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1 CANCÃO a lua, o sol dos mendigos (estudos críticos sobre o pássaro-poeta do Pajeú) 2 Copyright @ 2013 Edições UERN Revisão Maria de Fátima Barbosa Mesquita Batista Capa e diagramação Gustavo Luz Ilustrações Jonas Tito C215 Cancão: a lua, o sol dos mendigos: estudos críticos sobre o pássaro- poeta do Pajeú. / Karlla Christine Araújo Souza, Lindoaldo Campos, Marcos de Camargo Von Zuben (Orgs). Mossoró: UERN, 2013. Edições UERN 182 f. ISBN: 978-85-7621-072-6 1. Poesia brasileira. 2. Poesia popular. 3. Literatura brasileira - Poesia. I. Souza, Karlla Christine Araújo. II. Campos, Lindoaldo. III. Von Zuben, Marcos de Camargo. IV. Título. UERN/BC CDD B869.1 Catalogação da Publicação na Fonte. Bibliotecária: Elaine Paiva de Assunção CRB 15 / 492 3 CANCÃO a lua, o sol dos mendigos (estudos críticos sobre o pássaro-poeta do Pajeú) Organização Karlla Christine Araújo Souza Lindoaldo Campos Marcos de Camargo Von Zuben 4 Apresentação Karlla Christine Araújo Souza Lindoaldo Campos Marcos de Camargo Von Zuben À guisa de prefácio Meca Moreno Cancão: a essência, a estrada, o elo Aroldo Ferreira Leão Cancão e Augusto dos Anjos: diálogos entre o popular e o erudito Josivaldo Custódio da Silva Cancão, poeta irreverente Lindoaldo Campos Sumário 8 14 31 45 69 5 O Cantar do Pajeú: tradição e oralidade na poesia do pássaro do sertão Karlla Christine Araújo Souza Imagens do inconsciente coletivo em Falando ao Mar de João Batista de Siqueira Maria Nazareth de Lima Arrais A dinâmica do signo no poeta Cancão e o marco do Pajeú Nélson Barbosa de Araújo Cancão: estrela de primeira grandeza no universo da poesia Vera Lucia Leite Mariano Posfácio Cancão, velho pajé: a cura pela poesia Lydia Brasileira 86 104 125 155 176 6 Meca Moreno Poeta, estudioso da poesia popular. Membro da União dos Cordelistas de Pernambuco – UNICORDEL e da União Brasi- leira de Escritores – UBE. Aroldo Ferreira Leão Professor da Universidade Federal do Vale do São Fran- cisco - UNIVASF. Pós-Graduado em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Possui 141 liv- ros publicados, dentre os quais o ensaio Cancão: os anjos são crianças muito sozinhas (Petrolina/PE: Copy Service, 2012), estudo crítico sobre a poesia do poeta popular João Batista de Siqueira, Cancão. Josivaldo Custódio da Silva Professor de Literatura Popular e Literatura Brasileira do curso de Letras da FFPNM (UPE). Doutor em Literatura e Cultura pelo PPGL/UFPB. Pós-Doutorando em Teoria da Lit- eratura, com ênfase em Literatura Popular pelo PPGL/UFPE, sob a supervisão do Prof. Dr. Lourival Holanda. Lindoaldo Campos Licenciado em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN. Mestre em Filosofia pela Universi- dade Federal do Rio Grande do Norte- UFRN. Autores 7 Karlla Christine Araújo Souza Doutora em Sociologia pela Universidade Federal da Par- aíba. Professora do Departamento de Ciências Sociais e Políti- cas - DCSP da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN e do mestrado em Ciências Sociais e Humanas PPG- CISH/UERN. Maria Nazareth de Lima Arrais Doutora em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba. Professora da Uni- versidade Federal de Campina Grande (Campus de Cajazeiras/ PB). Nélson Barbosa de Araújo Doutor em Letras pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Vera Lucia Leite Mariano Graduada em Letras pela Universidade de Pernambuco – UPE. Estudante de Psicologia na Universidade do Vale do São Francisco – UNIVASF. Lydia Brasileira Professora de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Artista plástica, poeta, pesquisadora, au- tora de Raízi gatingêras – de Ontôim e Terezinha Francisco Reis (Ca- icó/2011). 8 Apresentação Escudada pela portentosa Serra da Borborema, donde vinga o rio que lhe dá nome, a microrregião pernam-bucana do Vale do Pajeú é ventre e berço afamado de alguns dos maiores poetas brasileiros, como Rogaciano Leite (autor do monumental Carne e Alma) e Biu Crisanto (autor de Meu Trigal) e os repentistas Job Patriota, Antônio Marinho e os irmãos Dimas e Otacílio e Lourival Batista. E foi aí, precisamente na cidade de São José do Egito, que nasceu João Batista de Siqueira, Cancão, e onde, nos dias 27 e 28 de julho de 2012, realizou-se o evento culminante de uma extensa programação de atividades culturais implementadas em comemoração ao centenário de seu nascimento – a exem- plo do Congresso Internacional do Livro, Leitura e Literatu- ra do Sertão (Clisertão), que teve lugar em maio de 2012 em Petrolina-PE, e da 9ª Bienal Internacional do Livro, a se realizar em 2013 no Recife, em que Cancão será um dos homenagea- dos. Organizado pela Fundarpe – Fundação do Patrimônio His- tórico e Artístico de Pernambuco, através do festival Pernam- buco Nação Cultural, o evento contou com a presença de vários 9 artistas, estudiosos e amigos do poeta, que puderam apreciar exposições de fotos, objetos pessoais e manuscritos de Cancão, lançamentos de livros, mesas de glosa e prosa, declamações, apresentações poético-musicais e palestras. Pois bem: durante a realização do evento, a todos ficou pa- tente a necessidade de se fazer registrar e tornar público um conteúdo mínimo daquilo que efetivamente foi um dos mais belos, fecundos e prazerosos encontros artístico-literários já realizados naquelas plagas tão ricas, mas infelizmente ainda não devidamente (re)conhecidas pelo próprio povo, por nós mesmos. O presente volume é fruto deste paradoxo que é o paradoxo da própria vida do povo dali (e, de resto, de todo o sertão nor- destino), que envolve, de um lado, a pujança de arte que sangra de suas mentes férteis e se espraia pelo Rio Pajeú e, de outro lado, a carência de atitudes de registro, preservação e divulga- ção desta arte, deste mundo, que, afinal, é tudo o que temos e é tudo de que precisamos. Aqui estão registradas as palestras proferidas pelos profes- sores presentes na ocasião. O primeiro artigo de autoria de Aroldo Ferreira Leão, Professor da Universidade Federal do Vale do São Francisco – UNIVASF, é ponto de partida para uma renovação das leituras acerca da obra de João Batista de Siquei- ra, Cancão. Ao citar alguns poemas do vate sertanejo, Aroldo abre às cordialidades que serão construídas ao longo do livro e expande a visão que temos do poeta, atribuindo para este os “patamares sublimes da recriação do momento”. Com lingua- gem sonora, usando de “visões viscerais”, Aroldo causa admi- ração por sugerir a magnitude do espírito de Cancão e, assim, aponta a estrada para que possamos percorrer a essência das 10 sonoridades e dos sentidos da poesia cancaniana. Aroldo Leão enseja o elo que dará enredamento aos demais artigos. Enquanto Aroldo Leão apresenta Cancão como poeta popu- lar de instrução primária, Josivaldo Custódio da Silva, Profes- sor de Literatura Popular e Literatura Brasileira da Universida- de Estadual de Pernambuco – UPE, faz uma comparação entre dois poemas de Cancão, O Ébrio e Flores do Pajeú, e o soneto Idea- lismo de Augusto dos Anjos. O autor nos convida a adentrar no campo da literatura comparada através de um diálogo que está para além das fronteiras literárias, possibilitando-nos deslum- brar o universo da criação artística. No artigo intitulado Cancão e Augusto dos Anjos: diálogos entre o popular e o erudito a noção de transversalidade está presente como leitura possível das obras dos dois poetas. Os procedimentos para a intertextualidade são os elementos estéticos e a melancolia como correlação te- mática. Na esteira da análise de Josivaldo Silva, Lindoaldo Campos, Mestre e Professor deFilosofia da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN, no artigo intitulado Cancão, po- eta irreverente, faz uma análise estrutural da poesia de Cancão a fim de argumentar sobre as cesuras entre a irreverência deste poeta e sua relação com a poesia popular, uma vez que não amolda o poeta como continuador dos parâmetros estéticos da cantoria. Para Lindoaldo Campos, Cancão realizou, através da palavra escrita, uma “poesia de bancada”. Afirma ainda que Cancão voejou com liberdade em relação aos paradigmas da poética popular, sendo várias suas inovações: em relação aos temas, expressou lírica confessional e introspectiva; quanto à métrica, construiu versos em quadra, quinteto, sextilha, oita- va, décima e soneto; quanto à variedade rítmica, utilizou rimas 11 encadeadas e versos hendecassílabos nos sonetos. Enfim, o au- tor dá provas do seu vasto conhecimento da obra de Cancão e apresenta um modelo de compreensão que passa pelo estudo das suas qualidades literárias. Em uma perspectiva um pouco discrepante, no artigo se- guinte, que se intitula O Cantar do Pajeú: tradição e oralidade na poesia do pássaro do sertão, assinado pela Professora Doutora em Sociologia Karlla Christine Araújo Souza, a autora resguarda para a obra de Cancão a convivência entre dois modos de co- municação, o oral e o escrito, sem desvincular a poesia canca- niana do contexto da tradição oral presente na região em que o poeta nasceu e viveu. Para a autora, Cancão é um intelectual de seu povo e de sua cultura, ao mesmo tempo em que registra as oralidades impressas na natureza, na fauna, na flora, no canto dos passarinhos e dos poetas do Pajeú. Uma das razões desse elo entre a tradição e a poesia de Cancão se manifesta na per- manência no lugar e nas raízes ancestrais comuns. A proposta do artigo consiste numa definição transdisciplinar do conheci- mento a partir de uma lógica integradora e uma compreensão do mundo que se liga à universalidade da condição humana. Em seguida, Maria Nazareth de Lima Arrais vai além e reli- ga os poemas de Cancão aos aspectos do inconsciente humano e da natureza espiritual. No artigo Imagens do inconsciente coletivo em Falando ao Mar de João Batista de Siqueira, a autora, Doutora em Letras, apresenta uma análise minuciosa do po- ema Falando ao Mar e destaca os elementos da natureza: mar, terra, céu, lua, como metáforas dos arquétipos que condensam aspectos da natureza humana inconsciente. Uma das projeções arquetípicas é feita em relação à alcunha de Cancão, que repre- senta, enquanto pássaro, uma ligação com as intuições secre- 12 tas. Outra projeção arquetípica importante é simbolizada por Deus, que indica a totalidade psíquica Self, superior a sizígia (lógica das oposições) e que significa a unidade do ser. A partir dessas imagens que revelam o inconsciente coletivo, Nazareth Arrais apresenta Cancão como pintor das paisagens humanas, conhecido de seu povo, ao mesmo tempo simples e complexo. Para conciliar as múltiplas faces associadas à poética can- caniana, o Professor Doutor em Literatura, Nelson Barbosa Araújo, apropria-se dos signos linguísticos e históricos para apresentar Cancão como marco inexpugnável do Pajeú em ar- tigo intitulado A dinâmica do signo no poeta Cancão e o marco do Pajeú. O autor enfatiza os paradoxos presentes nas ocorrên- cias da vida de Cancão que se inteirando dos fatos ecológicos e históricos em seu entorno, tais como, guerras, secas, cangaço, quis conhecer cada vez mais assuntos ligados à natureza. Todos os fatos se confrontam com o ideal de liberdade e de vida, de fartura e de exuberância que o poeta retratou. Mais uma vez, percebemos atenção concentrada ao signo Cancão, destacado como som onomatopaico de ave forte e resistente às secas, sig- nificante para o homem do campo. Signo que potencializaria o reconhecimento e a aceitabilidade popular do poeta, ao passo que o torna simpático sabedor das coisas populares e huma- nas. Por seu lado, Cancão ouvia as histórias vindas da boca do povo, agricultores, poetas, repentistas, contadores de histórias, para conhecer o lugar em que vivia. Dito isto, Nelson Araújo finaliza, argumentando que o poeta, tal qual o pássaro de olhar biônico, estava atento aos valores de sua terra. O sétimo artigo encerra essa coletânea de forma resplande- cente. Vera Lúcia Leite Mariano, graduada em Letras, apresen- ta Cancão como Estrela de primeira grandeza no universo da poesia. 13 Vera recorre ao repentista Geraldo Amâncio para dizer que João Batista de Siqueira foi tão grande que não se apercebeu. A au- tora faz um passeio pela obra de Cancão ressaltando alguns de seus aspectos subjetivos, a abordagem dos temas existenciais, o prazer em destacar a beleza da paisagem sertaneja, a enge- nhosidade poética, a recorrência à temporalidade, o onirismo, a solidão e o cuidado, dimensão que desperta para o zelo com os que estavam à margem. De modo sintético, o último artigo recupera o desejo de todos que, de um modo ou de outro, ten- taram desvelar os sentimentos deste poeta encantado. A todos os autores que contribuíram com seu brilho para iluminar ainda mais o céu de Cancão e do sertão, deixamos nossos inefáveis agradecimentos. Por fim, uma palavra de agradecimento especial à Profa. Maria de Fátima Barbosa Mesquita Batista e ao Prof. Álvaro de Mesquita Batista, que com sua sabença nos honram com sua companhia nesta peleja em demanda da irredenta cultu- ra do Povo do Sertão Profundo. Bem como ao corpo docente do Mestrado Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanas PPGCISH da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN, a quem devemos o apoio intelectual e financeiro desta obra. Karlla Souza Lindoaldo Campos Marcos de Camargo Von Zuben (organizadores) 14 À guisa de prefácio Meca Moreno No dia 28 de julho de 2012, em São José do Egi-to/PE, participei de uma mesa de literatura com gente grande e sábia, a falar para uma plateia de pessoas tão grandes e tão sábias quanto aquelas que comigo estavam à mesa. Senti-me, de fato, o mais sortudo e mais feliz de todos os eternos aprendizes. Além da honra, o prazer de estar ali para falar, para ouvir e admirar mentes tão brilhantes. O tema versava sobre o grande homenageado da festa: Cancão e a tradição poética do Sertão do Pajeú. Neném Patriota, professor da Faculdade de Afogados da Ingazeira, Pernambuco, poeta da casa, poesia no DNA, com seu jeito muito peculiar de quem domina as palavras, deu um show no seu discurso, encerrando-o com um poema belíssimo, numa fusão envolvente de poetas do passado e uma carreira enorme de grandes nomes da atual geração. Para justificar a enorme efervescência poética da região pajeuzeira, bem como da região da Serra do Teixeira, Paraíba, fronteiriças entre si, na minha palestra falei da influência da poesia árabe trazida para nós já nas primeiras caravelas e nas que se seguiram a transportar gentes de outras partes do mun- 15 do, especialmente da Península Ibérica, dentre eles, a princí- pio, principalmente portugueses, árabes e judeus em sua quase eterna diáspora. Em um momento seguinte, a invasão holandesa em Per- nambuco e o domínio de suas tropas, com um governo laico, o que de certo modo, mais que fortalece a ideia do porquê da presença de tantos não cristãos de origens árabe e judaica a viver livremente em terras pernambucanas, incluindo os atuais Estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba e até fronteiras do Rio Grande do Norte e Ceará Por este viés, procurei mostrar que após a “expulsão” dos holandeses, em 1654, ocorreu o retorno do comando da mo- narquia portuguesa e, a ela atrelado, o domínio cristão da Igre- ja Católica, através do medo imposto pela inquisição. A força da conversão obrigatória ao cristianismo católico fez multiplicar a quantidade de cristãos novos e deu origem a um processo de fuga dos povos não cristãos de origens árabe e judaica. Com medo da perseguição, muitos fugiram para além mar, especialmente paraa América do Norte e particularmen- te aqueles mais ligados à judiaria oriunda de Holanda. Outros tantos se aventuraram no rumo do interior, levando consigo a matriz poética nascida em meio às tribos habitantes da Penínsu- la Arábica, no Oriente Médio, que atravessou o Mar Vermelho, tomou conta de todo o norte da África e atravessou o Estreito de Gibraltar com a denominada Invasão Moura e tomou conta da Península Ibérica, onde encontrou admiradores e permaneceu oficialmente por quase oitocentos anos, digo, setecentos e oi- tenta e um, para ser mais preciso, de 711 a 1492. Com as gentes ibéricas, mouros e judeus atravessaram o Atlântico e em toda a América do Sul e América Central plantaram sementes poéticas. 16 Por aqui, a partir da margem norte do Rio São Francisco, que limita e separa os Estados de Alagoas e Pernambuco dos Estados de Sergipe e Bahia, até os limes dos Estados do Ceará e Piauí, conseguimos captar fortes indícios das presenças de não cristãos que conseguiram adentrar e sobreviver no interior do Nordeste, entretanto, é na região limítrofe Paraíba/Pernambuco, especial- mente na Serra do Teixeira, estado da Paraíba, que encontramos claras evidências que dão conta da presença de poetas descen- dentes daquelas famílias que buscaram sobrevivência longe do domínio cristão católico, a fugir da inquisição, como é o caso dos ancestrais de Agostinho Nunes da Costa (1797-1858) e de seus filhos Nicandro Nunes da Costa(1829-1918) e Ugolino Nunes da Costa (1832-1895), poeta repentista e violeiro, também co- nhecido como Ugolino do Sabugi. De lá pra cá, os registros são mais claros quando essa mes- ma poesia iniciou o seu caminho de volta junto aos agricultores e pecuaristas a partir do Ciclo do Couro. Vem daí o termo poe- sia sertaneja. Tudo isso explica essa difusão do modelo poético árabe, disseminado por árabes e judeus, a exemplo das conhe- cidas Comunidades Moçárabes da Península Ibérica, cuja arte resiste até os dias atuais, principalmente no sul da Espanha. O poeta Cancão nasceu e viveu na região fronteiriça dos dois estados – Pernambuco/Paraíba, em São José do Egito, Per- nambuco, tendo, à época, o seu distrito Umburanas, que de- pois recebeu o nome de Itapetim, atual cidade que se avizinha à cidade de Teixeira, Paraíba. Ali, a poesia se sobrepôs sobre a linha divisória dos Estados de Pernambuco e Paraíba. Devido à efervescência poética tão intensa naquele canto de mundo, com certeza podemos afir- mar que aquele lugar é o país da poesia. 17 E foram eles, os membros daquelas famílias fugidias da in- quisição, que levaram e mantiveram, preservando de maneira quase que isolada, durante aproximadamente cinco ou sete ge- rações, o modelo poético levado por seus ancestrais, até que, com o chamado Ciclo do Couro, incentivado pela coroa lusa para povoação e desbravamento daquelas sesmarias e, em se- guida, devido à necessidade de se chegar até o litoral, garan- tindo a passagem do gado, iniciou-se o caminho de volta da cultura poética daqueles colonos desgarrados, misturados aos comerciantes e almocreves, muitos praticando o mesmo ofício. Assim, aquele modelo poético passou a ser herança de todos nós, inclusive do poeta Cancão, que, como veremos, foi além. Até o ano de 2007 eu conhecia apenas parte de sua obra. So- mente a partir do dia 24 de novembro daquele ano, passei a ter um contato mais direto com a obra completa do poeta pássa- ro, isto se levando em consideração os livros que ele publicou e mais um apanhado considerável que o poeta e pesquisador Lindoaldo Vieira Campos Júnior conseguiu reunir e organizar em um só livro que tem o feliz título de Palavras ao Plenilúnio. Passei a ter em mãos uma obra belíssima, contendo os três livros do poeta João Batista de Siqueira – Cancão: Musa Ser- taneja (1967), Flores do Pajeú (1969) e Meu Lugarejo (1979), além dos poemas inéditos do seu livro Chave de Ouro, que ele não teve tempo de publicar, e outros poemas seus, gravados por amigos, alguns presos na memória, a sete chaves. Naquela data, na cidade do Recife, o Mercado da Madalena e seus frequentadores viveram mais um dia de glórias. A poesia de Cancão transformou o então apenas passivo admirador em apai- xonado apologista. A partir do livro, interessei-me muito mais pelo poeta, por sua obra e pelas pessoas que o conheceram. 18 Cancão soube descrever até mesmo o indescritível, o que levou outros mestres a reverenciá-lo. O também poeta, apo- logista e professor José Rabelo disse que o Reino Encantado da Poesia de São José do Egito possui três faraós: os poetas Antônio Marinho (1897-1940), Rogaciano Leite (1920-1969) e Lourival Batista Patriota (1915-1992). Entretanto, o mesmo ilustre poeta e professor José Rabelo declarou que, daquele rei- no, João Batista de Siqueira – Cancão (1912-1982) seria sumo pontífice e santo, elevando-o, assim, a uma categoria divinal. Em Palavras ao Plenilúnio, Lindoaldo Júnior apoia-se em vários monstros sagrados da literatura, da dramaturgia, da psi- cologia, da antropologia, da sociologia e da filosofia a fim cla- rear os caminhos para uma melhor compreensão da poética e da alma do gênio pajeuzeiro. Entretanto, por mais que se tenha estudado, observado, percebido, dito, ainda é quase nada dian- te da humilde grandiosidade de João Batista de Siqueira, que de tão vasto impossibilita-nos enxergar o todo. Mesmo seg- mentando-o, torna-se impossível percebermos sequer nuances das lindes entre a simplicidade do homem e a genialidade do poeta. Em verdade, homem e poeta nasceram, viveram e conti- nuam amalgamados. Apenas a materialidade foi-se. Prova do que digo são os textos que se seguem a este introito e, literalmente atestam o que relato de modo muito melhor do que eu digo. Inicialmente, temos Aroldo Ferreira Leão, Professor da Uni- versidade Federal do Vale do São Francisco – UNIVASF, pós- -graduado em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Dentre os 141 livros publicados pelo ilustre Professor está o ensaio Cancão: os anjos são crianças muito sozinhas (Petrolina/PE: Ed. Copy Service, 2012), estudo 19 crítico sobre a poesia do poeta popular João Batista de Siquei- ra, Cancão. No presente livro, o Professor Aroldo Leão, em Cancão: a essência, a estrada, o elo, apresenta-nos um texto riquíssimo, ponteado de aliterações fantásticas, firmes, fílmicas, fazendo- -nos perder o fôlego frente a tão fortes e por vezes fugazes imagens, ora cálidas e exuberantes, ora infinitamente peque- nas para serem percebidas a olho nu, mas agudas, belas, claras e majestosas quando reveladas, dignas da apreciação divina. Às vezes lentas como um desabrochar rosáceo, mas por vezes como um raio, rápido, frenético, elétrico, cinematográfico, si- napse neural. Tudo sem perder a harmonia que lhe é peculiar. Poeta que é, apaixonadamente impregna toda sua prosa com as cores mais diversamente poéticas, levando o nosso caleidos- cópio para depois do imagético e muito além das palavras. Sua intimidade com a poesia canconiana torna-o um observador muito acima da média. Sua percepção leva-o a atestar um gosto e uma preferência diferente da disposição dos esquemas rimá- ticos tradicionais da cantoria de viola, o que de certo modo, pode justificar o porquê de o poeta ter deixado de cantar repen- te ainda muito jovem. Queria experimentar mais, voejar mais em outros ritmos poéticos e esquemas de rimas, especialmente nos chamados versos compridos e, principalmente nos decassí- labos. Os professores Aroldo Leão e Lindoaldo Vieira Campos Júnior mostram experiências do poeta com ritmos diferentes entre si, cada um com suas devidas particularidades, harmoni- camente perfeitos, dentro do Sistema Silábico Acentual, como nos versos heroicos, que possuem uma acentuação tônica obri- gatória nas sílabas poéticas de números 6 e 10. O chamado verso heroico é o mesmo tipo de verso usado 20 por Luís de Camões no seu poema épico Os Lusíadas, intei- ramente escrito em estrofes de oito versoscada, chamadas de oitavas. Cancão também fez uso dos versos de Gaita Galega ou Moinheira, com acentuação tônica obrigatória nas sílabas poé- ticas de números 4, 7 e 10; os versos Sáficos, também aparecem na produção canconiana. O termo sáfico é uma homenagem à poetisa grega Safo, da cidade de Eresos, Ilha de Lesbos, ativo centro cultural no século VII a.C. Nasceu entre 630 e 612 a.C. Polêmica, mas muito respeitada e apreciada durante a Antigui- dade, chagando a ser considerada a décima musa. Derivam do seu nome os poemas e versos sáficos, que têm uma acentuação tônica obrigatória nas sílabas poéticas de números 4, 8 e 10. O poeta também experimentou e fez muito bom uso dos versos de Martelo, especialmente na época em que participava como repentista, nas cantorias, ao som da viola. É o modelo de verso decassílabo mais usado na poesia popular nordestina, com acentuação tônica obrigatória nas sílabas poéticas de nú- meros 3, 6 e 10. O nosso Martelo Agalopado segue o mesmo padrão. É uma variante da décima. Originalmente existiam os versos de Mar- telo, composto de estrofes de seis versos decassílabos com ritmo acentuado nos mesmos ictos, com rimas cruzadas, as- sim representados: ABABAB. O gênero ficou conhecido como Martelo Cruzado ou Cruzada Marteliana, em homenagem ao seu criador, o poeta francês Jaime Pedro Martelo (1665-1727), que também foi diplomata e professor de literatura da Univer- sidade de Bolonha, Itália. No Nordeste do Brasil, a décima com versos de Martelo adaptou-se muito bem como mais uma variante da décima. Atribui-se ao poeta paraibano, nascido do município de Patos, 21 Silvino Pirauá de Lima, a adaptação dos versos de Martelo, da Cruzada Marteliana para a estrofe Espanhola ou Espinela, que possui o esquema de rimas ABBAACCDDC, modelo estrófico criado pelo poeta espanhol Vicente Espinel (1531-1634). Daí sua denominação, como podemos observar no livro ABC da Poesia, de Lindoaldo Campos (Ed. Sebo Vermelho, Natal, RN). É tão impressionante o poder imagético da poesia canco- niana que nos leva a crer que o autodidata Cancão conheceu obras de Casimiro de Abreu, Fagundes Varela, Castro Alves e até mesmo Augusto dos Anjos e outros vates tão valorosos que podem tê-lo influenciado e, em alguns casos, pode ter ele superado os gênios citados. Por sua vez, o professor Josivaldo Custódio da Silva, com sua vivência nos campos poéticos popular e erudito, em Can- cão e Augusto dos Anjos: diálogos entre o popular e o erudito conduz-nos numa viagem mística através da arte poética de dois verdadeiros mestres: Cancão e Augusto dos Anjos. Utili- za-se de técnicas da literatura comparada e do estudo da me- lancolia, presente em ambos. Isto se dá a partir da análise de sonetos dos poetas. No seu texto, aos poucos, com a intimidade que tem com o verso, pega o leitor pela mão e, como numa brincadeira, leva- -o a um campo aparentemente de fácil domínio, mas com um nível de detalhamento mais complexo do que a maioria possa imaginar: a versificação. Brincando, o leitor passa a ter noções de rima, métrica, oração, imagem e ritmo poéticos. Uma ver- dadeira aula de poesia com alguém que tem na vivência com os grandes poetas, o seu campo experimental in loco. A despeito de não ter conhecido pessoalmente o poeta João Batista de Siqueira, declaro-me seguidor de sua trilha poética 22 e estudioso de sua obra mesmo antes de conhecê-la em qua- se sua totalidade através de Palavras ao Plenilúnio, o que me levou a ter contato com muitos dos que tiveram o agrado, a satisfação da sua convivência, como os poetas Zé Silva, Beatriz Passos, Ésio Rafael, Marcos Passos, Zelito Nunes, Sebastião Dias, Lamartine Passos, Antônio de Catarina, Paulo Passos, Manoel Filó, Jorge Filó, Dedé Monteiro, Zé de Mariano, Wilson Freire, Jó Patriota, Lourival, Dimas e Otacílio Batista, Geraldo Amâncio, Aleixo Filho, João Paraibano e mais um caminhão de gente que o conheceu de perto e testemunhou sua história. No meio dessa mesma gente, ouvi testemunhos sobre o motivo da revolta do poeta ao escrever a décima aqui estudada. Assim, tomo a liberdade para contextualizar o momento e as circuns- tâncias que levaram o poeta Cancão a compor tal décima anali- sada pelo professor Josivaldo e penso que assim, o leitor possa melhor entender e concluir que o poeta não era assim, niilista, ou que por fim, diante das mesmas circunstâncias, todos nós seríamos. A cena: Um homem, montado em um jumento chega à fei- ra, de manhã, cedinho. Após amarrar o quadrúpede em local sem água e sem alimento para o dito cujo, seu suposto dono sai e desaparece. Faminto e sedento, o asno não pode fazer nada a não ser esperar. Ao final da tarde, fim de feira, seu dono rea- parece, com claros sinais de embriaguez. Ao tentar conduzir o faminto e sedento jerico de volta para casa, o animal avistou ali próximo, uma poça de água e para lá dirigiu-se a fim de saciar sua sede, contrariando a vontade e o comando do seu dono e carrasco. Assim, o homem, esbravejando palavrões, sacou sua faca peixeira e desferiu enorme quantidade de golpes contra o animal, matando-o porque aquele o “desobedecera”. 23 Pouco tempo depois a notícia chegou aos ouvidos de Can- cão, amante ímpar da natureza em todos os seus aspectos. Num ímpeto de fúria e revolta, o poeta escreveu a décima em questão, que pela primeira vez foi publicada “Uma fera endia- brada...”, no livro Antologia Ilustrada dos Cantadores, de Fran- cisco Linhares e Otacílio Batista (p. 264). Todavia, nessa publicação, bem como em Palavras ao Ple- nilúnio, organizado por Lindoaldo Vieira Campos Júnior (p. 365), a referida décima aparece isolada do contexto. Não apa- recendo “nenhuma ação que incrimine o outro condenado pelo eu poético, mas pelo tom com que ele se refere a esse ser, só pode ser algo bárbaro”. O que leva o analista a interpretar um negativismo comum ao poeta. Deste modo, com a explicação acima, concluímos que a dé- cima em si, vista isoladamente, separada do seu contexto real, pode ter, sim, um acentuado tom de niilismo, impossível de escapar aos melhores observadores, mas, como vemos, Cancão é o mais telúrico de todos os poetas. Sua poesia reacende em nós, atavismos inexplicáveis para a maioria. Com sua maestria, o professor Josivaldo Custódio da Silva descobriu que a poesia está para além do verso. Por isto lutou muito e, com a ajuda e o respeito de tantos, conseguiu intro- duzir a poesia popular como cadeira regular e obrigatória no currículo dos estudantes do Curso de Letras da Universidade de Pernambuco – UPE, Campus Nazaré da Mata. No seu artigo Cancão, poeta irreverente, o filósofo e profes- sor Lindoaldo Vieira Campos Júnior apresenta-nos um Cancão que não se contenta com os modelos utilizados na conhecida poesia sertaneja, não se contém e aventura-se através de tantas outras criações estróficas, rímicas e rítmicas. Seus voos alcan- 24 çaram um vocabulário mais amplo e outros modelos que se so- maram ao seu já vasto, querido e precioso cabedal. O gênio não se cansava de incorporar outros gêneros e estilos para brindar e compartilhar com os poetas da sua terra. Deixou a viola de lado para ousada e corajosamente assumir a condição de “poeta de bancada” ou “poeta de gabinete”, cer- tamente para poder atingir outros níveis no entendimento e na construção poética que somente através de um estudo mais fo- cado e concentrado poderia alcançar e obter um domínio mais apurado e pleno do verso e da palavra através da escrita. Te- mos aí, o poeta pássaro em vôo solo, ultrapassando fronteiras e quebrando padrões, não para destruir os ora existentes, mas para enriquecer e dar mais flexibilidade ao poeta e ao verso, sobretudo ao primeiro. Lindoaldo sabiamente compara-o a Job Patriota, Rogaciano Leite e Castro Alves, apontando-lhes se- melhanças líricas e poético-sociais. No verso, Cancão queria sentir o prazer e a mesma liber- dade que sentia no voo. E assim magistralmente o fez nas quadras, nos quintetos ou quintilhas,nas sextilhas e oitavas, construiu décimas geniais e deixaria orgulhoso o francês Gi- rard de Bourneuil, trovador provençal que morreu no ano de 1278, criador do soneto, bem como orgulhoso também ficaria Petrarca (1304-1374), o italiano que aperfeiçoou o gênero que o mundo adotou, tornando-o clássico através dos chamados poetas eruditos. Em Portugal, o soneto foi introduzido por Sá de Miranda, vate português que esteve na Itália de 1521 a 1526, e bebeu do legado petrarquiano, levando o modelo para terras lusas, onde os geniais Camões e Bocage encantaram-se com o gênero e pas- saram a fazer parte do grupo dos seus grandes representantes. 25 Os sonetos de Cancão e de Bocage fazem jus ao termo que vem dos poetas da Provença medieval (antiga região da sul da França), e quer dizer pequena canção, “do provençal so (can- ção), sonet (pequena canção), passando pelo italiano sonètto” (Carlos Martins, Noções de Versificação Portuguesa). Cancão brincava com os versos e criava novos modelos. Fez quadras com versos de Martelo (3, 6 e 10) com cesura na 4ª sílaba, criou quadras com versos hendecassílabos do tipo Ga- lope à Beira Mar, que possui acentuação tônica obrigatória nas sílabas poéticas de números 2, 5, 8 e 11, colocando a cesura na 5ª sílaba poética. Usou e abusou da rima interna nos versos emparelhados, especialmente nos versos compridos (decassílabos) e nos cha- mados versos de arte maior (hendecassílabos). Ao ler o texto de Lindoaldo, o leitor vai encontrar muito mais e compreender melhor como Cancão chega a ser erudito sem nunca ter deixa- do de ser popular. Pode parecer paradoxal, mas em O Cantar do Pajeú: tra- dição e oralidade na poesia do pássaro do sertão, a professo- ra Karlla Christine Araújo Souza traz para nós visões através de ângulos distintos, por vezes até antagônicos, do ponto de vista do senso comum, a fim de nos apresentar uma visão de complementaridade entre oralidade e escrita. Apoia-se em dis- sertação de sua autoria: “A Poesia de Repente volta para casa: Itapetim no Circuito dos Congressos de Violeiros”, a fim de colocar o leitor dentro da cena inspiradora do poeta Cancão e de seus pares mais conhecidos, contemporâneos do poeta e outros bardos participantes dos Congressos de Violeiros Ama- dores de Itapetim. Baseada nas palavras do historiador Paul Zumthor, tem a fe- 26 licidade de afirmar que a vocalidade depende da performance. Pelo mesmo prisma, observa Teófanes Leandro: “Cancão canta- va se bulindo; os versos lhe vinham de borbotão”. E, segundo, Lindoaldo Campos afirma, ainda referindo-se ao mesmo Can- cão, aqui mesmo, neste volume: “Numa ânsia tal em expressar suas emoções que sua expressão corporal certamente causava (no mínimo) espanto às audições acostumadas com o porte austero, majestoso com que os cantadores tradicionalmente se apresentavam (e se apresentam)”. Karlla acrescenta e esbanja conhecimento quando alerta para as diferenças existentes entre oralidade e vocalidade, tra- dição oral e transmissão oral. Ainda acrescenta e apoia seus estudos na conceituada pro- fessora Maria da Conceição de Almeida, que nas suas pes- quisas sobre os saberes da tradição e os saberes científicos, conclui que ambos devem ser respeitados, cada um em seu campo de importância, mas que os mesmos são complemen- tares no nível do conhecimento humano. Por fim, ela nos coloca diante de um poeta intelectual da tra- dição, que possui uma estreita relação com a natureza, que che- ga a colocar de maneira onomatopaica, as vozes e grunhidos da natura dentro dos seus poemas. Categoricamente ela afirma: “A obra de Cancão ressoa num apelo da poesia da oralidade, mas dialoga com a literatura canonizada e com a prosa da construção do conhecimento científico, dando-nos um exemplo de criativi- dade e lógica (re)integradora”. No texto, sua autora consegue unir objetos considerados dico- tômicos e excludentes, através da cognição do pensamento entre rivalidade e solidariedade. Enfim, é o resultado dessa dialógica que a professora Karla Christine nos apresenta com maestria. 27 No artigo Imagens do inconsciente coletivo em Falando ao Mar de João Batista de Siqueira, da professora Maria Nazareth de Lima Arrais, deparamo-nos com o imagético inconsciente coletivo do mundo canconiano, a partir de uma análise do po- ema Falando ao mar, fundamentada na teoria semiótica de Al- girdas Julien Greimas (1917-1992), linguista lituano de origem russa que deu enorme contribuição para a teoria da Semiótica, bem como também fez estudos sobre mitologia, especialmente a mitologia da Lituânia. No mesmo texto, A professora Maria Nazareth também faz uma análise do texto canconiano sob a perspectiva da teoria do inconsciente, de Carl Gustav Jung (1875-1961), suíço de nasci- mento, considerado o pai da psicologia analítica ou psicologia junguiana. Por ser natural da cidade de Princesa Izabel, Paraíba, o pro- fessor Nelson Barbosa de Araújo é também um dos grandes conhecedores das coisas e das gentes do sertão. Com olhar de poeta e mente irrequieta qual menino buliçoso, no seu artigo A dinâmica do signo no poeta Cancão e o marco do Pajeú, des- perta o pesquisador que conhece por demais o modo de viver e as artimanhas para sobreviver com dignidade, dentre elas, a nobre arte poética. Barbosa de Araújo vê em Cancão um poeta diferente porque é justo que se faça esse tipo de análise. Vê um poeta que tem um domínio incomum sobre o signo linguístico ao ponto de adequá-lo conforme a situação, o que demonstra uma enorme capacidade de adaptação, conforme o seu próprio discurso po- ético, inclusive com o acréscimo de neologismos. Daí, a per- cepção da perfeição do seu gênio criativo. O poeta veio ao mundo durante confrontos políticos e so- 28 ciais de grande vulto. e em seguida viveu duas grandes guerras mundiais. Nesse entremeio conviveu com todos os reboliços sociais e econômicos advindos dos reflexos daqueles e de ou- tros confrontos locais, a exemplo do cangaço, da Guerra de Princesa, das grandes secas de 1915 e 1942 e de tantos outros eventos locais, nacionais e internacionais. Viu toda a alegria sertaneja vicejando entre as flores do al- godão que movimentava os sertões. A fartura na invernada e o sofrimento da seca. O contato com beiradeiros contadores de causos e poetas era frequente. Os folhetos de feira, hoje conhe- cidos como literatura de cordel, às vezes sem figuras na capa (capa nua), outras com figuras de artistas de cinema e já em seguida as capas com xilogravuras. Para falar de Cancão, o professor Nelson vai de Santo Agos- tinho a Ferdinand Saussure, trazendo-o para o presente, per- passando por uma diversidade temática de fazer inveja aos maiores criadores. Melhor mesmo é ler o artigo do professor e perceber os gorjeios do poeta pássaro desde a alvorada até o arrebol para depois adentrar a noite que guarda tantos segredos que somen- te os poetas e os meninos são capazes de revelar. No artigo Cancão: estrela de primeira grandeza no univer- so da poesia, a professora Vera Lúcia Leite Mariano mostra- -nos um poeta paisagista de tão inspirado estro que se imbrica de tal modo com a paisagem que às vezes não conseguimos dissociá-lo do campo paisagístico que o mesmo retrata na sua poesia. Fala do propósito do poeta querer permanecer no ano- nimato, chegando a ser considerado um “gênio ingênuo”, pelo menestrel cearense Geraldo Amâncio, tão grande era a sua ge- nerosidade com todos. Outro bardo cearense a elogiar Cancão 29 foi Patativa do Assaré, o que podemos constatar no artigo que vos digo. É em Freud que a professora busca uma analogia de alguns mo- mentos de Cancão, mas ela faz muito mais e nos mostra que é a oralidade que predomina no discurso poético da região sertaneja, mais particularmente nas cercanias do Rio Pajeú. Porém, Cancão escapa do lugar comum e se mostra conhecedor de um vocabulário mais rico do que o dos seus pares e, aplicava-o sempre da maneira mais apropriada, ao ponto dos seus colegas nãoo tomavam como arrogante. Ao contrário, elogiavam-no, comoviam-se e emociona- vam-se com ele e sentiam orgulho de tê-lo como parelha. Falar de João Batista de Siqueira é também enunciar o exis- tencialismo e as situações conflitantes do ser confirmadas atra- vés dos estudos de Martin Heidegger, indicando-nos uma visão ontológica acerca da coexistência com a natureza, no que Can- cão (co)responde a essa cumplicidade através da “ekstases da temporalidade” heideggeriana. O poeta teve contato com a obra de Cassimiro de Abreu, Fa- gundes Varela e Castro Alves. Entretanto, podemos afirmar, de modo superficial, o que nos leva a concluir que aquela leitura era ainda incipiente para fazer dele o intelectual que conhe- cemos. Que além das coisas, seres e fenômenos da sua terra, aborda temas considerados de difícil acesso, muito distantes das fronteiras das suas andanças, como figuras da literatura in- diana, detalhes sobre o Vesúvio e suas cercanias, na Itália, além de um fantástico domínio dobre mitologia grega e muito mais. Assim, podemos dizer que Cancão foi um poeta iluminado. A tal ponto de alguns se dizerem tão surpresos que chegaram a pensar que boa parte da obra canconiana seria por ele psico- grafada. Mesmo inconscientemente. 30 O que sei é que o poeta estudava muito sobre os temas esco- lhidos, bem como sobre versificação e estilística. Desse modo, então, podemos afirmar que foi um homem fora do comum, no que diz respeito aos tempo e ao espaço em que viveu. Homem que deixou um legado digno de estudos como os contidos nes- ta obra e, espero, em outras que se desdobrarão a partir desta. Todos os artigos aqui selecionados glorificam, honram e dignificam o poeta egipciense João Batista de Siqueira, Can- cão, objeto de pesquisa dos professores que comigo estiveram naqueles dias de julho de 2012, em São José do Egito, Pernam- buco. Sinto-me de fato, honrado e agradecido pelo convite para tomar parte na abertura deste volume que vem contribuir para o reconhecimento da obra e da genialidade de um dos maiores poetas que já pisaram sobre a face da terra. Grande abraço! Viva, Cancão! 31 Cancão A essência, a estrada, o elo Aroldo Ferreira Leão Cancão é silêncio, profundidade, ternura recriando sumos, sabedoria, sopros de vida na alma dos beija--flores e das baraúnas, borboletas e batatas-de-teiú, beleza renovando as auroras, certeza expandindo os contextos, os textos de poemas primorosos, pontos de partida e chegada para as almas que buscam em si mesmas a renovação das cir- cunstâncias, a ação de suas texturas e funduras. Nele a poesia sedimentou sustanças, segredos, simbioses, sondou seus sen- tidos, singelezas, santidade. Foi um homem modesto, movido a adeuses introspectivos, a preces à Virgem Maria1, cadência interior o reinventando no tempo, o abrindo às cordialidades, aos mistérios e miraculosidades do Sertão. Estava em sintonia com os anjos, antanho ser amigo das auroras e alvoradas, fidal- go homem frágil, fenômeno fundindo os frêmitos das folhas dos marmeleiros aos ventos vindos em dia de chuva. Curva, delineando na estrada a seguir, sentenças plurais, densas per- cepções a respeito de nossos universos combalidos, movidos a usuras e esquecimentos. Raiou na simplicidade, na paciên- cia, ciência reconstruindo canduras, proficiência em escrever décimas, quadras, sextilhas, quintilhas, sonetos2. Intenso, 32 inovador, incomum indivíduo irradiando infinitos, instantes infiltrados no íntimo dos impasses, irmão de bêbados e náu- fragos, verdade profundamente construída no amor, na espera, na perda, no perdão. Surgiu para pacificar os espíritos, pôr no tempo prenúncios de prumos e preitos exponenciais, perceber pontes, fontes, montes de novas nuances e abrangências em nós. Norteou-se na humildade, nos húmus dos rumos que o levaram a se reinterpretar, perpetrar em si cadências, concep- ções, clarezas. Coerente, canção circundando o cosmos, criança criando climas e ciclos de poemas em si, comungou de concei- tos e confissões densas, transfigurou temas, testemunhou no tempo comoções ímpares, ares transformadores, formadores de sonhos, sentenças, segredos. A essência o movia para os instantes, o redescobria mais singular, angular olhar no mar das constatações plurais. Foi um homem de grandes esperanças em si, verdade delineando nas horas expectativas humildes, união de milagres e mistérios, comunhão entre a fraternidade e as funduras da sua alma3. Seus adeuses ainda estão nas mãos das crianças do Pajeú, re- criam a hospitalidade e a cordialidade sertaneja, expandem a clareza do sol na caatinga sagrada, trilha a nos orientar no caos, a nos reinterpretar em nós mesmos. Cancão é a razão multiplicando sentenças, singelezas, silêncios. Compreendia o voo dos sofreus e sanhaçus, estava no canto dos pássaros- -carão e das peiticas, dava ao espírito o teor das profundida- des abrangentes, vertentes de visões viscerais, veios vindos do fundo dos corações amplos, campos a perpetuarem no tempo a sede por novos prumos e plenilúnios, rede de ideias a porem na criatura o âmago das fatalidades, dos fenômenos. O Sertão o sedimentou no amanhã, o fortaleceu por dentro, centro de 33 suas concepções e cadências, conceito o fundindo a verdades encantadas, cantadas por seu espírito atento aos elementos e intentos das vidas múltiplas, afeitas à simplicidade, agregando ausências, anterioridades, ápices, amor à terra que o gerou e o inundou de versos e sonhos, o sondou magicamente, o moldou na candura, na futura gestação de sua sensibilidade aguda, na ternura da ação honesta, senso o modelando nas situações que nos trazem a sutileza dos espaços, falas e raciocínios do mundo pajeuzeiro, universo sempre o fortalecendo, estabelecendo em suas entranhas a reinvenção das rotas, as gotas de chuva na pele dos jacus e tatus. João Batista de Siqueira é poesia, prosperidade, a possi- bilidade da paz no pranto dos poetas, o peso das partidas no olhar dos papa-figos, o píncaro, o passo firmando filtros e fa- tos, farto de lumes e cumes, fado tocado pleno, terreno onde se plantou a grandiosidade do pensamento e sentimento ser- tanejos, certeza consolidando clarezas, coesões, ciclos4. Viveu vontades vastas, castas, santa criatura alargando horizontes, galgando em si os patamares sublimes da recriação dos mo- mentos, antenado com o além, percepção delineando, em seu próprio talento, os veios dos gorjeios inteiros. Homem sereno e faiscante, sábio senhor sondando sonoridades e sentidos, sorvendo os sopros das galáxias e dos átomos, sentiu na alma os entranhamentos acesos dos ecos transformadores do Ser- tão, abriu o ser para os contextos e as possibilidades, definiu, no canto dos galos de campina e dos sabiás, a extraordinária composição de nossas delicadezas e abrangências, aroeira fin- cada na caatinga silente, torrente de configurações e compo- sições, intensa reunião de figurações e posições nos tornando mais humanos, generosos, cúmplices da beleza que há em 34 A lua, alta e feliz Linda mãe dos bogaris Derrama raios sutis Por toda extensão da selva Dos lírios desabrochados Brancos e imaculados, Os seus perfumes sagrados A brisa bafeja e leva Dentro da floresta densa A vegetação imensa Parece ficar suspensa Nesse ditoso momento As carnaúbas rendadas Criadas lá nas chapadas Abrem as frondes copadas Para a passagem do vento tudo, fundo elo a nos reinventar constantemente. No poema Momentos Matutinos5, escrito em oitavas com rimas em AAA- BCCCB6, mostra a sutilíssima criação de versos que acabam por nos envolver, nos elevar, levar o espírito a compreender os compassos e cadências da alvorada. Cancão constrói seus ritmos, expande surpresas, afina sons, fina alegoria de tons ternos, tear tecido em total harmonia com o infinito, hálito intrigante de sua verve magnífica: Nas noites caliginosas As estrelas luminosas Pelas grimpas montanhosas Derramam luz soberana As florzinhas da paisagem Dormem por entre a ramagem Talvez sonhando a imagemDos sorrisos de Diana Os pirilampos pequenos Vindos de outros terrenos Pousam, sutis e serenos Pelos estrumes da terra Os perfumados vapores Passam roçando os verdores Levando os leves rumores Das águas brandas da serra 35 A brisa sopra dolente Por entre a flora virente O céu de cor transparente Azul, sem uma só mancha Branca neve matutina Envolve a vasta campina Toalha de gaze fina Que o dia rasga e desmancha As corujas traiçoeiras Com suas asas maneiras Passam nos ares, ligeiras Para o grotilhão enorme Foge o tenebroso véu Na aroeira, o xexéu Olhando as cores do céu Desperta a mata que dorme Para as bandas do levante Lindo clarão rutilante Vem-se alargando, brilhante Cheio de glória e encanto A neve se desenrola E o beija-flor, por esmola Em cada fresca corola Deposita um beijo santo Dos floridos vegetais Os orvalhos matinais Como gotas de cristais Se desprendem tremulantes Um traço de fina luz Aquece os verdes bambus Dos altos cumes azuis Das cordilheiras distantes A borboleta amarela Passa juntinho à janela Vai pousar, serena e bela Num lindo caramanchão O sabiá, lá da mata No ingazeiro desata A nota suave e grata De sonorosa canção Cantam na serra os pastores Os tempos de seus amores Sentindo os brandos calores Dos raios do sol nascente E a natureza selvagem Estende a sua ramagem Como rendendo homenagem A um Deus onipotente7 36 Cancão é a onipresença, a vivência encantada, avenca nas janelas abandonadas, penca de versos distribuídos em um manancial de verdades poderosas, consolidadoras de auroras e alicerces no ser. Criança sempre se perpetuando nos ritmos e ritos do Sertão, nos tinos e trinos de sua gente, nos pactos e impactos das almas que sabem dar a si mesmas a expansão e a coerência de suas atitudes e plenitudes, vocações e ações. Voou mais longe, soou mais dentro de nós, ecoou entre jure- mas e jurubebas, oiticicas e peiticas, jatobás e jataís. Seus ais o desmembraram nas horas, o tornaram irmão dos bem-te-vis e saguis, anjo transitando nos corações plurais, murais de in- vestigações e transformações contínuas, cais de onde partem os indivíduos que pretendem se entender com a eternidade em paz, pontuando perdões e percepções certeiras, porções de prenúncios redefinindo poesias robustas, pormenores e vislumbres elevados. Foi uma figura fluindo na doçura, de- terminando em suas sensações focos e esforços de criar uma obra marcante, penetrante na sensibilidade daqueles homens dispostos a enfrentarem contragostos e contrassensos, esta- belecerem nas vísceras seus testemunhos e redemunhos, fun- damentarem nos instantes a construção de conceitos coeren- tes, vazões de razões fundidas aos muçambês e saruês, elos reorientando as cismas e os vícios para as interrogações que nos retratam nas essências sertanejas, nos atam a vozes an- cestrais, a ais e instabilidades incomuns, o voo dos anuns nas manhãs nos oitões das casas velhas, o entoo dos aboios que decodificam em nossas células a transfiguração dos fenôme- nos, a redefinição das coordenadas aladas das vidas ilhadas, mas atreladas à eternidade, à inocência, ao sonho, aos campos e pirilampos do Sertão. 37 No poema Mata Rude8, escrito em décimas heptassilábicas, na forma interessantíssima ABABBCCDDC9, Cancão eviden- cia o testemunho dos vates imersos na grandeza da natureza, no fascínio de expandir segredos, substâncias, simbologias. Há versos esplendorosos, como os expostos na primeira estrofe: “Lembram antigos guerreiros / Ou velhos Hércules túmidos / De pé, nos barrancos úmidos / Desafiando os janeiros”. Ou ainda, na terceira estrofe, a colocação de que “Aquele prado sombrio, / Estas tristonhas ladeiras / Fazem lembrar as trin- cheiras / Do primitivo gentio”. A finalização do poema é en- cantadora, deixando à mostra o talento do bardo egipciense, retratando que “Talvez a deusa das flores / Nesse cruento mar- tírio / Pedisse a Deus, no Empírio / Uma morte santa e calma / Para passar sua alma / Ao cálix branco de um lírio”. Cancão descreve, depura desígnios e dádivas10, determina densidades luminosas em todas as décimas, define o teor das composições coesas, abrangentes: Contemplando a natureza Sinto a alma deslumbrada Olhando a grande beleza De monte, vale e chapada Lá, além, na esplanada Os gigantescos coqueiros Lembram antigos guerreiros Ou velhos Hércules túmidos De pé, nos barrancos úmidos Desafiando os janeiros Estas soberbas braúnas Que há muitos anos secaram Foram possantes colunas Que com o tempo tombaram Estes cedros que ficaram Com vigor robusteceram Fortes tormentas venceram Como guerreiros ousados Com feros tigres rajados Antigamente viveram 38 Estas planícies de areia Aqueles erros azuis... Quem sabe foram aldeia De tribos de homens nus Estes verdosos bambus Criados neste baixio, Aquele prado sombrio, Estas tristonhas ladeiras Fazem lembrar as trincheiras Do primitivo gentio Talvez, opulenta flora Relembres também e sintas Gratas saudades de outrora De mil visões quase extintas Ah, quantas feras famintas O teu solo atravessaram Alguns caciques ganharam Casos de grandes memórias Que até mesmo as histórias Os tempos também levaram Se estes vegetais possantes Não têm mais os seus verdores Foram beijos sufocantes De mil sóis abrasadores Talvez a deusa das flores Nesse cruento martírio 39 Pedisse a Deus, no Empírio Uma morte santa e calma Para passar sua alma Ao cálix branco de um lírio Notas e referências 1. O encantamento de Cancão pela Virgem Maria é algo ex- tremamente singular em sua vida humilde e angelical. Escre- veu diversos poemas que difundem seu carinho pela chamada “virgem santíssima”. Em Meu Lugarejo, p. 10-13, no poema Noi- va Espiritual, escrito em décimas clássicas heptassilábicas, na forma ABBAACCDDC, vê-se a sutileza desta admiração nas seguintes décimas: O morro, a colina, o monte, Se alargavam, cresciam As luzes tremeluziam Na linha do horizonte, O céu ficava defronte Cheio de graça e primor Num véu de celeste cor Se via por fora escrito O nome sacro e bendito Da mãe de Nosso Senhor (...) 40 Quando a Virgem aparecia As águas se levantavam Os horizontes cantavam Mas ninguém compreendia, A brisa lhe prometia Um perfumado pernoite Depois com sereno açoite Seu rosto acariciava Enquanto um gênio falava De lá dos confins da noite 2. Em relação ao fato de Cancão escrever quadras, quin- tilhas, sextilhas, setilhas, oitavas, décimas, sonetos, apenas retrata o poder de sua verve, o tear e os desmembramentos de seus versos encantados. Exemplo evidente de seu pendor poético está explicitado nas oitavas pentassilábicas, em redon- dilhas menores, de Crepúsculo Praieiro, onde explicita: Um urubuzinho No monte, sozinho Só sente o carinho Da boca da brisa Coitado do bruto Não goza um minuto Vestido no luto De sua camisa 3. Cancão, na sua grandeza e inocência, criança de sutis hori- zontes em si, confirmava as palavras de Silvio Romero, quando da recepção de Osório Duque Estrada na Academia Brasileira de 41 Letras, apresentadas à p. 1, do livro Cantadores: poesia e linguagem do sertão cearense, de Leonardo Mota (Belo Horizonte: Itatiaia, 1921): (...) Se vocês querem poesia, mas poesia de verda- de, entrem no povo, metam-se por aí, por esses rin- cões, passem uma noite num rancho, à beira do fogo, entre violeiros, ouvindo trovas de desafio. Chamem um cantador sertanejo, um desses caboclos destorci- dos, de alpercatas e chapéu-de-couro, e peçam-lhe uma cantiga. Então, sim. Poesia é no povo. Poesia para mim é água em que se refresca a alma e esses versinhos que por aí andam, muito medidos, podem ser água, mas de chafariz, para banhos mornos em bacia, com sabonete inglês e esponja. Eu, para mim, quero águas fartas – rio que corra ou mar que estronde. Bacia é para gente mi- mosa e eu sou caboclo, filho da natureza, criado ao sol. 4. Em interessante texto, para a contracapa do livro Meu Lugarejo, datado de 27 de dezembro de 1978, Antônio Bezerra decifrou a essência, os veios, os elos, a luminosidadeda poesia em Cancão: Poeta popular de grande sensibilidade, é considera- do pelos seus pares como o maior poeta do Vale do Pa- jeú. (...) De instrução primária, Cancão escreve, decla- ma ou canta suas poesias empregando palavras muito acima do seu nível de instrução, causando admiração aos que têm a felicidade de lhe escutar. Homem pobre, humilde, não faz profissão da poesia, limitando-se a viver do pequeno ordenado de Serventuário de Justiça. 42 5. O poema Momentos Matutinos está evidenciado na coletâ- nea, onde está exposta a obra de Cancão, Palavras ao Plenilúnio, de LindoaldoVieira, p. 93-95 (João Pessoa: EdUFPB, 2007). 6. Na obra Poética Popular do Nordeste, Sebastião Nunes Batis- ta, p. 66 (Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1982), pontua que o “quadrão de oito pés” possui estrofes representa- das por oito versos heptassilábicos e a representação das rimas pode ser AAABCCCB (forma antiga) ou AAABBCCB. 7. O poema Horas Matutinas, um soneto na forma italiana, com dois quartetos e dois tercetos, evidencia a predileção de Cancão para descrever o amanhecer, como exposto no terce- to final “Surge a aurora num silêncio trágico / Rasgando aos poucos o negror nostálgico / Do manto triste que cobriu a noite”. Em Manhã Sertaneja,também consolida tal sutileza, em oitavas de versos pentassilábicos,como os explicitados em “Desperta a aurora / A aura sonora / Suspira a flora / Passando de leve / A veiga florida / De bruma vestida / parece perdida / Num mundo de neve”. 8. Poema assinalado na coletânea Palavras ao Plenilúnio, de Lindoaldo Vieira, p. 55-56 (ob. cit.). 9. Cancão traz sem suas décimas as formas ABABCCDEED, ABBAACCDDC e ABABBCCDDC. Reparar que, na primeira forma, tem-se a maioria de suas décimas, representadas em po- emas como em Minha Meninice, Meu Lugarejo, Madrugada, Rosa do Mato, O Bananal, Caraibeira Morta, Castanhola, Um Inverno no Ser- tão, Depois da Chuva, A Cheia, O Poeta, Cenas da Seca, Um Sonho que 43 Durou Três Horas, Tempestade, Cruz do Deserto, Solidão, Ano Novo, A Casa do Ébrio, Sonho de Sabiá, Noite Triste, Lamentos ao Pé de um Túmulo, O Mendigo, Visão de um Sonho, Noite Francesa, Falando ao Mar, O Cego e o Cão, As Sombras, Seis Horas Ave-Maria, Enquanto o Mundo Cochila / No Colo da Natureza, Fazenda Antiga, Seis Horas no Cemitério, Dezembro e Janeiro, Paulo Afonso, Gogó de Ema, Saudades da Minha Terra, Tristezas, Aparição de Fátima. 10. Na antologia poética Retratos do Sertão, com organiza- ção de Marcos Passos, p. 262 (Recife: FacForm, 2010), ao ser elaborada a biografia de Cancão, sente-se a magia de sua alma quando se evidencia que “há quem afirme que o poeta, senti- mental ao extremo, fazia versos até dormindo e, comumente, despertava aos prantos para, logo após, transferir seus sonhos para o papel da sensibilidade”. 44 45 Cancão e Augusto dos Anjos diálogos entre o popular e o erudito Josivaldo Custódio da Silva 1. Introdução O poeta Augusto dos Anjos nasceu no dia 20 de abril de 1884, no Engenho Pau d’Arco, município de Cruz do Espírito Santo, atual cidade de Sapé, estado da Paraíba. Faleceu em 12 de novembro de 1914, em Leopoldina-MG, dois anos depois da publicação de seu único livro Eu, embora existam muitos outros poemas não recolhidos pelo autor, nesse livro. O poeta João Batista de Siqueira, conhecido popularmente por Cancão, nasceu em 12 de maio de 1912, no município de São José do Egito-PE, portanto, comemora-se nesse ano o centenário do poeta. Publicou três livros Musa Sertaneja (1967), Flores do Pajeú (1969) e Meu Lugarejo (1979), além de vários escri- tos que juntamente com esses três livros foram reunidos no livro Palavras ao Plenilúnio, organizado pelo poeta Lindoal- do Campos e publicado em 2007 pela Editora Universitária da UFPB. Cancão faleceu em 05 de julho de 1982, na sua cidade natal. Alguns críticos consideram sua obra uma versão popu- lar influenciada pelos poetas canônicos Casimiro de Abreu, Fagundes Varela e, principalmente, Castro Alves. A poesia de 46 Cancão é muito rica em recursos imagéticos e rítmicos, que para Lindoaldo Campos (2007, p. 28) “são aqueles cuja predomi- nância verdadeiramente caracterizam a Poesia”. Para realizarmos esse estudo, dois arcabouços teóricos ser- viram de base, a literatura comparada e os estudos acerca da melancolia, dada a pertinência das características da poética de cada poeta e da relação intertextual entre os dois. Como recorte do nosso estudo, utilizamos o soneto Idealismo, de Augusto dos Anjos, o soneto O Ébrio e uma Décima, ambos do poeta Cancão. O desenvolvimento do artigo apresenta dois momentos. O primeiro (tópico 2) serão apresentados aspectos históricos da li- teratura comparada e um comentário conciso sobre a melancolia. Já o segundo momento (tópico 3) compreende a aplicabilidade do arcabouço teórico aqui assumido para compreensão e interpreta- ção dos poemas selecionados. 2. Breve introdução à literatura comparada e à melancolia Adentrar o espaço da literatura comparada nos possibilita deslumbrar o universo do pensamento e da criação artística humana. Possibilita diálogos culturais que vão além das fron- teiras literárias. De acordo com a professora Tania Carvalhal (2010, p. 8) “O surgimento da literatura comparada está vincu- lado à corrente de pensamento cosmopolita que caracterizou o século XIX, época em que comparar estruturas ou fenômenos análogos, com a finalidade de extrair leis gerais, foi dominan- te nas ciências naturais.” E é bom entendermos que os estu- dos literários comparados vão além das literaturas nacionais, pois deve, segundo Tania Carvalhal, colaborar para as formas e evolução crítica e histórica dos fenômenos literários em ge- 47 ral (2010, p. 85). Portanto, esse processo comparativo literário “colabora para o entendimento do Outro, procedimento indis- pensável de integração cultural.” (CARVALHAL, 1997, p. 8). Para Sandra Nitrini (1997, p. 19), “as origens da literatu- ra comparada se confundem com as da própria literatura”, ou seja, surge com a invenção da literatura grega e romana. Pois, segundo a autora, basta haver duas literaturas para haver a comparação, embora ela destaque que ainda não existia um es- tudo comparativo que fosse além de uma visão empírica acerca do texto literário. No entanto, Nitrini afirma que a dimensão do que há hoje sobre literatura comparada começa no século XIX, com estudos mais sistematizados e termos mais apropria- dos para o comparatismo literário. Segundo Antony Bezerra (2012, p. 2), há termos que qua- se sempre estão presentes nos estudo comparativo: “tradição (algo estático), influência (como algo capital), empréstimos (sem o expediente da reconstrução)” o que pode ser entendido como uma construção sem originalidade. No entanto, é bom lembrar que não apenas as similitudes entre dois textos devem ser motivo de comparação, mas principalmente as discrepân- cias devem assumir o papel importante nesse estudo. O ana- lista precisa observar o que cada autor põe em seu texto que mereça ser destacado como marca registrada, imprimindo uma característica própria na obra. É o que tentaremos mostrar e discutir nesse artigo. Mesmo a Literatura Comparada tendo “surgida em contrapo- sição aos estudos de literaturas nacionais ou produzidas em um mesmo idioma” diversos são os trabalhos (artigos, dissertações e teses) que comparam obras nacionais ou de um mesmo idioma, porque ela sempre traz “a noção da transversalidade, seja com 48 relação às fronteiras entre nações e idiomas, seja no que concerne aos limites entre áreas de conhecimento.” E foi seguindo, como elemento norteador do nosso estudo, esse segundo e último item que desenvolvemos nosso artigo, tendo como suporte teórico complementar os estudos sobre a melancolia. O estado de morbidez conhecida como melancolia provém do grego (melas: negro, chole: bile) e tem como característica “um desequilíbrio humoral, que acarreta uma oscilação entre dois estados psíquicosopostos: o humor depressivo e o humor exaltado.” (VASCONCELLOS, 2009, p. 23). O termo melancolia apresenta um vasto campo semântico, que de acordo com as variadas nomenclaturas recebe grada- ções de sentido, que segundo Viviane Vasconcellos (2009, p. 23) são exemplos: [...] a angústia, em Kierkegaard, e tam- bém em Heidegger; o absurdo existen- cial, de Schopenhauer, a náusea, de Sar- tre, o ressentimento, em Nietzsche, o sofrimento do protagonista, de Goethe, a melancolia, de Dürer; mesmo o tédio, de Baudelaire, a nostalgia, de Proust, além do horror, em Kafka, o luto pelo não-vivi- do, em Thecov, ou, entre nós, em Manuel Bandeira e Emílio Moura; a depressão, para a psiquiatria moderna; também, o luto e melancolia, em Freud. Percebemos que existe uma quantidade enorme de estudos que versam sobre a melancolia, embora cada qual a sua ma- 49 neira. Nesse trabalho tomamos como referência os estudos de Sigmund Freud acerca da melancolia. Percebemos na citação o quanto o termo já foi abordado ao longo do tempo por diferen- tes correntes filosóficas, psicanalíticas e literárias. Sobre a melancolia, Freud em “Luto e melancolia” (1980, p. 276), descreve a seguinte passagem: Os traços mentais da melancolia são um desânimo profundamente penoso, a ces- sação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibi- ção de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de autoes- tima a ponto de encontrar expressão em autorrecriminação e autoenvilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição. Dessa forma, percebemos que as marcas essenciais do dis- curso do melancólico são “o excesso de ideias e a repetição obsessiva de imagens e temas.” (VIANA, 2004, p. 13). 3. Quanto às estruturas formais dos poemas O soneto O Ébrio, do poeta Cancão, foi publicado inicial- mente no livro Flores do Pajeú (1969) e depois na obra Palavras ao Plenilúnio, organizada por Lindoaldo Campos (2007), utiliza- mos a versão do livro Flores do Pajeú. Já a décima foi catalogada na Antologia Ilustrada dos Cantadores, livro organizado por Linha- res e Batista (1976, p. 264). O soneto O Ébrio é constituído no 50 estilo petrarquiano, dois quartetos e dois tercetos, com todos os versos decassilábicos, como ocorre comumente nos sone- tos. Sabe-se que o poeta além de apresentar nos seus poemas um eu poético extremamente lírico, sentimentalista, é também um exímio metrificador. No primeiro quarteto do soneto de Cancão, as rimas são pobres, pertencem à mesma classe morfológica (substantivos – meia/cadeia e adjetivos – sorteado/esfarrapado), com esquema de rimas interpoladas ou opostas (ABBA) e dois tercetos decas- silábicos com rimas (CCD e EED, respectivamente), o mesmo esquema de rimas presente no soneto de Augusto do Anjos. Quanto ao timbre, elas são perfeitas, ou seja, as vogais tôni- cas são idênticas (meia/cadeia e sorteado/esfarrapado), dessa forma, as rimas são soantes ou consoantes, isto é, a correspon- dência é perfeita entre vogais e consoantes. Todos os versos desse quarteto são versos graves, pois as rimas são formadas por palavras paroxítonas. No segundo quarteto há também ri- mas pobres e ricas, respectivamente (verbos – palavreia/camba- leia e adjetivo + substantivo – deformado/estado). Quanto ao timbre, as rimas são perfeitas e todos os versos desse quarteto são versos graves. E as rimas são soantes. Os tercetos também apresentam rimas graves. Quanto ao timbre, todas as rimas são soantes (humanidade/cidade, alento/sentimento e mormaço/ palhaço). Quanto ao valor, as rimas dos tercetos também são pobres, formando-se a partir de palavras de uma mesma classe gramatical (substantivos – humanidade/cidade, alento/senti- mento) e ricas (substantivo – mormaço e adjetivo – palhaço), note-se que o vocábulo palhaço é substantivo, mas no poema é tomado como adjetivo (bobo, tolo, louco, irrisório, insigni- ficante etc.). A Décima é toda em redondilha maior, ou seja, 51 versos heptassílabos com esquema de rima (ABBAACCDDC), com rimas perfeitas, soantes, ricas e pobres. O soneto Idealismo encontra-se no livro Eu, de Augusto dos Anjos, única obra publicada em vida por esse autor paraibano, em 1912, ou seja, faz exatamente cem anos. O soneto Idealismo é também composto no estilo petrarquiano, isto é, dois quar- tetos decassílabos, com esquema de rimas interpoladas ou opos- tas (ABBA) e dois tercetos decassilábicos com rimas (CCD e EED) num total de 14 versos. No primeiro quarteto do soneto de Augusto dos Anjos, as rimas são pobres, semelhantes às do soneto de Cancão, ou seja, pertencem à mesma classe grama- tical (verbos – calo/falo e substantivos – mentira/lira.). Quan- to ao timbre, elas são perfeitas, ou seja, as vogais tônicas são idênticas (calo/falo e mentira/lira), dessa forma, as rimas são soantes ou consoantes. Todos os versos desse quarteto são versos graves, pois as rimas são formadas por palavras paroxítonas. No segundo quarteto há uma rima preciosa (amá-lo/Sardanapalo) e outra rica (verbo – inspira e substantivo – hetaira). Quanto ao timbre, elas também são perfeitas e apresentam uma corres- pondência perfeita entre vogais e consoantes, longo são soantes. Todos os versos desse quarteto são versos graves. Os tercetos também apresentam rimas graves. Quanto ao timbre, todas as rimas são soantes (sagrado/imaterializado, verdadeira/caveira e fulcro/sepulcro). Quanto ao valor, as rimas dos tercetos são ricas (sagrado/imaterializado, verdadeira/caveira) e pobres (ful- cro/sepulcro). 4. A força do niilismo exacerbado Na obra de Cancão, em geral, não percebemos uma visão 52 proeminentemente niilista, notamos um eu lírico que fala do amor pela natureza e em alguns poemas um apreço extremo pela Virgem Maria. Podemos dizer que Cancão foi, ou melhor, é um poeta telúrico, que segundo os amantes de sua poética, sua obra é muito paisagística. No entanto, especialmente no poema O Ébrio e na Décima heptassilábica, aqui destacados, per- cebemos um eu lírico carregado de sentimento negativo, um tom ultrarromântico, com ênfase para a Décima. Outro fator in- teressante, não apenas no soneto O Ébrio e na Décima, mas em outros poemas, Cancão faz uso, muitas vezes, de uma lingua- gem simples, no entanto, ele consegue imprimir uma belíssima imagem poética que tem como um dos objetivos “desviar-nos do caminho reto e sentido” que de acordo com Perrone-Moisés (1990, p. 13-14) “o extremo desse desvio (ou sedução) se cha- ma poesia”. O poeta consegue através de seus versos colocar o leitor diante de imagens que causam uma espécie de estranha- mento e ao mesmo de entrega ao texto, porque o tempo todo o leitor é surpreendido pela descrição minuciosa de elementos da natureza que muitas vezes passam despercebidos. O olhar do eu lírico é como uma câmera que registra tudo o que passa em sua frente, porém, com um detalhe, faz vibrar aos nossos olhos muitas cores e formas que somente uma alma extreman- te sensível conseguiria captá-las. Já o livro Eu, de Augusto dos Anjos traz uma série de ele- mentos “antipoéticos”, ou seja, palavras ou termos “estranhos” não usados na poesia até então, por exemplo, escarro, amonía- co, hipocondríaco, carbono etc. Sua poesia revela-nos elementos cientificistas e pessimistas, além de usar com muita predile- ção nos seus poemas uma das formas fixas, o soneto. O autor mostra em sua obra traços da literatura barroca, parnasiana e 53 simbolista, bem como revela elementos que revelam marcas de uma poesia moderna. Do barroco, percebemos o pessimismo, uso exagerado de figuras de linguagem, elementos contradi- tórios; do parnasianismo, a “arte pela arte”, ou seja, a busca pela metrificação e rimas ricas e preciosas, inclusive indo além do parnasianismo convencional brasileiro, ao mostrar uma re- alidade político-sócio-econômica a qual não víamos praticada pelos poetas parnasianos; e do simbolismo a busca pelo trans- cendental, como a morte e utilização de palavras com a inicial maiúscula,para dar ênfase à palavra destacada, como vimos no soneto, em anexo, objeto da presente leitura. Isso tudo prova o ecletismo, fusão de vários elementos estéticos presente na poesia de Augusto dos Anjos. Por isso mesmo que o poeta Au- gusto dos Anjos é um autor que poderia ser inclassificável em nossa literatura. Na verdade ele faz uso em seus poemas de elementos ou ca- racterísticas de estilos de épocas diferentes, causando espanto não só pelo seu ecletismo, mas pelas suas expressões interdis- ciplinares, pois muitos de seus poemas usam jargões da biolo- gia, química, física, matemática, história etc. Acerca do cienti- ficismo na poesia de Augusto dos Anjos, Derivaldo dos Santos (2002, p. 54) afirma que “A poesia nutre-se do leito científico. Ao nutrir-se, a sua formação discursiva também se contamina, fazendo emergir dessa relação contagiosa um jogo de cumplici- dade, e, ao mesmo tempo, conflituoso.” Assim, a poesia augus- tiana torna-se interdisciplinar, força o leitor a buscar uma visão mais global acerca da linguagem poética, levando-o a conhecer elementos de outras disciplinas para compreender seus poe- mas, como o poema aqui citado, que interage com a história, a física e a bíblia. 54 No primeiro verso “Falas de amor, e eu ouço tudo e calo” vimos duas orações, a primeira, com o sujeito oculto “tu” e a segunda, com o sujeito “eu”; percebemos que o soneto dialoga com o leitor ou interlocutor do eu lírico, “Falas de amor...”, para em seguida revelar o seu silêncio diante do que ouve do leitor. Esse diálogo remete-nos ao realismo machadiano, esse tom prosaico renova tal característica na poesia brasileira, pre- núncio do Modernismo. No segundo verso, ainda da primeira estrofe, o eu lírico arrebata todo amor humano com o verbo “ser”, afirma que o amor humano é hipócrita, falso, inclusive grafa o substantivo comum “Humanidade” com inicial maiús- cula, característica simbolista, revela a magnitude da dissimu- lação do amor, pois é fruto de toda raça humana. Há um ne- gativismo extremo quanto ao amor do homem, ou seja, uma descrença absoluta da capacidade do amor ser sincero e puro como o pregado pelo ensinamento cristão. O eu lírico se dirige a toda e qualquer raça humana, através de um discurso inten- samente pessimista. Logo em seguida, nos dois últimos versos, ainda da primei- ra estrofe, o eu lírico reafirma o que disse anteriormente e que raramente toca em sua “lira” esse amor frívolo, banal porque não é verdadeiro. Diante disso, revela mais uma vez a caracte- rística pessimista de sua poesia. Na Décima de Cancão percebemos o total desprezo e descren- ça do eu lírico sobre um ser, que, de acordo como o eu poético descreve, revela-nos toda ira que esse eu possui pelo outro. Não há nenhuma ação que incrimine o indivíduo condenado pelo eu lírico, mas pelo tom com que ele se refere a esse ser, só pode ser algo bárbaro. Vejamos: 55 Uma fera endiabrada Só pode ser como esta Que uma criatura desta Merecia ser queimada Porque, sendo sepultada Uma fera assim maldita Sua sepultura grita Não aguenta o arrojo E o cemitério, com nojo Abre a garganta e vomita! Percebemos que o eu lírico afirma que o ser de quem ele está falando é tão ruim e miserável que nem mesmo o cemi- tério – local onde ficam os restos mortais de todo e qualquer ser humano –, nem mesmo esse antro onde a matéria orgânica de todos nós irá se decompor; nem mesmo esse local onde re- cebe a nossa carne em estado de putrefação é capaz de aceitá- -lo, tamanha é a desgraça que esse ser representa. Percebemos que o cemitério é personificado através dos vocábulos “nojo”, “garganta”, “vomita”, isto é, o cemitério possui náusea, enjôo; o cemitério é capaz de abrir sua “garganta” e “vomitá-lo”. Há um niilismo exacerbado do eu lírico com relação a um ser que representa o outro. Através da musicalidade que é própria do verso heptassílabo e de uma linguagem metafórica, essa déci- ma traz um eu lírico repleto de denúncia e de muita revolta. Também no poema O Ébrio, de Cancão, o eu lírico denuncia de forma semelhante o desrespeito do homem perante o me- nos afortunado, mas não na mesma perspectiva do eu lírico do soneto augustiano e da Décima. Porque o eu lírico revela seu olhar pessimista descrevendo apenas um sujeito que é vítima 56 do descaso social. Não fica muito claro quem seja esse sujeito, pode ser um sujeito qualquer – leitura mais provável – como o próprio eu lírico. Tomaremos aqui a posição de que o eu lírico fala sobre o outro, já que os verbos estão em terceira pessoa. Na primeira estrofe percebemos que o bêbado é um indulgente por causa do próprio descaso da vida para com ele. É bem ver- dade que o “infortúnio” que o faz jogado na sarjeta é um “casti- go” construído pela falta de oportunidade na própria vida “Que o infortúnio lhe fez um sorteado”. Notamos que a palavra “sor- teado” carrega o sentido de que a vida o fez “Todo sujo, sem pão, esfarrapado”, isto é, o eu lírico denuncia esse sujeito por não se apresentar conforme a ordem oficial – comportamento decente – por isso ele é jogado na prisão. O eu lírico revela-nos que pode ser uma prisão não apenas física, mas também, psi- cológica. Porque, mesmo esse sujeito estando solto, ele é um excluído do próprio convívio social, isto é, o homem valoriza a aparência e o ter em detrimento da essência do ser. Tanto o primeiro quarteto do poema Idealismo, de Augusto dos Anjos quanto o do poema O Ébrio, de Cancão apresentam um comportamento melancólico do eu lírico, ou seja, revelam “um desânimo profundamente penoso”, uma das características da melancolia, conforme descreve Freud (1980, p. 276). Nos dois sonetos e também na Décima, esse “desânimo” se refere ao olhar decepcionado do eu lírico sobre o sentimento bondoso do homem para com o próximo, por exemplo, “Este povo, de menos sen- timento”, d’O Ébrio, “Uma fera assim maldita”, da Décima e “O amor da Humanidade é uma mentira”, do Idealismo. No segundo quarteto, d’O Ébrio o eu lírico revela um ser profundamente corrompido, desfigurado “pela voragem do ví- cio” e sem a faculdade do discernimento “Ele chora, sorri e 57 palavreia”, isso tudo plasmado pela falta de apoio das pessoas que o circundam. Percebemos que o eu lírico não descreve que não há ninguém que se compadeça ao estado de embriaguez do sujeito apontado no poema “ninguém olha, não sente o seu estado”. Existe uma espécie de exclusão provocada pela bebi- da, uma exclusão que mais parece a que os excluídos pela bar- reira instransponível da condição social sentem. Na realidade, há uma forte crítica social que denuncia o quanto a sociedade é intransigente e ao mesmo tempo excludente. Tudo o que é descrito nos versos do segundo quarteto reforça ainda mais o que o eu lírico já havia explicitado no primeiro, ou seja, há uma espécie de concatenação que, via de regra, é um aspecto importante na construção de um soneto. Semelhante ao que ocorre n’O Ébrio, no segundo quarteto do poema Idealismo há um reforço sobre o que já fora dito no primeiro, é expresse de forma comparativa e massacrante. Por quê? Porque logo no primeiro verso o eu lírico faz uma pergunta exclamativa, para em seguida, em tom jocoso, revelar o porquê da pergunta sobre o amor “Quando virei por fim a amá-lo?!” para no momento seguinte se justificar, isto é, o nosso amor é igual ao do “sibarita” (pessoa dada aos prazeres carnais), e da hetaira (mulher dissoluta, devassa e cortesã da antiga Gré- cia). Para completar a analogia, o eu lírico ainda reforça o amor profano, frívolo do homem; compara o amor da “Humanida- de” ao de Messalina, prostituta famosa da Bíblia, ou seja, o nosso amor é devasso, pornográfico, voluptuoso e materialista. E também equipara ao de Sardanapalo (rei da antiga Assíria, indivíduo devasso e glutão). Nesse momento, percebemos no poema, elementos retirados da história, uma forma de hibri- dizar disciplinas diferentes com a literatura. Mesmo que essa 58 comparação seja feita através de uma pergunta
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