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FACULDADE ARQUIDIOCESANA DE MARIANA – DOM LUCIANO MENDES GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA Luiz Henrique de Moraes Silva A PRUDÊNCIA POLÍTICA NA FILOSOFIA DE EDMUND BURKE Mariana 2014 Luiz Henrique de Moraes Silva A PRUDÊNCIA POLÍTICA NA FILOSOFIA DE EDMUND BURKE Monografia apresentada ao curso de graduação em Filosofia da Faculdade Arquidiocesana de Mariana - Dom Luciano Mendes como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em Filosofia. Orientador: Ms. Rodrigo Alexandre de Figueiredo Mariana 2014 “A mente moderna vê-se forçada na direção do futuro pela sensação da fadiga – não isenta de terror – com que contempla o passado. Ela é propelida para o futuro. Para usar uma expressão popular, é arremessada para meados da semana que vem. E a espora que a impulsiona avidamente não é uma afeição genuína pela futuridade, pois a futuridade não existe, pois que ainda é futura. É antes um medo do passado: um medo não só do mal que há no passado, senão também do bem que há nele. O cérebro entra em colapso ante a insuportável virtude da humanidade. Houve tantas fés flamejantes que não podemos suportar, houve heroísmos tão severos que não somos capazes de imitar, empregaram-se esforços tão grandes na construção de edifícios monumentais ou na busca da glória militar que nos parecem a um tempo sublimes e patéticos. O futuro é um refúgio onde nos escondemos da competição feroz de nossos antepassados. São as gerações passadas, não as futuras, que vêm bater à nossa porta.” G. K. Chesterton “Como a filosofia política deriva sua sanção da ética, e a ética da verdade da religião, é somente ao retornar à fonte eterna da verdade que poderemos ter esperança em alguma organização social que não venha, até a destruição eterna, a ignorar algum aspecto essencial da realidade.” T. S. Eliot RESUMO Discorremos, neste trabalho, a respeito dos componentes teóricos fundamentais da filosofia política de Edmund Burke, pensador irlandês que advogou por uma conduta política regulada especialmente pela virtude da prudência, que considerava indispensável a legisladores e estadistas em geral. Ao criticar a Revolução Francesa de 1789, Burke denuncia a impetuosidade e os erros da ideologia que serviu de combustível para aquela insurreição. Ele adverte, nesse contexto, que não são os princípios abstratos fabricados pelo intelecto que devem reger a ação política, mas sim a consideração realista e ponderada das circunstâncias particulares de cada tempo e lugar. Antevendo, já em 1790, que o regime jacobino acarretaria em violências ainda maiores posteriormente, Burke discute os dogmas da mentalidade revolucionária, questionando inclusive a acuidade da razão pretensamente esclarecida dos philosophes iluministas. Burke contesta as noções iluministas relacionadas a um estado primitivo e a direitos primitivos dos homens, bem como a ideia de que a natureza humana, sendo plástica e perfectível, poderia ser artificialmente melhorada por um Estado esclarecido. O seu ceticismo diante das utopias revolucionárias e seu apreço pelas instituições tradicionais levaram as gerações posteriores a nomeá-lo pai do conservadorismo moderno. O pensador irlandês sustenta a convicção de que há uma Ordem e uma Lei Natural acima do Estado e da sociedade com a qual as instituições humanas devem conformar-se progressivamente para alcançar a realização de seus fins. A observância das doutrinas encontradas nas fontes cristãs da Revelação divina e a valorização da tradição moral, institucional e espiritual que os antepassados nos transmitiram seriam os meios mais seguros para manter os laços entre o que é temporal, contingente e humano e o que é eterno, natural, e divino. Burke defende, ainda, que um estadista prudente deve sempre levar em conta as experiências passadas, aprender com erros e com os acertos dos ancestrais e estar disposto a preservar as instituições salutares legadas pelos antepassados, sem deixar de melhorá-las quando as circunstâncias permitirem. Diante de estruturas e sistemas que se tornam ineficazes para atender as necessidades dos cidadãos, Burke propõe, como alternativa ao método revolucionário, a reforma gradual, paciente e orgânica, que permite conservar o que permanece vantajoso nas velhas instituições e fazer reajustamentos posteriores para melhor adequar as mudanças políticas ao todo do organismo social. Palavras-chave: Prudência; Política; Conservadorismo; Revolução Francesa; Iluminismo; Lei Natural; Tradição; Reforma Institucional; Edmund Burke. ABSTRACT We discourse, in this paper, about the essential theoretical components of Edmund Burke’s political philosophy. This Irish author advocates for a political procedure regulated specially by the virtue of prudence, which he consider indispensable to lawmakers and statesmen in general. While Burke was criticizing the French Revolution of 1789, he denounces the impetuosity and the errors of the ideology that was the fuel for that insurrection. He warns, in that context, that the abstract principles fabricated by intellect should not drive the political action, but the realistic and weighted consideration of the particular circumstances of each time and site. In 1790, foreseeing the bigger violence that the Jacobin regime would bring about later, Burke discusses the revolutionary mind’s dogmas, quarrel also the accuracy of the French philosophes and his so-called enlightened reason. Burke contests the Enlightenment notions related to the primitive status and the primitive rights of mankind, just like the idea of the plasticity and perfectibility of human nature that could be improve artificially by an Enlightened State. His skepticism up against the revolutionary utopias and his regard for traditional institutions lead the subsequent generations to nominate him the father of the modern conservatism. The Irish philosopher believes in a natural Order above the society and in a natural Law, which the social and political institutions must progressively agree with to reach the fulfillment of their purposes. Valuating the doctrines founded in the Christian sources of the divine Revelation and being fond of the moral, institutional and spiritual tradition transmitted by the ancestors are the secure means to keep the bonds between what is temporal, contingent and human and what is eternal, natural and divine. Burke also stand up for the idea that a prudent statesman must always consider the experiences from the past, have the disposition to preserve the favorable institutions received by legacy from the ancestors and be able to improve them when the circumstances allow that. When the structures and systems become inefficient to satisfy the citizen’s needs, Burke propose, like an alternative to revolutionary method, a gradual, patient and organic reformation that allows to conserve what remains beneficial at the old institutions and permit subsequent enhances to adjust the political changes to all the social organism. Key-words: Prudence; Politics; Conservatism; French Revolution; Enlightening; Natural Law; Tradition; Institutional Reformation; Edmund Burke. SUMÁRIO INTRODUÇÃO.............................................................................................................10 1 UMA REAÇÃO AO JACOBINISMO E À ILUSTRAÇÃO..................................13 1.1 A presciência de Burke..............................................................................................15 1.2 O realismo burkeano..................................................................................................19 1.3 Imprudências e vícios da atitude revolucionária.......................................................212 BASES ANTROPOLÓGICAS E ÉTICO-METAFÍSICAS....................................25 2.1 Visão antropológica restrita.......................................................................................26 2.2 Heranças greco-cristãs...............................................................................................28 2.3 O jusnaturalismo burkeano........................................................................................33 3 A PRUDÊNCIA COMO VIRTUDE NORTEADORA DA POLÍTICA................36 3.1 A experiência dos antepassados................................................................................36 3.2 Considerações sobre o governo civil.........................................................................39 3.3 Representatividade política........................................................................................41 3.4 As instituições e valores consolidados pelas gerações..............................................46 3.5 Reformas orgânicas em vez de revoluções................................................................50 CONCLUSÃO................................................................................................................53 REFERÊNCIAS.............................................................................................................56 10 INTRODUÇÃO Uma filosofia política que não prescreva grandes mudanças, transformações repentinas, ou revoluções violentas como solução para os problemas do sistema vigente, pode não ser considerada, por todos, digna de compor o cânon dos grandes paradigmas do pensamento político ocidental. Isso não significa, contudo, que ela não ofereça uma contribuição filosófica significativa que nos permita contemplar a política de um outro ângulo de visão e com outros critérios de juízo. Um dos objetivos desse trabalho é verificar se é possível pensar temas políticos de forma pertinente sem pretender oferecer fórmulas teóricas para a construção de um sistema virtualmente perfeito e sem sugerir solapar as bases institucionais de um sistema político qualquer a fim de desconstruí-lo e dar ocasião ao surgimento de uma nova ordem civil. Averiguaremos também, tendo por esteio o pensamento filosófico de Edmund Burke, se é possível assegurar uma filosofia política conservadora que não se limite à crítica das posturas revolucionárias e proponha meios mais sustentáveis e seguros de aprimoramento das estruturas sociopolíticas. Edmund Burke foi um filósofo irlandês, nascido em Dublin, que entrou para a história como o pai do conservadorismo político moderno e o mais ferrenho crítico da Revolução Francesa. Não obstante sua obra seja um marco da filosofia política conservadora, Burke foi líder do partido whig (liberal) no parlamento britânico, onde atuou como deputado pelo condado de Bristol. Alguns o classificam como liberal- conservador; liberal no que tange à economia e pela importância que a liberdade individual tem em seu pensamento, conservador no que se refere à cultura, à moralidade pública e à própria política. Em sua atividade parlamentar, destacou-se como notório antiabsolutista, com um histórico de denúncias contra os abusos britânicos na Índia e de luta política contra as pretensões absolutistas do rei George III. Embora fosse de confissão anglicana e um monarquista convicto, empenhou-se na defesa dos direitos dos católicos irlandeses e dos colonos separatistas e republicanos da América do Norte. O livro sobre o qual dissertaremos com maior frequência para discorrer sobre a filosofia política burkeana teve, de acordo com o próprio autor, origem epistolar. As Reflexões sobre a Revolução em França nasceram de uma carta enviada pelo autor a um “jovem fidalgo de Paris”. Esse jovem era Charles-Jean-François Depont, que interrogara Burke acerca da sua opinião sobre o estado de coisas na França após a Revolução de 1789. Nas 11 primeiras páginas do texto, o deputado irlandês explica ao leitor a origem e o intento da obra. Por suas palavras iniciais, podemos inferir que as discussões acerca da referida revolução estavam pululando por toda a Europa naqueles primeiros anos após o levante jacobino. O ano em que Burke redige suas Reflexões sobre a Revolução em França é 1790, ano seguinte ao da Queda da Bastilha. A missiva que se tornaria um tratado político célebre em todo o Ocidente foi, na verdade, uma reação do autor, na forma de carta a Depont, a certos elogios públicos que se faziam no Reino Unido à revolução gaulesa. A troca de correspondência entre o parlamentar irlandês e o “jovem fidalgo de Paris”, embora real, teria sido apenas a ocasião que o primeiro encontrou para fazer vazar suas críticas à insurreição jacobina para o público comum. 1 Com isso, Burke pretendia advertir as massas para evitar que as ideias revolucionárias ganhassem mais entusiastas entre os britânicos, o que era para ele motivo de grande preocupação. As Reflexões, entretanto, não encerram toda a obra do filósofo dublinense. No conjunto dos escritos filosóficos de Burke incluem-se muitos outros textos, que abarcam seus discursos no parlamento, correspondências diversas e até mesmo um tratado de Estética redigido como “investigação filosófica” sobre a origem das ideias do Belo e do Sublime. Para este trabalho monográfico interessam-nos, contudo, apenas os escritos de Burke dedicados à política. Assim sendo, procuraremos aqui apresentar a visão política de Burke enfocando as noções que formam a espinha dorsal de sua argumentação nessa matéria, tais como herança, circunstâncias, natureza, experiência, liberdade e, sobretudo, prudência. Tangenciamos também o entendimento do filósofo acerca do justo exercício do poder, da representatividade dos cidadãos perante o governo, da apropriada atuação do estadista frente aos interesses sociais conflitantes, da injustiça inerente à conduta revolucionária, da imprudência inerente à mentalidade subversora, da deferência devida às instituições civis consagradas, das configurações possíveis de um Estado, entre outros motes. Se for adequada a distinção feita entre ciência política e filosofia política que define a primeira como o estudo pragmático das estruturas e mecanismos de 1 Quem apresenta essa informação sobre a ocasião em que surgiu a obra-prima de Burke é Francis Canavan, S. J., em prefácio para as Reflexões encontrado na edição de 2012 da Topbooks, pág. 12. 12 governo, bem como das relações políticas que perfazem o aparato estatal e a sociedade, enquanto concebe a segunda como a fundamentação ética e metafísica de um projeto ideal de Estado e de uma conduta ideal dos agentes políticos, podemos dizer que Burke fez tanto uma quanto outra. No primeiro capítulo, encetaremos com uma retomada das circunstâncias históricas nas quais foi deflagrada a Revolução Francesa – evento determinante para a produção filosófica de Burke – e apresentaremos dados referentes aos desdobramentos daquela sublevação que corroboraram o parecer inicial do filósofo sobre a mesma. Também evidenciaremos as reações manifestas de Burke àquele acontecimento, que aparecem na forma de denúncias, advertências e apreciações contestatórias do pensamento revolucionário e iluminista. E abordaremos, ainda, o realismo burkeano frente às promessas utópicas que então ganhavam prestígio. No nosso capítulo inicial, portanto, prevalecem temas que ressaltam o caráter reativo e contestador do filósofo. No segundo capítulo, discorreremos sobre as noções antropológicas, éticas e metafísicas que alicerçam e permeiam o pensamento político burkeano. Procuraremos expor algumas características da antropologia restrita adotada pelo autor, sua confiança nas antigas virtudes clássicas e numa Ordem cosmológica natural com a qual devem conformar-se as convenções humanas, bem como seu apreço pelos valoresdo cristianismo, e também sua convicção de que os direitos naturais da humanidade procedem de uma Lei natural eternamente estabelecida. Neste capítulo aparece, portanto, um Burke que, não obstante preferisse ser prático, é também metafísico. No terceiro e último capítulo do nosso trabalho, à medida que apresentarmos as recomendações do filósofo para uma práxis política baseada, sobretudo, na virtude da prudência, sobressairá um Burke mais propositivo. Assim, procederemos a uma exposição das propostas práticas do filósofo para que os homens de Estado sejam norteados por uma salutar circunspecção e uma judiciosa sensatez na gestão da coisa pública. Mostraremos como a política da prudência surge como uma alternativa à política revolucionária e visa firmar uma relação de confiança recíproca entre governo e sociedade civil, possibilitando que toda mudança sócio-institucional seja sempre gradativa, orgânica e resulte em proveito do maior número possível de cidadãos. 13 1 UMA REAÇÃO AO JACOBINISMO E À ILUSTRAÇÃO Discorreremos, neste primeiro capítulo, acerca do modo como Edmund Burke manifestou sua oposição ao triunfo dos jacobinos na França, às medidas revolucionárias que aqueles tomaram e às ideias iluministas que os moviam. Apontaremos, também, determinadas ocorrências da França oitocentista que confirmaram as advertências de Burke sobre as consequências da Revolução. A reação do deputado irlandês àquele evento histórico contrariou o que, segundo Espada (2010), se esperava dele após a Queda da Bastilha em 1789. Na Câmara dos Comuns, a expectativa era que Burke apoiasse a insurreição gaulesa, como fizera em relação à Revolução Americana, que já havia tornado os EUA um país independente em 1776. Entretanto, o parlamentar liberal manifestava-se com críticas veementes ao levante dos jacobinos, algo que seus compatriotas esperavam naturalmente dos tories (conservadores), mas não de um whig. A oposição de Burke não se explica apenas pelas notícias que chegavam até ele a respeito da escalada de violência que se desencadeava naquele processo revolucionário, mas também por sua experiência anterior com ideólogos cujas concepções motivaram o levante. Por volta de 1773, isto é, dezesseis anos antes da revolução, Burke teria viajado a Paris, onde teve contato com alguns iluministas franceses2. Na ocasião, Burke teria percebido neles não só uma hostilidade com relação à religião cristã, mas também um acentuado apego a princípios teóricos e direitos universais abstratos, como os de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, em nome dos quais se poderia até desprezar os direitos individuais, tendo em vista um pretenso “bem comum” e os supostos interesses da coletividade. Burke teria, então, já naquele ano, percebido que concepções perigosas começavam a insuflar um movimento revolucionário na França. A mentalidade revolucionária, eivada de um caráter dogmático, utopista, subversivo e, muitas vezes, violento, inquietava Burke. Certamente impressionavam-no as palavras de ordem e frases como: “Só haverá liberdade quando o último rei for enforcado com as vísceras do último padre”, disseminada pelos iluministas. Ou: “Antes faremos da 2 Conforme a Introdução de Conor Cruise O’Brien presente na 2ª edição brasileira das Reflexões sobre a Revolução em França lançada pela Editora Universidade de Brasília em 1997. 14 França um cemitério do que deixaremos de regenerá-la”, atribuída a Jean-Baptiste Carrier, o principal carrasco dos resistentes de Vandée. Contudo, Burke ponderava (1997, p. 72) que a França pré-revolucionária – apesar da crise financeira e dos problemas que vinham se acumulando, não só por este motivo, mas também por causa do comodismo do rei e dos excessivos privilégios da aristocracia – tinha uma história notável, um legado de bons valores e de ancestrais sábios e virtuosos que os franceses, em sua opinião, deveriam ter aprendido a respeitar. O deputado britânico lembra que a França não era uma nação recente em 1789, não era um “povo de ontem” que fora escravizado até as vésperas da Revolução (como o discurso jacobino procurava denotar), e que depois dela se tornara livre e renascido. Logo, não se poderia desculpar os crimes dos revolucionários com o pretexto de que seriam “abusos da liberdade” cometidos por um povo desacostumado a ser livre (ibidem). “A França comprou miséria com crime!”, denunciava Burke (1997, p. 73). E vociferava contra o encarceramento da família real, o confisco dos bens da Igreja, os exílios de dissidentes, as execuções dos guardas e servos da realeza (idem, p. 97), acusando a Revolução inclusive de corromper o comportamento do povo na medida em que estendia a toda a população as “funestas corrupções que geralmente eram taras apenas de ricos e poderosos” (idem, p. 73). Burke elencava, já dois anos antes da fase mais crítica do “terror”, algumas das primeiras consequências observáveis daquela sublevação: “leis não cumpridas e tribunais destituídos; a indústria aniquilada e o comércio se extinguindo; impostos não pagos e, no entanto, o povo empobrecido; a Igreja pilhada sem que o Estado se beneficie com isso; a anarquia civil e militar...” (idem, p. 74). Em tudo isso, Burke via a concretização das ideologias da dita “ilustração”, elaboradas por “pioneiros que demoliram e abaixaram tudo ao nível de seus pés” e que, não obstante instigassem o povo às armas, “não derramaram uma só gota de sangue para o país que arruinaram” (ibidem). Mostrando-se sempre cético com relação ao novo estado de coisas na França, o autor manifesta também, ainda no início do texto, seu desejo de que a França seja “animada de um espírito de liberdade racional”, bem como suas “dúvidas sobre vários pontos importantes de suas últimas operações.” (BURKE, 1997, p. 48). Em sua carta-resposta que acabou se tornando um tratado de filosofia política, Burke deixou claro que o seu parecer não pretendia representar nenhum partido inglês e que, se cometesse erros de 15 julgamento, estes seriam de sua “inteira responsabilidade” (ibidem). Com isso, procurou dar um caráter de análise apartidária às suas considerações, sem deixar de admitir que, além de seus desejos de liberdade e prosperidade para a França, motivavam-no suas preocupações a respeito das consequências da Revolução Francesa para o Reino Unido, uma vez que as ideias oriundas da nação gaulesa influenciavam a Grã-Bretanha e vários outros países (idem, p. 103). Na Inglaterra, duas entidades promotoras dos ideais da chamada Revolução Gloriosa, ocorrida em 1688, apoiavam o regime da Assembleia Nacional francesa e começaram a difundir princípios jacobinos na Grã-Bretanha. A reverberação dos discursos revolucionários em solo inglês inquietava Burke, que temia que a ideologia estrangeira afetasse a percepção do povo britânico a respeito de suas próprias instituições. Na missiva, o autor como que procura convencer seu interlocutor de que a aprovação de tais clubes britânicos à Revolução Francesa não representava o parecer do parlamento e tampouco a maioria dos ingleses. A Assembleia Nacional francesa, no entanto, recebera tais declarações favoráveis a ela como se aquelas atestassem a aprovação do Reino Unido ao novo estado de coisas na França, razão pela qual Burke queria mostrar que a importância atribuída àquelas moções de apoio redundava numa impostura de ambas as partes, isto é, uma “fraude” (BURKE, 1997, p. 50). 1.1 A presciência de Burke Há comentadores, como Cobban (1960, p. 11), que ressaltam a clarividência e a presciência de Burke, atribuindo-lhe certo “profetismo” que lhe permitiu antever, já em 1790, as consequências futuras do processo revolucionário gaulês. Aos abusos de poder que observara já então, Burke classificou ironicamente 3 como um “esboço” das barbáries que estavam por vir: Esboçou-se, sem dúvida,com audácia, uma série de regicídios e de sacrílegos atentados, mas foi apenas esboçada. Infelizmente, restou inacabado, no grande quadro da história, o massacre dos inocentes. Veremos mais tarde qual lápis endurecido de um grande mestre da escola dos direitos do homem o terminará. (BURKE, 1997, p. 98). 3 O recurso à ironia é frequente ao longo da obra Reflexões sobre a Revolução em França, especialmente quando o autor intenta criticar conceitos do pensamento iluminista, como “os direitos do homem”, a conduta revolucionária francesa ou seus adeptos britânicos. 16 A violência insólita do chamado Reino do Terror, que durou da queda dos girondinos, em 1792, à prisão de Robbespierre, em 1794, mais que confirmou as advertências de Burke. E, se a Revolução sustentou o princípio da “igualdade” em algo, certamente o foi na aniquilação de dissidentes, executando pessoas de origens e profissões muito distintas: de camponeses a aristocratas, de monjas a cientistas, como o próprio Antoine Lavoisier, pai da química moderna, cuja vida também teve seu desfecho na guilhotina. Nos anos do terror revolucionário, os crimes da ditadura de Robespierre marcaram a história da França: os afogamentos de Nantes (Noyades), o massacre de Vandée e as cerca de dezessete mil execuções na guilhotina, na qual decapitaram desde os opositores manifestos da Revolução, incluindo os nobres (entre eles, o próprio rei Luís XVI), até as inofensivas monjas carmelitas de Compiégne 4 . Otto Flake menciona também o morticínio desenfreado de Jean-Baptiste Carrier (FLAKE, 1937, p. 187), um revolucionário que ficou famoso por sua crueldade, sobretudo contra os clérigos, e pelos abusos sexuais que cometia contra algumas vítimas antes de executá-las. A Carrier é atribuída a invenção do método de execução denominado “casamento republicano”, o qual consistia em amarrar duas vítimas nuas, uma defronte a outra (e, às vezes, padres com freiras, para zombar de sua castidade), para depois atirá-las no rio Loire. De acordo com Messori (2004, p. 65), três mil padres teriam sido assassinados pelo governo revolucionário, muitas religiosas violadas e torturadas até a morte e dezenas de camponeses esquartejados, sobretudo na província de Vandée, onde os católicos haviam organizado uma resistência armada, bem como nas demais localidades que se opuseram ao totalitarismo revolucionário a fim de preservar suas tradições. Há historiadores que consideram o massacre de Vandée como o primeiro genocídio da história moderna (ibidem), uma antecipação jacobina e anticristã da “solução final da questão judaica” implementada pelo governo antissemita do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães no século XX. Em todas as regiões alcançadas pela cólera revolucionária jacobina, inclusive em terras italianas, podem ter havido massacres ou perseguições aos crentes (MESSORI, 2004, p. 66). 4 A memória do martírio delas foi perpetuada pela beatificação da Igreja, pelo romance histórico de Gertrude Von Le Fort (A Última ao Cadafalso) e pela peça de teatro de Georges Bernanos (Diálogo das Carmelitas), a partir da qual produziu-se também um filme com o mesmo título da peça. 17 Quanto aos resistentes antijacobinos, sabe-se que organizaram, em algumas regiões da França, milícias de reação ao totalitarismo ateu republicano semelhantes àquelas formadas no México da década de 19205. Tais reações tiveram um caráter amplamente religioso e popular, de maneira que a resistência era composta majoritariamente por pessoas do campesinato, i. e., milícias de plebeus movidos pelo desejo de conservar sua fé, sua liberdade, seus costumes tradicionais e sua cultura cristã-católica (MESSORI, 2004, p. 66). Os combatentes católicos traziam, em seus casacos, pedaços de pano costurados com a imagem devocional do Sacre Coeur de Jésus, assim como em seus estandartes.6 O lema dos resistentes de Vandée era Dieu et le Roy (“Deus e o Rei”), uma vez que desejavam também a restauração da monarquia, provavelmente por compreenderem esta forma de governo como uma maneira de assegurar a conservação da religião e de todo o legado cultural cristão da França. A resposta da Paris jacobina e revolucionária aos resistentes foi a destruição de suas casas e edifícios públicos, a devastação de suas colheitas e o extermínio de inocentes, inclusive mulheres e crianças. Terminada a guerra, o general jacobino Westermann escrevia triunfalmente a Paris, ao Comitê de Salvação Pública, aos adoradores da deusa Razão, da deusa Liberdade e da deusa Humanidade: “A Vendée já não existe, cidadãos republicanos! Foi morta pela nossa livre espada, com suas mulheres e crianças. Acabo de enterrar um povo inteiro nos pântanos e nos bosques de Savenay. Executando as ordens que me haveis dado, esmaguei as crianças sob os cascos dos cavalos e massacrei muitas mulheres, que assim não poderão parir mais bandidos. Não tenho que lamentar nenhum prisioneiro. Exterminei todos.” Da parte de Paris, responderam elogiando a diligência posta em “purificar completamente o solo da liberdade desta raça maldita”. (MESSORI, 2004, p. 68, tradução nossa) 7 . 5 Quando houve uma reação popular às perseguições anticatólicas do governo mexicano que levaram à chamada Guerra Cristera ou Cristiada. 6 Note-se que estes dados históricos apresentados por Messori contrariam tanto os historiadores marxistas que afirmam que a reação ao terror revolucionário partiu de uma Igreja e de uma nobreza ávidas por preservar privilégios do Antigo Regime, quanto a concepção marxiana segundo a qual os grandes empreendimentos históricos teriam sempre motivações socioeconômicas de fundo. 7 el general jacobino Westermann escribía triunfalmente a París, al Comité de Salud Pública, a los adoradores de la diosa Razón, la diosa Libertad y la diosa Humanidad: “¡La Vendée ya no existe, ciudadanos republicanos! Ha muerto bajo nuestra libre espada, con sus mujeres y niños. Acabo de enterrar a un pueblo entero en las ciénagas y los bosques de Savenay. Ejecutando las órdenes que me hábeis dado, he aplastado a los niños bajo los cascos de los caballos y masacrado a las mujeres, que así no parirán más bandoleros. No tengo que lamentar ni un prisionero. Los he exterminado a todos.” Desde París contestaron elogiando la diligencia puesta en “purgar completamente el suelo de la libertad de esta raza maldita”. 18 A propaganda iluminista contra a aristocracia e contra a Igreja não se limitava à realidade dos fatos, mas criava factoides para instigar os rebeldes contra seus adversários. De acordo com Carvalho (2007), os iluministas promoveram uma “vasta campanha de difamação destinada a cobrir a Igreja de infâmia por todos os meios inescrupulosos disponíveis”. Cita como exemplo o notável enciclopedista iluminista Diderot, que fabricou a história de uma jovem noviça (La Religieuse) mantida na clausura de um mosteiro contra a sua vontade. Com o intuito de gerar revolta contra uma Igreja que era capaz de oprimir e manter moças inocentes cativas nos porões de um convento, Diderot difundiu esta ficção como se fosse um relato verídico. Em carta a Jacob Grimm, o enciclopedista teria dito que “estourava de rir” ao fazer tantos acreditarem na veracidade daquele embuste e se escandalizarem com ele. Em decorrência de falácias como essa, os revolucionários jacobinos puderam revestir de sentimentos humanitários o seu furor homicida ao exterminar tantos religiosos e religiosas durante a Revolução. 8 No momento em que Burke escreve as Reflexões, as perseguições anticlericais violentas ainda não haviam começado (ou, pelo menos, o autor ainda não havia tomado conhecimento delas), mas o novo regime francês já havia feito mudanças estruturais eintervenções despóticas na Igreja. E o deputado irlandês vislumbrava, com clareza, qual era a finalidade daquelas medidas políticas: O poder atual da França, entretanto, tem como principal preocupação a pilhagem da Igreja. [...] Em resumo, senhor, parece-me que essa nova estrutura eclesiástica será temporária e visa à destruição completa da religião cristã sob todas as suas formas, na época em que os homens estiverem já preparados para este último golpe. (BURKE, 1997, p. 150-151). E o que prepararia os homens da França para as formas mais extremas de abuso de poder seria a corrupção cultural-ideológica da sociedade, a dissolução dos princípios mantenedores da estabilidade social. Uma sabotagem que se efetivaria substituindo, por exemplo, a antiga lealdade pelo crime preventivo: 8 Em 1966, o cineasta Jacques Rivette transformou o embuste de Diderot em um filme de sucesso. E em 2013 foi lançada uma nova versão de La Religieuse para o cinema, dirigida por Guillaume Nicloux. http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Suzanne_Simonin,_la_Religieuse_de_Diderot&action=edit&redlink=1 19 A usurpação que, a fim de subverter as antigas instituições, destruiu os velhos princípios, conservar-se-á no poder por meios semelhantes àqueles pelos quais o obteve. Quando estiver extinto da mente dos homens o velho espírito feudal da Lealdade 9 , que, ao liberar os reis do medo, liberou, ao mesmo tempo, os reis e seus súditos das precauções contra a tirania, os complôs e os assassinatos serão evitados pela morte preventiva e pela confiscação preventiva e pela aplicação daquela longa lista de máximas sinistras e sanguinárias que formam o código político do poder, o qual não repousa em sua própria honra, nem na honra daqueles que devem obedecê-lo. (BURKE, 1997, p. 102). 1.2 O realismo burkeano O autor das Reflexões percebia o potencial destrutivo das ideologias utópicas que, movidas por um “sentimento de humanidade abstrato”, prometem um “benefício futuro e incerto” a pessoas que só existem idealmente, em troca de submeter os cidadãos concretos do presente a verdadeiras “calamidades” (BURKE, 1997, p. 9). De acordo com Russel Kirk (2005, p. 3), Burke era um homem que preferia a particularidade, o concreto e o experimentável, mas que, diante do triunfo das ideias deletérias dos philosophes 10 iluministas, não teve outra escolha senão entrar na discussão dos princípios abstratos da política, ainda que lhe aborrecesse o domínio da abstração. Em geral, as obras políticas conservadoras surgem como reação à ascensão da mentalidade revolucionária e são produzidas com certa relutância, atesta Kirk (2013, p. 133). Burke tinha uma visão bastante modesta e, podemos dizer, realista, a respeito da capacidade da razão humana. Em sua perspectiva, a reflexão de pensadores contemporâneos, por mais inovadora, atraente e promissora que seja, vale muito menos que a razão legada pela tradição. A razão inovadora seria, portanto, menos digna de consideração do que a razão tradicional. Isso porque esta última é o produto da reflexão testada pelo tempo, confirmada por experiências que atravessaram os séculos e qualificada por homens prudentes de muitas gerações diferentes. Destarte, suprimir modelos institucionais e culturais que já foram testados e aprimorados por várias gerações a fim de substituí-los por incertos projetos brotados das “frágeis e falíveis 9 Valor que funcionava, quando respeitado, como sustentáculo da sociedade medieval, como base dos vínculos e responsabilidades mútuas entre as classes sociais feudais. 10 Palavra francesa para “filósofos”, usada geralmente para designar os autores iluministas que nem sempre eram propriamente dedicados à filosofia, mas escreviam sobre temas gerais de humanidades. 20 invenções da nossa razão” (BURKE, 1997, p. 69) não parecia uma opção viável para o espírito um tanto cético do autor. O filósofo irlandês considerava demasiadamente pretensiosos os intelectos isolados e modernos que aspiravam, a partir de suas especulações teóricas, conhecer perfeitamente e fazer valer os “direitos dos homens”, construindo uma nova ordem política baseada neles. Burke acreditava que os direitos humanos devem ser reconhecidos “não em virtude de princípios abstratos” (BURKE, 1997, p. 68), mas pela recepção de um patrimônio de valores civilizacionais derivados de uma Lei natural reconhecida e confirmada pela sabedoria e pela experiência dos antigos. Sua percepção da falibilidade da razão humana, uma marca característica do pensamento conservador, fez dele um implacável adversário daqueles que prometiam elaborar um paraíso na terra, de acordo com Kirk (2005, p. 4). Guillermo Margadant afiança um “rechaço total”, da parte de Burke, às fórmulas abstratas com pretensão de validade absoluta na política. Para ele, o filósofo quis “expulsar da política todo dogmatismo que tenda a uma aplicação mecânica, cega, de alguma teoria abstrata” (MARGADANT, 1994, p. 117, tradução nossa) 11 . Isso porque o pensador irlandês atentava para o fato de que os promissores modelos políticos que tais teóricos propagandeavam muitas vezes implicavam em altíssimos e inaceitáveis custos humanos, sociais e culturais, como se observou na própria Revolução Francesa. O valor dos princípios gerais e das instituições, para o autor, é circunstancial, não absoluto. As circunstâncias de cada tempo e situação devem ser avaliadas para que os princípios gerais que norteiam a ação política não sejam aplicados inadequadamente. Para Burke, até mesmo os melhores e mais nobres princípios não podem ser absolutizados desconsiderando as circunstâncias concretas e as consequências de sua aplicação em cada caso. Não se trata, evidentemente, de ver os princípios e as instituições como coisas sempre provisórias e relativas – Burke acreditava na solidez e na durabilidade de muitos deles –, mas sim de lhes dar a adequada e devida aplicação: 11 expulsar de la política todo dogmatismo que tienda a la aplicación mecánica, ciega, de alguna teoría abstracta 21 São as circunstâncias – circunstâncias que alguns julgam desprezíveis – que, na realidade, dão a todo princípio político sua cor própria e seu efeito particular. São as circunstâncias que fazem os sistemas políticos bons ou nocivos à humanidade. (BURKE, 1997, p. 50). Para legitimar a sua casuística – a sua apologia ao exame dos casos particulares –, Burke usa os exemplos do governo e da liberdade; uma instituição e um princípio que, não obstante sejam considerados geralmente como bens, nem sempre podem ser matéria de felicitações, uma vez que não são bons em toda e qualquer circunstância: Falando-se em abstrato, o governo, assim como a liberdade, é bom; no entanto, há dez anos, teria eu podido, em sã consciência, felicitar a França por possuir um governo (pois ela tinha um) sem ter, de antemão, inquirido o que era este governo e de que maneira funcionava? Posso hoje felicitar esta nação por sua liberdade? A liberdade é, sem dúvida, em princípio, um dos grandes bens da humanidade; no entanto, poderia eu seriamente felicitar um louco que fugiu de seu retiro protetor e da saudável obscuridade de sua cela, por poder gozar novamente da luz e da liberdade? Iria eu cumprimentar um assaltante ou um assassino que tenha fugido da prisão, por terem readquirido seus direitos naturais? (BURKE, 1997, p. 50-51). 1.3 Imprudências e vícios da atitude revolucionária O filósofo avalia que certas posturas que pautavam a ação dos revolucionários na França deveriam ser desterradas da política, a fim de evitar males que podem levar uma nação inteira ao colapso e prejudicar muitas gerações à frente. Algumas delas seriam: a ousadia aventureira, o racionalismo excessivamenteotimista e pretensioso, o progressismo imoderado e irrefletido, o lidar com os bens públicos de modo arriscado e imprudente, o desprezo pelos costumes e instituições históricas, a falta de circunspecção e de um juízo equilibrado. São posturas motivadas por ideologias inovadoras que os revolucionários aplicam ao que é comum, público, mas que provavelmente não aplicariam ao lidar com suas importâncias pessoais: “Aí eles deixam o todo à mercê de especulações não experimentadas; abandonam os mais caros interesses do público àquelas vagas teorias, às quais nenhum deles sonharia confiar o menor de seus interesses privados.” (BURKE, 2012, p. 365). A própria composição da Assembleia Nacional francesa incomodava o deputado irlandês, que lamenta a impetuosidade, a insensatez e a imponderação de seus membros. Burke vê o poder político deste órgão, configurado para perseguir as metas do regime 22 revolucionário, como um poder “semelhante ao princípio do mal, de subverter e destruir” (BURKE, 1997, p. 95), ou uma espécie de oficina de demolição e sabotagem institucional, elaborada para demolir tudo o que fosse resquício do antigo regime, e incapaz de “construir algo diferente das máquinas que fabricam maiores subversões e destruições” (ibidem). O filósofo acusa a mentalidade revolucionária de querer adaptar, à força, o mundo real a seus projetos ideológicos, como se houvesse, da parte daqueles, uma aversão à realidade ou como se quisessem aprisionar a realidade em seus conceitos, algo que, mesmo antes da Revolução, a propaganda iluminista já fazia na medida em que se empenhava para estigmatizar o sistema vigente, cobrindo-o de descrédito 12 . Burke reprova, deste modo, as posturas políticas que ignoram a realidade da “composição real de um Estado” e dos “princípios públicos” de uma sociedade no intuito de fazê-la encaixar-se, na marra, em esquemas teóricos extremistas (1997, p. 92). E critica também o projeto iluminista de uma Educação Cívica destituída de valores religiosos e “fundada em um conhecimento das necessidades [meramente] físicas dos homens” (BURKE, 2012, p. 342). Para o autor, semelhante educação não seria capaz de cultivar nos educandos nada mais do que um “egoísmo iluminado” (ibidem). Indignava-o, sobretudo, o desprezo dos revolucionários pelos valores morais e religiosos que plasmaram a história da França e a tornaram a nação que fora até a Queda da Bastilha. Para o parlamentar irlandês, espezinhar a história, a cultura e os princípios espirituais de um povo pacífico, em favor de um “progresso” violento que supostamente teria o potencial para dar à luz uma sociedade mais livre, fraterna e igualitária, é uma atitude demasiado pretensiosa, uma maquinação nociva engendrada por pessoas que consideram “um país como se fosse uma tábula rasa onde pudessem escrever aquilo que melhor lhes convém” (BURKE, 1997, p. 157). Tendo em vista aquelas arbitrariedades, apesar da aparência de “democracia pura” que revestia a autoridade então vigente na 12 Na historiografia brasileira, há registros dos anos anteriores e imediatamente posteriores à Proclamação da República (instaurada em 1889) que mostram a ocorrência, no Brasil, de campanhas semelhantes de depreciação do regime monárquico-parlamentarista. Recorde-se, ainda, que o Brasil teve também a sua própria Vandée: no episódio que ficou conhecido como Guerra de Canudos, a população monarquista do vilarejo baiano de Belo Monte foi massacrada pelo exército republicano. Analisando as razões ideológicas que levaram o governo da república a dar ao povo de Belo Monte esse trágico desfecho, compreende-se por que o historiador Boris Fausto classificou os republicanos brasileiros da época como “jacobinos” (FAUSTO, Boris. História do Brasil. 2. ed. São Paulo: Edusp, 1995. p. 257-258). 23 França, o filósofo sugeriu que ela se tornaria, em breve, “uma ignóbil e malévola oligarquia” (BURKE, 1997, p. 135). A excessiva concentração de poder num grupo político deliberativo que reúna atribuições legislativas, executivas e judiciárias, como parecia ser o caso da Assembleia Nacional, também foi criticada pelo autor. Embora se pretendesse uma instância representativa dos cidadãos franceses, guiada pelas “luzes” da ilustração filosófica e conduzida sob a égide dos “direitos do homem”, o poder quase ilimitado da Assembleia dava-lhe ocasião para os erros e abusos que abundavam. Por isso, o deputado irlandês, a respeito daquela poderosa entidade, lastimava: não tem nada que a possa frear: nem a lei fundamental, nem convenção estrita, nem costume respeitado. Ao invés de ser obrigada a respeitar uma Constituição estabelecida, ela tem o poder de elaborar uma que seja conforme seus objetivos. Não há nada, nem no céu nem na terra, que possa controlá-la. (BURKE, 1997, p. 78). Encontra-se também na missiva várias advertências a respeito ao risco de se conferir poder a homens que instrumentalizem o Estado para se servirem dele, tendo em vista não o bem comum, mas seus próprios “interesses particulares” (BURKE, 1997, p. 77). O filósofo atenta para as “negociatas lucrativas que acompanham sempre as revoluções no Estado, e sobretudo as grandes e violentas transferências de propriedade.” (ibidem). Burke não pensa, contudo, que todos os revolucionários são sempre movidos pela ambição e por interesses pecuniários. Mas certamente considerava que aqueles que acreditam, sincera e honestamente, nas promessas da revolução, iludem-se ao pretender criar um governo simples norteado por princípios simples, uma vez que “a natureza do homem é complicada”, e os “objetivos da sociedade”, a política, a gestão da res pública, revelam-se, na realidade, atividades “da maior complexidade”. (BURKE, 1997, p. 90). Por conseguinte, o filósofo recomenda que as funções públicas de maior importância sejam exercidas por pessoas “de espíritos mais assentados e de inteligências mais abrangentes.” (BURKE, 1997, p. 77). Ao passo que deplora as consequências práticas das ideias iluministas, Burke ufana-se por a Grã-Bretanha não ter sido, até então, influenciada significativamente por elas. Além disso, critica, naquelas, a pretensão de terem revelado grandes verdades e princípios até então inéditos: 24 Não fomos convertidos por Rousseau; não somos discípulos de Voltaire; Helvetius não teve sucesso entre nós. Nossos pregadores não são ateus; nem nossos legisladores loucos. Sabemos que nós não fizemos descoberta alguma; e julgamos que não há descobertas a serem feitas no campo da moral, nem tampouco no campo dos grandes princípios do governo e das ideias de liberdade; que eram compreendidos bem antes de nascermos e que continuarão a ser até muito depois que a terra tiver se acumulado sobre a sepultura de nossa presunção e o silêncio do túmulo tiver se imposto sobre a nossa impertinente loquacidade. (BURKE, 1997, p. 107). Como se percebe, Burke não via sequer sinais de reta intenção na prática dos revolucionários; ou, pelo menos, não na prática dos dirigentes deles. Pelo contrário, o pensador irlandês, em diversos trechos de suas Reflexões, parece convencido da má-fé dos jacobinos que lideravam as mudanças na França. Considera a Assembleia Nacional francesa como nada mais que “uma associação voluntária de homens que se aproveitam das circunstâncias para tomar o poder do Estado” (BURKE, 2012, p. 363). O autor ainda ajuíza que a recusa dos jacobinos a recorrer aos “métodos regulares” para sanar as desordens políticas comuns do antigo regime fora uma escolha derivada “não só de um defeito de compreensão, mas [...] de alguma malignidade de disposição.” (BURKE, 2012, p. 371). Embora não negasse que certas mudanças do novo regime traziam “melhorias superficiais” aos franceses (idem, 1997, p. 221), o filósofo chama mais a atenção para as violências e “erros fundamentais” daRevolução cujos dirigentes, em seu parecer, “tratam a parte mais humilde da comunidade com o maior desprezo, e, ao mesmo tempo, fingem querer transformá-la no receptáculo de todo o poder.” (idem, p. 86). 25 2 BASES ANTROPOLÓGICAS E ÉTICO-METAFÍSICAS Este segundo capítulo dedica-se a explorar as noções antropológicas e ético-metafísicas fundamentais que sustentam a visão política de Burke. Apresentaremos algumas das principais asserções filosóficas e crenças que serviram de esteio à cosmovisão burkeana, mormente à sua concepção de uma Ordem inerente à natureza do mundo e do homem. Natureza esta que, embora esteja radicada na essência de ambos, é passível de ser contrariada ou subvertida pelo último, no entendimento do autor. A concepção de uma Ordem cosmológica estável que pode e deve plasmar a artificialidade das sociedades humanas, inclusive o Estado, está, notavelmente, na base da filosofia política de Burke. Neste sentido é que o autor fala de uma “prodigiosa sabedoria que preside à misteriosa coesão das sociedades humanas” (BURKE, 1997, p. 69). E é patente a sua convicção de que as instituições legais do Reino Unido, naquele final do século XVIII, correspondiam satisfatoriamente – embora não perfeitamente – àquela ordem natural e àquelas necessidades humanas mais legítimas e caras às famílias britânicas. Dessa dupla correspondência é que procedia, no entendimento do autor, a solidez do seu sistema político, que era tradicional e monárquico sem ser absolutista, pois preservava a coroa, a nobreza e, ao mesmo tempo, as liberdades comuns e os direitos caros ao povo, graças ao seu caráter constitucional e parlamentarista bicameral. Em decorrência daquela dupla correspondência, Burke acreditava que o núcleo do sistema do Reino Unido era capaz de se perpetuar “em meio às decadências, quedas, renovações e progressos” (BURKE, 1997, p. 69). Entretanto, tal confiança não significava que Burke via-o como algo acabado e completo, nunca necessitado de melhorias e reformas. Pelo contrário, a mesma possibilidade de ser aprimorado, sem que perdesse o que nele permanecia proveitoso, o tornava mais adequado àquela Natureza e àquelas necessidades e afetos caros às famílias britânicas: Assim, pelo emprego de métodos da natureza na conduta do Estado, aquilo que melhorarmos não é nunca completamente novo, e aquilo que conservarmos não é nunca completamente velho. Permanecendo ligados a nossos ancestrais, não é pela superstição da antiguidade que nos deixamos conduzir; mas pelo sentimento da analogia filosófica. Adotando este princípio da herança, demos à nossa construção política a imagem de um parentesco pelo sangue; ligamos a nossa Constituição a nossos mais caros vínculos domésticos, dando a nossas leis fundamentais um lugar no seio de nossas afeições de família. (BURKE, 1997, p. 69). 26 2.1 Visão antropológica restrita Dentre as concepções que sustentam a lógica subjacente ao edifício teórico político de Burke, sobressai uma “visão restrita” acerca da natureza do ser humano, identificada nos textos do filósofo por comentadores como Thomas Sowell (2011). Trata-se de uma visão restrita não no sentido de “limitada” ou de “particularizada”, mas no sentido de “realista”, de “desiludida”, uma visão antropológica livre de ilusões e otimismos pouco razoáveis em relação à nossa espécie. Esta visão antropológica restrita desconfia das capacidades da razão humana e espera a priori que haja vícios na conduta dos cidadãos e de seus representantes políticos, independentemente da configuração de Estado ou de sociedade que se queira adotar. Nessa perspectiva se inserem as considerações do filósofo sobre as “frágeis e falíveis invenções da nossa razão” (BURKE, 1997, p. 69) bem como sua noção de uma “enfermidade geral da natureza humana” (BURKE, 1877c, p. 437, tradução nossa) 13 , uma enfermidade entendida não apenas como fragilidade biológica, mas também como deficiência ética e epistemológica. A desilusão antropológica inerente a esta visão conservadora se contrapõe, por exemplo, ao pensamento de Jean Jacques Rousseau, para quem a natureza humana, sendo essencialmente virtuosa e irrestrita, fora corrompida pela sociedade. Na lógica da antropologia irrestrita, a natureza humana é dotada de uma plasticidade e de uma perfectibilidade naturais. Logo, sendo ela plástica, o Estado revolucionário poderia remodelá-la para que ela tornasse a ser tão virtuosa quanto era no seu estado original. E, sendo ela perfectível, o Estado poderia eliminar os elementos da sociedade que a corrompem, dirigir o seu aperfeiçoamento e, assim, chegar a uma solução final para os problemas e injustiças sociais. Portanto, procedimentos de engenharia social e reconfiguração forçada da mentalidade das massas poderiam, nessa ótica, tornar a sociedade mais justa e virtuosa. E parece ter sido isso o que o regime instaurado após a Revolução Francesa procurou fazer ao tentar suprimir os traços da influência aristocrática e eclesiástica na cultura comum, banindo não só as tradições da nobreza e as festas religiosas, mas até mesmo o calendário gregoriano e os dias da semana. No horizonte da visão irrestrita combinada com a ideologia revolucionária, pode ser acatado como vantajoso um projeto político que prescreva grandes sacrifícios iniciais 13 general infirmity of human nature 27 em prol de benesses futuras. Nessa perspectiva, podem parecer aceitáveis até mesmo os sacrifícios mais violentos, como eliminar os adversários, calar os dissidentes e destruir algumas instituições apreciadas pelo povo. Esta visão irrestrita da humanidade, no que toca à plasticidade e à perfectibilidade que ela atribui ao homem, favoreceu o caráter utópico e totalitário da Revolução Francesa, de acordo com Sowell (2011, p. 40). Uma antropologia irrestrita, além de dar ocasião ao surgimento de ideologias utopistas, facilitaria a legitimação de líderes políticos com pretensões absolutas que são apresentados como a encarnação das “virtudes naturais” do homem. Na contramão da mentalidade revolucionária irrestrita, a filosofia política conservadora advoga que a busca quimérica por um estado de perfeição terrena esbarra não só nas imperfeições intelectuais dos homens, que os tornam incapazes de alcançar aquele estado, mas também nos conflitos de interesses que frequentemente se dão nos relacionamentos humanos. Conflitos existentes não apenas entre as diferentes classes, mas inclusive entre famílias de uma mesma classe e, eventualmente, entre indivíduos de uma mesma família. Nesta compreensão, reconhecer a imperfeição intelectual humana, bem como nossa falibilidade natural e a pluralidade de interesses dos diversos tipos de cidadãos, requer que o estadista adote uma conduta humilde, prudente, conciliadora e de rechaço às tentações utópicas e totalizantes. Burke observava que as deficiências presentes nas instituições humanas não são outra coisa senão o reflexo amplificado das deficiências presentes na própria natureza de cada homem. O filósofo dublinense acreditava que o bom estadista deve ter a imperfeição humana como premissa e levá-la em conta na gestão dos bens públicos. Tomando os homens por criaturas irremediavelmente restritas, naturalmente marcadas por impulsos egoístas e às vezes perigosos 14 , Burke pensava que o Estado deve lidar com os interesses conflitantes adotando estratagemas sociais e oferecendo contrapartidas, em vez de pretender suprimi-los à força (cf. BURKE 15 apud SOWELL, 2011, p. 29). Importa, ainda, que, visando à preservação de bens fundamentais, como a liberdade, o Estado tenha certo grau de tolerância para com os defeitos humanos, mesmo quando 14 Não se trata, porém, de uma visão similar à do estado de natureza hobbesiano, no qual,sem a força coercitiva do Estado, imperam o caos e a guerra de todos contra todos. Não. Neste ponto, Burke se aproxima mais do conceito cristão de concupiscência, que denota uma inclinação do homem para o egoísmo, adquirida no pecado original, mas que pode ser refreada pela vontade individual aliada à Graça. 15 The Correspondance of Edmund Burke. Chicago, University of Chicago Press, 1967, v. VI, p. 392 28 estes geram certos prejuízos sociais. Neste sentido, dizia que quem “tem de lidar com homens” (BURKE, 2012, p. 336) deve aprender a suportar as deficiências humanas até que elas ultrapassem os limites de uma justa aceitação, ou seja, deve “tolerar fraquezas enquanto elas não degeneram em crimes.” (ibidem). Na opinião do autor, um estadista prudente deve saber oferecer compensações viáveis aos cidadãos insatisfeitos, em vez de se aventurar a perseguir grandes projetos arriscados que exigem, muitas vezes, altos custos e acarretam males piores do que aqueles que se pretendia combater. Fatalmente, as contrapartidas e concessões feitas para aplacar insatisfações circunstanciais podem, por sua vez, gerar novos problemas e exigir algumas renúncias. 16 Por isso, o filósofo avalia que exercer a política implica em “contrabalancear” bens e males e em “computar” as “quantidades morais” em jogo (BURKE, 1997, p. 91). Desafios novos surgem sempre e o estadista deve seguir procurando conciliar interesses, agradar as diversas partes dentro do que for possível, e melhorar a sociedade sem afoitezas e sem a pretensão de resolver todos os problemas de uma só vez, de modo que ela se aprimore organicamente, como um sistema social que nunca será perfeito para todos, mas que pode ser satisfatoriamente funcional. Os males latentes nas invencionices mais promissoras são cuidados à medida que vão surgindo. Uma vantagem é tão pouco quanto possível sacrificada a uma outra.Compensamos, reconciliamos, equilibramos. Somos capacitados a unir em um todo consistente as várias anomalias e princípios conflitantes que se encontram nas mentes e negócios dos homens. (BURKE, 2012, p. 370). 2.2 Heranças greco-cristãs As influências conceituais mais marcantes que formam a base ético-metafísica da obra política de Burke certamente são clássicas, principalmente gregas, e cristãs, com notas escolásticas. Os laços da cosmovisão burkeana com essas fontes são claros. Russel Kirk recorda que Burke, em resposta aos intelectuais que então ganhavam destaque na Europa, como Rousseau e Bentham, sustentava que “os primeiros princípios na esfera 16 O gozo do sossego público, por exemplo, exige certas renúncias no que tange à liberdade individual, enquanto que o gozo das liberdades civis exige também, por sua vez, renúncias de outra ordem. 29 moral vem a nós através da revelação e da intuição e não das caprichosas especulações de filósofos sonhadores.” (KIRK, 2005, p. 3-4, tradução nossa) 17 .18 Por “intuição” 19 , Burke compreendia a sensibilidade – não apenas no sentido sensorial, mas também no de sensibilidade psicológica – que permite a captação do real pelo intelecto. E por “revelação” Burke compreendia justamente aquele conjunto de crenças e preceitos morais legados ao mundo ocidental pelo cristianismo. Embora acreditasse que a política é mais uma ciência experimental do que um receituário de fórmulas a priori a serem aplicadas pelo Estado (cf. BURKE, 2012, p. 223), o filósofo entendia que a realização teleológica das coisas que são da ordem temporal e humana depende da sua conformação com os princípios que emanam da Ordem eterna e divina. Assim como o velho Platão e outros filósofos menos velhos do que ele, Burke concebe uma ordem inteligível da qual a ordem sociopolítica deve ser sufragânea. Tal ideia se expressa, por exemplo, na proposição de que uma sociedade pode aprimorar seu Estado e suas instituições públicas na medida em que mantém seus vínculos com o “grande contrato primitivo da sociedade eterna” (BURKE, 1997, p. 116), contrato este que “liga o visível ao invisível” (ibidem) e encerra os princípios supremos que regem a ordem da criação. Em Burke, o exercício legítimo do poder político tem que estar de acordo com “aquela lei eterna e imutável na qual vontade e razão são a mesma coisa” (BURKE, 2012, p. 269), o que nos sugere já uma influência tomista, visto que, em Tomás de Aquino, a vontade de Deus coincide necessariamente com a Sua inteligência 20 . Joseph Pappin (1993, p. 53) também identifica marcas da tradição aristotélico-tomista em Burke e o insere na linhagem dos realistas clássicos, embora admita que o pragmatismo burkeano permite ao leitor encontrar nele também abordagens que se aproximam do utilitarismo. Não obstante sua aversão pela especulação teórica absolutizadora de princípios abstratos e sua preferência pela evidência, pela circunstância e pela experiência, Burke esteve longe de ser um anti-metafísico, sugere Pappin (1993, p. 94). O filósofo irlandês apenas fazia a devida distinção entre as 17 first principles in the moral sphere come to us through revelation and intuition, not the fanciful speculations of dreamy philosophers. 19 intuitive glance (Burke, 1877a, p. 456) 20 TOMÁS DE AQUINO. Seleção de Textos de São Tomás de Aquino e Dante. Col. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1988. Cap. 33. 30 abstrações artificiais produzidas pela imaginação humana e aquelas que, no seu entendimento, são as verdadeiras fundações diretivas universais, constituídas na ordem da criação para reger o universo e orientar a conduta do homem e as sociedades humanas. Em outras palavras, Burke distinguia uma vã teoria baseada em abstrações puramente convencionais do legítimo conhecimento da razão suprassensível que rege o mundo (1997, p. 116). Em Burke, a filosofia política não é uma atividade puramente especulativa, mas diz respeito ao exercício da sabedoria prática. Em Aristóteles (Ética a Nicômaco, VI, 8), a sabedoria prática é a genitora de toda reflexão ética e implica diretamente nas relações sociais e políticas. Para o filósofo grego, a sabedoria prática e a ciência política, embora essencialmente distintas por se dirigirem a objetos diferentes (a primeira, ao indivíduo, e a segunda, à polis), aparecem como a mesma disposição mental; ambas aparecem como razão aplicada ao modo de orientar a ação humana para atingir o bem, ou a eudaimonia (felicidade), de onde se apreende a proximidade entre a compreensão burkeana e a aristotélica no que tange à reflexão política. Em Burke, Deus é o “Autor e Protetor da sociedade civil” (BURKE, 1997, p. 117), pois Ele não apenas fornece as diretrizes para a reta ordenação da vida e das sociedades humanas, mas, ao criar o homem com o potencial para organizar-se racionalmente em sociedade, cria por extensão também o Estado. Burke reconhece que o Estado e a sociedade são convenções humanas, mas também admite que o homem e sua razão são apenas a causa imediata dessas convenções, sendo a Causa do homem a causa primeira das mesmas. Logo, toda a autoridade política humana, inclusive a do cidadão, vem de Deus; não por uma especial determinação divina, mas pelo simples fato de Deus ter criado o homem como um animal político por natureza. Burke sustenta, assim, a ideia de uma politicidade natural. E a noção burkeana da origem divina da política pode ter sido inspirada pela escolástica tardia, segundo Canavan (2012, p. 26), uma vez que Francisco Suárez 21 a apresentou de forma elaborada nos primórdios da modernidade. A posição de Burke sobre a origem divina da autoridade política humana, contudo, não deve ser confundida com a teoria da origem divina do poder real de Jacques Bossuet 22 , 21 Filósofo escolástico espanhol do século XVI.22 Teólogo francês nascido no século XVII. 31 pois difere fundamentalmente dela. Enquanto em Bossuet apregoa-se a eleição divina do soberano como uma investidura espiritual especial, que dá margem inclusive para a defesa do absolutismo monárquico, em Burke apenas é reafirmada a proposição de que Deus criou o ser humano como um animal político (zoon politikón, definia Aristóteles) e lhe delegou poder sobre a ordem temporal, fazendo-o capaz para o governo da criação terrena. Note-se ainda que, para Burke, o Criador não abandonou os homens à própria sorte após ter concluído a criação, mas continua lhes concedendo os “dons da Providência” (1997, p. 69), isto é, continua a intervir favoravelmente nos assuntos humanos quando estes o consentem. Há em Burke também uma teleologia de inspiração aristotélica, como identificou Canavan (2012, p. 29) e Pappin (1993, p. 94). Para o filósofo dublinense, o ser humano tem em si o potencial para o seu próprio aperfeiçoamento, conforme a natureza que lhe foi dada pelo Criador. E quanto mais o homem cultiva a sua racionalidade e permite que ela predomine em todos os aspectos da vida, inclusive sociopolíticos, mais ele permanece enraizado na natureza, mais ele se aprimora e mais se conserva em correspondência com a sua Causa primeira, cujo bem é refletido nas criaturas naturalmente boas. O próprio Estado, enquanto instituição produzida pela razão humana e propícia ao aprimoramento da sociedade e dos cidadãos, deve nortear-se pela ordem arquetípica constituída desde sempre por aquela sua Causa original. Disto resulta que, em Burke, não é possível pensar um Estado irreligioso ou regulado por princípios meramente seculares, uma vez que Deus é o governante e o legislador supremo pelo qual devem pautar-se as sociedades humanas. Embora preveja a possibilidade de um aperfeiçoamento não linear do ser humano e das instituições humanas, a teleologia adotada por Burke se distingue do perfectibilismo antropológico iluminista por diversas razões. Uma delas é que, em Burke, o homem não é naturalmente virtuoso em seu estado primitivo, mas é naturalmente limitado, defectível e, ao mesmo tempo, possui o potencial natural para o seu aperfeiçoamento. Este potencial existe não só por causa de fatores intrínsecos, como as faculdades do intelecto, mas também graças a fatores extrínsecos, como o estímulo da família e da comunidade e a assistência do Criador. Ademais, na compreensão iluminista e irrestrita, o aperfeiçoamento humano é possível graças à plasticidade do homem e deve ser conduzido por dirigentes esclarecidos, por um Estado revolucionário que dirija os 32 cidadãos no sentido de fazer cada homem voltar a ser tão justo, livre e fraterno quanto era o homem primitivo, levando-o a cumprir o seu papel para que todo o corpo social se aperfeiçoe. Por outro lado, em Burke, os homens e o tecido social que eles constituem não podem ser aperfeiçoados pela direção de um Estado totalizante governado por uma elite de intelectuais. O aperfeiçoamento é, na reflexão do pensador irlandês, fruto de um processo espontâneo de desenvolvimento moral e espiritual da sociedade, que só é capaz de evoluir neste sentido se mantiver os vínculos com a sua Origem divina, se valorizar as experiências dos antepassados, aprendendo com seus erros e acertos, e se conservar as instituições e os costumes benéficos recebidos da tradição; reformando-os para melhorá-los, quando necessário, sem cismar em destruí-los. Ou seja, para Burke o aperfeiçoamento humano é naturalmente possível, mas não é dirigível, não pode ser conduzido artificialmente por dirigentes esclarecidos e estruturas governamentais. A influência aristotélica no pensamento burkeano é perceptível também no reconhecimento do papel dos hábitos na formação da conduta moral. Para Aristóteles, “a virtude ética nasce do hábito” 23 . Na concepção ética de Burke, o hábito também desempenha um papel importante, como podemos conferir na seguinte passagem das Reflexões, que também manifesta a rejeição do autor pela proposta revolucionária supracitada de moldar artificialmente os homens para aperfeiçoá-los: “não há nome, poder, função, instituição artificial que possa fazer homens, que compõem um sistema de autoridade, diferentes daquilo que Deus, a natureza, a educação e seus hábitos de vida lhe fizeram.” (BURKE, 1997, p. 75) Na dimensão ética, haveria, ainda, certa similaridade entre o arquétipo político platônico e o modelo de estadista burkeano, sendo que tanto para Platão quanto para Burke, a prudência deve ser a maior das virtudes do estadista (KIRK, 2013, p. 107). Vale lembrar, entretanto, que o modelo de Estado idealizado por Platão distancia-se da política burkeana, entre outras coisas, pelo caráter artificial e utópico do sistema que o filósofo grego propôs. Na constelação das virtudes aristotélicas, figura também a magnanimidade, associada à grandeza de espírito e ao cultivo das virtudes em alto grau. O filósofo grego sugere ser 23 Ética a Nicômaco, II, 1, 1103a 1518. 33 ela “uma espécie de coroa das virtudes, porquanto as torna maiores e não é encontrada sem elas.” 24 Em Burke, essa virtude também aparece de forma destacada no contexto de um de seus discursos políticos e é elencada entre as virtudes que devem cultivadas pelo estadista: “A magnanimidade na política é, não raramente, a verdadeira sabedoria” (BURKE, 1877b, p. 181, tradução nossa) 25 . Burke ainda cita expressamente Aristóteles (1997, p. 135) para expressar suas reservas em relação ao regime democrático; assunto do qual trataremos no capítulo terceiro. 2.3 O jusnaturalismo burkeano Apesar de algumas colocações de Burke aparentemente sugerirem que nada há de superior, no campo do direito, à tradição jurídica constitucional britânica, o filósofo certamente admite a existência de um direito natural anterior e superior a ela. A Lei da natureza, para o autor, se manifesta e se implanta nas sociedades humanas por meio da sabedoria prática das gerações, quando esta sabedoria se atualiza como o “efeito feliz de uma conduta que imitou a natureza” (BURKE, 1997, p. 69), em vez de ser mero artifício das “frágeis e falíveis invenções da nossa razão” (ibidem). Burke contrasta os direitos herdados da tradição não com a Lei natural, mas sim com os “direitos dos homens” (idem, p. 68), isto é, com os supostos direitos originais que os homens tinham em seu estado primitivo, no sentido iluminista. Por isso, o filósofo defende a tradição política na qual está situado; porque a compreende como penhor de direitos, leis e valores sagrados fundados na natureza. Russel Kirk (2005, p. 6) confirma que Burke rejeita a doutrina iluminista sobre os direitos naturais do homem. O comentador recorda que as proposições de jusnaturalistas célebres como John Locke, David Hume, Jean-Jacques Rousseau e Jeremy Bentham, por exemplo, diferem significativamente do jusnaturalismo burkeano. Kirk afirma também que Burke foi buscar numa tradição mais antiga a base para o seu jusnaturalismo: na concepção de ius naturale (lei natural) do filósofo romano Marco Túlio Cícero, bem como na filosofia cristã e na commom law inglesa, que surgiu no século XII, sob o reinado de Henrique II, como um sistema jurídico-legal unificado. A 24 Ética a Nicômaco, IV, 3 25 Magnanimity in politics is not seldom the truest wisdom 34 noção de direitos humanos, em Burke, não tem a ver apenas com o que é devido ao próprio homem, mas também, e em primeiro lugar, com o que é devido ao seu Criador. Burke compreendia a Lei natural, da qual dimanam os legítimos direitos, como a conformação do costume humano à intenção divina. Consequentemente, o deputado whig atribuía os direitos e as liberdades dos quais os britânicos gozavam à assimilaçãoda Lei natural 26 por seus antepassados e à influência benéfica da Revelação divina sobre aquelas gerações precedentes, bem como à experiência acumulada e ao legado cultural e institucional deixado por elas. É a estes direitos e valores herdados, sobretudo, que Burke se refere quando escreve sobre o “legado que nós recebemos de nossos antepassados e que devemos transmitir à nossa posteridade” (BURKE, 1997, p. 69). O filósofo faz questão de defender que o legado de direitos comuns que beneficia os britânicos sustenta-se “não em virtude de princípios abstratos” (idem, p. 68), mas porque segue “funcionando segundo o padrão da natureza” (BURKE, 2012, p. 186). Burke comunga da proposição de Cícero de que há uma Lei de procedência divina, da qual deriva também o Direito. Esta Lei, sendo eterna e absolutamente justa em suas determinações, vincula-se à própria “razão da Natureza” (CÍCERO, 1967, p. 42), alusão também encontrada em Burke. Para o filósofo romano, contudo, a Razão natural que concebe o Direito e a Lei suprema se permite acessar pelas “inteligências comuns” dos homens (idem, p. 50). Mas, para Burke, os direitos naturais não nos são inteligíveis em sua forma pura e integral; daí a necessidade que temos do auxílio da Revelação e da experiência das gerações. Nessa perspectiva, as sociedades humanas cujas leis mais se conformam àqueles mandamentos revelados por Deus seriam as que mais respeitam a natureza e a finalidade ontológica do gênero humano, uma vez que o Criador onisciente sabe o que é melhor e mais adequado à natureza de sua criatura. Por si só, o homem não poderia saber o que é melhor para si e mais adequado à sua natureza, uma vez que, como vimos, sua capacidade de conhecimento é restrita, limitada e falível. Historicamente, as tentativas das sociedades humanas de conformação ao mandamento divino teriam gerado um legado de experiências cristalizado na forma das instituições, direitos 26 O conceito de Lei Natural, em Burke, deriva tanto do filósofo romano Cícero, quanto da filosofia cristã de inspiração escolástica e paulina (Carta de São Paulo aos Romanos, capítulo II, versículos 14 e 15). 35 reconhecidos e tradições. E estes são o fruto da “razão acumulada dos séculos, [que afirma valores e promulga leis] combinando os princípios da justiça original com a infinita variedade de interesses humanos” (BURKE, 1997, p. 115). Burke considera que os direitos positivos recebidos de uma longa e profícua tradição – enraizada na Lei Natural e iluminada pela Revelação divina – são naturalmente mais proveitosos aos cidadãos do que supostos direitos originais reclamados por racionalistas ilustrados de uma única geração. Isso porque os “direitos originais do homem”, elaborados a partir de princípios abstratos e de uma crença num idílico estado primitivo da humanidade, não foram experimentados e testados, enquanto os direitos positivos tiveram que ser amadurecidos, nuançados e equilibrados entre as reivindicações conflitantes até chegarem à sua forma última. Assim, os direitos baseados na revelação do Criador e na experiência (sabedoria prática) das gerações precedentes seriam melhores, ainda, porque os direitos naturais da humanidade que os iluministas quiseram elencar teoricamente sequer nos são acessíveis em sua forma pura: Esses direitos metafísicos penetrando na vida comum, como raios de luz penetram por um meio denso, sofrem, pelas leis da natureza, uma refração de sua linha reta. De fato, na rudimentar e complicada massa de paixões e preocupações humanas, os direitos primitivos do homem sofrem uma tal variedade de refrações e reflexos, que se torna absurdo falar deles como se continuassem na simplicidade de sua direção original. (BURKE, 2012, p. 224). É possível, ainda, que a compreensão jusnaturalista de Burke seja um eco da noção de Lei natural defendida por Tomás de Aquino. Para o filósofo escolástico, toda lei estabelecida pelo homem só tem natureza de lei na medida em que deriva da lei da natureza, de modo que, se a lei positiva discorda da lei natural, deixa de ser lei e torna- se uma corrupção da verdadeira lei. 27 Certamente, a convicção de Burke nesta “lei eterna e imutável” (1997, p. 115), ou na “natureza [que] nos ensina a reverenciarmos os indivíduos” (idem, p. 70), poderia ter motivado, por exemplo, o engajamento do filósofo na campanha contra a escravidão (cf. SOWELL, 2011, p. 221), ou nas denúncias contra a abusiva taxação dos súditos da coroa inglesa que viviam nas colônias. 27 TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I-II, q. 95, a.2. 36 3 A PRUDÊNCIA COMO VIRTUDE NORTEADORA DA POLÍTICA Como já sinalizamos anteriormente, Burke acreditava que um estadista, para lidar com a complexa arte da política, deve cultivar virtudes como a humildade, a magnanimidade e a prudência. Tais são virtudes necessárias ao homem de Estado porque lidar com a política implica em lidar com uma multiplicidade de interesses sociais conflitantes e com os defeitos sociais provenientes das falhas próprias do que é humano. Nessa dinâmica, a prudência tem um papel de destaque enquanto virtude política. Ela permeia todas as proposições burkeanas que dizem respeito à gestão da coisa pública. A prudência é a base da práxis conservadora. Burke a considera “a primeira de todas as virtudes” (1877a, p. 314, tradução nossa) 28 . É a judiciosa prudência que recomenda “seguir a natureza ao invés de nossas especulações” (BURKE, 1997, p. 70). Nos tópicos seguintes, iremos apresentar algumas das principais proposições do autor nas quais a prudência se sobressai enquanto virtude norteadora do agir político. 3.1 A experiência dos antepassados Se a política é uma ciência prático-experimental, que não se faz por meio de prescrições a priori (BURKE, 2012, p. 223), logo é sensato o estadista que dá mais crédito aos dados resultantes das experiências políticas já realizadas do que às suas próprias impressões pessoais. Burke avalia que, na ciência política, a experiência de longo prazo é a que fornece os resultados mais adequados para um acurado discernimento. E a experiência de vida de uma só geração não é bastante; é preciso considerar as experiências dos que viveram antes de nós e que, não raramente, enfrentaram problemas semelhantes aos nossos. O autor acredita que nada se perde por admitir que há uma sabedoria acumulada subjacente à tradição cultural, moral e institucional que uma geração recebe das anteriores. Se fossem desprezadas totalmente as salutares tradições que compõem este vínculo intergeracional, “os homens valeriam pouco mais que moscas de verão” (BURKE, 1997, p. 115), pois os frutos da experiência humana seriam tão fugazes quanto a vida de cada geração sobre a terra. A civilização seria impossível se cada nova geração 28 the first of all virtues 37 desdenhasse absolutamente de tudo o que a geração anterior logrou construir e conhecer. Por isso, o autor deplora a insensatez daqueles que pretendem “tudo refazer a partir do nada” (idem, p. 71). O filósofo irlandês ainda relaciona o respeito aos antepassados à responsabilidade que se deve ter para com as gerações futuras. Valorizar ou desprezar o passado implica em consequências para o futuro; como se escutar os mortos fosse algo crucial para garantir a segurança daqueles que ainda estão por nascer. Em uma de suas acusações aos jacobinos, Burke censura-lhes a soberba, afirmando que eles se arvoram em “mestres absolutos” e agem “sem se importar com o que tenham recebido de seus ancestrais ou com o que é devido à posteridade” (1997, p. 115), de maneira que se arriscam a “não deixar àqueles que virão depois deles nada além de ruína no lugar de uma habitação” (ibidem). Por isso, uma sociedade prudente,
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