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Introdução A adolescência é o período de transição entre a infância e a vida adulta, caracterizado por rápido crescimento e desenvolvimento, com relevantes transformações anatômicas, fisiológicas, mentais e psicossociais. O adolescente tem a tendência de experimentar o novo, e sua impulsividade e ilusão de indestrutibilidade, em um contexto social e familiar de riscos ou desfavorável, pode comprometer seu presente e seu futuro. Às transformações biológicas ocorridas nessa fase dá-se o nome de puberdade, período em que ocorrem aceleração do crescimento pôndero-estatural, mudanças na composição corporal e alterações hormonais desencadeadas pelo desenvolvimento do aparelho reprodutivo. A adolescência, conceitualmente mais ampla, está sujeita às influências de fatores ambientais, sociais e culturais, que frequentemente podem afetar de diversas maneiras a saúde desse grupo populacional. Os limites da adolescência são variáveis, pois ela tem início com as primeiras manifestações da puberdade, mas é difícil determinar seu término. Para efeitos práticos, adotam-se os limites cronológicos propostos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), ou seja, dos 10 aos 19 anos de idade, faixa etária que abrange a maior parte dos eventos dessa fase. Em virtude de diferenças estruturais e comportamentais, o Unicef considera justificável subdividir esta fase em duas etapas: fase inicial de 10 a 14 anos e fase final de 15 a 19 anos (Unicef, 2011; Sawyer et al., 2017). Atenção Integral O acentuado e complexo processo de maturação corporal e psíquico vivenciado pelos adolescentes confere-lhes um aspecto preocupante de vulnerabilidade que exige demandas específicas na atenção à saúde. Atualmente, têm sido observadas mudanças significativas no perfil de morbimortalidade nesse grupo populacional, com prevalência de problemas que poderiam ser evitados por medidas de promoção de saúde e prevenção de agravos, tais como os de causas externas (acidentes, suicídio e homicídio). As taxas de agravos por causas externas em adolescentes são superiores às dos demais grupos populacionais e maiores que as de causas de adoecimento por diferentes agentes. Outras questões de saúde, como transtorno alimentar, gravidez não planejada e uso de drogas lícitas/ilícitas, são também frequentes. A atenção integral à saúde do adolescente deve compreender os aspectos biológicos, psicológicos e sociais em contexto social, cultural e familiar que interagem continuamente. Essa contextualização revela o desafio que permeia a assistência à saúde do adolescente e evidencia a necessidade de se dar ênfase às medidas de promoção e prevenção à saúde para além daquelas simplesmente biológicas e curativas. As Diretrizes Nacionais para a Atenção Integral à Saúde de Adolescentes e Jovens na Promoção, Proteção e Recuperação da Saúde, do Ministério da Saúde, apresentam três eixos prioritários de atuação: (1) acompanhamento do crescimento e desenvolvimento; (2) atenção integral à saúde sexual e reprodutiva; (3) atenção integral ao uso abusivo de álcool e outras drogas lícitas/ilícitas por pessoas jovens. Os temas estruturantes dessas diretrizes foram definidos com o intuito de propiciar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social dessa população, preconizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 2010). A análise desses temas sugere que as questões de saúde dessa população vão além das ações do setor de saúde, em seu conceito tradicional. Nessa linha de atuação e cuidado, o médico e/ou a equipe multiprofissional devem buscar a participação conjunta dos diversos setores da sociedade no desenvolvimento das ações de atenção à saúde, propondo intervenções intersetoriais e interdisciplinares. Desenvolvimento Psicossocial A adolescência é um período crucial da vida humana. Tal como o nascimento, é um momento de ruptura e de intensas transformações biológicas e psicossociais. As modificações corporais abruptas, salientando-se a maturação sexual, mostram ao indivíduo que ele não é mais uma criança. A conquista de sua identidade, incluindo a sexual, é uma tarefa que ele deverá realizar. No entanto, ele percebe que isso não será simples, pois, ao mesmo tempo em que deve se tornar independente, separar-se de sua família, ainda precisa muito da proteção que ela oferece, sendo frequentes os sentimentos ambivalentes por parte não só do adolescente como também de todos os envolvidos com o seu bem-estar. Pode-se dizer que a adolescência é uma fase de muitas contradições. Por isso é comum que atitudes mais maduras se alternem com outras verdadeiramente infantis. Nesse processo de transformações, o adolescente vivencia três perdas marcantes, cujas elaborações são necessárias para se alcançar a identidade adulta: (1) luto pela perda do corpo infantil – o corpo transforma- se à revelia da sua vontade, podendo ocasionar-lhe ansiedade e desconforto; (2) luto pela perda da identidade infantil – o adolescente costuma assumir diferentes identidades ou papéis transitórios na busca da sua própria identidade e/ou começa a exibir um comportamento diferente daquele que tinha até então, no que diz respeito a responsabilidades e deveres; (3) luto pela perda dos pais da infância – os pais passam a ser vistos com um olhar marcadamente critico, e não mais de modo idealizado, sendo comum a adesão a grupos capazes de influenciar a construção de sua identidade adulta. No processo de elaboração dos lutos, o adolescente apresenta atitudes emocionais e comportamentais que, nesse ciclo da vida, devem ser consideradas normais. O refúgio em seu mundo interior, a busca de um grupo de semelhantes, a intelectualização e o ascetismo são alguns dos recursos empregados pelo adolescente para superar suas ansiedades. Há um aumento real de agressividade, manifestado pela rebeldia, que é uma constante durante esse período e deve ser entendida, na maioria das vezes, como parte inerente ao processo de transformação pessoal necessário ao amadurecimento. Por outro lado, muitas vezes o adolescente vive em um meio desfavorável, que pode potencializar conflitos que sinalizem essa inadequação. A compreensão das diferentes dimensões do adolescer é primordial para o estabelecimento de vínculo dos profissionais de saúde com o adolescente na busca de uma adolescência saudável. Síndrome da Adolescência Normal: Busca de si mesmo e da identidade adulta Tendência grupal Crises religiosas Contradições sucessivas nas manifestações de conduta Constantes flutuações do humor e do estado de ânimo Separação progressiva dos pais Necessidade de intelectualizar-se e fantasiar Deslocação temporal Atitude social reivindicatória Evolução sexual Modificações Biológicas Do ponto de vista biológico, as principais transformações referem-se à maturação sexual e ao chamado estirão da adolescência, desencadeados por alterações hormonais do eixo hipotálamo-hipófise-gônadas. Há amplas variações individuais determinadas especialmente por fatores genéticos, tanto em relação à idade do início da puberdade quanto à magnitude e à duração dos eventos. A sequência de eventos que caracterizam a maturação sexual tende a ser mais precoce no sexo feminino e se completa em um período de 2 a 5 anos. Nas meninas, esse processo tem início com o aparecimento do broto mamário, entre os 8 e os 13 anos de idade, tendo como média 9,7 anos. Fato marcante da puberdade feminina, a menarca costuma ocorrer aos 12,2 anos, em média, podendo surgir no período entre os 9 e os 16 anos. No sexo masculino, o primeiro indício de maturação sexual é o aumento dos testículos, que se dá em média aos 10,9 anos, podendo ocorrer entre os 9 e os 14 anos de idade. Esse evento é seguido pelo aparecimento de pelos pubianos, em média aos 11,9 anos, e pelo aumento do tamanho do pênis. O aparecimento de pelos axilarese faciais ocorre mais tardiamente, na maioria dos casos aos 12,9 e aos 14,5 anos, respectivamente. A sequência desses eventos foi estudada por Tanner e Marshall (1962), que os classificaram em cinco etapas (estágios de Tanner), considerando o desenvolvimento mamário e a distribuição e quantidade dos pelos pubianos no sexo feminino e o aspecto dos órgãos genitais, além da quantidade e distribuição dos pelos, no sexo masculino. Denomina-se estirão o expressivo crescimento corporal que ocorre na adolescência. Com exceção do primeiro ano da vida, a adolescência é a fase na qual o indivíduo mais cresce, principalmente no tronco e nas pernas. O estirão ocorre em uma sequência distal-proximal, e, por isso, o primeiro segmento a crescer é o pé. O início do estirão e seu pico de velocidade estão relacionados com as fases de maturação sexual, e não com a idade cronológica. No sexo feminino, ele ocorre nas fases iniciais da puberdade, coincidindo habitualmente com o estágio 2 de Tanner. O pico de velocidade de crescimento costuma ocorrer no estágio 3 de Tanner, sempre precedendo a menarca, que na maioria das vezes coincide com o período de desaceleração do crescimento e com o estágio 4 de Tanner. No sexo masculino, o estirão se dá mais tardiamente, com início no estágio 3 de Tanner, com pico de velocidade do crescimento no estágio 4 de Tanner. Associado ao crescimento do esqueleto, a massa e a força muscular aumentam consideravelmente, de modo mais acentuado no sexo masculino. Isso também ocorre com todos os tecidos e órgãos, excetuando- se o tecido linfoide, que regride, e a gordura subcutânea, que diminui em termos absolutos em uma fase do crescimento de indivíduos do sexo masculino. Consulta Médica do Adolescente A abordagem ao paciente adolescente deve considerar a complexidade do período de grandes transformações que ele vivencia nas diversas dimensões. A consulta precisa avaliar mais que as morbidades e questões biológicas, como crescimento, desenvolvimento, avaliação nutricional e observação de fatores de risco de doenças. Deve-se avaliar também as condições sociais do paciente, os aspectos emocionais, a dinâmica familiar, a vida escolar, os relacionamentos, as aspirações profissionais e os ideais de vida. Além disso, é fundamental investigar se há exposição a situações de violência e comportamentos de risco que resultem em doenças sexualmente transmissíveis, gravidez indesejada, uso abusivo de drogas lícitas/ilícitas e transgressões da lei, estabelecendo estratégias para afastar o adolescente das condições de vulnerabilidade e identificar fatores protetores para a promoção da saúde integral. Considerando-se as peculiaridades do paciente dessa faixa etária, o seu atendimento apresenta particularidades e princípios éticos específicos que devem nortear a consulta. O médico deve reconhecer o adolescente como indivíduo progressivamente capaz e atendê-lo de maneira diferenciada, respeitando sua individualidade e mantendo uma postura de acolhimento, centrada em valores de saúde e bem-estar do jovem. O adolescente tem o direito de ser atendido sem a presença dos pais ou responsáveis no ambiente da consulta, garantindo-se a privacidade, a confidencialidade e o direito de escolha sobre procedimentos diagnósticos, terapêuticos ou profiláticos, para que ele assuma integralmente seu tratamento. A confidencialidade é um direito do paciente adolescente e gera a obrigação do sigilo médico regulamentada pelo artigo 74 do Código de Ética Médica (Conselho Federal de Medicina, 2010). A quebra do sigilo e a participação e o consentimento dos pais ou responsáveis são necessários em situações consideradas de risco (gravidez, aborto, uso abusivo de drogas, não adesão a tratamentos recomendados, doenças graves, risco à sua vida ou à de terceiros) e em face da realização de procedimentos de maior complexidade (biopsias e intervenções cirúrgicas). Nessas situações, o adolescente deve ser informado da quebra de sigilo, justificando-se os motivos para essa atitude. No caso de risco de vida para si (risco de suicídio, por exemplo) ou para terceiros, o sigilo pode ser quebrado sem o seu consentimento. A participação da família no processo de atendimento do adolescente é altamente desejável, mas os limites desse envolvimento devem ficar claros para pais, ou responsáveis, e o filho. Ao lidar com um adolescente, o médico deve considerar as situações especiais vivenciadas nesse período. A luta pela conquista da própria identidade inclui necessariamente conflitos com o mundo adulto, representado por sua família. Ora o médico é visto pelo adolescente como parte desse mundo, ora como um representante da própria família. A habilidade do médico em estabelecer uma relação construtiva consiste em saber compreender a adolescência. Entre outras características, essa fase inclui crítica veemente, contestação e rebeldia em relação aos adultos, sobretudo aos mais próximos, como os pais. Por outro lado, o adolescente demonstra necessitar que o mundo adulto reconheça suas ansiedades e lhe dê limites e segurança. Por isso o médico deve manter sua postura de adulto e não agir como um adolescente. Deve assumir uma atitude acolhedora e compreensiva, que inspire confiança e respeito, sem autoritarismos, sem preconceitos ou julgamentos, dando oportunidade para que o paciente fale sobre seus problemas, sua relação com a família, com a escola e com os amigos, e sobre sua sexualidade. Fazer uso de uma linguagem clara, simples e objetiva facilita a comunicação, pois muitas vezes estados de ansiedade são diminuídos após consulta com um médico que nada fez de excepcional, a não ser ouvir e dialogar. O conflito de pontos de vista é muito comum na relação entre pais e filhos adolescentes. Frequentemente, esse é o motivo da consulta, traduzido por queixas vagas de nervosismo, agressividade ou “fechamento”. É comum certa pressão, declarada ou velada, para que o médico se posicione em um dos lados, por isso é importante que o profissional esteja atento e evite fazer alianças. Seu papel deve restringir-se a compreender os conflitos e facilitar sua compreensão pelas duas partes, colaborando para a sua solução. Para assegurar privacidade e confidencialidade ao adolescente, a consulta médica costuma ser dividida em momentos: um em que a família está presente, outro no qual o médico atende apenas o adolescente, e um último quando a família está novamente presente para a conclusão da consulta e o estabelecimento dos planos de tratamento. A ordem dos tempos pode variar conforme a necessidade do caso, as circunstâncias e os protocolos do serviço. As vezes, a família necessita de um tempo específico para si e solicita ao clínico. No entanto é preciso deixar claro para a família e para o adolescente que nada que for tratado no consultório médico será revelado aos familiares, a não ser que isso seja fundamental ao tratamento. Mesmo nesse caso é necessário obter o consentimento do adolescente. Anamnese No início da consulta, quando o acompanhante e o adolescente estão juntos, o segundo é interrogado sobre o motivo da consulta ou queixa principal e sobre a história da doença atual. Aproveitando a presença do acompanhante, são averiguados também: antecedentes familiares, pessoais e fisiológicos, como gestação, tipo de parto, peso ao nascimento, condições do nascimento, período neonatal e intercorrências; crescimento e desenvolvimento neuropsicomotor; amamentação e alimentação nos dois primeiros anos de vida; morbidades pregressas pessoais e familiares, como doenças da infância, cirurgias, convulsões ou desmaios, internações, alergias, uso de medicamentos; imunização atual e da infância; alimentação atual, a partir de diário alimentar com horários. No segundo momento,em que está presente apenas o adolescente, deve-se perguntar a ele sobre a queixa principal e a história da doença atual, agora sob sua perspectiva. O que diz o adolescente pode coincidir com o relato do familiar, mas algumas vezes podem ser obtidas informações complementares e/ou histórias diferentes e até mesmo contraditórias. Às vezes, a consulta é motivada mais pela preocupação da família do que a do próprio adolescente. Em alguns casos, os adolescentes podem estar disfarçando problemas comportamentais, e em outros, queixas emocionais, manifestadas somaticamente. Nessas circunstâncias, o médico tem de usar sua perspicácia e sensibilidade para captar o verdadeiro motivo da consulta. Em seguida, aplica-se o interrogatório sintomatológico, de acordo com as normas gerais para os diversos sistemas, sendo importante pesquisar: apetite, atividade, ganho ou perda de peso recente, características dos ciclos menstruais, data da última menstruação, sono, estado emocional, mal-estar. Investigam-se também: as condições socioeconômicas, como moradia, saneamento básico, renda familiar; os hábitos de vida, como tempo de tela no dia (eletrônicos), prática de exercícios, uso e experimentação de tabaco, álcool e drogas lícitas/ilícitas; a vida escolar, como série em curso, dificuldades de aprendizagem e socialização; as relações familiares, como conflitos, disfunções, violências, posição e papel que ocupa na família; as relações sociais, como religião, amigos, namoro, sexualidade, trabalho, lazer; a saúde sexual e reprodutiva, se recebeu informação a esse respeito e quais são suas dúvidas. As perguntas devem ser feitas com cuidado, respeitando-se a idade, o desenvolvimento puberal e o interesse manifestado pelo adolescente. Podem ser abordados assuntos como: importância do autocuidado e do cuidado com o outro, medidas de proteção, atividade sexual, masturbação, afetividade, prazer e questões relativas à orientação sexual quando necessário ou demandadas. Quando o paciente mostra-se pouco comunicativo ou hostil, podem-se usar algumas estratégias, tais como iniciar a conversa com temas do interesse do jovem ou com um interrogatório sintomatológico, para aos poucos chegar ao problema principal. O envolvimento afetivo do médico com relação à queixa principal, especialmente quando se trata de problemas mais graves, pode levá-lo a descuidar-se da investigação dos aspectos globais da vida do adolescente, o que é desastroso. Conclusão Ao término da consulta, formulam-se as hipóteses diagnósticas a fim de estabelecer os tratamentos necessários, planejando as condutas. Essas devem incluir necessariamente instruções educativas para a promoção de hábitos saudáveis, visando à manutenção da saúde e à prevenção de doenças e comportamentos de risco e agravos. Recomenda-se considerar os aspectos globais da saúde, com avaliação do estado nutritivo, do crescimento, do desenvolvimento neuropsicomotor, da maturação sexual, da alimentação e da vacinação. Todos esses devem ser discutidos com o adolescente e, depois, no último tempo da consulta, com sua família, respeitando-se o sigilo médico nas questões em que o jovem quiser manter confidencialidade.