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Parte II N A psicologia científica e seu processo de autonomização no Brasil ovas e significativas transformações ocorreram, a partir do final do século XIX, tanto na sociedade brasileira quanto na Psicologia. O Brasil adotou o modelo republicano, ao mesmo tempo em que se consolidava e atingia pleno desenvolvimento a economia de base agrário-comercial-exportadora, vinculada fundamentalmente à produção cafeeira, o que contribuiu para a geração de condições que possibilitaram a efetivação do processo de industrialização do país. Tais fatores concorreram para a expansão do processo de urbanização e para a definição do pólo econômico-político-cultural do país na região Sudeste. Assistiu- se, nesse momento, à expansão do ideário liberal entre os intelectuais brasileiros, cuja participação política e cultural tornou-se intensa, trazendo à tona a preocupação com a “questão nacional” e a busca de caminhos para o progresso e a modernidade. A Psicologia, por sua vez, adquiriu no final do século passado o estatuto de ciência autônoma; processo esse originado na Europa e seguido de acelerada evolução dessa ciência não apenas em seu solo original, mas também nos Estados Unidos. Na virada do século, ocorreu intenso desenvolvimento da ciência psicológica em todas as instâncias, quer no plano teórico – destacando-se a diversidade de abordagens surgidas nessa época e o aumento significativo da produção de pesquisas –, quer no plano prático, em que esta ciência penetrou e ampliou seu potencial de aplicação. A concomitância desses dois conjuntos de fatores e a possibilidade efetiva de estabelecimento de relações entre eles, em função da articulação entre potencialidades e necessidades, passíveis de serem mutuamente realizadas, permitiram um avanço sem precedentes na história da Psicologia no Brasil. Os problemas que o Brasil enfrentava no século XIX tenderam, com a virada do século, a agravar- se e outros vieram a eles se somar, de tal maneira que o pensamento psicológico, já em franco processo de desenvolvimento no país, encontrou terreno fértil para penetrar e estabelecer-se na sua dimensão científica e caminhando para sua autonomia teórica e prática em relação às áreas do saber no interior das quais havia se desenvolvido até então, como a Medicina e a Educação. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento da ciência psicológica e a ampliação de seu campo de ação maximizavam as possibilidades concretas de a Psicologia contribuir com possíveis respostas para as questões que se impunham. A Psicologia e outras áreas de conhecimento foram buscadas no sentido de contribuir com soluções para os problemas relacionados à saúde, à educação e à organização de trabalho, no interior de uma formação social dependente e atrasada, em busca da mo-dernidade representada pela concretização do ingresso do Brasil no mundo industrializado. Nesse contexto e em face de tais problemas ocorreram importantes realizações da Psicologia no Brasil, cujas principais produções são ainda oriundas das instituições médicas e educacionais. A partir dessa base e em seu interior é que a Psicologia se desenvolveu, conquistando sua autonomia em relação às áreas do saber no interior das quais evoluíra até então, por meio da definição e da delimitação cada vez mais explícitas de seu objeto de estudo e de seu campo próprio de ação. Tentaremos demonstrar que a produção psicológica no interior de algumas instituições delineia-se cada vez com maior clareza, de um lado pela diferenciação gradativa de outras áreas de conhecimento, como a Psiquiatria por exemplo, e de outro lado pela penetração das idéias e práticas já constitutivas daquilo que, na Europa e nos Estados Unidos, era considerado como Psicologia científica. As personagens dessa história são principalmente médicos, educadores, bacharéis em direito e até engenheiros, sendo que muitos deles acabaram por dedicar-se exclusivamente à Psicologia e podem ser considerados como os primeiros psicólogos brasileiros. Acrescentam-se a eles vários psicólogos estrangeiros que para cá vieram ministrar cursos, proferir palestras ou prestar assistências técnicas específicas, dos quais muitos aqui permaneceram e se radicaram definitivamente no país. Abordaremos, a seguir, a produção psicológica na Medicina, na Educação e na sua aplicação à organização do trabalho, no período compreendido entre a última década do século XIX e as três primeiras décadas do século XX. A Capítulo 1 A psicologia em instituições médicas tendência do século XIX manteve-se por algum tempo, diferenciando-se gradativamente, sendo que as preocupações estritamente psiquiátricas foram se delineando com maior clareza e delimitando mais explicitamente suas fronteiras com a Psicologia. Tais fatos ocorreram ainda no interior da Medicina, mas já caracterizada como especialidade psiquiátrica, particularmente nas instituições asilares e em seu correlatos, como a Medicina Legal ou a Higiene Mental. A principal evidência disso foi a criação de laboratórios de Psicologia em diversas instituições psiquiátricas, cuja produção foi principalmente de natureza psicológica. O desenvolvimento dos saberes psiquiátrico e psicológico e suas decorrências práticas foram fatores fundamentais para que ambas as áreas adquirissem contornos mais nítidos e, conseqüentemente, uma maior delimitação entre si. O país encontrava-se ainda na mesma (e talvez pior) situação que no século anterior, no que diz respeito às precárias condições de saneamento e saúde do povo brasileiro. Intelectuais e políticos reclamavam da Medicina intervenções concretas por meio de um projeto profilático, com a finalidade de erradicar, ou pelo menos minimizar, as inúmeras doenças infecto-contagiosas que assolavam o país. Esse movimento, no âmbito da Medicina Geral, estava intimamente relacionado à questão da Higiene que, nos anos iniciais do século XX, estava revestido de ampla responsabilidade frente à realidade. É no bojo de tais fatos que tanto o pensamento psiquiátrico quanto o psicológico encontraram fértil terreno para seus estudos e para a aplicação de seus conhecimentos por meio da Higiene Mental, instância derivada da Higiene em sua expressão geral. As ligas de Higiene Mental foram, assim, importantes fontes de produção de pesquisa e de práticas relacionadas à Psicologia. Para expor essa linha de desenvolvimento histórico da Psicologia, abordaremos a seguir as produções dos hospícios, incluindo a Liga Brasileira de Higiene Mental; as produções relativas às intermediações entre Psiquiatria e Direito, que foi um importante veio de desenvolvimento da Psicologia, principalmente por meio da Medicina Legal, e das teses de doutoramento das Faculdades de Medicina. 1.1. Os hospícios e algumas instituições correlatas O sustentáculo das produções que serão apresentadas a seguir foi o alienismo. Surgiu este na Europa, como área que se autonomizou em relação à Medicina tradicional, estabelecendo como seu objeto de estudo a “razão”, cuja compreensão não poderia, segundo seus defensores, situar-se na Anatomia ou na Fisiologia, pois teria aquela uma natureza diversa. Ao alienismo veio somar-se, mais tarde, o organicismo, que trazia a concepção de loucura como organicamente determinada. O pensamento psiquiátrico brasileiro da época tinha como principal característica o ecletismo, que conjugava o alienismo clássico, especialmente de Pinel e Tuke, com o organicismo, em particular numa de suas vertentes, a teoria da degenerescência, fortemente calcada na concepção da determinação hereditária da loucura. A teoria da degenerescência propunha ações que extrapolavam os muros asilares, propondoa higienização e a disciplinarização da sociedade. Considerava ainda a existência de uma hierarquia racial, estando no ápice a raça ariana e na base a raça negra; muitos teóricos acreditavam ser os negros mais propensos à degeneração por sua inferioridade biológica. No Brasil, essas duas correntes juntam-se numa só experiência, em que a exclusão do “louco” deveria ser compartilhada com a prevenção “social” da loucura. O alienismo havia sido, no século anterior, expressão da Medicina Social, que incluía em seu projeto profilático a preocupação com a pobreza, a marginalidade social, o crime e a loucura. Como solução apresentava-se a necessidade de um efetivo controle sobre a massa urbana, com vistas à sua disciplinarização. Nesse contexto, ganha força a teoria da degenerescência. Essas idéias são incrementadas na virada do século, com o agravamento dos problemas urbanos, de tal maneira que o controle das massas impunha-se como premente necessidade para uma sociedade que almejava ingressar num efetivo processo de industrialização, sobretudo no que diz respeito ao proletariado. Assim, a articulação entre pensamento psiquiátrico e controle do processo produtivo revela-se explicitamente. A preocupação com a “ordem” urbana e com o “progresso” baseia-se também nos princípios positivistas, ainda fortemente arraigados no ideário brasileiro. A questão da “ordem” assume grande importância nessa conjuntura, devendo o asilo excluir do convívio social aqueles que não se adaptassem às normas estabelecidas, isto é, os “desordeiros”, estando incluídos nessa categoria os indivíduos engajados nos movimentos sociais organizados. Tais concepções, embora majoritárias, não foram unânimes, o que demonstraremos adiante pela experiência de Ulysses Pernambuco em Recife. Além desta, apresentaremos a seguir algumas considerações sobre o Hospício do Juquery, o Hospital Nacional de Alienados, a Colônia de Psicopatas do Engenho de Dentro e as Ligas de Higiene Mental. Hospício do Juquery9 Os primórdios do Hospício do Juquery situam-se no Asilo Provisório de Alienados da Cidade de São Paulo. Sua criação é obra de Franco da Rocha, que empreendeu a reforma psiquiátrica em São Paulo, denunciando a precariedade da assistência aos doentes mentais e defendendo uma nova instituição, baseada em práticas científicas, sobretudo no “asilamento racional”. O Hospício do Juquery foi construído fora da zona urbana, sendo seu projeto arquitetônico de autoria de Ramos de Azevedo. Em 1898 já funcionavam as colônias agrícolas; e suas dependências foram várias vezes ampliadas ao longo do tempo, sendo anexados o pavilhão para “crianças anormais”, o laboratório histoquímico e o Manicômio Judiciário. Franco da Rocha e seu sucessor, Pacheco e Silva, defendiam a centralização da assistência psiquiátrica como forma de gerar condições para o estudo da loucura, com base na descrição, comparação e classificação, revelando concomitantemente a preocupação em demonstrar a pertinência da teoria da degenerescência. Segundo Cunha, a produção do hospício demonstrava que: “o interesse se desdobra a partir de quadros nosológicos já configurados e volta-se para a identificação das formas particulares das ‘doenças’ naquela sociedade particular, como decorrência de uma herança genética onde amalgamavam-se imigrantes, escravos e todo tipo de sangue degenerado: o impacto do crescimento urbano no crescimento da sífilis, deflagradora de um tipo determinado de patologia mental (...); a loucura associada às caracteristicas raciais e o significado disto em sua apresentação na sociedade miscigenada do país; a correspondência entre loucura e crime; a relação entre as formas de doença mental e os padrões culturais ‘atrasados’ como (...) as religiões ‘primitivas’ dos negros e dos pobres” (1986, p. 77). O Juquery representou em São Paulo o pensamento psiquiátrico hegemônico no Brasil, nessa época. Sua prática articulou-se às necessidades trazidas pelo processo de industrialização que se acelerava na cidade e teve uma dimensão política que era a de “conferir legitimidade à exclusão de indivíduos ou setores sociais não enquadráveis nos dispositivos penais; permitir a guarda (...) e a regeneração ou disciplinarização de ind/ resistentes às disciplinas do trabalho, da família e da vida urbana; reforçar papéis socialmente importantes para o resguardo da ordem e da disciplina, medicalizando comportamentos desviantes ( ...) e permitindo que sua reclusão possa ser lida como um ato em favor do louco, e não contra ele” (Cunha, 1986, p. 80). O hospício vai gradativamente abandonando sua preocupação com a loucura individual e assumindo tarefas de ordem social, sobretudo no que diz respeito ao controle da força de trabalho. Do ponto de vista prático, as técnicas “científicas” utilizadas consistiam, por exemplo, em: alternância de banhos frios e quentes, malarioterapia, traumaterapia, laborterapia e terapias medicamentosas. A produção do Juquery circunscreve-se especificamente no âmbito da Psiquiatria, não trazendo contribuição direta para o conhecimento e a prática da Psicologia. Entretanto, sua preocupação com a loucura abarca, sem sombra de dúvidas, o fenômeno psicológico, embora sua maior contribuição seja a de demarcar mais nitidamente as fronteiras entre a Psicologia e a Psiquiatria e, conseqüentemente, demonstrar nesse caso um fator relevante para a compreensão do processo de autonomização da ciência psicológica. É necessário reconhecer, entretanto, que ambas as áreas tratam, sob enfoques e fundamentos diversos, fenômenos de uma mesma natureza e que é inquestionável que, apesar das fronteiras, há intersecções tanto do ponto de vista do objeto de estudo quanto do ponto de vista prático. Soma-se a isso que suas produções situam-se numa dada realidade, sendo que cada uma, a seu modo, busca responder às suas demandas. Hospital Nacional dos Alienados Após a proclamação da república, o Hospício Pedro II passou a ser chamado Hospital Nacional dos Alienados10 e sua administração transferida ao Estado, em substituição à Santa Casa de Misericórdia. Em 1902, após a detecção de inúmeros problemas na instituição, foi nomeado para sua direção Juliano Moreira, cuja prática inaugura “uma psiquiatria cujos fundamentos teóricos, práticos e institucionais constituíram um sistema psiquiátrico coerente” (Costa, 1976, p. 26). Esse hospício pode ser visto como o primeiro no Brasil que tratou a loucura do ponto de vista eminentemente médico. Nomes consagrados como Henrique Roxo, Afrânio Peixoto e Mauricio de Medeiros contribuíram com a constituição da prática psiquiátrica instalada na instituição. Em 1907, sob a direção de Juliano Moreira, é criado o provável segundo laboratório de Psicologia no Brasil (o primeiro teria sido no “Pedagogium”, em 1906), denominado Laboratório de Psicologia Experimental da Clínica Psiquiátrica do Hospital Nacional dos Alienados11. Esse laboratório foi chefiado por Maurício de Medeiros, construído sob a influência de Georges Dumas, com quem Medeiros trabalhou em Paris, no laboratório de Psicologia do Hospital de Saint’Anne. Nesse hospício, também sob a direção de Juliano Moreira, responsabilizou-se Heitor Carrilho pelo setor que deveria abrigar os “criminosos loucos”, gérmen do Manicômio Judiciário, criado em 1921. O Hospital Nacional dos Alienados foi, como o Juquery, um asilo modelo para o pensamento psiquiátrico da época, representando a tendência vigente em que o ecletismo tornou-se posição praticamente hegemônica. Para ele confluíram médicos cariocas e baianos, representando as orientações deTeixeira Brandão e Raimundo Nina Rodrigues respectivamente, sendo que ambas as tendências tiveram, apesar de suas particularidades, como seu principal fundamento a Medicina Social e seus motivos de natureza sócio-política. Ao contrário do Juquery, no entanto, nesse hospício é explícito o vínculo com a Psicologia, concretizado na existência do laboratório. Nesse sentido, o Hospital Nacional dos Alienados pode ser visto como uma instância produtora de conhecimento psicológico, tendo abrigado profissionais que, em seu laboratório ou fora dele, produziram relevantes obras psicológicas, como Maurício de Medeiros e Plínio Olinto. Isso remete à questão de que a Psiquiatria no Brasil, em sua manifestação institucional, assumiu parcela da produção psicológica, vinda não somente da tradição passada, quando não havia qualquer forma de delimitação entre as duas áreas de saber, mas também pelo fato de que a Psiquiatria necessita do intercâmbio com o conhecimento psicológico, fomentando e sediando sua pesquisa. Por fim, deve-se dizer que a impossibilidade de acesso aos documentos que registram a produção do laboratório, pois esses encontram-se perdidos, compromete sobremaneira a avaliação mais profunda da participação desse hospício e de seu laboratório na história da Psicologia no Brasil. Colônia de Psicopatas do Engenho de Dentro Fundada no Rio de Janeiro na década de 10, a Colônia produziu extensa contribuição à Psicologia por meio de seu fértil laboratório12, criado em 1923. Esse laboratório foi transformado em Instituto de Psicologia, subordinado ao Ministério de Educação e Saúde Pública, em 1932. Em 1937 foi incorporado à Universidade do Brasil, para contribuir, segundo Penna, com as Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, de Educação e de Política e Economia. Havia também na Colônia a Escola de Enfermagem, que continha em seu currículo a disciplina Psicologia, ministrada por Gustavo Rezende e Nilton Campos. Criado por Gustavo Riedel, diretor da Colônia, o laboratório foi patrocinado pela Fundação Gaffrée-Guinle. Sua finalidade, juntamente com uma exposição de motivos e até mesmo uma definição da função do psicólogo, foi assim expressa por Osvaldo N. de Souza Guimarães: “atualmente todo Instituto destinado ao estudo, cura e profilaxia das moléstias mentais deve ter, como auxiliar indispensável, um laboratório de psicologia, a cargo de um psicólogo profissional. Este torna-se, então, valioso colaborador do médico, para eficiência de tal Instituto” (Guimarães, apud Penna, 1985, p. 28). Para a direção do laboratório foi chamado o psicólogo polonês Waclaw Radecki. O laboratório, que contava com sofisticados equipamentos vindos de Paris e Leipzig, “funcionava como instituição auxiliar médica; (2) como auxiliar das necessidades sociais e práticas; (3) como núcleo de pesquisas científicas; (4) como centro didático para formação de psicólogos”. (Penna, 1985, p. 30). A extensa produção do laboratório demonstra, em relação aos asilos já estudados, um imenso avanço em direção ao reconhecimento da autonomia científica e prática da Psicologia no Brasil. Explicita-se aí, com clareza, que a Psicologia é vista como campo próprio de conhecimento e ação, ao mesmo tempo em que é reconhecida sua íntima relação com a Psiquiatria. Do ponto de vista da produção do laboratório, além da quantidade de pesquisas e ensaios, três elementos apresentam-se como particularmente significativos: a preocupação com a formação de psicólogos e a difusão do conhecimento psicológico; o trabalho clínico e a aplicação da Psicologia a questões relativas ao trabalho. O laboratório da Colônia contribuiu com uma das primeiras referências, no Brasil, da perspectiva psicoterápica, num momento em que tal campo de ação, quando existia, limitava-se à Psiquiatria. É possível tomar como hipótese que esse tipo de trabalho, ainda que incipiente, tenha lançado algumas bases para, mais tarde, tornar-se um dos mais importantes campos de atuação da Psicologia no país, o qual só nas décadas seguintes viria a ter contornos mais definidos como possibilidade de aplicação psicológica. Merece referência também a contribuição do laboratório à organização do trabalho, que se mostra claramente definida, particularmente no que se refere à utilização de testes para fins de seleção e orientação profissional. Foram realizados estudos e pesquisas sobre fadiga em “trabalhadores menores“, seleção de candidatos à aviação militar, psicometria e questões profissionais etc. Além disso, é necessário dizer que o trabalho no laboratório, junto com outros que se realizavam em outras instituições, traz uma nova característica às contribuições que até então as instituições psiquiátricas davam à problemática do trabalho, cuja principal finalidade era exercer o controle e a disciplinarização do proletariado urbano fora dos muros da fábrica. A partir daí, a Psicologia penetra no interior do processo produtivo, com um caráter estritamente técnico-científico, por meio da intervenção direta nos processos seletivos e no estabelecimento de contingências e normas nas relações de produção, com base no saber psicológico. Um destaque especial deve ser dado à importância da presença de Radecki nesse laboratório e, por decorrência, na história da Psicologia no Brasil. Foi ele o autor de grande parte dos trabalhos produzidos no laboratório, quando não colaborador ou orientador. Foi ele quem ministrou inúmeros cursos e conferências, com influência significativa na divulgação e difusão da Psicologia no país. Suas realizações constituem-se na quase totalidade da produção do laboratório, devendo-se a ele também, provavelmente, a marcante cultura psicológica presente nos trabalhos produzidos, em que são freqüentes citações e referências a: Ribot, Claparède, William James, Janet, Forel, Babinski, Bernheim, Kräepelin, Bleuler, Minkowski e Kretschemer, dentre outros, devendo-se salientar a significativa presença da Psicanálise. Finalmente, deve-se reafirmar que a Colônia de Psicopatas do Engenho de Dentro foi uma das mais importantes instituições que geraram condições para o estabelecimento da Psicologia no Brasil, quer pela consolidação desta área do saber como ciência, quer em relação ao reconhecimento de sua autonomia teórica e prática. Liga Brasileira de Higiene Mental e instituições correlatas A Liga Brasileira de Higiene Mental foi fundada em 1923, por Gustavo Riedel, tendo em seus quadros os mais eminentes psiquiatras e intelectuais da época. Segundo Jurandir Freire Costa, o objetivo inicial da Liga idealizada por Riedel era a melhoria da assistência ao doente mental. A partir de 1926, porém, esse objetivo foi cedendo lugar ao ideal eugênico13, à profilaxia e à educação dos indivíduos. A preocupação transferiu-se do indivíduo “doente” para o “normal”, da cura para a prevenção, ampliando seu raio de ação para a sociedade como um todo, definindo a ação psiquiátrica como prática higiênica, apoiada na noção de eugenia. Essa concepção contribuiu para uma interpretação racista da sociedade brasileira, que tendia a atribuir os problemas sócio-econômicos às questões raciais, especialmente à presença de “raças inferiores”, numa explícita referência aos negros que, junto com o clima quente, eram responsabilizados pelo atraso do país. Essas idéias desembocaram na defesa do “embranquecimento da raça brasileira” e, posteriormente, na busca da “pureza racial”. No bojo dessa discussão, a problemática educacional ocupou lugar privilegiado, sendo que a ignorância era vista como uma das mais graves doenças sociais. Juntamente com essa questão e a ela relacionadaintegra-se a problemática das relações de trabalho; temas que estiveram diretamente articulados ao pensamento da Liga e constituíram-se em objetos de estudo e alvos de ação. A Liga reconhecia a Psicologia como ciência afim à Psiquiatria e estimulava sua produção. Nesse sentido, foi criado um laboratório de Psicologia, cuja direção foi inicialmente confiada ao francês Alfred Fessard e posteriormente a Plínio Olinto, que foi sucedido por Brasília Leme Lopes. Além disso, a Liga propôs em 1932, ao Ministério da Educação e Saúde Pública, a presença obrigatória de “gabinetes de Psicologia” junto às clínicas psiquiátricas, sendo a proposta acolhida em instruções do referido ministério. Anualmente a Liga realizava as “Jornadas Brasileiras de Psicologia”, cujo objetivo era difundir pesquisas puras e aplicadas nessa área do conhecimento. Preocupação com a Psicologia teve também a Liga Paulista de Higiene Mental, fundada em 1926, por Pacheco e Silva, funcionando em moldes semelhantes à sua correspondente nacional. Na Liga Paulista, a Psicologia aparecia explicitamente articulad4a às questões relativas à organização do trabalho, como instrumento de obtenção de conhecimento a respeito das funções psicológicas presentes no exercício profissional, tais como: funções psicomotoras, memória, atenção e julgamento; tais elementos articulavam-se, na prática, à aplicação da Psicologia à seleção e orientação profissional. Como ilustração, vale a pena citar um trecho de Bonifácio Castro Filho14: “A higiene mental nas oficinas e nas profissões em geral é um fator de grande prosperidade para a indústria, porque assegura um melhor rendimento. Ela pode ser realizada pela orientação profissional e pela seleção psicológica dos operários, tendo por efeito: 1º) a eliminação nas oficinas de certas classes de profissionais psicopatas que constituem um peso morto e um grave prejuízo para a coletividade; 2º) colocar os indivíduos em seus devidos lugares, de acordo com as aptidões mentais, condições que favorecem o êxito do trabalho” (Castro Filho, apud Cunha, 1986, p. 189). Essas idéias buscavam na Psicologia não apenas fundamentação teórica e corpo de técnicas úteis às suas finalidades de higienização social do trabalho e da família, como também prenunciavam um outro tipo de prática que se aproximava da prática clínica da Psicologia no momento subseqüente, pelas denominadas “clínicas de higiene mental”, cuja finalidade era de origem profilática e, portanto, voltada para o indivíduo “normal”. A isso deve-se acrescentar o papel desempenhado pelo Instituto de Higiene de São Paulo, cuja ação foi semelhante à da Liga Brasileira de Higiene Mental. Esse instituto foi dirigido, a partir de 1926, por Geraldo Paula Sousa, que organizou um grupo de estudos de Psicologia Aplicada, do qual participaram médicos, educadores e engenheiros; os estudos aí realizados versaram sobre a Psicologia do Trabalho e deram também origem ao “Serviço de Inspeção Médico-Escolar”, no qual foi criada uma escola especial para crianças com deficiência mental e, em 1938, uma clínica de orientação infantil, provavelmente uma das primeiras no país, chefiada por Durval Marcondes. A concepção psiquiátrica das Ligas de Higiene Mental, embora fortemente arraigada nas idéias correntes na Psiquiatria brasileira, não era contudo unânime. Segundo Freire Costa, “na mesma época, Odilon Galotti, no Rio, James Ferraz Alvim, em São Paulo, e Ulisses Pernambucano em Recife (...) orientavam suas pesquisas numa direção totalmente oposta à higiene social da raça. Para esses psiquiatras, que mantinham também ligações com a L.B.H.M., a higiene mental continuava a ser aquilo que Riedel havia desejado que fosse: melhoramento e humanização da assistência psiquiátrica aos doentes mentais” (1976, p. 63). O pensamento e a ação das ligas são expressões de uma concepção autoritária de mundo, representada na Psiquiatria principalmente pelo pensamento alemão, nas figuras de Rudin, Hoffmann e Meggendorfer, continuadores do organicismo de Kräepelin. Pretendia-se, em nome da ciência, abarcar o controle da sociedade e, para tal, defendia-se e estimulava-se a pesquisa e a aplicação da Psicologia como meio auxiliar para seus fins. É interessante notar que a Psicologia encontra-se, nesse contexto, como detentora de um saber e de um corpo de técnicas, particularmente a psicometria, relacionada às práticas especificamente psicológicas, numa versão bastante próxima das atuais. O Movimento Psiquiátrico de Recife Esse movimento erigiu-se sobre o alicerce representado pelas idéias e ações de Ulysses Pernambucano, caminhando na contramão do pensamento psiquiátrico corrente na época e contribuindo significativamente para a Educação (que será especificamente abordada no próximo capítulo). Formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Pernambucano foi discípulo de Juliano Moreira; porém, sua prática distanciou-se da Psiquiatria organicista preponderante nos meios acadêmicos e institucionais de então. Nomeado, em 1924, diretor do Hospital de Doenças Nervosas e Mentais de Recife, aboliu os calabouços e as camisas-de-força, implantou a praxiterapia, criou o Pavilhão de Observações, o Laboratório de Análises e o Pavilhão de Hidroterapia, tendo também criado o sistema de “internato acadêmico” para os jovens médicos estagiarem. Teve Pernambucano participação fundamental na implantação da “Assistência a Psicopatas de Pernambuco”, assim composta: serviços para doentes mentais não alienados, com ambulatório e hospital aberto; serviços para doentes mentais alienados, com hospital para doentes agudos e colônia para doentes crônicos; Manicômio Judiciário; Serviço de Higiene Mental, com Serviço de Prevenção das Doenças Mentais e Instituto de Psicologia. Sobre o Serviço de Higiene Mental, afirma João Marques de Sá15: “Creio mesmo que o Serviço de Higiene Mental foi o responsável pela suspensão da interferência da polícia sobre os cultos afro-brasileiros. As seitas africanas tiveram em Ulysses e no mestre Gilberto Freyre os mais ardentes defensores, passando a receber certo grau de controle científico do serviço de Higiene Mental” (1978, p. 20). A referência acima a “controle científico” relaciona-se provavelmente aos estudos realizados por Pernambucano sobre os africanos no Brasil e que o fez conhecido também como antropólogo. Esses estudos foram inicialmente influenciados por Nina Rodrigues, cujo teor era marcadamente racista, considerando as manifestações culturais negras como sintomas da degenerescência mental, em função da inferioridade racial. Ulysses Pernambucano, entretanto, distanciou-se dessa concepção, passando a repudiá-la e dirigindo seus estudos para caminhos opostos ao pensamento de Raimundo Nina Rodrigues. Pernambucano fundou a Liga de Higiene Mental de Pernambuco que, segundo Freire Costa, teve caráter bastante diferente das demais ligas, sendo essa fiel aos objetivos inicialmente propostos por Riedel para a Liga Brasileira de Higiene Mental, ou seja, a busca de melhoria na assistência aos doentes mentais. Na Liga, Pernambucano criou uma “Escola para Anormais” que, em 1964, passou a ser dirigida pela APAE. Em 1936, ele criou o Sanatório de Recife, no qual foi também instalada uma “Escola para Anormais”. Preocupou-se também Pernambucano com a formação de profissionais da área de saúde mental, tendo realizado vários cursos intensivos de especialização, com a finalidade de promover a formação prática de “monitores de saúde mental” e “auxiliares psicólogos”, sendo essa última função ocupada principalmente por professoras diplomadas pela Escola Normal. Acrescenta-se a isso o serviço de estágioque levou inúmeros discípulos de Ulysses à atuação na área de saúde mental. Pernambucano pode ser considerado como pioneiro do movimento que mais tarde veio a ser conhecido como Anti-Psiquiatria, muito embora a pouca divulgação sobre seu pensamento e obra, em seu próprio país, não tenha permitido que tal movimento pudesse reconhecê-lo. A doença mental era por ele concebida como situação existencial, resultante da dinâmica do processo psicológico, considerando o sujeito como agente desse processo e admitindo os fatores sociais como co-determinantes. Opunha-se esta visão ao organicismo, que via a doença mental como causada pela constituição orgânico-genética do sujeito, e que era antes determinante que determinada pelas condições sociais. Essa concepção justifica a denominação de “Psiquiatria Humanista”, conferida por Jamesson Freire Lima ao trabalho de Pernambucano. Do ponto de vista da produção especificamente psicológica, o movimento de Recife veio contribuir em particular com seu Instituto de Psicologia, mais tarde denominado Instituto de Seleção e Orientação Profissional. Do que foi aqui exposto, é possível apontar elementos que se ligam direta ou indiretamente à Psicologia propriamente dita, devendo destacar-se a preocupação de Ulysses Pernambuco com a formação de profissionais na área psicológica que, inclusive, teve relação com seus propósitos educacionais. Acrescenta-se a isso a preocupação educacional em geral e psicológica em especial que teve com crianças com deficiência mental. De forma geral, podemos dizer que esse psiquiatra adotou em seu trabalho uma perspectiva muito próxima à Psicologia na sua maneira de conceber e atuar sobre a doença mental. Seus estudos sobre a cultura afro-brasileira foram não apenas contribuições à Antropologia, mas podem ser também admitidos como Psicologia Social, na medida em que buscaram articular cultura e psiquismo. 1.2. Medicina Legal, Psiquiatria Forense e Criminologia A concepção psiquiátrica vigente na época, como já visto, pretendia abarcar as questões sociais e sobre elas exercer seu controle, com vistas ao estabelecimento da ordem no espaço urbano, costumeiramente palco de conflitos, o que implicava na eliminação da “desordem” que, por sua vez, significava identificar e envidar meios efetivos de controle sobre os elementos “desordeiros”. É por esse motivo que o combate ao alcoolismo, jogo, prostituição e crime ganharam terreno no interior da Psiquiatria, que procurou articular doença mental e criminalidade, com base na teoria da degenerescência. Assim, Psiquiatria e Direito integraram-se por meio da Medicina Legal, da Psiquiatria Forense e da Criminologia, sob a influência do organicismo, além das idéias de Spencer, Darwin, Galton, Comte, Wundt e, especialmente, de Lombroso. Médicos como Oscar Freire, Afrânio Peixoto, Artur Ramos e o jurista Evaristo de Moraes são alguns daqueles que dedicaram grande parte de seus trabalhos à Medicina Legal, com significativa produção bibliográfica. Deve-se destacar o papel de Heitor Carrilho, cuja contribuição foi não apenas teórica, mas fundamentalmente no campo da prática institucional da Psiquiatria Forense. Carrilho iniciou seu trabalho como psiquiatra no Hospital Nacional dos Alienados, encarregando-se da Seção Lombroso, que abrigava os “criminosos loucos”. Por seu esforço, foi criado em 1921, no Rio de Janeiro, o Manicômio Judiciário, do qual foi diretor; além disso, contribuiu com a criação de outras instituições semelhantes em vários pontos do país. Foi ainda membro do Conselho Penitenciário, diretor do Serviço Nacional de Doenças Mentais, presidente da Sociedade Brasileira de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal e catedrático de Clínica Psiquiátrica na Faculdade Fluminense de Medicina. Heitor Carrilho foi contundente crítico do Direito Clássico e grande defensor do Direito Positivo16, que procurava enfocar o crime sob o foco da determinação individual e não social. Dessa maneira, o Direito Positivo acabava, em última instância, psicologi-zando ou individualizando o ato criminoso e sua interpretação. Nas palavras de Carrilho: “Não é possível fazer direito penal sem o concurso dos médicos e dos psychiatras que, com os seus conhecimentos de bio-anthropologia e de psychologia, podem penetrar toda a personalidade dos delinqüentes, exhaminando-lhes as differentes taras, definindo-lhes o feito mental, mostrando a fatalidade biológica que os levou à prática de reações anti-sociais, desvendando- lhe a constituição, o temperamento e o caracter, para a obra admiravel da regeneração de que lhes carecem, em benefício próprio e no da collectividade” (Carrilho, apud Fry, 1985, p. 123). Essa interpretação psicologizada do crime articulava-se às idéias correntes, imputando ao criminoso a etiologia da criminalidade e isentando de responsabilidade as condições sociais; a sociedade era vista como vítima do indivíduo criminoso, com isso referendando a noção de saneamento da sociedade pela exclusão dos “desordeiros” e pela regeneração dos indivíduos. Carrilho desenvolveu em seus artigos uma série de elementos necessários para a prática do Direito Positivo, particularmente no que diz respeito à interpretação psicológica e psiquiátrica do crime, tais como: taxonomias, categorias e classificações das doenças mentais, com base na idéia de que cada caso é singular e único, devendo assim ser individualmente estudado e, da mesma maneira, decidida sua penalidade. Defendia ele a elaboração de um “psychobiogramma”, isto é, uma ficha de informações bio- psíquicas, para cada preso; indo mais longe, defendeu a idéia de que todo cidadão deveria ter essa ficha, justificando a medida como meio de prevenção da criminalidade, sendo que esta, junto com a ficha datiloscópica, poderia servir como elemento de identificação do indivíduo criminoso. Carrilho contribuiu também no exame e no relatório que fundamentaram o primeiro caso de inimputabilidade de um criminoso, Febrônio Índio do Brasil, por ter sido este considerado “louco”. Grande contribuição a essas áreas do saber veio também de Afrânio Peixoto. Sua tese de doutoramento já apontava para essa temática: “Epilepsia e Crime”, orientada por Nina Rodrigues. Do vasto e amplo conjunto de obras de Peixoto, destacam-se: “Elementos de Medicina Legal” (1910); “Psicopatologia Forense” (1916); “Sexologia Forense” (1934) e “Novos Rumos da Medicina Legal” e “Criminologia”, ambos sem referência precisa de data. Pode-se dizer, em termos gerais, que a Medicina Legal, a Psiquiatria Forense e a Criminologia demonstram a importância da Psicologia como uma de suas ciências auxiliares e, nesse sentido, contribuíram para seu desenvolvimento. Entretanto, apesar do reconhecimento, a Psicologia permanecia como instância pertinente à Psiquiatria; pode-se dizer que, se de um lado, a Psicologia desenvolveu-se no interior dessas áreas, por outro lado, só indiretamente essas aplicações contribuíram para o processo de auto-nomização da prática psicológica, tanto que só recentemente a Psicologia e o psicólogo têm sido reconhecidos no âmbito do poder judiciário. 1.3. Teses de Doutoramento das Faculdades de Medicina Muitas teses vistas na parte I deste trabalho, as quais tratavam de temas psicológicos, foram gradativamente aumentando em número com a aproximação do final do século. Nelas, salientam-se temas como: inteligência, emoção e psicofisiologia. Esse aumento no número de teses que tratavam de questões psicológicas ocorreu principalmente a partir de 1890, quando já se percebem claramente delineadas as tendências da Psicologia da época, nesse momento já considerada ciência autônoma. Em 1890, foi apresentada a tese“Psicofisiologia da percepção e das representações”, por José Estelita Tapajós, em que a tendência psicofisiológica da época aparece evidenciada. Pelo menos três teses são apresentadas com a denominação “Das Emoções”, apresentadas por Veríssimo Dias de Castro (1890), Manuel Pereira de Melo Morais (1891) e Adolfo Porchat Assis (1892). Segundo Pessotti17, a primeira delas destaca-se por tratar mais objetivamente os dados e por utilizar-se de uma linguagem mais rigorosa que as demais. A tese de Odilon Goulart, “Estudo psicoclínico da afasia”, de 1891, é talvez o primeiro estudo relacionado à Psicologia Clínica, segundo Pessotti. De Alberto Seabra, a tese “A memória e a personalidade”, de 1894, constituiu-se num estudo pioneiro sobre a memória, anunciando a preocupação com uma temática que seria largamente pesquisada nos anos subseqüentes, particularmente pelos laboratórios de Psicologia. Nesse contexto, não se pode deixar de fazer referência à figura de Raimundo Nina Rodrigues, médico baiano, professor da Faculdade de Medicina da Bahia e grande produtor de pesquisas, que fez com que essa faculdade fosse considerada, na época, como um dos mais importantes centros de pesquisa do país. Exerceu ele forte influência sobre toda uma geração de médicos, os quais, de uma maneira ou de outra, contribuíram para o desenvolvimento da Psiquiatria e Psicologia no Brasil, dentre eles: Afrânio Peixoto, Juliano Moreira, Oscar Freire de Carvalho, Flamínio Fávero e Artur Ramos. Foi Nina Rodrigues um dos mais importantes e veementes defensores da teoria da degenerescência, tendo produzido uma vasta obra em que procurava demonstrar as articulações entre inferioridade racial e degeneração psíquica, abordando, dentre uma grande amplitude de temas, as manifestações religiosas de base afro-brasileira, que eram vistas como manifestação de primitivismo, inferioridade e degeneração. Nessa linha, e orientada por Nina Rodrigues, encontra-se a tese de Oscar Freire, defendida em 1902, denominada “Etiologia das formas concretas da religiosidade do norte do Brasil”. A tese de Henrique Roxo, “Duração dos atos psíquicos elementares”, de 1900, traz a defesa da Psicologia como propedêutica da Psiquiatria, o que mostra o reconhecimento da autonomia entre as duas áreas de conhecimento, além de estabelecer um parâmetro definidor das relações entre elas. Essa idéia justifica a presença de laboratórios de Psicologia nos hospícios, o que viria a ocorrer logo depois. Defendida em 1907, a tese de Maurício Campos de Medeiros, “Métodos em Psicologia”, veio demonstrar a penetração da Psicologia científica no país e a preocupação metodológica com a produção de conhecimento nos patamares do rigor científico. A tese de Plínio Olinto, de 1911, denominada “Associação de idéias”, é demonstrativa da já indubitável produção científica da Psicologia no Brasil. Em 1931 findou a obrigatoriedade da defesa de teses de doutoramento em Medicina, sendo que do início do século até essa data, foram apresentadas pelo menos vinte e duas teses referentes a temas psicológicos só na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Deve-se também destacar, dentre essas teses, o primeiro trabalho fundamentado na Psicanálise, que foi a tese “Da Psicanálise: a sexualidade nas neuroses”, de Genserico Aragão de Sousa Pinto, defendida em 1914. Essas teses, particularmente após 1890, constituem-se numa das mais importantes evidências da conquista gradativa de autonomia da produção psicológica no Brasil, assim como explicita o caráter científico de que são revestidas. Embora produzidas como teses em Medicina, pode-se dizer que muitas delas constituíram-se em estudo de natureza estritamente psicológica, diferenciadas da psiquiatria e, mais que isso, contribuindo para a defesa da Psicologia e para o esforço de demonstrar sua especificidade, estabelecendo os meios para produzi-la. Muitos dos autores dessas teses, como Maurício Campos de Medeiros e Plínio Olinto, tornaram-se, posteriormente, reconhecidos pela vasta contribuição teórica e prática para o estabelecimento da Psicologia como ciência e profissão no Brasil. 1.4. À Guisa de Síntese Do ponto de vista global, é possível dizer que a Medicina veio a ser, nesse período, um importante substrato para o desenvolvimento da Psicologia no Brasil, mantendo uma tradição iniciada no fim do período colonial e ao mesmo tempo a superando. A evolução do pensamento psicológico no interior da Medicina até o século XIX preparou o terreno para que o conhecimento e a prática da Psicologia se desenvolvessem a tal ponto que fizeram delinear-se com maior clareza seus contornos, tendo assim contribuído para a penetração da Psicologia científica e sua definição como campo autônomo de conhecimento e ação, o que veio a se concretizar nas décadas iniciais do século XX. A criação de laboratórios de Psicologia nos hospícios é uma das mais importantes evidências desse processo, sendo que estes, na condição de instâncias auxiliares à Psiquiatria, vieram a ser relevantes produtores de estudos e pesquisas eminentemente psicológicos. Esse fato demonstra que a Medicina, produzindo conhecimento psicológico em seu interior, veio contribuir para que a Psicologia construísse seu próprio espaço. À produção dos hospícios somam-se as teses de doutoramento das Faculdades de Medicina, muitas das quais foram de autoria de médicos que se dedicaram, mais tarde, à pesquisa psicológica nos referidos laboratórios. A contribuição trazida pelas teses foi, com efeito, muito semelhante à dos hospícios, na medida em que, por dentro da Medicina, trabalhos cada vez mais característicos da Psicologia foram produzidos. Isso se revela, por exemplo, pelas preocupações específicas com as condições que definiram a autonomia científica da Psicologia, dentre elas, a questão metodológica. Por outro lado, percebe-se a importância dada ao conhecimento psicológico como instrumental para a Medicina Legal, a Psiquiatria Forense e a Criminologia. Entretanto, se aí a Psicologia foi considerada por sua contribuição, não se a vê, contudo, como área autônoma em relação à Medicina, particularmente na sua dimensão prática. Podemos dizer, portanto, que a Psicologia produzida no interior da Medicina o foi essencialmente sob o enfoque de ciência auxiliar à Psiquiatria; todavia, nesse contexto, já ficava reconhecida, pelo menos em tese, sua condição de ciência e, conseqüentemente, sua autonomia. Não se pode afirmar que a conquista de autonomia da Psicologia em relação à Medicina tenha ocorrido por um projeto estabelecido “a priori”; antes, foi seu próprio desenvolvimento e sua adequação às necessidades geradas pelos problemas sociais brasileiros que estabeleceram as condições para que tal ocorresse. 9 Sobre o Hospício do Juquery, sugere-se a leitura do valioso estudo constante do livro: CUNHA, M. C. P. O espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986. 10 Sugere-se a leitura de: COSTA, J. F. História da Psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro, Documentário, 1976. 11 Sobre isso, ver: PENNA, A. G. Apontamentos sobre as fontes e sobre algumas das figuras mais expressivas da Psicologia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, FGV, 1986. 12 Sobre esse laboratório, ver: PENNA, A. G. Sobre a produção científica do Laboratório de Psicologia da Colônia de Psicopatas, no Engenho de Dentro, in: História da Psicologia, nº 1, Rio de Janeiro, FGV, 1985. 13 Eugenia, conceito criado por Galton, significa o estudo dos fatores responsáveis pela elevação ou rebaixamento das características raciais, do ponto de vista físico e mental. 14 CASTRO FILHO, B. Higiene Mentalnas fábricas, apud CUNHA, M. C. P., obra citada. 15 SÁ, J. M. Abertura do Ciclo de Estudos Ulysses Pernambucano, in: Ciclo de Estudos Ulysses Pernambucano. Recife, Academia Pernambucana de Medicina, 1978. 16 Sobre isso, ver: FRY, P. Direito Positivo Direito Clássico: a psicologização do crime no Brasil no pensamento de Heitor Carrilho, in: FIGUEIRA, S. A. (org.) Cultura da Psicanálise. São Paulo, Brasiliense, 1985. 17 PESSOTTI, I. Dados para uma História a Psicologia no Brasil, in: Psicologia, ano 1, nº 1, maio de 1975. Sobre esse assunto, ver também: LOURENÇO FILHO, M. B. A Psicologia no Brasil, in: Arquivos Brasileiros de Psicologia Aplicada, v. 23, nº 3, setembro de 1971. A Capítulo 2 A Psicologia em Instituições Educacionais conquista de autonomia pela Psicologia no Brasil teve na Educação um dos mais importantes substratos para sua realização. As transformações históricas da sociedade brasileira impuseram uma maior preocupação com as questões educacionais e, conseqüentemente, com a problemática pedagógica. Nesse âmbito, a Psicologia tornou-se necessária como ciência básica e instrumental para a Pedagogia, o que acarretou seu desenvolvimento, quer no plano teórico, quer no plano prático. Esse desenvolvimento foi de tal maneira relevante que, da Educação, ampliou-se para outras áreas, como a organização do trabalho e o atendimento clínico nos Serviços de Orientação Infantil. Desde o final do século passado a preocupação com o sistema educacional do país ocupou vários setores da sociedade. Tal preocupação não foi homogênea e seus motivos guardavam diferenças fundamentais, articulando-se a interesses diversos e diferentes concepções sobre a sociedade brasileira e seus rumos. Nos anos iniciais da república permaneceu grande a influência das idéias positivistas e liberais sobre o pensamento brasileiro em geral e sobre o pensamento educacional em especial. Essas idéias fizeram-se presentes no plano educacional, sucessivamente no cientificismo e no humanismo, tendo penetrado largamente nos fundamentos e na organização escolar. Os defensores do positivismo tinham como objetivo difundir suas idéias por meio da educação escolarizada, que deveria organizar-se segundo seus princípios. Assim, foi realizada, em 1890, a Reforma Benjamim Constant, que levou o nome do titular do então Ministério da Instrução Pública, Correios e Telégrafos. Essa reforma propunha a liberdade, a laicidade e a gratuidade do ensino primário, em consonância com a orientação constitucional. Sua tônica foi a substituição da tendência humanista clássica pela tendência cientificista, que introduziu disciplinas de natureza científica na seqüência determinada pela orientação positivista. Merece destaque nessa reforma a substituição da disciplina Filosofia pelas disciplinas Psicologia e Lógica. A essa reforma seguiram-se outras que se caracterizaram pela oscilação entre a tendência humanista clássica e a tendência cientificista, fundamentadas em idéias européias e norte-americanas, freqüentemente divorciadas das necessidades concretas da realidade brasileira, caracterizando-se como meros transplantes culturais18. Os grandes problemas educacionais, no entanto, permaneceram: o índice de analfabetismo não sofreu alterações percentuais e aumentou em número absoluto; dois terços da população brasileira em idade escolar permaneciam fora da escola primária; a ampliação do ensino secundário deu-se basicamente na rede particular, mantendo seu caráter propedêutico e sua vocação aristocrática, da mesma maneira que o ensino superior, cujo crescimento ocorreu também apenas na rede privada, sendo que em 1900 havia apenas 0,05% de matrículas nesse grau de ensino, em relação à população do país (Ribeiro, 1979). Todavia, as primeiras décadas do século XX foram marcadas por um maior desenvolvimento urbano-industrial, que se constituiu na base para o incremento da industrialização massiva que viria a seguir e que teve, mais tarde, a finalidade de substituir importações. Tais condições exigiam indivíduos capacitados nas técnicas escolares mínimas: ler, escrever e contar. Nesse contexto, emergiu uma veemente defesa da instrução, que reivindicava a ampliação do número de escolas elementares e o combate ao analfabetismo; posteriormente surgiram os primeiros “profissionais da educação”, ligados principalmente ao ideário escolanovista. Ocorreu, nesse período, uma ampla e rica profusão de idéias, que objetivavam a solução dos problemas educacionais brasileiros e até, por essa via, a solução de todos os problemas nacionais. Foi nessa época que as teorias pedagógicas, preocupadas com o processo ensino-aprendizagem, sobretudo o escolanovismo, tiveram uma penetração sistemática no Brasil e, junto com elas, as teorias e técnicas da Psicologia, produzidas nos centros europeus e norte-americanos de pesquisa e aplicação. É possível destacar, nesse período, dois grandes movimentos educacionais: o movimento pela difusão da educação e a influência escolanovista no pensamento pedagógico. O movimento em defesa da difusão da educação teve em Manoel Bonfim seu provável precursor, de um lado pelo fato de suas idéias terem sido anteriores ao momento em que esse movimento eclodiu com força e, por outro lado, por terem sido elas incorporadas pelos seus mais eminentes representantes. Bomfim19, num esforço de análise sobre a sociedade brasileira, adotou uma perspectiva em que procurava demonstrar que os problemas enfrentados pelo país deveriam ser buscados em suas raízes históricas, particularmente na sua formação colonial, baseada na exploração imposta rudemente pela metrópole. Em sua análise, considera que uma das mais nefastas conseqüências da exploração sobre a colônia incidiu sobre a cultura e aponta nessa direção a possibilidade de superação dos problemas nacionais; para o autor, um dos principais determinantes do atraso do país era a ignorância historicamente imposta pelas classes dominantes ao povo brasileiro, estando na difusão da educação a solução para os problemas, não apenas como remédio para o atraso econômico mas, principalmente, como meio de conquista da liberdade pelo povo brasileiro, caminhando de fato para a democratização da sociedade. Em outras palavras, a educação deveria ser antes um instrumento contra a opressão e não simplesmente meio para superar o atraso econômico em relação aos outros países, o que seria defendido alguns anos depois por outros intelectuais. Paralelamente, deve-se acrescentar que, para alguns intelectuais, o atraso do país devia-se à diversidade de raças, sobretudo à presença da raça negra, considerada inferior, porque, segundo eles, ela trazia em si os germes da apatia, da indolência e da preguiça, além de sua propensão à degeneração psíquica e, assim sendo, constituía-se como entrave ao progresso. Diametralmente oposta era a concepção de Bomfim, para quem essas idéias eram equivocadas e, ao contrário de contribuírem para a solução dos problemas do país, tendiam a perpetuá-los. A defesa da educação foi compartilhada por muitos intelectuais e políticos, sustentada entretanto por outras idéias e vinculadas a interesses diferentes. Salientam-se nesse movimento figuras como Miguel Couto e Mário Pinto Serva, que identificavam a ignorância como causa do atraso do Brasil e o analfabetismo como vergonha nacional. Buscava-se a formação de uma nação forte, baseada num “povo forte mental e fisicamente”, o que se aproxima dos ideais eugênicos e do pensamento psiquiátrico vigente em busca da higienização da raça. Tais idéias articulavam-se à pregação nacionalista,à defesa do fortalecimento militar e ao anticomunismo. Havia também o interesse em tornar o analfabeto eleitor, com finalidade de reverter o quadro político a favor dos grupos alijados do poder e que almejavam tomá-lo das mãos da oligarquia cafeeira; projeto este que só mais tarde e por outros meios viria a se realizar. Antonio Carneiro Leão defendia a idéia de que não deveria ser difundida qualquer instrução e sim a instrução profissional ligada ao comércio e à indústria, cujo desenvolvimento poderia elevar o Brasil ao mesmo patamar das nações prósperas. A mera alfabetização, segundo ele, poderia até ser perigosa, pois aqueles que até então estavam conformados com suas condições de vida, alfabetizados, poderiam almejar melhor situação e gerar problemas sociais. Sampaio Dória partilhava dessa idéia, defendendo a instrução técnica do operariado juntamente com a organização científica do trabalho. Isso se relaciona à sua preocupação com a Psicologia, sobretudo na ênfase dada às relações entre processo produtivo e diferenças individuais, assim como a Higiene, que deveria preservar a saúde e o vigor físico do operariado, que se vinculava ao ideal de melhoria da raça, incluindo a preservação do caráter e da capacidade mental. É explícita a articulação entre a defesa da instrução e as forças industriais emergentes, sobretudo no pensamento de Carneiro Leão e Sampaio Dória, para quem a instrução deveria ser um meio para suprir a indústria com uma força de trabalho preparada e racionalizada, com vistas à produtividade, sendo Taylor freqüentemente citado. O tripé Educação-Trabalho-Psicologia fazia-se necessário para o processo de industrialização massiva que se planejava para a sociedade brasileira, sob a égide da modernidade que se almejava para o país. Nesse quadro, um outro movimento educacional, em verdade um movimento mais propriamente pedagógico, ganhou força e estabeleceu-se como pensamento hegemônico: o escolanovismo. Essa concepção não se contrapunha à defesa da difusão da instrução, mas vinha dar-lhe sustentação teórico- prática. O escolanovismo fazia parte de um projeto de sociedade, baseado nas idéias de modernidade, em que se fazia necessário um “homem novo”, esculpido pela educação. Soma-se a isso o fato de que, no escolanovismo, a Psicologia constituía-se como uma das mais importantes ciências que fundamentavam sua pretensão de ser Pedagogia Científica. Nesse panorama, mudanças substantivas ocorreram na organização escolar brasileira, principalmente por meio das reformas estaduais do ensino realizadas na década de 20, em que foi o escolanovismo o principal substrato pedagógico. Surgiram os primeiros profissionais voltados especialmente para a Educação, como Lourenço Filho, Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira e outros. Não por acaso, Lourenço Filho pode também ser considerado um dos primeiros psicólogos brasileiros e um dos mais importantes protagonistas do processo que levou ao estabelecimento definitivo da Psicologia científica e da profissão de psicólogo no Brasil. A Psicologia tornou-se, então, exigência vital para a Educação, principalmente na vertente escolanovista, pois esta ciência deveria ser capaz de fornecer muitos dos subsídios teóricos e todo um arsenal técnico para instrumentalizar a ação educativa. É possível afirmar que a Psicologia foi o pilar de sustentação científica para essa concepção pedagógica, pois era ela que cuidava do indivíduo e das diferenças individuais (representada pela Psicologia Diferencial e suas técnicas, principalmente a psicometria), do processo de desenvolvimento psíquico, da aprendizagem, da dinâmica das relações interpessoais, da personalidade, das vocações, aptidões, motivações etc. Nesse quadro da Educação brasileira, a Psicologia ganhou seu mais importante alicerce para se estabelecer na condição de ciência, explicitar-se como área específica de saber e de prática e, conseqüentemente, definir-se como campo profissional específico. Procuraremos demonstrar tais fatos, expondo brevemente a produção psicológica no “Pedagogium”, no Instituto de Psicologia de Pernambuco, na Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico de Belo Horizonte, nas Escolas Normais e nos conteúdos de algumas obras editadas no período. 2.1. Algumas instituições educacionais “Pedagogium” O “Pedagogium” foi constituído inicialmente como Museu Pedagógico, cuja idéia inicial partiu de Rui Barbosa. Criado em 1890, sua finalidade seria a de funcionar como “centro propulsor das reformas e melhoramentos de que carecesse a educação nacional” (Penna, 1986, p. 7)20. Em 1897, Medeiros e Albuquerque foi nomeado diretor da Instrução Pública do Distrito Federal, promovendo uma mudança na natureza do “Pedagogium”, passando este a ser um “centro de cultura superior aberto ao público”. Foi nessa condição que, em 1906, foi aí criado um Laboratório de Psicologia Experimental, muito provavelmente o primeiro laboratório de psicologia no país. Planejado por Alfred Binet e Manoel Bomfim, em Paris, o laboratório foi organizado e dirigido por este último, que aí permaneceu por doze anos. Os mais importantes dados a respeito da produção do Laboratório provêm das obras de Bomfim21, que não os apresenta sistematicamente, mas são antes elementos que o autor insere em suas discussões sobre a Psicologia. Nessas obras fica demonstrada a singularidade desse autor, incluída a crítica que faz às pesquisas realizadas em laboratórios, sobretudo quando se estuda o pensamento. Sobre isso, afirma Bomfim: “Durante 12 anos, tive a minha disposição um laboratório de psychologia; nas pastas, ainda estão acumuladas anotações, traçados, fileiras de cifras (...) e nunca tive coragem para organisar uma parte qualquer desses dados, e de os publicar, porque nunca obtive uma elucidação satisfactória” (1923, p. 27). Encontra-se nessa citação a discussão sobre as possibilidades de um laboratório ser capaz de dar conta do estudo dos fenômenos psicológicos. O longo texto do autor, a seguir, demonstra suas inquietações: “A dynamica do pensamento humano não poderia conter-se na estreiteza do laboratorio; deforma-se, annula-se. Mesmo as simples associações de ideias: melhor as conhecemos na analyse de uma obra qualquer, naturalmente pensada e escripta, do que nos milhares de pesquizas que, para esse fim, se fizeram. Tomem do albatroz, ou mesmo do tico-tico, atem-n’o, já encerrado numa gaiola, e, agora, tentem estudar-lhe a dynamica do vôo! (...) Pois, foi mil vezes mais insensata a pretensão de conhecer o conjuncto do espirito, pelo que se obtem nas simples pesquizas a lapis e apparelhos. (...) o mais complexo a que se pode dedicar a mente humana, tem de ser apurado à luz de todos os methodos, com a contribuição de todos os recursos; mas evidentemente, dos methodos possiveis e applicaveis, o mais insufficiente será sempre este: tomar um individuo, consideral-o isoladamente, impor-lhe as condições restrictas e artificiaes do laboratorio, para inferir da sua consciencia deturpada o regimen normal no commum das consciencias (...) o espirito humano, complexo, essencialmente activo e instavel como é, tem de ser estudado e comprehendido nas formas normaes e completas da sua realização natural. Elle existe, e produz, e se manifesta, como actividade conjuncta e collectiva; assim tem de ser comprehendido e estudado. A introspecção, somente, pura observação individual, que seja, ou não, trabalho de laboratorio, nunca poderia dar a base completa das leis do espirito” (1923, pp. 26 e 27). Essa concepção de Bomfim diferenciava-se radicalmente da concepção de pesquisa de outros brasileiros, que defendiam o laboratório como expressão máxima de produção de conhecimentopsicológico. Em Manoel Bomfim, menos que o êxtase provocado pela possibilidade de controle e rigor científico que o laboratório representava, pareciam mais importantes os limites impostos por este tipo de pesquisa. Buscava ele compreender determinados fenômenos em outras bases, considerando a importância da natureza social do psiquismo em sua complexidade e concreticidade. Posteriormente, vários estudiosos da Psicologia empreenderam críticas semelhantes às de Bomfim, assim como elaboraram concepções de Psicologia e de fenômeno psíquico muito próximas daquelas que esse autor brasileiro formulou pioneiramente. O laboratório do “Pedagogium”, embora não tenha registros sistemáticos de sua produção, pode ser considerado um celeiro riquíssimo de reflexões sobre a Psicologia, por meio das obras publicadas por seu genial diretor. O “Pedagogium” funcionou até 1919, quando foi extinto por decreto municipal. Segundo Penna, essa instituição perpetuou-se com a criação em 1938, do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos — INEP. Instituto de Psicologia de Pernambuco Essa instituição foi criada em 1925, por Ulysses Pernambucano, como diretor da Escola Normal Oficial de Pernambuco. Foi transferido, em 1929, para o Setor de Educação, anexo à Secretaria de Justiça e Instrução de Pernambuco, passando a chamar-se Instituto de Seleção e Orientação Profissional – ISOP. Em 1931, era Pernambucano o diretor do Hospital de Alienados de Recife, quando o ISOP foi anexado ao Serviço de Higiene Mental do referido hospital. Muitos estudos foram aí realizados, devendo ser ressaltadas as produções referentes a: testes psicológicos de nível mental, aptidão e outros, assim como sua padronização para a realidade brasileira; vocabulário das crianças das escolas primárias de Recife; elaboração de testes pedagógicos; revisão da escola Binet-Simon para aplicação em Recife; técnicas projetivas; padronização do teste coletivo de inteligência de Ballard, para utilização na Escola Normal com finalidade de seleção de alunos, além de muitas pesquisas experimentais e de iniciação à pesquisa com o objetivo de formar pesquisadores em Psicologia. Sob a orientação de Pernambucano, muitos pesquisadores se formaram, sendo que muitos deles tornaram-se eminentes em seus campos de atuação, como Nelson Pires, Anita Paes Barreto, Silvio Rabello e vários outros. A esse trabalho devem ser somadas as realizações de Ulysses Pernambucano no campo da educação para crianças com deficiência mental, cujo pioneirismo é inconteste, sendo reconhecido pela própria Helena Antipoff, a quem muitos atribuíam as ações pioneiras nessa área. Criou ele a “Escola para Anormais”, anexa ao Curso de Aplicação da Escola Normal, na qual surgiram as primeiras pesquisas com testes de aptidão, pedagógicos e mentais, implantação de processos pedagógicos com base na Psicologia e formação de professores e pesquisadores. Além dessa escola, Ulysses Pernambucano criou várias outras instituições de ensino para crianças com deficiência mental. Uma das finalidades do Instituto era subsidiar o trabalho nessas escolas e formar pessoal especializado para elas. O Instituto contribuiu também para o serviço psiquiátrico de Recife, em especial no que se refere ao emprego de técnicas psicológicas em questões de psicopatologia clínica que, segundo Anita Paes Barreto, acabou por tornar-se tal prática uma das marcas da “Escola Psiquiátrica do Recife”. Do ponto de vista teórico da Psicologia, Ulysses Pernam-bucano foi assim retratado por José Lucena22: “a psicologia que adotava, buscava predominantemente modelos objetivos. Embora houvesse manifestado simpatia pela reflexologia estrita de Pavlov e Bechterew, não se filiou a qualquer behaviorismo, preferindo antes a psicologia do comportamento, como a entendia H. Pierón, e sobretudo a orientação dita funcionalista que representavam então (...) Claparède, James, Dewey, etc. e a produção dos experimentadores rigorosos que punham em marcha o movimento dos testes mentais: Binet, Terman, Yerkes, Burt e outros” (1978, p. 156). Embora fique patente a forte presença da psicometria na produção do Instituto, é de se notar também que sua finalidade vinculava-se à educação de “deficientes mentais”, ao subsídio à ação psiquiátrica, às questões escolares e à formação de professores, o que contrastava com o que ocorria em outros laboratórios de instituições psiquiátricas. A tudo isso deve-se acrescentar que Ulysses Pernambucano sofreu muitas perseguições políticas, tendo sido preso várias vezes, sob a acusação de subversão, por sua luta por melhorias nas condições de assistência ao doente mental. Em 1935, com Gilberto Freyre, Olivio Montenegro e Sílvio Rabelo, assinou um manifesto que solicitava um inquérito social sobre as condições de vida dos trabalhadores brasileiros, sobretudo aqueles do campo. Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico de Belo Horizonte23 Embora já no limite do período em estudo, a apresentação da produção dessa instituição é importante por demonstrar a conquista da autonomia da Psicologia no Brasil. Fundada no final da década de 20, tornou-se ela referência para a caracterização dos rumos que a Psicologia tomou posteriormente. A Escola de Aperfeiçoamento foi uma realização pertinente à Reforma do Ensino de Minas Gerais, empreendida por Francisco Campos. Nessa reforma, a Psicologia assumiu papel de destaque, em que a Escola de Aperfeiçoamento deveria tornar-se o principal núcleo difusor das bases pedagógicas que deveriam ser implementadas no estado. Antes de sua criação, já a preocupação com a Psicologia e suas técnicas faziam-se presentes nos meios educacionais de Belo Horizonte. Cursos ministrados por C. A. Baker, Iago Pimentel, Alberto Álvares e Alexandre Drummond abordavam assuntos como Psicologia Educacional e testes, temas estes também presentes em artigos da “Revista do Ensino”. A Escola de Aperfeiçoamento promoveu vários cursos, para os quais foram chamados como docentes personalidades eminentes da Psicologia na época, como Th. Simon (colaborador de Binet), Léon Walther e Helena Antipoff (assistente de Claparède). Helena Antipoff permaneceu no Brasil e aqui realizou extensa obra em Educação e Psicologia, abrangendo pesquisa, ensino e prática educacional. Sob a responsabilidade de Antipoff, foi criado um Laboratório de Psicologia para subsidiar os rumos educacionais de Minas Gerais, fundamentalmente pela formação docente. Esse laboratório produziu um extenso rol de pesquisas, abordando uma ampla variedade de assuntos: inteligência; relações entre produção escolar e meio social da criança; relações entre inteligência e vocabulário; seleção e orientação profissional; homogeneização de classes escolares; personalidade e tipos de crianças; memória, aprendizagem e testemunho; motricidade e fadiga; julgamento moral e social, além de revisão e adaptação de testes de inteligência e aptidão e preparação de testes originais para medida psicológica e verificação do rendimento escolar. A perspicácia da análise de Antipoff sobre os resultados que obtinha nas pesquisas lançou novas luzes sobre a realidade social brasileira e sua relação com os fenômenos de natureza psicológica, como por exemplo, a relação entre condições de vida e desenvolvimento psicológico. Vale dizer que suas concepções guardam evidente atualidade. É interessante notar, pela descrição de Regina Helena de Freitas Campos (1980), que as pesquisas realizadas por Antipoff foram fundamentalmente pesquisas de campo, cujos dados foram coletados em situação ordinária de sala de aula; além disso, grande importância era dada à consideração do meio social doqual provinham as crianças. Para caracterizar seu trabalho, Campos bem o qualifica quando denomina um item de sua dissertação assim: “O Laboratório de Psicologia vai conhecer as crianças de Belo Horizonte”. Anexa à Escola de Aperfeiçoamento foi criada uma classe especial para “deficientes mentais”, germe de várias escolas desse tipo e da Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais. Helena Antipoff prestou a esse campo de atuação uma das maiores contribuições realizadas no Brasil, não apenas participando da criação de várias instituições, mas também lutando pela melhoria do atendimento a essa população. Propôs ela a denominação “indivíduo excepcional” em lugar de “deficiente mental”, por considerar esta última expressão inadequada. Partindo dos resultados das pesquisas que realizou, Helena Antipoff propôs o conceito de “inteligência civilizada”, pois considerava a inteligência como algo mais complexo do que aquilo que aparecia nas definições correntes; a inteligência seria multideterminada e, junto com disposições intelectuais inatas e maturidade biológica, também os fatores sociais e culturais presentes no ambiente em que a criança se desenvolve e a ação pedagógica seriam fatores determinantes. Assim como o Instituto de Psicologia de Recife, o Laboratório da Escola de Aperfeiçoamento trabalhou com testes mentais, pedagógicos e de aptidão, além de outra semelhança: a preocupação educacional com o sujeito com deficiência mental. A psicometria foi aí estudada em contraste com o que ocorria no resto do país. Em Belo Horizonte, foi utilizada como um instrumento para coleta de dados nas pesquisas, sendo seus resultados relacionados com outros provenientes das condições de vida dos sujeitos, o que permitiu uma visão mais totalizadora das funções psicológicas estudadas. É possível até dizer que Antipoff avançou a partir do ponto em que Pernambucano parou, dando continuidade a suas preocupações. Na década de 40, a Escola de Aperfeiçoamento de Belo Horizonte fundiu-se com a Escola Normal, gerando o Instituto de Educação, ao qual foi incorporado também o Laboratório de Psicologia. Escolas Normais A produção das Escolas Normais consistiu, provavelmente, numa das mais importantes contribuições para o estabelecimento da Psicologia científica no Brasil, quer no âmbito teórico, quer no âmbito da aplicação prática de seus conhecimentos. Sua importância reside também no fato de muitos dos primeiros profissionais da Psicologia terem iniciado sua formação nessas escolas e terem sido elas incentivadoras da publicação das primeiras obras específicas de Psicologia no país. Para Annita Cabral24: “Foi nestas que se formaram os primeiros núcleos de estudiosos das teorias gerais e aplicadas, que os primeiros ‘laboratórios’ de psicologia se fundaram e que professores nacionais receberam de Th. Simon, Ed. Claparède, Hélène Antipoff, H. Piéron, Fauconnet, L. Walther, Köhler e outros estrangeiros, curtos mas estimulantes cursos de conferências. A formação dos mais destacados psicólogos educacionais brasileiros da atualidade [1950] tem suas raízes naquelas escolas normais” (1950, p. 31). As primeiras Escolas Normais surgiram no Brasil na primeira metade do século XIX, sendo que somente no século XX a disciplina Psicologia apareceu de maneira mais sistemática em seus currículos, com o desdobramento da disciplina Pedagogia em Pedagogia e Psicologia. Esse desdobramento não foi, porém, generalizado, nem definitivamente incorporado; sendo certo, no entanto, que a Escola Normal de São Paulo o adotou em 1912, e que o mesmo ocorreu no Rio de Janeiro, mas de forma descontínua. Em 1928, por decreto, a disciplina Psicologia foi inserida no currículo das Escolas Normais, juntamente com Pedagogia, História da Educação, Didática, Sociologia, Higiene e Puericultura. Podemos com isso afirmar, sem sombra de dúvidas, que o ensino sistemático da Psicologia ocorreu originalmente nas Escolas Normais. Essas escolas contribuíram também com a produção de conhecimento, por meio de pesquisas e estudos realizados em seus laboratórios, e com as experiências postas em prática nas salas de aula. A isso somam-se as obras psicológicas publicadas para uso da disciplina, no início em geral compêndios e traduções de clássicos estrangeiros e, mais tarde, obras sobre assuntos específicos da Psicologia. Das Escolas Normais brasileiras merecem destaque as de Belo Horizonte, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, Fortaleza e São Paulo, pela significativa acolhida às questões psicológicas. As Escolas Normais de Belo Horizonte e Recife tiveram grande relevância pela articulação, respectivamente, com a Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico e com o Instituto de Psicologia já vistos anteriormente. A Escola Normal de Salvador teve em Isaias Alves um dos mais expressivos representantes da Psicologia na época; foi ele um dos pioneiros na difusão, aplicação, revisão e adaptação de testes pedagógicos e psicológicos no Brasil, sendo um dos principais difusores da nova técnica, quer pela publicação de livros ou realização de cursos sobre esse tema. Da mesma maneira, a Escola Normal do Rio de Janeiro teve sua produção psicológica intimamente ligada a seu professor de Pedagogia e Psicologia, Manoel Bomfim, cujas idéias e, conseqüentemente, os conteúdos abordados em seus cursos, encontram-se registrados em seus livros: “Lições de Pedagogia” e “Noções de Psychologia”, especialmente elaborados para uso de seus alunos normalistas, além de outras obras por ele publicadas, dentre as quais a já mencionada “Pensar e Dizer: estudo do symbolo no pensamento e na linguagem”. Vale ressaltar que muitos elementos apresentados pelo autor nessas obras guardam surpreendente atualidade. A Escola Normal de Fortaleza trouxe uma contribuição especial à Psicologia por sua participação no contexto da Reforma do Ensino do Ceará, empreendida por Lourenço Filho, entre os anos de 1922 e 1923, quando essa escola assumiu importante tarefa e nela foi criado um laboratório de Psicologia. A Escola Normal deveria cuidar da formação dos professores, que seriam os principais protagonistas das transformações que Lourenço Filho idealizara para o cotidiano das salas de aula. A Psicologia exerceu função central nessa reforma que pode ser considerada como a primeira realização de vulto do escolanovismo no país; nesse sentido, podemos afirmar que, em busca de implementar a Escola Nova, baseada numa Pedagogia científica, a Psicologia assumiu papel fundamental, pois seu domínio deveria ser o principal instrumental do professor em sala de aula. Lourenço Filho procurou dar continuidade no Ceará ao seu trabalho na Escola Normal de Piracicaba, em que era catedrático de Psicologia, tendo aí pesquisado atenção, maturidade para a leitura e a escrita e emprego de testes. Retornando a São Paulo, continuou sua atuação na Escola Normal dessa cidade, vindo a assumir aí a cátedra de Psicologia e a direção de seu laboratório que, por sua importância, serão, a seguir, especialmente tratados. A Escola Normal de São Paulo As principais contribuições dessa escola sustentam-se no ensino – pela cátedra de Pedagogia e Psicologia e pelos cursos ministrados por especialistas estrangeiros – e na produção de seu laboratório. Segundo Pessotti, em 1932 a responsabilidade sobre o laboratório e a cátedra passa a Noemi Silveira Rudolfer, assistente de Lourenço Filho; dois anos depois, o laboratório foi incorporado à cátedra de Psicologia da então criada Universidade de São Paulo; em 1936, Rudolfer foi nomeada catedrática de Psicologia Educacional da referida universidade. No que diz respeito ao ensino de Psicologia, a Escola Normal foi responsável pela divulgação das teorias psicológicas em voga na Europa e nos Estados Unidos
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