadequações de suas formas prévias. No pensamento hegeliano o processo dialético é o motor de toda a realidade. Sobre a consciência, Vaz (2014, p. 16) comenta: 14 Na experiência do saber de um objeto que lhe é exterior, a consciência se suprime como simples consciência de um objeto, passa para a consciência-de- si como para a sua verdade mais profunda: a verdade da certeza, de si mesmo. Importante ressaltar que o movimento dialético não é método para o conhecimento mas condição ontológica para tal. Hegel fala da história da consciência e afirma que a consciência humana não nasce pronta. O Eu se constitui a si mesmo no confronto com a aquilo que ele não é. A história do Eu efetivo é a história de uma auto constituição que se dá por processos dialéticos. Desta forma, a consciência percorre um processo de ascese em direção ao saber autêntico, saber-de-si-mesmo. Sobre o saber, Hegel (2014, p. 38) comenta: O que esta Fenomenologia do Espírito apresenta é o vir-a-ser da ciência em geral ou do saber. O saber, como é inicialmente – ou o espírito imediato – é algo carente-de-espírito: a consciência sensível. Para tornar-se saber autêntico, ou produzir o elemento da ciência que é o seu conceito puro, o saber tem de se esfalfar através de um longo caminho. Esse caminho é o movimento dialético que remonta à ideia de etapas da consciência: espírito que desvela seu próprio ser, tomando consciência e posse de sua liberdade de forma progressiva. “Certamente o espírito nunca está em repouso, mas sempre tomado por um movimento para frente” (HEGEL, 2014, p. 28). Podemos entender o movimento dialético como negação da negação, ou numa forma simples: tese – antítese – síntese. Essa concepção propõe a ideia de superação dos momentos prévios por parte da síntese. A síntese representa um momento mais elevado em relação à tese e à antítese. Característica da síntese é que esta não nega totalmente os elementos da tese e da antítese. A constituição desse novo momento carrega consigo características dos momentos anteriores. Hegel apresenta didaticamente o movimento dialético com o exemplo do botão que contém em si a flor. Para que o botão se efetive enquanto flor ele precisa se negar enquanto botão. A flor, momento efetivo das potencialidades do botão, carrega em si elementos de sua fase prévia, elementos do botão: O botão desaparece no desabrochar da flor, e poderia dizer-se que a flor o refuta; do mesmo modo que o fruto faz a flor parecer um falso ser-aí da planta, pondo-se como sua verdade em lugar da flor: essas formas não só se distinguem, mas também se repelem como incompatíveis entre si. Porém, ao mesmo tempo, sua natureza fluida faz delas momentos da unidade orgânica, na qual, longe de se contradizerem, todos são igualmente necessários. (HEGEL, 2014, p. 24) 15 O espírito tomado por um movimento para frente é representado pela consciência que se desenvolve em direção ao Espírito Absoluto. Quanto mais o homem se desenvolve espiritualmente, mais ele se torna consciente-de-si. Em um primeiro momento desse caminho de ascese, o espírito é idêntico a si mesmo. Depois reflete-se na sua negação, a natureza. A unidade do subjetivo com a substância dá- se então no percurso de uma razão observadora que se unifica à razão propriamente dita. O espírito é, então, a ideia que a partir da alienação retorna a si e se torna em si e por si, engendrando a seguinte tríade: Espírito Subjetivo (nível da ação individual), Espírito Objetivo (nível da totalidade cultural e histórica do espírito em sua objetividade) e Espírito Absoluto – saber-de-si-mesmo (máxima realização espiritual na cultura). Sobre os processos da consciência-de-si-mesmo Hegel (2009, p. 50) pontua no Curso de estética: A consciência a si próprio, adquire-a o homem de duas maneiras: teoricamente, tomando consciência do que é no interior, todos os movimentos da alma, todas as cambiantes do sentimento, representando-se a si próprio, tal como se descobre pelo pensamento, e reconhecendo-se na representação que a seus próprios olhos oferece. Mas o homem está preso também a relações práticas com o exterior, relações de que também provém a exigência de transformar o mundo, e assim também ele próprio, na medida em que ao mundo pertence e lhe imprime o sinal da sua personalidade. No último capítulo da Fenomenologia do espírito, Hegel detalha o saber absoluto. No Curso de estética nosso filósofo exemplifica o desenvolvimento da consciência na história e seu desdobramento nas três esferas do espírito absoluto: arte, religião e filosofia. A diferença encontra-se na forma com que o Absoluto é trazido à consciência. Nesse sentido, Hegel (2009, p. 25) determina uma hierarquia entre as três esferas do Espírito Absoluto, reconhecendo à religião e à filosofia um grau mais elevado ao da arte: “Na hierarquia dos meios que servem para exprimir o absoluto, a religião e a cultura provindas da razão ocupam o grau mais elevado. Muito superior ao da arte”. A partir da Fenomenologia do Espírito, Hegel dá a arte um novo entendimento e um novo status. A obra de arte deixa de ser simples elemento objetivo e passa a fazer parte do espírito humano. A arte passa a ser algo da instância humana, sob a ótica ontológica, com o claro intuito de trazer à consciência um entendimento mais elevado da realidade. Sobre a arte, Hegel diz (2009, p. 91): “A função da arte consiste em conciliar, numa livre totalidade, estes dois aspectos: a ideia e a representação sensível”. 16 Para melhor compreensão da precedente citação e como a arte se insere no pensamento de Hegel, é necessário ter clareza sobre o significado de cada termo dentro da lógica hegeliana. É preciso entender o que Hegel entende por “conceito”, “ideia”, “verdade” e a relação entre esses termos. O “conceito” desempenha um papel central dentro da estética hegeliana: O espírito revê-se nos produtos da arte. E quando a obra de arte não exprime pensamentos e conceitos, mas representa o desenvolvimento do conceito a partir de si para uma alteração no exterior, até então o espírito pode apreender a si mesmo na forma que lhe é própria e que é a do pensamento, e ainda reconhecer-se como tal na alteração em forma de sentimento e de sensibilidade, em suma, apreender a si neste outro ele próprio. (HEGEL, 2009, p. 18) Conceito não é, como tido pelo senso comum, uma representação abstrata da realidade. Diferentemente da concepção aristotélica, não é, também, a representação universal de várias particularidades. Hegel não pensa o conceito num plano cognitivo mas num plano ontológico. “As referidas e pretensas teorias, ao contrário, partem das particularidades para chegar ao conceito, ao universal. A nós, aparece-nos em primeiro lugar a ideia em-si e para-si, não a ideia derivada, deduzida de objetos particulares” (HEGEL, 2009, p. 14). O conceito carrega em si todo o potencial de sua autorrealização, é a potência que se efetiva na realidade sem perder-se nela. Na passagem do universal abstrato para a particularização o conceito se realiza a si mesmo, permanecendo em unidade consigoem sua objetividade. O conceito se constitui enquanto tal na unidade das suas diferentes determinações através da realidade objetiva, o que segundo Hegel, o torna totalidade efetiva, já que é infinito que engloba o finito, se realizando mas não se esgotando nele. A liberdade do conceito consiste no fato deste se autodeterminar e não ser limitado por outro conceito. A ideia é a unidade do conceito e da sua realidade. A ideia é o ponto de encontro do conceito consigo mesmo, é objetividade real e subjetividade ideal. A ideia é a verdade. Hegel assim diz: “Ora, tal como, sem a sua objetividade, o conceito não é verdadeiramente o conceito, assim também a ideia não é verdadeiramente a ideia sem a sua realidade” (2009, p. 173). Hegel conclui que tudo o que existe só possui verdade na medida em que é uma efetivação do conceito, ou seja, na medida em que existe como ideia. Sobre a 17 ideia e totalidade Márcia Gonçalves4, professora da UERJ e membro da Sociedade Hegel Brasileira, diz: Hegel identifica no processo da vida os dois momentos fundamentais da totalidade da ideia: de um lado, seu aspecto finito, como determinação e realização no mundo exterior; de outro lado, seu aspecto infinito, como continuidade substancial do conceito. O conceito hegeliano de ideia corresponde à unidade entre o momento da unidade e o momento da diferença (2001, p. 30) A aparência sensível constitui momento essencial da ideia, tendo em vista que a exterioridade é a objetivação do conceito posta por ele mesmo. Para Hegel, o belo é a apresentação da verdade de modo sensível. Trata-se do absoluto brilhando através da aparência. Conclui-se que beleza e verdade são coincidentes, uma vez que a ideia é a verdade e tudo que chamamos de verdadeiro o é na medida em que existe segundo a ideia: “A ideia como tal é concreta em si, é uma totalidade de determinações, e só será belo o que contiver uma adequação direta da ideia à representação objetiva” (HEGEL, 2009, p. 73). O estudo prosseguirá no sentido de aprofundar os estudos referentes à arte, primeiro momento do saber absoluto. Busca-se entender como a arte se insere no sistema hegeliano e qual sua importância no desenvolvimento do Espírito. Ao longo desse processo, será detalhado como Hegel diferencia o belo natural do belo espiritual e qual reposta o autor dá às seguintes perguntas: por que o homem cria as obras de arte? Por que a natureza é imperfeita na sua beleza? Por fim, será traçado um plano geral da estética hegeliana, compreendendo a relação da arte com a história, e abordaremos a questão do fim da arte na filosofia de Hegel. 4 Para melhor compreensão da arte na Fenomenologia do espírito sugere-se a leitura do artigo Uma concepção dialética da arte a partir da gênese do conceito de trabalho na fenomenologia do espirito de Hegel, de Márcia Gonçalves. 18 3 ARTE: PRIMEIRO MOMENTO DO SABER ABSOLUTO Como primeiro momento do Espírito Absoluto o valor da arte está em fazer a mediação entre a generalidade metafísica e a particularidade da determinação real. A arte é a exteriorização de si do homem. Nisto consiste a natureza do belo. Apesar de situar a arte num patamar inferior à religião e à filosofia, Hegel diz o que a torna única: “Mas a arte difere da religião e da filosofia pelo poder de dar, das ideias elevadas, uma representação sensível que no-las torna acessíveis” (2009, p. 24). Tendo em vista o valor único da arte é possível responder, com as palavras de Hegel, por que o homem cria obras de arte: A universalidade da carência de arte provém tão só de que o homem é um ser pensante e dotado de consciência. Dotado de consciência, o homem situa-se em face do que é ele mesmo, do que é de um modo geral, e do que é faz um objeto para si. As coisas da natureza contentam-se em ser, pois são simples, e só uma vez são, ao passo que o homem, enquanto consciência, desdobra- se: é uma vez só, mas é para si. Projeta na sua frente o que é, contempla-se, representa-se a si próprio. É preciso, portanto, procurar a ciência geral que uma obra de arte provoca no pensamento humano; portanto a obra de arte é um meio com o qual o homem exterioriza o que ele mesmo é. (HEGEL, 2009, p. 50) Com a presença do belo no feitio artístico desaparece a oposição entre sujeito e objeto, permitindo o avanço da superação da alienação do espírito. A arte adquire, então, um caráter de fundamental importância: a função de trazer para o espírito a consciência de sua própria espiritualidade. Nas palavras de Márcia Gonçalves, “a arte constitui para Hegel a primeira etapa de libertação do espírito, de sua elevação acima das relações contingentes e não-livres do mundo finito, posto que ela é a primeira forma espiritual efetiva de produção de si mesmo” (2001, p. 60). Na obra de arte há a interlocução entre o puro pensamento e o imediato sensível. Ela espiritualiza a matéria pura, idealizando o sensível. O espírito aparecendo de forma sensível constitui a unidade entre subjetivo e objetivo: De si mesmo o espirito extrai as obras artísticas que constituem o primeiro anel intermédio destinado a ligar o exterior, o sensível e o perecível ao pensamento puro, a conciliar a natureza e a realidade finita com a liberdade infinita do pensamento compreensivo. (HEGEL, 2009, p. 24) Pelo que foi dito conclui-se que a estética hegeliana é filosofia da arte, já que a obra de arte é produção do espírito, ou seja, social, cultural e coletiva. A verdadeira genialidade criadora, a verdadeira criação artística, é produção coletiva, mediada pela razão observadora, razão subjetiva que compreende o espírito de seu próprio povo e 19 de sua própria história. Devido ao processo histórico o espírito não é algo estático e a arte é produto e expressão deste espírito em movimento. “A força do espírito só é tão grande quanto sua exteriorização; sua profundidade só é profunda à medida que ousa expandir-se e perder-se em seu desdobramento” (HEGEL, 2014, p. 28). Situada a arte dentro do sistema filosófico hegeliano, como primeiro momento do espírito absoluto e união do subjetivo e objetivo, o presente estudo se dedicará à compreensão do conceito do belo na estética hegeliana, definindo a importância do belo e como Hegel diferencia o belo natural do belo espiritual. 3.1 O belo: da mímesis à produção do espírito No Curso de estética Hegel apresenta a arte como realização do espírito humano na história do mundo e, neste sentido, o conceito de beleza é tido como idealização perfeita do sensível ou como harmonia entre a ideia livre e o sensível contingente. A compreensão da arte como momento do espírito é o que permite compreender a posição de Hegel quanto ao belo natural. Sobre a beleza Márcia Gonçalves (2001, p. 19) diz: Só existe o fenômeno da beleza à medida que a objetividade sensível se mostre como ideal ou como idealizada, ou seja, a matéria sensível receba do próprio espírito uma forma já espiritualizada. Esta idealização do sensível pelo espírito é na verdade a definição propriamente dita da concepção hegeliana de arte, como atividade cultural ou espiritual. A idealização pela arte significa a superação pelo espírito do caráter imediatamente contingente do sensível. Para Hegel, o belo natural é inferior ao belo artístico porque, na natureza, o sensível se encontra ainda em uma forma bruta imediata, ou seja, contingente e não-idealizada. A crítica de Hegel ao belo natural parte da seguinte tese: a natureza é, em sua imediação, o ser-outro do espírito. A filosofia idealista de Hegel coloca o homem em uma posição superior à natureza. Tudo o que provém do espírito é superior. Assim, Hegel ressalta o valor criativo do artista na produção da obra de arte e ataca o ponto de vista que defende que arte seja imitação da natureza. Sobre a superioridadedo belo artístico Hegel (2009, p. 3) diz: Julgamos nós poder afirmar que o belo artístico é superior ao belo natural por ser um produto do espírito que, superior à natureza, comunica esta superioridade aos seus produtos e, por conseguinte, à arte; por isso é o belo artístico superior ao belo natural. Tudo quanto provém do espírito é superior ao que existe na natureza. 20 A filosofia da arte de Hegel busca o estudo da manifestação adequada da ideia no sensível. Como dito anteriormente, a arte é idealização do sensível. Para o nosso filósofo, o sensível na natureza ainda não é idealizado, ainda não possui uma forma ideal, ainda não realiza efetivamente a beleza. Assim sendo, a primeira forma efetiva de idealização do exterior contingente se dá a partir do fenômeno do belo artístico, como produto do espírito, e não se encontra imediatamente na natureza mesma. A natureza é um caos de contingência e essencialmente imperfeita em sua beleza enquanto sensível não idealizado. Sobre esse conceito, Márcia Gonçalves (2001, p. 26) esclarece: Quando Hegel afirma que a ideia só pode ser concebida pelo pensamento lógico, ele quer, com isto, ao mesmo tempo negar a tese de uma manifestação sensível adequada da ideia na natureza. Manifestação sensível adequada da ideia corresponde, para Hegel, à sua concepção própria de belo ideal, que não pertence propriamente à natureza em sua imediação, mas à arte, como atividade espiritual ou cultural, ou seja, como transformação pelo homem da imediação natural; como humanização ou idealização da natureza. O belo não se fazendo presente na natureza imediata refuta a ideia de uma arte como mímesis, ou seja, arte como imitação da natureza. A concepção da ideia do belo em Hegel diverge da concepção grega na medida em que se trata, para o autor do Curso de estética, de compreender a presença da ideia no sensível, e de reabilitar de alguma maneira o contingente imediato como o lugar da existência da ideia. O antiplatonismo de Hegel fica evidente na seguinte passagem do Curso de estética: O canto do rouxinol apraz-nos naturalmente, porque ouvimos um animal emitir, na sua inconsciência natural, sons que se assemelham à expressão de sentimentos humanos. O que nos apraz é, portanto, a imitação do humano pela natureza. (HEGEL, 2009, p. 28) É a aparência sensível da ideia da beleza que identifica a beleza e a verdade. O belo é uma verdade imediata para a consciência. A verdade da arte significa que o verdadeiro se exprime na arte sob a forma do fenômeno sensível. Sobre a crítica hegeliana à imitação William Desmond diz: A divergência de Hegel quanto à imitação consiste no fato de que, de acordo com a teoria da imitação, o original vem antes da imagem, é pré-constituído com relação a ela; Para ele, o original em sua verdade aparece de forma completa apenas depois da imagem, sendo o resultado reflexivo que é trazido 21 à articulação completa no posterior desenvolvimento da filosofia5. (DESMOND, 1951, p. 12, tradução nossa) Na reflexão crítica de Hegel em relação à imitação, Desmond ressalta que a ideia não é totalmente transcendente à arte nem completamente imanente nela. A verdadeira forma do saber-de-si não é o saber-de-si sensível da arte mas o saber-de- si racional da filosofia. Para Hegel, o belo é fundamentalmente fruto do trabalho espiritual, tendo em vista que a arte é sempre feita pelo, para e sobre o homem. No fazer artístico o homem transforma o contingente e passageiro em algo necessário, permanente e ideal. Nisto reside o fenômeno da beleza. “A arte supera a natureza e a vida prosaica na medida em que a transforma em algo independente de suas condições imediatas e retira das coisas a forma imediata de ser contingente ou dependente, de ser-para-outro” (GONÇALVES, 2001, p. 53). O objetivo de uma obra de arte6 corresponde somente ao interesse de uma subjetividade que começa a saber de si e a se mostrar como espírito, residindo nisto sua liberdade. Na estética hegeliana a obra de arte envolve um interesse necessariamente espiritual, que difere dos interesses prosaicos de uso e consumo. No próximo tópico será abordado o sistema de classificação das artes particulares elaborado por Hegel. A divisão da arte segundo períodos históricos feita pelo nosso autor proporciona uma melhor compreensão da relação da arte, enquanto expressão do espírito, com a história. Sobre isto esclarece Antônio Filho: A divisão das três formas particulares de arte – simbólica, clássica e romântica – está alicerçada numa divisão que diz respeito à totalidade histórica, antes que numa divisão simplesmente artística, ou referente ao domínio exclusivo da forma. Fundamentalmente, tal divisão está associada ao grau de desenvolvimento do espírito universal e à apreensão deste, trazido em liberdade, pelo espírito de cada povo em determinada época histórica por sua autoconsciência. (FILHO, 2008, p. 112) 5 Hegel’s divergence from imitation consists in the fact that according to the imitation theory the original comes before the image, is preconstituted with respect to it, while for him the original in its true, full form only comes after the image, being the reflective result that is brought to fullest articulation in the further development of philosophy (DESMOND, 1951, p. 12) 6 Sobre a obra de arte, Marco Aurélio Werle escreve: “Uma obra de arte apenas surge quando há um contexto significativo que a alicerce, uma unidade de sentido como expressão de uma verdade, presente tanto para quem produz arte quanto para quem é o destinatário, para o público. Só há obra quando a configuração artística é capaz de exprimir uma autonomia. Essa autonomia não é produzida pelo artista como gênio, mas decorre da possibilidade que a arte possui de expressar a verdade.” (WERLE, 2011, p. 77) 22 A análise de Hegel reconhece na arte a chave de interpretação para o espírito de um povo, seguindo a lógica de que é ideia que se fez objetiva na realidade espaço temporal. 3.2 Momentos do espírito Assim como o conceito e o espírito, a arte também é compreendida no movimento dialético. Hegel, no Curso de estética, divide a arte em três grandes momentos que podem ser entendidos como superação dialética do momento artístico prévio. Importante ressaltar que estes momentos artísticos não devem ser compreendidos como uma progressão mecanicista da história da arte. O que torna a obra de arte única, diferente de outros artefatos feitos pelo homem, é a existência de uma forma (aspecto sensível) e um conteúdo espiritual em sua constituição. É essa união entre conteúdo e representação que fazem da obra de arte o primeiro momento do espírito absoluto. Sobre a diferença entre o trabalho prosaico e o artístico Márcia Gonçalves (2001, p. 51) diz: O trabalho prosaico tem como produto também algo perecível, de uso restrito e determinado. Tal produto é apenas meio para o bem-estar do homem, coisa, utensílio. A obra de arte, ao contrário, é produto de um trabalho, não puramente desinteressado, cujo fim atende tão-somente ao interesse de uma subjetividade que começa a se saber e a se mostrar como espírito e que consequentemente já começa a ser livre. Se a arte é um meio de tornar acessível um conteúdo, a função da arte consiste em tornar a ideia acessível à nossa contemplação. Como dito anteriormente, a especificidade da arte se encontra na forma de trazer este conteúdo à consciência. É mediante uma forma sensível (imagética, sonora ou representativo-linguística) e não na forma do pensamento e da espiritualidade pura em geral que arte traz o absoluto. Desse modo é preciso que conteúdo e forma estejam de acordo com a ideia a ser expressa. A qualidade de uma obra de arte depende do grau de fusão existente entre a ideia e a forma. A fundamentação da hierarquização das formas dearte se encontra nessa premissa. Sobre a divisão das formas de arte Jean-Louis Vieillard-Baron7 diz: 7 Sobre Hegel e o Idealismo Alemão sugere-se a leitura da obra Hegel et l'idéalisme allemand (1999) de Jean-Louis Vieillard-Baron. 23 A concepção hegeliana da arte é sobretudo muito original pela determinação das três modalidades da arte, que são a arte simbólica, a arte clássica e a arte romântica. É aqui que a ligação entre a empiricidade histórica e a sistematicidade dialética do espírito absoluto é mais fecunda [...] as grandes formas da arte são visões do mundo; representam modalidades diferentes de expressão sob a forma plástica da concepção do mundo de seu tempo. (VIEILLARD-BARON, 2001, p. 112) O que torna particular cada momento? O que irá diferenciar e caracterizar cada um dos três períodos artísticos mencionados é o grau de harmonia entre a forma sensível e o conteúdo espiritual. Os diferentes modos de expressão corresponde à diferentes modos de apreender e conceber a ideia. A arte simbólica é o primeiro momento da arte apresentada por Hegel. Característica a este momento artístico é a inadequação entre forma e conteúdo. As formas materiais não são adequadas à ideia abstrata. A apropriação da forma inadequada pelo conteúdo abstrato tem aspectos de violência. A ideia sem verdadeira determinação age de maneira arbitrária com a forma, introduzindo nela o desmedido. Esse momento da arte se fez presente nos povos orientais onde o sagrado e o religioso estavam sendo conhecidos. Arte simbólica é sublime na medida em que se esforça para exprimir o infinito, mas nada tem ela a ver com a beleza, podendo ser compreendida como pré-arte: Mas, aqui, o infinito é uma abstração a que nenhuma forma sensível poderá se adaptar e, por isso, a forma é impelida além de qualquer determinação. A expressão não passa de tentativa, de ensaio, que produzirá gigantes e colossos, estátuas com mil braços e com mil corpos (HEGEL, 2009, p. 99) O simbolismo é caracterizado pela diferença entre o interior e o exterior, pela falta de harmonia entre a ideia e a forma sensível responsável por significá-la. Nesse momento não há a expressão pura do espiritual. Há uma distância entre a ideia e a representação. É o momento artístico mais abstrato e menos elevado. Apesar de não representar a ideia mesma, a arte simbólica ainda apresenta uma verdade inferior. A arte clássica sucede a arte simbólica. Nesse momento ocorre a perfeita harmonia entre forma e conteúdo. Se na arte simbólica a ideia dominava a forma de modo violento, na arte clássica a ideia domina o material com excelência. A arte clássica é o momento de perfeita sintonia entre a natureza e o humano, dentro da limitação da arte. Sobre este momento Hegel (2009, p. 100) diz: O espírito da arte encontrou, enfim, a sua forma. O conteúdo verdadeiro é um espiritual concreto em que o elemento concreto reside na forma humana, a única capaz de revestir o espiritual em sua existência no tempo. Enquanto 24 existe, e de uma existência sensível, o espírito só pode se manifestar na forma humana. É assim que se realiza a beleza em todas as suas virtualidades, a beleza perfeita. Esse momento da arte se fez presente no apogeu da antiguidade grega. A forma que se destacou nesse período marcado pelo antropomorfismo, foi também na arte a forma humana. Porém, mesmo engendrando a perfeita harmonia entre forma e conteúdo a arte clássica apresenta deficiências e como William Desmond aponta, pela perfeição da arte clássica, as deficiências desta são as deficiências da arte em si: A imanência da Ideia no ideal é uma conquista precária presente na completude da estética grega antiga [...] Apenas no pensamento filosófico a ideia é completamente imanente para Hegel. A limitação da arte clássica é a limitação da arte enquanto tal. Ela falha em alcançar completamente a verdade do saber e do saber-de-si porque ela precisa de uma forma sensível para se reconhecer. A separação entre imagem e original continua presente, embora menos extrema como na imitação8. (DESMOND, 1951, p. 11, tradução nossa) O artista da antiguidade grega produzia sua obra no sentido de uma atividade livre do sujeito reflexivo. Consciente da ideia a ser expressa, o artista sabia como fazer uso perfeito da forma. Diferentemente da arte simbólica, onde o artista manuseava grandes blocos de pedra sem muita destreza, o artista clássico possuía total domínio técnico e talhava o material sensível com maestria. No livre jogo da arte, o artista grego encontrava sua matéria na religião popular e traduzia para o sensível o espírito do seu povo: Tendo o ideal clássico podido constituir-se graças àquela transformação do antigo, cumpre-nos mostrar desde já que ele é um produto do espírito que tem a origem na interioridade mais profunda e mais pessoal dos poetas e dos artistas que o exteriorizam com uma liberdade refletida, com pleno conhecimento dos fins e dos meios. (HEGEL, 2009, p. 526) A arte romântica, ou arte cristã, sucede a arte clássica e é a última forma de arte apresentada por Hegel no Curso de estética. Nesse momento conteúdo e forma perdem a perfeita harmonia da arte clássica. Num sentido inverso ao da arte simbólica, o conteúdo subjetivo desponta em detrimento da forma, elemento objetivo. Assim procede a arte como resultado da busca do espírito em se elevar. 8 The immanence of the Idea in the Ideal is a precarious achievement which is to be found in its aesthetics fullness only in the classical art of ancient Greece […] Only in the philosophical concept is the Idea fully immanent for Hegel. The limitation of classical art is the limitation of art as such: it fails to completely reach the true identity of knower and kwon because it needs a sensuous shape in which to know itself, and hence is still caught in a separation, albeit less extreme than in imitation, between image and original. (DESMOND, 1951, p. 11) 25 Do ponto de vista da ideia a arte romântica atingiu o seu máximo. Hegel (2009, p. 102) assim caracteriza esse período: Na arte romântica, que pelo conteúdo e modo de expressão ultrapassou a arte clássica, a ideia participante do espírito acha-se oposta ao que participa da natureza, o espiritual acha-se oposto ao sensível. Esta oposição existe também na arte simbólica, mas na arte romântica o conteúdo da ideia é de ordem mais elevada, é de caráter absoluto; esse conteúdo é o próprio espírito. Diferentemente dos momentos artísticos anteriores, o conteúdo da arte romântica já está presente para si mesmo na representação e no sentimento fora do âmbito artístico. O conteúdo da arte romântica é o absoluto considerado universalmente. A arte se torna fenômeno da religião, reduzindo posteriormente a fenômeno prosaico. Como apresentado em tópicos anteriores, a arte é apenas primeiro momento do espírito absoluto. Inerente ao espírito está o seu movimento e desdobramento. A consequência lógica do movimento dialético é a superação da arte pela religião para que o espírito possa alcançar o absoluto. Dando sequência a este ponto de vista lógico, o próximo tópico abordará o tema do fim da arte9 na estética hegeliana sob a ótica histórico-dialética. 3.3 O fim da arte sob a ótica histórico-dialética Situada a arte dentro do sistema hegeliano e percorrido brevemente o sistema das artes particulares, avançaremos o estudo para a tese do fim da arte. Neste capítulo serão expostas as principais teorias que relegam a Hegel o título de proclamador do fim da arte, entendendo o significado desse fim, sua origem e desdobramentos. Esse tema surge naturalmente como desdobramento do sistema lógico da filosofia hegeliana. Apesar do tema ter sua gênese no próprio entendimento do movimentodialético, seu desdobramento extrapola os limites da filosofia hegeliana para a história do fazer artístico e filosófico. Foi apresentado anteriormente a arte como primeiro momento do espírito absoluto e mostrou-se que no movimento dialético é próprio do espírito mover-se para 9 Sobre o tema “o fim da arte”, Marco Aurélio Werle deixa uma vasta sugestão bibliográfica em seu livro A questão do fim da arte em Hegel. São Paulo: Hedra, 2011. 26 frente, evoluir e superar seu estágio precedente. A busca deste estágio mais elevado de realização efetiva do espírito é um dos desdobramentos lógicos que conduzem ao fim da arte. Assim escreve Croce (2016, p. 290): A estética de Hegel é, portanto, um elogio fúnebre que passa em revista as sucessivas formas de arte, mostra os estados progressivos de consumpção interna e os lança a todos na sepultura, deixando que a filosofia lhe providencie o epitáfio. O fim da arte sob essa ótica nega a compreensão do fim como morte da arte. O conceito de suprassunção salva a arte de sua morte. No movimento dialético a síntese, o novo momento, carrega consigo elementos de seus momentos anteriores. Cada momento precedente é condição de possibilidade para um novo. Assim, a filosofia, momento último do espírito absoluto, tem a arte não só como elemento constituinte de si como também como condição para seu início. O puro pensamento tem de percorrer antes o caminho dos fenômenos sensíveis. Foi observado que a arte ocupa, na história do espírito, um momento único de afirmação do absoluto, sendo primeira forma e mais imediata de exteriorização do espírito. Por outro lado, é inerente à arte uma restrição a um certo conteúdo e uma delimitação diante da religião e da filosofia. Nem todo conteúdo espiritual cabe na forma da arte. Sobre isto Hegel (1999, p. 34) diz: A arte [...] não é [...] o modo mais alto e absoluto de tornar conscientes os verdadeiros interesses do espírito. Pois justamente sua forma já a restringe a um determinado conteúdo. Somente um certo círculo e estágio da verdade pode ser exposto no elemento da obra de arte [...]. O caráter peculiar da produção artística e de suas obras já não satisfaz nossa mais alta necessidade. Ultrapassamos o estágio no qual se podia venerar e adorar obras de arte como divinas [...]. O pensamento e a reflexão sobrepujaram a bela arte. Apesar de não dedicar uma obra específica ao tema, Hegel expõe os momentos que conduzem ao fim da arte na exposição do sistema das artes particulares. Ao longo dos períodos artísticos o elemento subjetivo se destaca, tornando-se articulador do fim da arte. Na ascese da consciência em direção ao saber- de-si, o homem se encaminha para um desdobramento das potencialidades interiores, subjetivas e reflexivas, se afastando cada vez mais das relações substanciais primitivas, ligadas a uma harmonia com a natureza. O desenvolvimento das artes particulares, no entendimento da relação entre forma e conteúdo, mostra o destaque crescente do elemento subjetivo. A ideia da arte 27 romântica propõe uma ultrapassagem da arte sobre si mesma. O fim da arte clássica e o início da arte romântica demarca o fim da perfeita harmonia entre o subjetivo e o objetivo, o fim do belo artístico. Esse fim acena para um novo momento, de valorização do pensamento em detrimento da intuição. Cada passagem de uma forma de arte para a outra é a expressão de um fim. A limitação da arte clássica é a limitação da arte enquanto tal. Hegel (1999, p. 35) assim expõe: A arte não mais proporciona aquela satisfação das necessidades espirituais que épocas e povos do passado nela procuravam e só nela encontraram; uma satisfação que se mostrava intimamente associada à arte, pelo menos no tocante à religião [...] o estado de coisas de nossa época não é favorável à arte [...]; a arte é e permanecerá para nós, do ponto de vista de sua destinação suprema, algo do passado. Com isso, ela também perdeu para nós a autêntica verdade e vitalidade e está relegada à nossa representação, o que torna impossível que ela afirme sua antiga necessidade na realidade efetiva e que ocupe seu lugar superior [...]. A arte nos convida a contemplá-la por meio do pensamento. Na compreensão de Hegel, o fim da arte é a expressão de um certo abandono por parte da arte de um conteúdo elevado. O foco da abordagem hegeliana tem como foco a função que a arte tinha, tem e poderá ter como expressão do espírito e de um povo. Hegel não anuncia a morte da arte como fim do fazer artístico. O fim da arte reside no fato desta não deixar compreender-se por si mesma como manifestação do divino. A arte, como tal fora para os gregos, se torna coisa do passado. A questão posterior a Hegel é entender qual a significação concreta da arte na vida de cada um. Werle (2011, p. 39) assim pergunta: “a arte ainda tem efetivamente alguma importância na vida ou é um fenômeno que em grande medida é apenas ainda cultivado devido a um hábito cultural herdado do passado ou da tradição?” 28 4 CONCLUSÃO Diversas teorias, prévias à estética hegeliana, tentaram postular, objetivamente, o que é arte. Na antiguidade grega a arte era vista como mímesis (imitação da natureza). Em outras épocas, a obra de arte foi entendida como objeto que afeta os sentidos humanos, fazendo fruir a sensação de prazer. Outras teorias postulavam a arte como jogo, ou até mesmo entendiam como arte apenas aquilo que era reconhecido por determinada instituição ou autoridade. A partir das obras Fenomenologia do Espírito e Cursos de Estética, Hegel dá a arte um novo entendimento e um novo status. A obra de arte deixa de ser simples elemento objetivo e passa a fazer parte do espírito humano. A arte passa a ter uma dimensão ontológica, com o claro intuito de trazer à consciência um entendimento mais elevado da realidade. O sistema hegeliano tem como pilar conceitual o movimento dialético. É pelo movimento dialético que nós desenvolvemos nossa consciência, refletindo a evolução do nosso espírito. Inicialmente somos seres conscientes da nossa subjetividade, conhecemos nosso interior. Num segundo momento reconhecemos, através de uma razão observadora, a natureza, aquilo que é diferente de nós mesmos. É no reconhecimento deste diferente e no retorno à consciência prévia de nós mesmos que geramos o conhecimento. Esse é o movimento dialético. A arte é, dentro da lógica do movimento dialético, um momento de grande importância na evolução da consciência. A arte representa, segundo Hegel, a união entre o racional e o objetivo (sensível). Nessa união o belo se faz presente, sendo reconhecido como Ideia. A ideia é a expressão sensível da consciência. A obra de arte se torna o objeto sensível do espírito. Nesta concepção Hegel reconhece à arte e à obra de arte status superior à natureza e ao belo natural. Apesar de dar essa importância à arte, Hegel a entende como primeiro momento do espírito absoluto. Na lógica do movimento dialético, a arte é superada pela religião e pela filosofia. Neste sentido é que a ideia de fim da arte surge, sendo inevitável pensar sobre o tema tendo em vista a lógica do sistema hegeliano. Dentro desta ótica o fim da arte não representa um fim do fazer artístico. Hegel entende que as pessoas continuarão a fazer quadros e esculturas porém, entende que a arte não representará para o espírito o mesmo que representou em outras épocas. A arte foi superada. Especialistas em Hegel propõem a ideia de que o fim da arte seja condição de possibilidade para o começo de um novo momento e, se 29 lembrarmos que o novo momento carrega consigo elementos dos momentos prévios, teremos em mente que a arte estará sempre presente no espírito do ser.30 REFERÊNCIAS CROCE, Benedetto; GALASSO, Giuseppe (Org.). Estética como ciência da expressão e linguística geral: teoria e história. Tradução de Omayr José de Moraes Junior. São Paulo: É realizações, 2016 DESMOND, William. Art and the absolute. Albany, NY: State University of New York, 1951. FICHTE, Johann Gottlieb. A doutrina-da-ciência de 1794 e outros escritos. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1980. FILHO, Antonio Vieira S. Poesia e prosa: arte e filosofia na estética de Hegel. Campinas, SP: Pontes editores, 2008. GONÇALVES, Márcia Cristina Ferreira. O belo e o destino: uma introdução à filosofia de Hegel. São Paulo: Loyola, 2001. HEGEL, Georg Wilhelm Friederich. Curso de estética: o belo na arte. Tradução de Orlando Vitorino e Álvaro Ribeiro. 2.ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. HEGEL, Georg Wilhelm Friederich. Curso de estética. Tradução de Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle. São Paulo: Paz e terra, 1995, v.1. HEGEL, Georg Wilhelm Friederich. Fenomenologia do espírito. Tradução de Paulo Meneses; com a colaboração de Karl-Heinz Efken e José Nogueira Machado. 9.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. KANT, Immanuel. The critique of pure reason. In: KANT, Immanuel. Great books of the western world. 2ed. Chicago, IL: The University of Chicago, 1990, v.39. VAZ, Henrique Cláudio de Lima. A formação do pensamento de Hegel. São Paulo: Loyola, 2014. VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Apresentação: a significação da fenomenologia do espírito. In: HEGEL, Georg Wilhelm Friederich. Fenomenologia do espírito. Tradução de Paulo Meneses; colaboração de Karl-Heinz Efken e José Nogueira Machado. 9.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. p.11-22 VIEILLARD-BARON, Jean-Louis. A “verdade da arte” e a liberdade do espírito em Hegel e André Malraux. In: ROSENFIELD, Denis L. (Org.). Ética e estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p.103-117. WERLE, Marco Aurélio. A questão do fim da arte em Hegel. São Paulo: Hedra, 2011.
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