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A análise do trabalho, em ergonomia e psicologia, percorreu o século XX e deu sua contribuição às evoluções do mundo profissional. Este livro, que é parte dessa tradição, contribui para renová-la. As mulheres, os homens e seu trabalho passam por mudanças. As análises psicológicas aqui reunidas propõem uma leitura dessas metamorfoses, dos métodos de ação necessários para operar em seu âmbito e dos con- ceitos capazes de dar conta delas. Hoje é necessário en- frentar um duplo problema: o das transformações do pró- prio trabalho na sociedade e na vida pessoal, por um la- do, e o do conjunto das contribuições da psicologia em tennos de análise do trabalho, por outro. Este livro não tem a pretensão de esgotar essas duas questões. Procura tão-somente não esquecer que elas constituem o pano de fundo de suas pruposições. O objetivo propriamente dito da obra é tentar compreender em que condições teóricas e metodológicas é possível, hoje, a análise psicológica do trabalho. www.vozes.com.br 1110 vida polo bom livro 1 11dc1 @voz s.com.br ISBN 978-85-326-3333-0 ,li~ Jllllllllllll llllllll~II Função Psicológica do BALHO YvesClot 2ª Edição 145014 11111 111111 1 /li EDITORA y \/í'l7i:, Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Clot, Yves ' A função psicológica do trabalho / Yves Clot ; tradução de Adail Sobral. 2. ed. -Petrópolis, RJ : Vozes, 2007. 00-2877 ISBN 978-85-326--3333-0 Título original: La fonction psychologique du travai!. Bibüografia. l. Trabalho -Aspectos psicológicos I. Título. Índices para catálogo sistemático: 1. Psicologia do trabalho: Psicologia aplicada 158.7 CDD-158.7 Yves Clot A função psicológica do trabalho Tradução de Adail Sobral "'EDITORA Y VOZES Potrópoll © Presses Universitaires de France, 1999 Título original francês: Lafonction psychologique du travai[ Direitos de publicação em língua portuguesa: © 2006, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100 25689-900 Petrópolis, RJ Internet: http://www.vozes.com.br Todos os direitos reservados . Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de ✓ dados sem permissão escrita da Editora. Editoração: Fernanda Rezende Machado Projeto gráfico: Anthares Composição Capa: Juliana Teresa Hannickel ISBN 978-85-326-3333-0 ( edição brasileira) ISBN 2-1 _3-050343-8 (edição francesa) Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda. Prefácio à terceira edição, 7 Introdução, 11 Parte I - Uma psicologia do trabalho?, 21 1. Uma psicologia cognitiva do trabalho?, 23 1. Funcionamento e desenvolvimento cognitivos, 23 2. Emoções, inibições , intenções, 32 3. Abordagem da atividade do ponto de vista do gênero , 35 4. Os gêneros: de Bakhtin a Bruner, 41 5 . Para agir no mundo e sobre si, 45 6. Estilos e gêneros: -primeiras definições, 49 2. A função psicológica do trabalho , 53 1. O lugar do trabalho no ãmbito da psicologia do trabalho, 53 2. Uma terceira via: a atividade policêntrica, 60 3. Trabalhar: "sair de si", 68 4. Uma psicologia histórico-cultural, 75 5. A barreira dos gêneros, 83 6. Um trabalho para si: linguagem e técnica, 86 Pt1rt ll -A atividade dirigida, 91 . A unidade de análise, 93 1. As três "direções" da atividade de trabalho, 93 2. A unidade de aná lise: uma tríade viva, 98 . A a , o i luada?, i 04· Sumário A FUNÇÃO PSICOLÓGICA DO T RABALHO 4. Um ponto de vista: o desenvolvimento, 111 5. A atividade possível e impossível, 115 4. Métodos, 125 1. Clínica da atividade e instrumentos de pesquisa, 125 2. A autoconfrontação cruzada como atividade dirigida, 134 3. Em formação, 143 Parte III - Ações e estilos, 151 5. Os pressupostos da ação, 153 1. A "dupla vida" da ação, 154 2. As duas zonas de desenvolvimento potencial, 159 3. Os poderes da ação: a condução de trens, 166 6. A mobilização subjetiva, 175 1. Catacreses e subjetividade, 175 2. O estilo da ação, 183 Conclusão, 199 Bibliografia, 204 Índice dos autores, 219 Prefácio à terceira edição A nova edição deste livro reproduz sem mudança o texto das edições precedentes. Não, por certo, em virtude de um contentamento definitivo de minha parte. Ao contrá- rio, razões para proceder a modificações substanciais não faltam em várias passagens do texto. Teria sido necessário arejá-lo, nele introduzir esquemas para uma melhor formalização dos modelos teóricos que o alicerçam. Mas esse é um trabalho que deverá ficar para outra ocasião, a fim de respeitar os equilíbrios deste livro. Aqui, mencionarei apenas as leituras recentes, as críticas feitas, das quais me beneficio hoje para impulsionar-me a dar continuidade ao trabalho iniciado. Se começo pela menção aos comentários positivos, faço-o porque eles são recursos para continuar a avaliar-me diante das objeções que não podiam deixar de surgir. O objeto principal deste livro, que ultrapassa uma reflexão sobre a ação e os métodos de transformação das situações de trabalho, era discutir um modelo teó- rico ela atividade: propunha olhar o trabalho como uma atividade dirigida. Ele o fazia para estender a definição da atividade aos movimentos da subjetividade. Essa ampliação atraiu a atenção de]. Leplat, que de fato quis ver nisso uma abertura do quadro de análise da atividade (Leplat, 2000a, p. 8) que permite uma melhor con- sideração de seus aspectos subjetivos (2000b, p. 90). Sou grato por isso. Alegra-me também que J. Guichard tenha julgado possível aproximar esta perspectiva dos trabalhos recentes sobre as "transições" nas interações do Conselho de Orientação ( ,uichard, 2000a; 2000b). É verdade que a perspectiva dialógi.ca aqui. usada se pres- lll b 111 a essas aproximações. - 111 termos mais amplos, a idéia abre a possibilidade de que a psicologia cogni- tiva do trabalho possa por seu turno beneficiar-se desta observação de A.N. Leontiev, jtt:,tnm nte revalorizada hoje por]. Curie: "O homem nunca está só diante do mundo dr obj · tos que o cerca. O traço de união de suas relações com as coisas sao as relações 1 om o · [ outros) homens" (Leontiev, 1958; Curie, 2000, p . 189). Segundo creio, é '>Obretudo assim que se pode repatriar o problema do senti.do do trabalho para o \111blto <.la tradi ão francófona de análise da atividade: buscando antes superar a oposl ·tio d ma iaclo us tosa entre psicologia cognitiva e psicologia clínica cio que A FUN ÃO P JCOLÓOI A DO TRABALIIO perpetuar a disjunção entre o quadro social do trabalho, de um lado, e seu quadro técnico, do outro (Karnas, 2000, p. 89) . Foi também, parece-me, uma preocupação desse tipo que suscitou o interesse e os questionamentos deJ. Curie a propósito da primeira edição deste livro. Ele respondeu às perguntas que eu formulara a respeito do modelo do sistema das ativi.dades utilizado também por A. Baubion-Broye e V Hajjar (Baubion-Broye, 1998) . Ele o fez de um modo preciso que corresponde bastante bem ao que se pode esperar do bom funcionamento de uma comunidade científica. J. Curie suspeita das ilusões que podem vi.ncular-se à "centralidade" do trabalho. No entanto, ele admite de bom grado, se o compreendo bem, que os trabalhos do Laboratoire de Toulouse sobre o "sistema das atividades" privilegiaram o sistema em detrimento das ativi.dades na vi.da do sujeito ( Curie, 2000, pp. 307ss.). Mas nada nesse contexto lhe parece suscetível de entrar em contradição com a conceituação que propus. Algo com que concordo . Com efeito, cada atividade do sujeito - o trabalho também - repercute em si múltiplas ativi.dades ri.vais das quais advirá sua ação. É justamente daí que essa ação extrai sua energia, a energia que uma psicologia exclusivamente cognitiva ainda tem dificuldade para situar. Contudo, permanece um problema. De tanto insistir nas"ativi.dades para si mes- mo" que constituem a pessoa, não se está negligenciando exageradamente "o homem fora do sujeito", para retomar a fórmula de P. Malrieu? (1978, p. 266) . O que se designa com isso é a função psicológica própria das obrigações coletivas e das obras que tran- sitam ou não transitam mais entre as gerações. Segundo o que penso, o trabalho é uma base que mantém o sujeito no homem, visto que é a ativi.dade mais transpessoal possí- vel. Para H. Wallon, por exemplo, trabalhar é "contribuir por meio de servi.ços particu- lares para a existência de todos, a fim de assegurar a sua própria" (1982, p . 203). É então na qualidade de sobredestinatário do esforço consentido que o trabalho exerce uma função psicológica específica. Sem dúvi.da surgirá a objeção, acertada, de que o trabalho. consiste hoje, na maioria das vezes, em assegurar sobretudo a existência de alguns. Mas trata-se justamente, nesse âmbito, de uma dissolução de tal monta de sua dupla fo/1ção social e psicológica que bem pode levar tanto os sujeitos como o homem a correr riscos maiores. Talvez eu tenha começado a responder- espero - às preocupações, expressas desta vez por alguns sociólogos do trabalho. O uso que A. Bi.det, T. Pillon e E Vatin (2000) fizeram de meu trabalho num livro de sociologia constitui o próprio exemplo do fato de que a união das disciplinas pode igualmente ser bem-sucedida. Não obstante, dois desses pesquisadores também exprimiram uma crítica precisa sobre a articulação - de acordo com eles, insuficientemente explícita neste livro - entre a função psicológica do trabalho e sua função social (Bi.det & Vatin, 2000, pp. 21-22). Referindo-se a I. Meyerson, eles julgaram possível colocar meu trabalho sob seu patronato. Senti-me ao mesmo tempo honrado e embaraçado. Com efeito, para o fundador da "psicologia 8 históri a", que efetivamente para mim uma referência essencial, o trabalho é uma função psicológica social e historicamente constituída. Na verdade, considero o pro- blema de outra perspectiva. Creio que é preciso distinguir cuidadosamente as duas funções do trabalho se se deseja compreender o que elas têm em comum. Não é equi- valente escrever que o trabalho é uma função psicológica e que ele tem uma função psicológica. A função social do trabalho realiza ao mesmo tempo a produção de objetos e de servi.ços e a produção de trocas sociais que dão aos primeiros seu valor numa determi- nada sociedade. Mas sua função psicológica na ativi.dade dos sujeitos não está contida em potência na função social. Esta última pode ser um recurso para o desenvolvi.menta dos sujeitos ou, ao contrário, tornar-se urna restrição deletéria -segundo tenham che- gado ou não, em sua ativi.dade indivi.dual e coletiva, a torná-la sua, a fim de, ao se apropriar dela, participar, mediante uma rejeição, do desenvolvi.menta dessa função social. Existe aí uma discordãncia criadora que não pode ser eliminada sem risco. A contingência acha-se na vinculação e não existe nenhuma função em si que seja sepa- rável das funcionalidades que a história real das atividades humanas lhes confia. Tudo o que essas duas funções têm em comum é seu desenvolvimento recíproco possível ou impossível. Em outras palavras: a função do trabalho tem uma "dupla vi.da". A vi.da social dessa função não explica sua vi.da psicológica. É a segunda que se explica - em todos os sentidos do termo - pela primeira, numa repetição sem repetição ( Clot, 2002). Persuadido de que existe aí um domínio comum para a psicologia e a sociolo- gia, espero ter contribuído para uma melhor delimitação de suas fronteiras. Encontro uma incitação suplementar a essa colaboração possível na precisão com que esses sociólogos souberam distinguir, na própria psicologia do trabalho, e mais especialmente na clínica do trabalho, as variantes que existem e que movem seu desen- volvi.mento (Bi.det, Pillon & Vatin, 2000, p. 92). É com freqüência nos outros que chegamos a compreender-nos melhor. Portanto, farei. algumas observações, para con- cluir, sobre a diferença que eles notaram entre psicodinâmica do trabalho e clínica da atividade. Essas observações complementarão as que a edição anterior já contém. Alguns autores conseguiram associar esses dois pontos de vi.sta em clínica do trabalho (Gollac & Volkoff, 2000). É verdade que o fizeram com acerto. A insistência que pusemos juntos em repatriar a subjetivi.dade para o âmbito da análise do trabalho aproxima essas duas problemáticas. Mas a psicopatologia do trabalho, que é nosso patrimônio comum, possui sem dúvi.da várias histórias possíveis. Revisitada pela psi- canálise, ela pode trilhar o caminho dado de empréstimo, hoje, pela psicodinâmica do trabalho. No entanto, nada obriga a fundir subjetivi.dade e sofrimento . . Pode-se consi- derar este último do ponto de vi.sta da ativi.dade; como urna ativi.dade contrariada e até reprimida, em outros termos, como um desenvolvimento impedido. Trata-se então de 9 um.a am1 ula ão do poder de agir 1 que proíbe os sujeitos de dispor de suas ações, que não os deixa Lransformar seu vivido em recurso de vivência de uma nova experiência. Já não são raros os meios profissionais em que os trabalhadores permanecem prisioneiros de objetivos artificiais e, não obstante, os fazem seus e se apossam de sua própria ação, em contextos que se tornaram patogênicos. De minha parte, reservo hoje o conceito de "defesa" proposto por C Dejours às compensações imaginárias atual- mente freqüentes no ambiente de trabalho. Mas as provas do trabalho podem ter um destino diverso desse "envenenamento" da atividade: o de compensações reais por meio das quais aqueles que trabalham conseguem recuperar sua disponibilidade psi- cológica. Podem-se considerar essas formas de compensações, à diferença das primei- ras, como respostas ou réplicas que indicam a retomada do desenvolvimento indivi- dual e coletivo (Clot, 2001) . E é para a elaboração destas últimas que uma clínica da atividade pode contribuir. Por fim, acrescento que alguns leitores com certeza se surpreenderão com o cará- ter quase exclusivamente teórico deste prefácio, se comparado com o próprio livro. Mas foi de maneira deliberada que lhe dei esse cunho. A discussão sobre os conceitos é um momento privilegiado da construção dos meios de agir. Espero assim, de minha parte, encorajá-la. 1 l l1lll11•l pd n p rimeira vez essa noção em 1997 em meu Habilitation à Diri ge r des Recherch es (( 111 1, 11)97 •, p. 80). Presellle na primeira edição des te livro em 1999 (p. 177 e 188), esforcei- 111 1• l ' lll llicnr seu o nceito com D. Faita (Clot & Faita , 2000, p. 8) . Esse conceito se tornou agora p 11r11 1n l 111 u111 operador teóri co central na clínica da atividade ao ponto de dar seu titu lo a um 11L 111 ro s pccial el e revista em que ele se acha estabilizado (Clot , 2001). 10 Introdução Quem escreve sobre as relações entre trabalho e psicologia neste fim de século eleve enfrentar um duplo problema. O das transformações do próprio trabalho na sociedade e na viela pessoal, por um lado, e o do conjunto elas contribuições da psico- logia em termos de análise elo trabalho, por outro. Este livro não tem a pretensão ele esgotar essas duas questões. Procurará tão-somente não esquecer nunca que elas cons- tituem o pano ele fundo de suas proposições. O objetivo propriamente dito da obra é tentar compreender em que condições teóricas e metodológicas é possível hoje a aná- lise psicológica do trabalho. Mesmo um olhar rápido que abranja a tradição francesa em análise do trabalho não tarda a convencer que ocorreu uma profunda evolução. Na realidade, pode-se até duvidar da legitimidade de mencionar uma ~ tradição. É necessário falar de várias tradições. É possível mesmo perder-se na fragmentação dos domínios de estudos, na especialização dos centros de interesses científicos e na-proliferação conceitual que se apresenta a nós . Neste livro, o leitor encontrará portantouma tentativa de releitura dessas tradições. Ele encontrará sobretudo uma convicção: a psicologia do trabalho - uma psicologia do trabalho que volta à ordem do dia - mantém recursos suficientes para dar um futuro a essas tradições. Naturalmente, não se cultiva aqui a ilusão de uma unificação possível das linhas de pesquisas existentes. A idéia que alicerça este livro é na verdade mais simples: cada corrente teórica merece ser compreendida, testada em relação às outras, avaliada. Se mostra envergadi:ira, merece também ser criticada. Criticada tanto no que se refere aos conceitos que utiliza como no que diz respeito àqueles que escolhe, mesmo involunta- riamente, não empregar. A crítica e a controvérsia estão na origem da atividade cientí- fica. Mas a crítica não deve s"er um exercício gratuito. Ela só tem sentido se permite delimitar com mais clareza o objeto de conhecimento e o objeto da ação. A análise do trabalho visa sempre, de todo modo, compreender para transformar. Eis por que as discussões que este livro apresenta ou persegue nunca são apenas acadêmicas. Elas se destinam a ajustar a ação, a alimentar a sabedoria que nossa prática requer. A crítica também não tem nenhuma dignidade se não se acha alicerçada por urn ponto de vista explícito em nome do qual é elaborada. Como veremos, o qu , v ·m a s guir n o se abriga por detrás da neutralidade do comentário. Defendemos uma reno- va ao teórica e metodológica da psicologia do trabalho. Não obstan te, queremos fazê- lo deliberadamente no interior da psicologia do trabalho. E isso por uma razão funda- mental, que consiste em considerar que, no decorrer do século XX, na seqüência dos trabalhos de Pacaud e Lahy, de Faherge e Leplat, de Wisner e Le Guillant, para nos limitar a estesµ nálise do trabalho em psicologia transpôs importantes etapas. Não partimos do nada e aqueles que nos precederam não trabalharam em vão. Valorizamos muito esse passado, mesmo que julguemos indispensável olhá-lo com lucidez e sem complacência. A herança está repleta de problemas não resolvidos e até de problemas mal formulados. Além disso, é necessário compreender a razão disso a fim de. não repetir os equívocos (Clot, 1996b). No entanto, este não é um livro de história. Ou, melhor dizendo, ele se interessa por nossa história presente, pelo que fazemos coleti- vamente neste momento em que pretendemos contribuir para a análise do trabalho. Nele se encontrará uma discussão da psicologia ergonômica já iniciada em outro lugar (Clot, 1995, 1996a; Leplat, 1997), mas procurando demarcar com ainda maior nitidez os limites e os recursos que, em nossa opinião, essa corrente de pesquisa com- porta. Na impossibilidade de abordar aqui o conjunto desse domínio, tomou-se a resolução de discutir certos desenvolvimentos recentes nesse setor, em particular al- guns trabalhos de R. Amalberti e dej.-M. Hoc. Como se constatará, o estudo é realizado com base em dados comuns que podem constituir o objeto de análises e de interpreta- ções diferentes. Ele observa um fato: a renovação em curso, na psicologia ergonômica, da problemática do erro humano. O leitor deve encontrar no que vem a seguir com que alimentar ainda a discussão sobre esse assunto. Em seguida, a obra procura avaliar-se tanto com referência aos avanços realizados no domínio da psicopatologia do trabalho, como aos de uma psicologia social do trabalho e das organizações. Também nesses dois casos a discussão científica propria- mente dita teve início (Clot, 1995; Curie &: Dupuy, 1996; Dejours, 1996). A psicopatologia do trabalho soube atrair nossa atenção para as alienações vividas no trabalho (Billiard, 1998; Dejours, 1993, Doray, 1981, 1998; Fernandez-Zolla, 1997; Veil, 1957) . Sua contribuição à psicologia psicodinãmica é, sem dúvida alguma, ter repatriadc:5 para seu campo o "negativo" presente em toda atividade humana. Ao mes- mo tempo, para a psicodinâmica do trabalho, é a normalidade nas situações profissio- nais que é tida como um enigma a decifrar. A psicologia social do trabalho, por seu turno, formula as mais expressas reservas S?,bre a centralidade do trabalho em psicolo- gia. Para essa corrente de pesquisa ( Curie, Hajjar & Baubion-Broye, 1990), é sempre no exterior do trabalho que este encontra ou perde seu sentido. Este livro procura benefi- ciar-se o máximo possível dessas contribuições. Porém, como veremos, ele o faz à sua maneira, reformulando a questão da subjetividade assim levantada a partir de uma revisão do conceito de atividade. O trabalho não é uma atividade entre outras. Exerce na vida pessoal uma função psicológica específica que se deve chegar a definir. E isso, 12 prcci am nt , ·m vlrLud cl fato cl ser ele uma atividade dirigida. Esse conceito está no , mag da renovação proposta aqui em termos de psicologia do trabalho, renovação que se inscreve nas perspectivas de uma comunidade científica internacional "emer- gente" (Bedny & Meister, 1997; Bodker, 1996; Cole&: Engestrõm, 1993; De Keyser &: amurçay, 1998; Kaptelinin, Kuuti & Bannon, 1995; Lave &: Wenger, 1994; Nardi, 1995) . Como se deve ter compreendido, este livro se esforça, por conseguinte, em anali- ' ar as três tradições francófonas diferentes que partilham hoje nossa disciplina. Ele apre~a ~critica essas três vias-:-Propõe reexplorar uma delas, seguida por J. Curie, A. Baubion-Broye e V Hajjar a partir dos trabalhos de Ph. Malrieu, arriscando-se, ao reno- var o percurso, a dar-lhe outra direção. Esta é pouco ortodoxa no tocante à orientação seguida por esses autores. Com efeito, a abordagem da atividade de trabalho aqui sustentada assume deliberadamente a filiação à escola russa de psicologia fundada por Vygotsky Seu objeto é antes a atividade como tal do que o desenvolvimento das ativida- fud~ sujeito e os empecilhos ae ssas atividades. Na perspectiva histórico-psic5>lógica que adotamos, o desenvolvimento de um sujeito não é, além disso, uma corrida rumo a uma meta conhecida de antemão. Seu modelo não é embriológico, pois o desenvolvi- mento só é unidirecional e predeterminado fora das situações reais. O real se encarrega de transformar o desenvolvimento esperado em história não realizada. Eis o motivo por que , neste livro, retomando uma trajetória já exposta em outro lugar ( Clot, 1999a), sempre entendemos por desenvolvimento a história do desenvolvimento. Os métodos que permitem familiarizar-se com esse objeto decorrem do que se chamará uma clíni- ca da atividade. Neste livro, procuramos torná-los explícitos, dado que, segundo pensa- mos, uma "retomada" disciplinar deve ser, antes de tudo , e em todos os sentidos do termo, metódica. O desenvolvimento, suas histórias e os empecilhos a ele: é assim que acabamos de definir o objeto da análise das atividades no trabalho. Isso porque nos pareceu, no decorrer das pesquisas que desembocaram neste livro, que o dese~volvimento possível das mulheres e dos homens em situação profissional era a sede de numerosos conflitos. É verdade que, em psicologia, os conflitos são as alavancas vitais do desenvolvimento. Mas, às vezes - como ocorre muito freqüentemente no trabalho-, eles constituem uma série de obstáculos que deixa os sujeitos diante ele dilemas intransponíveis, fontes ele sofrimentos desconhecidos ou negados. Esses conflitos se deslocam nas metamorfoses sociais do trabalho, mas não desaparecem. Ao menos é o que faz pensar a história do século XX. Um rápido olhar às mudanças que ocorreram em cem anos não deixa em absoluto lugar para dúvidas. No início do século_, ass ríticas ao taylorismo formuladas por j.-M. Lahy, mesmo ambíguas, se concentraram ~a fadiga ocasionada pela intensificação do gesto. A análise mais profunda dessa questão pode ser encontrada em H. Wallon (1932/ 1976) . Com efeito, este último olha a intensificação gestual não apenas como uma 13 obrignç o cleleL · ria mas também como uma desqualificação do movimento espontâ- n o do trabalhador. Um empecilho extenuante,de qualquer modo. Voltar a essa análise nos prepara bem para compreender as tensões psíquicas de um outro nível que se enunciam hoje no vocabulário do "stress". Em lugar de deixar o homem agir - escreve Wallon -, o sistema taylorista "dissocia sua atividade ao requerer dele tão-somente certo gesto artificial ou uma vigilância uniforme e sem gestos" (p. 209). Em certo sentido, Taylor não exige demais do traba- lhador, mas demasiado pouco. Ao escolher o movimento que exige de sua parte o mínimo de intervenção, priva-se o homem de sua iniciativa. Ora, "amputá-lo de sua iniciativa durante seu dia de trabalho, durante suas oito ou dez horas de trabalho, desemboca no esforço mais dissociativo, mais fatigante e mais extenuante que se possa encontrar" (p. 210). O esforço não é só o que esse homem faz para seguir a cadência. É igualmente aquele com que ele deve consentir para reprimir sua própria atividade. Por fim, exige-se dele um sacrifício que "o amputa de grande parte de suas disponibilida- des, que silencia toda uma série de atividades necessárias, de movimentos que são necessários porque formam um todo de algum modo orgânico com os gestos exigidos. Condena-se o homem a uma imobilidade que é uma tensão contínua. Ora, essa tensão que não pode ser canalizada para movimentos acarreta perturbações, dissociações que desequilibram a máquina humana" (p. 210). A calibração do gesto é uma amputação do movimento. É esse gesto ao mesmo tempo prescrito e interdito que m~is custa ao trabalhador. Sem poder aboli-lo, procura-se põr sua atividade entre parênteses. Na realidade, ela é somente levada a gerar "sofrimento". Isso porque, apesar de tudo, os homens não "·entram" na tarefa. Os recursos da atividade são deixados vagos e, por isso, o que há de irredutível, em última análise, no "fator humano", isto é, a solidariedade do ser inte- gral com o esforço dele exigido, só se tornou mais gritante. A fusão imaginária do homem e da máquina de~boca então paradoxalmente na impossível identificação do sujeito com os atos a ele prescritos. Contrariando as leis que regem a atividade humana;·provocando inúmeros e gravíssimos equívocos, "o taylorismo - escreve Wallon - tirou de seu sil~ncio necessidades que se ignoravam a si mesmas [ ... ] . Por fim, ele contribtiiu para impor o que tendia a não reconhecer ou a suprimir" (1947, p. 6). Reteremos portanto o diagnóstico de B. Doray: o taylorismo é uma_"louc~~cio- nal" (1981). Pois é impossível, para a produção, absorvertoda a atividade pessoal do s~jeito em operações elementares. Ninguém tem o poder de aniquilar a atividade pessoal do trabalhador. _Na melhor das hipóteses, ela é deslocada ou alienada. Mas possui sua autonomia e nunca é a simples medida das ações exteriores que hoje se exercem sobre ela. A ativi_gade é a apropriação das ações passa.das e presentes de sua história pelo sujeito, fonte de uma espontaneidade indestrutível. Mesm~ ~utalmente proibida, nem por isso é ela abolida. E, em certo sentido, reside de fato aí, por outro 14 Indo, 0 drama. p is la v ILa nt ontra aqu la ou aquele que trabalha, a ponto de ('( , me mo d ver m se impedir de wdã Tniciativa. Quando chegam a isso, é ao preço dt· um insidioso esgotamento, de uma fadiga que é o ponto de partida de novos confli- " tos. Prolongando as reflexões wallonianas , pode-se pensar que a lassidão resulta tam- h 111 das possibilidades que se s~ · mas que não podem ser vividas, daquilo que não 'i • pod fazer no âmbito daquilo que se faz. taylorismo certamente não desapareceu neste fim de século, mas a organização ndustrial teve de procurar contornar a vitalidade das oposições que ele suscitou. Have- n1 ntão a transformação do gesto , tornado maquinal pelo taylorismo, em operação da 111 1 quina. Mas o gesto, separado do homem, transporta consigo, para o automatismo, -.. ua omplexidade negada. Para digeri-la, o sistema das máquinas se cumula então de 111d terminação. É certo que esta última é primordialmente imputável ao próprio modo de existência dos objetos técnicos. Esses objetos só podem funcionar graças a ,,ma margem inicial de "indeterminação". Não há objeto técnico sem scripts que deixam flexibilidade à incerteza corriqueira do funcionamento e chegam a implicar momentos de transgressão do cenário previsto . Os objetos técnicos nunca são total- 111 nte ajustados , nem mesmo terminados. Não há impedimentos: dá-se um passo quando as técnicas da informação se aliam à sofisticação dos sistemas. Já em 1963 , Naville descrevia o impacto da automação em termos que sempre suscitam a refie- . o. Ele não hesitava em prognosticar uma crescente ~ idade das ferramentas: "A e mplexidade e a sensibilidade dos mecanismos são tais que eles se tornam capri- ehosos, indóceis, inexpressivos ou irritantes, tão difíceis de satisfazer quanto os seres humanos" (1963 , p. 41). Segundo ele, outro sistema social do trabalho deveria res- ponder a essas evoluções. É certo que, quando a técnica se torna lunática, a atividade dos homens, encerrada sem sucesso - mesmo ao preço de desordens incalculáveis, no sentido próprio do l •rmo - na veste estreita demais da estrita prescrição operatória, não mais se man- 1 m. Por isso, sua flexibilidade e sua variabilidade, até então concebidas como obs- l< culos a contornar por parte da organização taylorista foram consideradas recursos 'xigíveis e reivindicadas aos "operadores" da nova "fluidez industrial". Aí onde era proibida a iniciativa, ei-la obrigatória sob a forma de uma solicitação sistemática da 111 bilização R,essoal e coletiva. A prescrição -9-a atividade se transforma em prescri- ç da subjetividade. Não era isso o que Naville tinha em vista; no próprio momento em que pressente d , novo O que o trabalho poderia ser para ele, o homem avaliará com exatidão aquilo tiu ele ainda não o é. A iniciativa convocada não tarda a ser combatida. Isso porque a onda de inovação técnica não encontra primeiramente seus móveis na preocupação do h mem. Poderíamos até sustentar, sem exagerar, que com freqüência é o inverso que a fundamenta . O trabalho humano parece ter-se tornado, enquanto tal, um obstáculo . 15 A FUNÇÃO PSICOLÓGICA DO TRABALHO Por um movimento contrário, e sempre a curto prazo, ele deve fazer e refazer a prova de que não é supérfluo. É o inverso do reconhecimento esperado. Não se pode estabe- lecer o impasse sobre essas dimensões impessoais da atividade. Com efeito, é apenas assim que se podem compreender os paradoxos atuais de uma mobilização subjetiva ao mesmo tempo requerida e recusada como foi o gesto no período taylorista. Por um lado, uma real desprescrição [déprescription] operatória; por outro, uma pressão temporal que se parece com uma tirania do curto prazo. A autonomia procedi- mental avança sob a pressão do tempo (Gollac & Volkoff, 1996; Périlleux, 1998) . Segue-se uma poderosa autoprescrição cujos efeitos sobre a saúde física e mental res- tam ainda avaliar. De todo modo, trata-se de uma mobilização integral da pessoa que é exigida para que ela se encarregue de conciliar o inconciliável: regularidade, velocida- de, qualidade, segurança. A interiorização psíquica dos conflitos de critérios associa- dos a objetivos praticamente irrealizáveis conduz a novas dissociações. E isso em empresas ou serviços que acumulam com demasiada freqüência os defeitos das buro- cracias tayloristas tradicionais e os das organizações comerciais, delegando aos assala- riados arbitragens que no passado eram responsabilidade das hierarquias. Vi_yências de impotência, ressentimento, melancolia ou, ao contrário, euforia pro- fissional- clássicas nos trabalhadores que tentam proteger-se do medo de ser despedi- dos (Clot, 1995)- formam então um quadro clínico mesclado: o de uma atividade em que a disponibilidade psicológica investida pelo 6-abalhador para se sentir "responsá- f li---" , vel" pelo uturo da empresa e do serviço é simultaneamente confinada, a ponto de encolerizar-seconsigo mesmo. E talvez se ache aí a prova principal com que se com- prometem aqueles que trabalham ainda hoje: a injunção de assumir suas responsabili- dades sem ter nenhuma responsabilidade efetiva. Ora, não terminamos de avaliar com exatidão a situação assim criada, visto que se trata aí de amputar aquele que trabalha, de urna grande parte de suas motivações, negligenciar toda uma série de pensamentos e de deliberações, de julgamentos, de arbitragens e de avaliações que se acham contudo implicadas na disponibilidade exigida dele. Hoje, parece-nos, portanto, bom que dissociações novas se misturem às antigas na exacerbação do que se pode denominar um conflito de avaliações; pelo equívoco recurso a uma iniciativa a um só tempo convocada e repudiada, condena-se o homem a uma aposentadoria e por vezes a uma solidão que se comparam com a injunção ambígua a participar do que ele se torna objeto. Não podendo desfazer-se em contribuição reconhecida, essas tensões psíquicas novas expõem os sujeitos a inibições, rejeições e sofrimentos que o vocabulário co- mum designa pelo termo stress. Não mais, sem dúvida , do que a noção de fadiga em seu tempo (Vatin, 1996) põde dar conta da dissociação do gesto descrita por H. Wallon, a noção de stress não permite demarcar as dissociações psíquicas anteriormente evocadas. Ela estabelece demasiadamente o impasse sobre a atividade subjetiva desenvolvida 16 Y V C I o 1 pelos trabalhadores para se desvincular das contradições em que se acham emaranha- dos (Karasek &. Theorell, 1990; Lhuilier &. Grosdeva, 1992). No plano da vivência , permanece uma estranha cumplicidade entre essas noções de fadiga e de stress. Na eqüência, proporemos vincular sua comum resistência na linguagem ordinária a uma raiz comum: a amputação da atividade possível. Essa amputação é particularmente clara nos ofícios de serviço orientados para acolher públicos em dificuldades sociais. Nessas situações, cuja quantidade aumenta s~cessar, o objeto do trabalho não é nada menos que a existência do outro, na maioria das ~esignado como um "solicitante". Começa-se a avaliar as incidên- cias psicopatológicas das profissões sobre aquelas e aqueles que as exercem, direta- mente expostos que estão à angústia vital de seus semelhantes. A linguagem do stress é amplamente usada entre esses profissionais do "social", mesmo quando a definição acadêmica do problema estabelece sem dúvida o impasse sobre o essencial. Com efeito, costuma-se tomar corno ponto de partida, nas análises em termos de stress, a idéia de que um fenômeno desse tipo se produz quando a situação é avaliada pelo indivíduo como ultrapassando seus recursos; em outros termos, quando aqueles que trabalham não chegam mais a atender às exigências da organização do trabalho (Lazarus &. Folkman, 1984) . Atenta-se pois para eles a fim de ajudá-los eventualmente a dotar- se de "estratégias de ajustamento à adversidade". A administração do stress é então dada como uma saída possível ao suposto "transbordamento" (Paulhan &. Bourgeois, 1995). Mas não seria preciso dedicar-se a resolver, ao menos parcialmente, o problema? (Yvon, 2003). Em nosso parecer, a questão reside em saber se não são numerosos os casos em que são precisamente a organização e a instituição que não conseguem mais atender às exigências dos profissionais que, estas, se acham próximas do real. Os agentes a serviço do público não são tão-somente "ultrapassados" por exigências exte- riores. Eles não se acham apenas em dificuldades em termos de respostas. Eles espe- ram também que suas perguntas e sua contribuição sejam entendidas e reconhecidas. Não se deve afastar depressa demais a hipótese segundo a qual sua atividade se acha amputada por organizações "transbordadas" que não sabem mais responder nem às questões vindas do real, nem às exigências sociais do trabalho dos profissionais que elas empregam (Papegnies, 1998). A impotência sentida, as fadigas crônicas, as des- compensações psíquicas e o ressentimento sucedem então à perda de toda ilusão e à oscilação dos ideais institucionais outrora vigentes. Essa abordagem do problema, que se impõe sempre que se centra a análise em situações que dificultam os relacionamentos, tem um alcance mais amplo. A atividade contrariada está no cerne das análises que vêm a seguir. Como compreendê-la, como abordá-la e sobretudo corno explicar que o trabalho, nessas condições, não só conserva sua função psicológica na vida pessoal e social, como também a desenvolve? Para 17 responder a essas questões, este livro deseja dar conta das realizações e dos objetivos de um programa de pesquisas e de ações em curso. Ele se baseia na função da subjeti- vidade e do trabalho coletivo na atividade. De fato , a nosso ver, só uma reconcepção do conceito de atividade pode permitir ao mesmo tempo pensar suas dimensões subjeti- vas e suas dimensões coletivas ( Clot, 1998). A subjetividade na ação profissional não é um ornamento ou uma decoração da atividade. Ela está no princípio de seu desenvol- vimento, configura-se como um recurso interno deste último. Do mesmo modo, cre- mos que outra definição do trabalho coletivo é de natureza a revalidar uma das duplas teóricas fundadoras da psicologia do trabalho francófono: a oposição entre tarefa pres- crita e trabalho real, durante muito tempo dotada de capacidade heurística, parece ter esgotado uma parte de sua fecundidade epistemológica. O trabalho não é só organizado pelos projetistas, pelas diretrizes e pelo enquadra- mento. Ele é reorganizado por aquelas e aqueles que o realizam, e essa organização coletiva comporta prescrições indispensáveis à feitura do trabalho real. No que vem a seguir, não hesitaremos em falar das obrigações que os trabalhadores se impõem para conseguir fazer de maneira conveniente o que deve ser feito . Essa insistência visa a um • objetivo diferente do reconhecimento de um fato. Parece realmente que a ausência ou o enfraquecimento de um trabalho de organização promovido e mantido po~ cole- tivo esteja com freqüência na origem dos desregramentos da ação individual mediante os quais é indicada a perda do sentido e da eficácia do trabalho. A organização do trabalho nunca faz nada mais além de antecipar-se ao trabalho de organização com que o coletivo permanece, de todo modo, confrontado. Em outros termos, defenderemos na continuidade do livro a seguinte idéia: o trabalho só preepche sua função psicológi- ca para o sujeito se lhe permite entrar num mundo social cujas regras sejam tais que ele possa ater-se a elas. Sem lei comum para dar-lhe um corpo vivo, o trabalho deixa cada um de nós diante de si mesmo. Trata-se exatamente do contrário do que é necessário ao advento de uma mobilização subjetiva. O desenvolvimento de uma psicologia das situa- ções di; trabalho e de vida permanece no centro de nossas preocupações. O livro se divide em três grandes partes. A primeira se dedica a discutir as concep- ções que hoje fazem parte do dinamismo da psicologia do trabalho. Ela desemboca na tentativa de definir a função psicológica do trabalho. No âmago dessa análise acham-se duas noções: o gênero e o estilo da atividade. Na primeira parte, vamos nos ocupar primordialmente da primeira noção. A segunda parte apresenta a perspéctiva de uma análise do trabalho como ativida- de dirigida. O objeto da análise e os métodos que permitem dele se aproximar são apresentados a partir de exemplos de situações reais. A terceira parte, sempre com base nos dados provenientes do campo, procura beneficiar-se das duas primeiras para abordar problemas da subjetivação numa pers- pectiva teórica e prática: em que condições a experiência profissional pode transpor as 18 prova · por qu passa obrigatoriamente e, sobretudo, como são possíveis a transmissão t· a r novação dessa experiência? Em nossa opinião, a psicologia do trabalho deve ofor cer um alicerce à resolução dessas questões. A última parte retomará, com esse objtivo em vista , a discussão iniciada na primeira parte a propósito dos gêneros, mas d • a vez do ponto de vista dos estilos da ação. 19 Parte I Uma psicologia do trabalho? ( 1 Uma psicologia cognitiva do trabalho? 1. Funcionamento e desenvolvimento cognitivos Não se trata aqui de fazer um inventário dos trabalhos que poderiam ser arrolados no domínio da psicologia ergonômica. Isso não nos é possível neste âmbito e implica, de qualquer maneira, competências coletivas. Não se ignora, por exemplo, o conjunto das pesquisas que, igualando-se ao problema formulado pela gestão do tempo nos ambientes dinâmicos, desembocam numa tentativa de definir os critérios de distinção entre classes e subclasses de situação (Cellier, De Keyser & Valot, 1996). É simples o que ocorre: tendo tido ocasião de confrontar nosso próprio trabalho com as pesquisas Inscritas numa das perspectivas da psi~ologia ergonômica ( Clot, 1995), pudemos cons- tatar que a descrição mereceria ser ainda aprofundada. Em textos recentes, J. Leplat (1997; a ser publicado) soube encorajar o confronto observando que a psicologia rgonômica nunca foi muito sensível às dimensões subjetivas da atividade: o agente, •screve ele, "não pode ser concebido como um simples sistema de execução da tarefa prescrita. Essa tare a se mscreve para-ek em sua história.l~"i~ não só realiza a tarefa prescrit~ como visa também, por meio dessa realização, objetivos pessoais" (1997, p. l8) . O agente redefine também essa tarefa com relação à dos outros e a qualidade da vida coletiva pode estar no centro da tarefa assim redefinida. Isso não se opõe à eficácia do trabalho mas pode contribuir sobremaneira para ela. Esse é o motivo pelo qual, se o compreendemos bem,]. Leplatnão hesita em retomar longamente o que denomina a -p ·rspectiva clínica em psicologia ergonômica (p. 73) enfatizando a pluralidade das rncionalidades que habitam ê atividade de trabalho. Além disso, ele volta a reforçar seu interesse pelas situações em que o agente realiza uma Ol!_tra tarefa que não a que lhe foi proposta: "Dizer então que se assume o ponto de vista da tarefa para analisar a atividade não será, portanto, conceder a prima- la ao extrínseco, mas considerar a atividade como a elaboração, por parte do sujeito, de sua própria tarefa" (p. 16). A redefinição da tarefa não é de resto somente individual. Recordando os trabalhos de (de) Terssac, ele insiste mais uma vez no fato de que .9..s w·upos de trabalho vivem segundo regras não escritas, não prescritas pela organização, 11 1;1 cone bidas pelos atores, negociadas entre eles e, de acordo com os casos, com as hierarquia (p. l ) . Esse conjunto de considerações nos parece ele natureza a nutrir duradouramente o diálogo entre perspectivas diferentes. É nesse estado de espírito que concebemos as observações a seguir. De fato, trata-se, apoiando-se num exemplo preciso, de delimitar melhor os ângulos ele abordagem em termos ele análise da atividade. Num artigo recen- te, Amalberti e Hoc tentaram, por exemplo, formalizar o modelo que lhes serve de referência (1998). De acordo com eles, é preciso compreender a atividade e a tarefa efetiva como sinônimos. A atividade se define pelas operações manuais e intelectuais realmente mobilizadas a cada instante pelo operador para atingir seus objetivos, e não apenas pelas prescritas, nos tem1os das restrições do contexto. A tarefa é entâo definida pela intenção presente do operador, protegida das outras intenções concorrentes. De- pois de ter criticado os modelos comportamentais da atividade que a reduzem a dados avaliáveis e observáveis e perdem sua eficácia quando se tem em vista compreender as atividades marcadas por dominantes intelectuais, eles se referem a um modelo cogni- tivo em ruptura com uma visão linear das atividades cognitivas. Trata-se menos de interessar-se pela recomposiçâo ou pela repetição de saberes e de procedimentos já conhecidos do que pela construção e pela atualização constante ela representação ocorrente de uma situaçâo. E isso é feito a partir de modelos que dão conta de uma c; nstrução dinâmica e circunstancial das atividades cognitivas a partir de variáveis ocultas. Tendo identificado de maneira bastante sucinta a abordagem de Vygo~½Y com a proposta por j( Th_~),g~au ,''eles as inserem na categoria dos modelos sóciocognitivos. Segundo eles, essas abordagens , considerando o pensamento do sujeito como uma emanação,das atividades externas e objetivas realizadas pelos congêneres, nâo atraem sua atenção. Nesse quadro, o pensamento é social e pertence tão-somente a um coleti- vo de ação. Por isso, a atividade c_ognitiva deixaria de encontrar aí seu lugar. Se isso de . fato ocorre, é possível compreender suas reticências . Mas pode-se, no mínimo, pensar que essas reticências não são em absoluto bem-vindas no que se refere à obra de Vygo~sky, que merece mais do que ser inserida sem escrúpulos na categoria de um interacionismo social que nega ao sujeito toda consistência própria. Além disso, é no ~ b~o de urna perspectiva vygostskyana, abordada de modo demasiado sumário por Amalberti e Hoc, que tivemos ocasião de criticar a trajetória do curso de ação proposto por]. Theureau (Clot, 1995). A tradição vygotskyana acha-se completamente vincula- da com a elaboração de uma t~oria da consciência, unindo, na atividade, o pensamen- to, a linguagem e as emoções do sujeito (Clot, 1999a; Vygotsky, 1934/1997). Uma síntese recente, entre outras, testemunha isso sem nenhuma ambigüidade (Bedny & Meister, 1997). Mas o melhor é sem dúvida tentar compreender uma situaçâo de trabalho real dedicando-se a situar com clareza as zonas de recobrimento teórico e as diferenças. Entre a abordagem cognitiva dos problemas proposta por esses dois autores e a que desenvolveremos neste livro - buscando sempre vincular a atividade e a subjetivi~ade 24 , há por certo uma distância substancial. É necessário reconhecer isso. O interesse que 1110 Lramos por compreendê-la é naturalmente teórico, mas também prático, como v ·r mos adiante. Para documentar a questão, disp<_?.!nos de relatórios e ele reflexões cruzadas sobre 11 análise de uma situação de trabalho que se tornou dramática. Trata-se do acidente ocorrido no dia 20 de janeiro de 1992 no Airbus A-320 da companhia Air Inter, que lnzia a ligaçâo regular entre Lyon-Satolas e Strasbourg-Entzheim; ele se despedaçou 11uma das encostas do Monte Sainte-Odile. O acidente causou a morte de oitenta e sete p • oas. Naturalmente, nunca se saberá com certeza o que aconteceu de fato. Como o 1 ·cl1tuaj.-M. Hoc na obra que contém sua análise do acidente, fundada no trabalho pr •ciso da comissão de inquérito (Mett, 1993), o cenário final nâo passa de uma hipó- 1 , e que numerosos dados tomam verossímil. A interpretação corre sempre riscos que 1• n cessário minimizar (Hoc, 1996, p . 134). Para completar nossas informações, dis- pomos igualmente da análise publicada por um comandante de bordo da mesma com- panhia aérea (Kroês, 1993) - de resto bastante semelhante à análise da comissâo de Inquérito - , que constitui um complemento valioso, proposto por um colega de traba- lho elo comandante de bordo morto. No que vem a seguir, nós nos referiremos igual- 111 'nte a outra obra escrita por outro comandante de bordo da companhia. Este não comenta ele modo direto o acidente em questão, mas fornece sem dúvida um dos mais h •los exemplos elo que pode ser urna análise do trabalho conduzida "a partir de den- 1 ro" por um profissional Qouanneaux, 1999). Faremos um amplo uso dessa análise Imanente. J .-M. Hoc, em sua análise do acidente, insiste com acerto no fato de que a comissão d , inquérito negligenciou um acontecimento-chave que sem dúvida contribuiu de lorma decisiva para o acidente do Airbus: o aparecimento e a não-correção de urna taxa 111 •dia de descida de 800 pés por minuto, aproximadamente, que teria permitidoper- 11rnnecer num plano de aproximaçâo de 3° 3' por minuto da velocidade nominal de li roximaçâo (Mett, 1993, p. 165). Ele acrescenta: "Em outras palavras, acima do 1·d vo, o avião descia cerca ele quatro vezes mais rápido do que deveria." Como a falha 1 • ·nica parece excluída - Hoc e Kroês concordam em pensar que o equipamento do 11vi o pelo sistema de alarme GPWS (sistema de alerta de proximidade com o terreno) 11, teria obrigatoriamente evitado a catástrofe nessas circunstâncias-, "parece efeti- vnmente que se pode inserir o acidente na categoria dos erros humanos, de forma 1•d ativamente pura. É o motivo pelo qual a abordagem cognitiva desse acidente se Impõe mais particularmente" (p. 134). Sigamos J.-M. Hoc. Havia dois modos possíveis de pilotagem automática. O modo 111 G-VS (velocidade vertical de aproximação) foi sem dúvida escolhido no momento do acidente; nele, fixa-se a velocidade vertical. A indicação "3 .3" é então interpretada 11 •I sistema como 3.300 pés por minuto. O outro modo, ele uso pouco freqüente mas 25 que convinha usar nesse caso, indica o ângulo de descida. A mesma entrada "3 .3" é então interpretada como 3° 3' de ângulo, o que a situação exigia. A comissão de inqué- rito, como de resto R. Kroês, consideram provável um erro de modo cometido pela tripulação. Para] .-M. Hoc, tratou-se ou de uma confusão de modos, ou de um erro de rotina na entrada da instrução "3.3". Todo mundo concorda que os projetistas do posto do piloto definiram interfaces suscetíveis de favorecer a confusâo entre os modos. Elas serão modificadas logo depois da catástrofe. A comissão também revelou que vários erros desse tipo já tinham ocorrido em outras circunstâncias mais favoráveis (melhor visibilidade, ausência de relevo .. . ) que tinham permitido sua detecção pela tripulação. A repetição ela experiência mostrou portanto seus limites nessa ocasião (Amalberti, 1996, p. 31). Para R. Kroês, não é tão certo que se possa encerrar o caso com a hipótese ele "erro de botão". De acordo com ele, por razões que permitirão compreender a questão, como o aparelho estava sendo guiado em aproximação intermediária por radares dos Sistemas Combinados de Segurança Ativa e Passiva ( Caps), o comandante de bordo não pôde escolher de imediato o modo apropriado "alinhamento e plano de descida", uma vez que este último se associa a uma função de indicação das rotas e não dos Caps. Segundo ele, por razões que ainda iremos compreender, o aparelho foi guiado em aproximação intermediária por radares dos Sistemas Combinados ele Segurança Ativa e Passiva ( Caps), e o comandante de bordo não pôde selecionar imediatamente o modo apropriado - "alinhamento e plano ele descida" -pois este último está associado a uma função de visualização de rotas e não dos Caps. O comandante de bordo teria então ficado, s~gundo ele, num primeiro momento, no modo "Caps e taxa de descida", deixando para adiante a execução de um procedimento-chave. Ele adia em última análise para uma aproximação final a seleção do "modo plano de descida". Em segui- · da, podem-se formular duas hipóteses: ou o esquecimento puro e simples, ou uma mudança de modo efetuada pelo programa e não percebida pelos pilotos. Essa tese - escreve ele- "tem a vantagem de não fazer intervir a hipótese, mais complicada, de um duplo erro: o erro de botão e o erro ele verificação do resultado da ação sobre o referido botãp", no contexto dos pilotos da Air Inter muito sensibilizados com relação a esse procedimento sistemático (pp. 28-33). Seja como for, continua difícil esclarecer. Mas por que esse "guia por radar" em aproximação intermediária proposta pelo controle e aceita pelo comandante de bor- do? Aqui, todas as análises se mistur~m. O piloto estava preparado para executar um procedimento de aproximação que conhecia bem e foi orientado para um procedi- mento que ele deliberadamente afastara no momento ela preparação do vôo. Como o observa] .-M. Hoc, o plano inicial do piloto encarregado dos comandos era uma apro- ximação ILS (sistema de aterrissagem por instrumentos) seguida por uma manobra visual para se alinhar na pista indicada. Esse tipo de aproximação era familiar ao piloto 26 1•, ai 111 disso - observa R. Kroês -, no eixo 23 em que o feixe lLS é instalado, o avião p,id descer acima da planície e não acima do relevo, de maneira distinta da outra 1proximação pelos meios VOR-DME (rádio onidirecional de altíssima freqüência/ t•qulpamento de medida de distância). hegando a Estrasburgo, a tripulação do Air Inter 5148 premeditou portanto, 111 •1 ,talmente, uma aproximação sobre o eixo 23 . Ora, o controlador indica sem hesi- 111r: "Vocês são n. 1 para a VOR-DME 05" , contrariando, sem sabê-lo, a preparação da 1 lipulação. Diante das indicações do co-piloto que lhe diz que esse não é o modo de 1,pr ximação escolhido pelo comandante de bordo, o controlador responde que três 1q nr lhos se preparam para decolar e que o 5148 não pode penetrar em 23, arriscando- ,r a e encontrar diante deles. A única solução seria então dar voltas no circuito de t' ·p ra até que o caminho estivesse novamente livre. Nessas condições, a tripulação aceita retornar ao procedimento VOR-DME e o 1 •o11trole propõe então um direcionamento por radar até o ponto de aproximação final, n que o comandante de bordo também aceita. "Isso não é exatamente facilitar-lhe a 1nr •fa - afirma R. Kroês. Tendo tido de modificar sua estratégia de aproximação, ele pr •cisaria de recuo e de um rádio silencioso . Necessitaria de tempo. Não o teve. Pois ,•11t o se acha pura e simplesmente em meio à urgência." De acordo comj.-M. Hoc, "por causa da opção tardia pelo plano finalmente adotado para a descida, a tripulação , • viu confrontada com uma sobrecarga de trabalho. Algumas ações que costumam ser i' X •cutadas seqüencialmente tiveram de ser realizadas quase simultaneamente" (p. 11"'). Os pilotos, segundo ele, estavam ocupados em corrigir sua trajetória em termos da dimensões laterais, o que os distraiu da verificação da dimensão vertical. "A tripu- lii ·ão não detectou verdadeiramente o erro. No máximo, o piloto utilizou os freios 1 •rodinãmicos. Ele tomara então consciência de uma velocidade excessiva, mas ten- lou corrigir tão-somente o sintoma e não a causa" (p. 135). A ausência de informações l'.11Soriais sobre esses aviões talvez tenha feito o resto . E, com efeito, a 10 segundos do 1 hoque, oco-piloto anuncia: "Aeronave no eixo da pista". A surpresa é total. É bastante compreensível neste âmbito o interesse pela abordagem cognitiva. De lnl o, a antecipação mental formulada pelo piloto, planejando suas expectativas, viu-se 111iquilada e, sem dúvida, suscitou um modo reativo de gestão das operações. A ativa- , (o dos planos de ação costumeiros viu-se transtornada pela urgência. O replanejamento qu teria permitido reconstruir um sistema de expectativas operacional adequado 1·stava de súbito proibido. A situação se inverte: o piloto passa a ser pilotado pelas 1 ondições de sua ação, da qual não controla senão brevíssimas seqüências. A supervi- ' 1\o dinâmica perdeu seu papel de regulação da ação. Em certo sentido, nada há mais aí 11 acrescentar. A ação descarrila é capturada ou se extravia num universo em que as ln len ões dos pilotos são traídas. Um fato é incontornável: eles não puderam realizar ,; ua ação . 27 Entretanto, temos a atenção atraída por um comentário deJ .-M. Hoc: o que se deve incriminar, na produção de um erro, não é tanto o caráter deficiente do mecanismo de tratamento da informação que dirigiu as condições na qual ele foi mobilizado. Reason (1990) observou judiciosamente que "a maioria dos erros é produzida por mecanis- mos cognitivos completamente normais, mas que são desencadeados em condições tais que não produzem os resultados esperados" (p. 137). A produção de uma ação correta num contexto errado estaria aqui na origem do erro. Poderíamosfalar também de inten- ções ou de planejamentos inadequados à situação. No que se refere a esse caso, mas também de modo geral, a contribuição da psicologia cognitiva seria então melhorar o conhecimento dos mecanismos normais e das condições de seu "desencadeamento". Mas é de fato possível questionar se o desencadeamento e a formação de intenções de ação "deslocadas" em certos contextos são completamente explicáveis pelos funcio- namentos cognitivos normais. De maneira mais ampla, é possível explicar o funciona- mento cognitivo a partir do funcionamento cognitivo? A análise psicológica do traba- lho na situação antes descrita nos leva a pensar que uma resposta positiva não é eviden- te. Sejamos precisos: J .-M. Hoc não pretende que a análise cognitiva do problema dê conta de todos os seus aspectos. Segundo ele, muitas outras dimensões concernentes aos aspectos coletivos ou afetivos poderiam ser abordadas. Se considera o operador humano como um sistema cognitivo multiprocessador (p. 15), ele o faz para acrescen- tar de imediato que ele é também um sistema afetivo, fisiológico e um ator social. Hoc privilegia apenas a abordagem individual da cognição , formando os outros elementos, de acordo com ele, um contexto (p. 131). Ele acrescenta: se algumas das questões surgidas n~s situações de trabalho são tão difíceis de resolver é justamente porque levam a estabelecer uma correspondência entre esses diferentes sistemas que são estu- dados por pesquisadores de tradições diversas (p. 15, nota 3). Na realidade, parece-nos que as dificuldades começam quando se definem em primeiro lugar sistemas homogêneos que em seguida se procura pôr em correspondên- cia externa. As vidas fisiológica, afetiva ou social não são contextos exteriores para o funcionamento cognitivo ou, melhor dizendo, elas infelizmente se transforn1am nisso quando há um interesse por um funcionamento cognitivo demasiado separado do de- senvolvimento cognitivo. Assim, na situação antes relatada, são efetivamente a história e o desenvolv imento impossível das intenções dos pilotos que os encerram num funcio- namento deslocado. Não se trata somente de bons mecanismos realizados em maus contextos. Mas, como tentaremos mostrar, da pertinência do sujeito a vários contextos que se recortam nele e da qual ele não consegue, no caso em questão, libertar-se para agir. Na discussão a seguir, testaremos uma hipótese de estrutura: a multi-pertinência da atividade dos sujeitos, engajados em vários mundos ao mesmo tempo. Com efeito, parece realmente que se trata sempre de uma interferência de inten- ções. Uma tarefa - escrevem Amalberti e Hoc - é definida pela intenção presente do 28 opcrad r, protegida das outras intenções concorrentes. Isso é certo, mas talvez seja em rnzão do fato de que as proteções são sempre frágeis e as intenções sempre resultados 1ransitórios de uma luta que nunca cessa na ação que a tarefa é sempre redefinida em siLuação. Ao preço por vezes de um fracasso dramático, como parece ter acontecido no n idente relatado. Quando o 5148 da Air Inter se choca com a encosta do Monte Sainte-Odile, as lnLenções e as ações da tripulação têm uma história, e, se assim podemos dizer, possu- l'ffi um nascimento, um desenvolvimento e um fim, dramático nesse caso. J.-M. Hoc observa que a preparação do vôo foi a ocasião de uma elaboração das intenções entre o comandante de bordo e oco-piloto; este último sugeriu uma mudança de aproxima- ão quando o primeiro propôs ILS, eixo 23. O comandante de bordo recusou a sugestão "pois não se sentia suficientemente familiarizado com esse outro tipo de aproxima- ção'' , segundo Hoc (p. 134). No que se refere a esse ponto preciso, as interpretações não se misturam. Se seguimos R. Kroês, instrutor da Air Inter, o comandante Hecquet- seu nome - escolheu naquele dia uma penetração ILS "em completa contradição com seus hábitos, de resto adequados à filosofia de exploração da Air Inter, adquiridos com base nos outros tipos de máquinas da companhia. Não que as aproximações mais rápidas e menos onerosas tenham sido na época proibidas no que toca ao setor A-320, muito pelo contrário! Mas Christian Hecquet não confia na máquina e, ao mesmo tempo, culpabiliza. Ele sofre da síndrome conhecida nessa época pelos pilotos experientes ao hegar ao A-320. O contexto social se insinua então entre os dois homens. A época é a do conflito acerca da composição da tripulação do A-320 com dois ou com três. Sempre de acordo com R. Kroes, nessas circunstâncias, para conseguir que "os pilotos apertem botões em vez de pilotar", ou seja, para que a condução do vôo seja na maioria das vezes confiada ao computador, em algumas ocasiões os jovens co-pilotos foram incitados a discutir as decisões de seu comandante de bordo. Na catástrofe do Monte Sainte-Odile, estaria aí uma das fontes de perturbação que podem ter cortado a disponibilidade da tripulação (p. 82). Evidentemente, não se trata em nosso caso de formular uma opinião sobre esse conjunto de considerações, passível também de nutrir reflexões múltiplas de outros especialistas da área (Amalberti, 1996, p. 37; Gras, Moricot, Poirol-Delpech & Scardigli, 1994;Jouanneaux, 1999, pp. 31, 66, 287) . Eles são mencionados para descrever justa- mente um dos "contextos" possíveis da ação que daria, se mantivesse alguma relação com a realidade, certo sentido e certa tonalidade às intenções confirmadas do coman- dante de bordo a seu co-piloto. Sua escolha, efetuada contra a opinião do colega - o que é atestado por todas as análises-, não elimina, com efeito, a outra escolha possível que continuará operante na situação. Por isso, nessa perspectiva, a intenção é apenas prote- gida de maneira muito parcial , nesse âmbito, das intenções rivais. Porém, de todo modo, a recordação final será a de que ela nasceu da troca entre sujeitos num mundo social, em todos os sentidos do termo, "dividido". Assim definida, 29 essa intenção que fixa no piloto a tarefa de aterrissar em Estrasburgo por uma penetras ção ILS sobre o eixo 23 não está com certeza emancipada do contexto em que encon- trou sua origem, quando se acha confrontada por um desenvolvimento inesperado num novo contexto de atividades; este é delimitado pela ação do controlador, que autoriza o avião a proceder segundo a aproximação não ponderada de antemão. Pode- se concordar aqui com o cenário proposto por R. Kroês. "Habituado aos aviões da Air Inter, o controlador acaba de autorizar o 5148 a efetuar uma aproximação direta ("Nú- mero um para a VOR-DME 05"). Decididamente, tudo se conjuga para incitar C. Hecquet a aceitar a penetração VOR-DME. Ele hesita alguns segundos, depois cede às pressões. Afinal de contas, ele fizera muitas vezes essa aproximação em 05 quando comandava o Supercaravelle!" (p. 25) . Deixaremos de lado aqui muitos dos aspectos desses conflitos de intenções no espírito do comandante de bordo e, em particular, o contexto suplementar das situa- ções de instrução sobre A-320, sessões no decorrer das quais o chefe de instrução encorajou: "Deixe-se deslizar, você vai ver, mais de cem outros o conseguiram antes de você, você não é pior que eles" (Kroês, 1993, p. 22). Serão mantidos apenas a mudança de intenção e o que ela implica na reconcepção da tarefa em tempo limitado, exemplifi- cada pela aceitação da proposta do radar de direcionamento. Como o observa J.-M. Hoc, "ele foi provavelmente levado a depositar uma confiança demasiado grande no controlador (pensava ser responsável para além da regulamentação, visto que tomara uma autorização de aproximação final por uma autorização de descida) (Hoc, 1996, p. 137). Por fim, a sobrecarga de trabalho prevaleceu. A tripulação não põde dedicar-se, nesse novo p1ntexto , a realizar sua nova intenção. É possível apenas perguntar se o despertar pelo segundo contexto de intenções recusadas no primeiro contexto, o retorno a escolhas já feitas, o re-fazerna urgência não contribuíram para reativar as hesitações anteriores, dando-lhes , dessa vez, um outro destino. De qualquer maneira, o desenvolvimento da atividade do comandante de bordo não lhe permitiu "proteger" suas intenções iniciais. Proteger uma intenção de outras intenções é uma atividade completa em que o sujeito se toma como objeto para realizar sua tarefa. Seria possível ocorrer de outra maneira 7 Se acreditamos no que diz o texto publicado que o piloto chefe do setor A-320 da companhia americana North West Airlines dirigiu a seus pilotos dois meses depois da catástrofe, podemos de fato pensar assim. Falando da ação dos dois pilotos do 5148 da Air Inter, ele escreve: "Eles estavam pressionados. De forma demasiada. Chegaram mesmo a aceitar a modificação de seu procedimento de aterrissagem no último momento, em menos de dois minutos! É uma loucura ... Um evento desse tipo nunca deve acontecer. Pilotem sempre seu avião com rigor e disciplina. Não se apressem" 2• Mas aqui ainda o testemunho de R. Kroês é valioso e permite matizar a análise: "Esse piloto chefe fala de dinheiro. Ele está à frente 2 Tradução em VSD, n. 803, do dia 21 ao dia 27 de janeiro de 1993. 30 de uma f'r la ujo t mp médio de etapa deve situar-se entre duas e três horas de võo. 1 ez minutos mais numa aproximação são no máximo 7% do tempo de vôo. Para a Air l 111 r, isso equivale a 20%. A Air Inter existe porque seu pessoal operacional, do solo e tio ar, conseguiu fazer as máquinas alcançar oito a nove etapas por dia com drásticas l l' 'Lrições de horário (não há nenhum võo à noite) restringindo os tempos de etapa e os 1e111pos de escala. Para isso, foi necessário impelir os pilotos a enfrentar rapidamente a. modificações de procedimentos de aproximação ou as mudanças de pista , a nego- l'inr com o controle indicações melhores , procedimentos reduzidos, chegadas em r:q idez livre. A prática encarregou-se do resto: um piloto da Air Inter faz duas a três vezes mais decolagens e aterrissagens por ano do que um piloto da Northwest" (1993, pp. 39-40). Em outros termos, ao utilizar aqui um conceito que abordaremos longamente na s qüência deste capítulo, o mesmo A-320 a serviço da Air Inter e da Northwest não participa do mesmo gênero de situação profissional. Isso também se aplica aos pilotos, dos quais se poderá dizer, para concluir este ponto, que não são pressionados por coisa alguma. Mesmo que sem dúvida se pressionem a si mesmos de maneira equivocada. Michel Jouanneaux se dedicou a um cálculo revelador que o leva a insistir no notável esforço de adaptação que a profissão conseguiu: entre 1965 e 1992 - data em que encerrou sua carreira - , Jouanneaux considera que "a capacidade dos aviões foi multiplicada por 4, que sua rapidez foi afetada por um coeficiente de 1,8 e que a redução da tripulação atingiu, globalmente, no mínimo metade de seus membros. Portanto, no período de uma geração de pilotos, a produtividade por pessoa foi multi- plicada por 15" (1999, p . 66). Claro que se evitará relacionar diretamente esses dados com a situação analisada antes. Recordaremos apenas que a utilização do A-320 não provém somente dos acasos do avanço tecnológico. A exploração de um novo aparato atende sempre a objetivos econõrnicos e todas as vezes afeta a atividade em termos de seu gênero. Ela revoluciona, com diversos resultados, as regras coletivas da profissão questionadas nessa ocasião, como aconteceu no conflito a propósito da composição da tripulação. Voltaremos ao problema do gênero no que se refere a algumas dimensões centrais da vida coletiva no trabalho . Por ora, permaneçamos em nosso propósito. À luz dos dados anteriores, podemos sem dúvida refletir de outra perspectiva sobre o "desenca- deamento" dos mecanismos cognitivos. Não parece possível encontrar sua mola pro- pulsora tão-somente no eixo do objeto da ação. Com efeito, o objeto é sempre a meta de urna interpenetração dos contextos de atividades em que os sujeitos procuram atingi-lo. Ele é afetado por essa "interpenetração" dos contextos, em que se desenvol- ve, se reduz ou, eventualmente, se perde. A formação das intenções se produz na inter- seção de dois eixos: o que liga o sujeito ao objeto e o que "vincula" sempre vários sujeitos entre si, correndo o risco de que a desvinculação não seja suficiente para 3 1 garantir a eficácia da ação. A ação mental também está situada nesses "panos de fun-. do", que não são apenas periféricos para o seu desenvolvimento, mas constituem o que se poderia denominar seu ambiente pré-cognitivo. Não se trata apenas de um quadro para seu funcionamento , mas do terreno de seu desenvolvimento ou de seu desapareci- mento. A mobilização subjetiva dos pilotos e seus avatares é, ao menos no caso estuda- do - mas a validade disso tem maior amplitude-, constitutiva de seu funcionamento cognitivo. O nascimento, o desenvolvimento, a repressão das intenções, numa palavra, sua história, cujo objeto de ação é ao mesmo tempo a origem e a ocasião, não consti- tuem o contexto exterior do funcionamento cognitivo, mas seu subtexto, para retornar uma formulação de Vygotsky (1934/1997) . 2. Emoções, inibições, intenções Exprimindo-se melhor a questão, o mesmo autor em sua Théorie des émotions (Vygotsky, 1933/1998), compreende-se integralmente a insistência de um piloto como Jouanneaux na vivência corporal da situação. De acordo com ele, a competência básica do piloto se concretiza na sinergia entre o engajamento corporal e a construção men- tal. Seu testemunho confirma a eficácia das dimensões pré-lógicas da ação já elucidadas nas diferentes tradições de pesquisa (Comu, 1998; Martinelli, 1998). É pela mediação das emoções cujo papel dinamogênico no comportamento humano foi enfatizado por Vygotsky que se forma a ação mental. Comover é põr em movimento, recorda J ouanneaux, que insiste no fato de que o abalo emotivo transformado em atitude posi- tiva, fonte yiva da competência, é essencial à atividade de pilotagem: "É isso o que desencadeia a alta temperatura necessária à fusão dos elementos da competência" (1999, p . 200). Para ele, a aptidão decisiva consiste em transformar a emoção em "dopagem" das faculdades, a converter o abalo provocado pelos elementos exteriores em energia psíquica motora. O corpo se lembra e fornece ao piloto um "alicerce de serenidade" (p. 201) . Ele não hesita em escrever que, longe de ser um obstáculo, "para a tripulação, no decorrer das operações, a emoção é um sinal de alarme e um desenca- deam~nto de energia. Sua partilha é a principal base da coesão da tripulação" (p . 202). Natur~lmente, é preciso aprender "a não se deixar levar" pela emoção para ter condi- ções de extrair dela os recursos do gesto; é necessário torná-la profissional e, em certo sentido, tudo consiste nisso. É preciso desenvolvê-la, enriquecê-la. Mas então "o sentir da emoção não tem tempo de assumir proporções inibidoras, o corpo é tonificado para agir" (p. 205). Por conseguinte, ela deixa marcas. Pois o piloto "interioriza a imagem de si mesmo reagindo a um evento situado num contexto particular no espaço e no tempo. Memória corporal dos gestos empregados, representação potencial estruturada com base nas regras técnicas, decantação do abalo induzido colorindo especificamen- te cada caso . Assim, dispõem-se em sutil estratificação as situações sucessivas que acumulam ao longo ela carreira as abordagens cada vez mais ricas da realidade" (p. 32 20 ).Jouanneaux cita Damasio (1995). Se1ia possível referir-se também a Doray (1998) ou a Berthoz (1997), de quem trataremos adiante neste livro: para ele, o corpo é "uma m ·mória para prever". Um autor considerou particularmente bem a importância elo 1·11riquecimento emocional: Fernandez-Zoila, cuja obra contribui tão substancialmen- 1 • para as questões do corpo e das emoções (Femandez-Zoila, 1952, 1995; Sivadon & Fcrnandez-Zoila, 1986), enfatiza que um estadoemocional pode transformar-se num ..,çntimento desenvolvido, "um sentimento do segundo grau, uma obra, instalada no rnração da pessoa" (1995, p. 62). Porém, para fazê-lo, são necessários tempo e uma 1,rganização do trabalho que facilite essa sedimentação no curso da qual as emoções se rnnvertem num instrumento de ação eficaz. Nunca é demais insistir nessas dimensões que tramam o comportamento humano. Vygotsky as situava no centro de sua análise, o que de resto o deixa bem distante dos modelos sóciocognitivos e interacionistas ela ,li ividade. Não há aí nenhuma ambigüidade: segundo ele, é preciso criticar o mentalismo t· intelectualismo, para os quais "a vontade administra as paixões à maneira elo 11avegador cujo navio sofreu uma avaria" (1998, p. 331). Ele acrescenta: "Nossos afetos nos mostram claramente que não formamos senão um único ser com nosso corpo . São pr cisamente as paixões que constituem o fenõmeno fundamental da natureza huma- 11a" (p. 267). Rememoraremos apenas esta afirmação, extremamente importante para uosso objetivo: "Num período de forte excitação, sente-se com freqüência um poder co lossal. Esse sentimento aparece bruscamente e eleva o indivíduo a um nível mais 11 11.0 de atividade. Quando passamos por fortes emoções, a excitação e o sentimento de lorça se unem, liberando mediante essa união uma energia até então guardada e igno- rnda, e que leva a tomar consciência de sensações inesquecíveis de vitória possível" (p. 104). Mas, apesar disso, sabemos com clareza, desde os trabalhos de Wallon (1949) e de Malrieu (1967), indicados por Fernandez-Zoila, que a dimensão social é consubstancial às emoções. Voltemos então a essa dimensão do problema. Como vimos pelo relato anterior, para explicar a situação devemos recorrer à heterogeneidade dos mundos sociais, aos conflitos das normas, à pluripertinência dos sujeitos a fim de poder situar-nos nas lontes da ação. Aqueles que trabalham estão necessariamente emaranhados nesses "universos contextuais" [ arriere-mondes] E parece de fato possível formular a idéia de que a ação , compreendida como a o upação do sujeito, emerge no cruzamento das pré-ocupações [sic] que são as suas; no nível delas, é preciso incluir a atividade dos outros (Curie & Dupuy, 1996) . A ação que o upa os pilotos é, no sentido estrito do tenno, literalmente pré-ocupada. _Quando se l 'cide por um modo ele aproximação antagônico ao sugerido pelo co-piloto, o coman- dante de bordo não realiza apenas um ato positivo; ele também afasta ele sua ação o que n pré-ocupava: a ação do outro. Mas resolve também sua própria hesitação a partir de Vc rias possibilidades. Por conseguinte, o ato é também "negativo". Pertence à própria t·on lição da atrelagem ela ação recusar outras ações possíveis. O dinamismo da ação '.l3 encontra aí suas raízes, tratando-se menos de uma proteção passiva do que de uma produção vi.tal de energia para conduzi-la. Poderíamos aqui inspirar-nos nas reflexões de Berthoz sobre um outro nível de atividade: "É raro atribuir à inibição outro papel que não a supressão . Testemunha isso a expressão corrente 'ser inibido' no sentido negativo de 'não poder fazer alguma coisa"'. No entanto, a inibição neuronal é, pelo contrário, um dos mecanismos fundamentais da produção do movimento e de sua flexi- bilidade, sem dúvida o principal mecanismo da aprendizagem sensório-motora. Ela está igualmente na origem de mecanismos perceptivos de filtragem e de seleção, de- sempenhando um papel positivo em certas funções cognitivas como a tomada de deci- sões" (1997, p . 210). Levamos a sério a função dinâmica da inibição no nível psicoló- gico propriamente dito. No caso que agora abordamos, o que o comandante de bordo não quer fazer decide o que ele faz, pertence duradouramente ao que ele faz, a ponto de permanecer no horizonte de sua atividade, como o enfatizamos antes. Dizendo melhor, se a não-escolha do modo VOR-DME no início fora verdadeira- mente eliminada, se não participasse em absoluto da atividade seguinte, não podería- mos de fato compreender por que o comandante de bordo prefere ceder à pressão do controlador em vez de integrar-se ao circuito de espera. A ação abandonada não deixou de agir. Ela chega mesmo a atribuir sentido à ação "vitoriosa". A intenção do coman- dante Hecquet forma-se apenas por meio da desvinculação no que se refere à atividade do co-piloto, ao instrutor da companhia e às suas próprias intenções. Mas não o sufi- ciente para assegurar a produção dinâmica duradoura de sua linha de comportamen- to? De todo modo, mal terá ele percebido que a ação advinda desse conflito foi por sua vez contrariada pela atividade do controlador e até pelas dos três pilotos que se ocu- pam da pista visada. Esse imprevisto reconduz a ação ao passado, para o que ela teria podido ser, testando sua perenidade. A ação resultante dos conflitos anteriores da ativi- dade volta então a eles. E a precipitação vem por fim complicar de maneira considerá- vel are-formação da ação deformada. É um pouco como se - mas o diremos com certa reserva - fosse a ação contrariada que se realizasse em operações que a traem. Com efeito, a ação se forma num meio saturado de atividades heterogêneas, liber- t tando-se - na melhor das hipóteses - de suas contradições. Esse meio não é um am- biente exterior à ação. Trata-se de alguma maneira de seu meio interior. Ele é povoado, e até superpovoado, por intenções "es tranhas" a que o profissional deve submeter-se, impondo assim uma espécie de trabalho de refração com referência à sua intenção. Afinal de contas, a ação não pode ser compreendida a partir de si mesma. Seu desenca- deamento deve ser vinculado a atividades que se intercambiam em certos contextos e seu funcionamento , a operações que se exercem no âmbito de outras. Entre esses dois pré-supostos, ela se forma, se transforma e se deforma. No caso que examinamos, é possível questionar se a liberdade de ação da tripulação não terá sido entravada por uma situação de que ela não conseguiu libertar-se. Acabamos de propor algumas expli- cações que completam, sem anulá-las, aquelas que a abordagem cognitiva permite 34 lonm.t!ar. Essas explicações dizem respeito a uma psicologia desenvolvi.mental da Il i ividade. No entanto, elas merecem também ser associadas ao que designaremos por ,una abordagem da atividade dos sujeitos do ponto de vista do gênero. 3. Abordagem da atividade do ponto de vista do gênero Expliquemo-nos. As reflexões feitas por J.-M. Hoc sobre o acidente são significati- vns de uma renovação no olhar lançado sobre o erro humano, a emergência de "um ponto de vista positivo" acerca desse erro (1996, p. 161) . Segundo ele, costuma-se em iwral, com demasiada freqüência, atribuir o erro ao operador "de primeira linha". É 11111 "mau processo" que movemos contra ele: "Confiam-lhe o encargo da função de tdnptação do sistema homem-máquina às mutáveis condições de seu ambiente, sua lar -fa de adaptação é tornada cada vez mais difícil e, quando ele põe em prática os 111cios de realizá-la, injustamente o qualificam de responsável por executá-las" (p. 11 ). Isso suscita uma pergunta: "A simplificação da atividade que a reduz a um mode- lo alculável pela informatização das situações acaso não cria para o operador, apre- 11• ·to de ajuda, situações ainda mais complicadas de administrar? " (p. 188). De fato, na l''-1 1 ira de Reasou, ele considera que o operador dedica muito de seu tempo a compen- nr os "erros latentes" do sistema. Quando essas compensações são tidas por inadequa- dus em virtude de uma sobrecarga de trabalho, é então injusto imputar-lhe a responsa- l,iliclade. Indo mais longe, havendo a admissão de que "o bloqueio estrito de todo erro humano era uma concepção perigosa da confiabilidade dos sistemas" (p. 154) , Hoc pr põe concentrar o interesse no "risco subjetivo" que correm sujeitos que se recusam 1 ndaptar seu plano de tratamento
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