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CANÁRIO, Rui A escola como construção histórica In O que é a escola - um olhar sociológico

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C O L E C Ç A O C l E N C l A S DAEDUCAÇ
Orientada por Mana Teresa Estrela e Albano Estrela
S E C U L O
RuiCanário
O que é a Escola?
Um "olha.r" sociológic;o
e PONTO EDITORA
Capítulo 5
A escola como construção histórica
Crise ou mutação?
Os debates sobre a escola nos últimos trinta anos têm tido um generalizado, e por
vezes difuso, sentimento de insatisfação como pano de fundo, ao qual as múltiplas e
repetidas tentativas de mudança voluntarista e em larga escala (reformas) não têm
conseguido dar uma resposta pertinente. Este sentimento de mal-estar remonta ao
diagnóstico, formulado no final dos anos 60, da existência de uma "crise mundial da
educação", que deve ser entendida como uma "crise da escola". Não estamos em
presença de um fenómeno inteiramente novo segundo António Névoa (2001,
p. 237). o discurso sobre a "crise da escola" apresenta um carácter recorrente e "abra
vessa o pensamento sobre a escola desde finais do século XIX" -, nem se trata de um
fenómeno especificamente português, que decorreria do nosso suposto "atraso", na
medida em que essa "crise" se manifesta com contornos idênticos na generalidade
dos países, independentemente do seu grau de desenvolvimento.
Esta "crise" não corresponde à crise de uma escola "intemporal", que permanece-
ria idêntica à sua configuração fundadora, mas, sim, a uma escola que ganhou uma
configuração específica a partir dos anos 60. Trata-se de um problema estrutural
(Charlot. 1987, p. 170) que. por isso, é comum a todos os países industrializados e
surge estreitamente associado ao facto de, face ao "esboroar gradual dos mitos fun-
dadores", a escola aparecer "simbolicamente desarmada perante a massificação (...),
sem outra ideologia legitimadora que não seja o prometido destino profissional dos
alunos" (Villaverde Cabral, 2001, p. 62). Estamos, portanto, perante "uma profunda
crise de legitimidade" (Sebastião, 1998), correlativa de uma mais larga crise de legiti-
midade do Estado-providência
Para um observador situado no tempo e contexto históricos do final dos anos 60,
os factos apareceriam como inteiramente concordantes com o diagnóstico da "crise
59
De facto, a contestação e a crítica à educação escolar eram fortes e alimentavam-se de
diferentes origens e fontes de legitimidade
em primeiro lugar, esse diagnóstico é coincidente, no tempo, com um movi-
mento social de contestação à escola, de âmbito mundial, com repercussões no
mundo operário, emblematicamente representado pelos acontecimentos de Paria
em Maio de 1 9681
em segundo lugar. esse diagnóstico é contemporâneo da emergência do movi-
mento de educação permanente que suscitou, em articulação com a defesa de
processos de promoção social dos trabalhadores, a procura e construção de solu-
ções educativas em oposição ao modelo escolar (é o caso da experiência italiana
das 1 50 horas)31
em terceiro lugar, este período histórico representa o auge da influência de um
pensamento pedagógico, alternativo à escola, bem representado pela publica-
ção, em 1970, de dois livros que. com perspectivas diferentes. fariam história:
,4 X)edagog/a (io opr/m/do de Paulo freire e Uma se(/edade sem asco/a de lvan
por fim. este período corresponde. também, a uma crítica cerrada à escola (sob a
forma de "denúncia"), por parte de uma importante corrente da sociologia, teo-
ricamente sintetizada na obra de Pierre Bourdieu e Jean Claude Passeron.
4 reprodução. E/ementas para uma teor;a do s/sfema de ens/r?o, também publi-
cada em 1 970
lllich
ambiente, pobreza, desigualdade) que configuram autênticos impasses
civilizacionais. As promessas iluministas do triunfo da, razão, de que a escola é
historicamente herdeira e executou e cuja concretização a ciência e a técnica
deveriam facilitar. encontram um obstáculo instransponível na imaturidade polí-
tica dos nossos modos de governo social;
- um quarto reside na centralidade da missão de promoção da cidadania atribuída
à escola, que contrasta com um fenómeno de retrocesso na participação política.
nas sociedades mais ricas e escolarizadas(Europa e América do Norte)l
- finalmente. a "corrida à escola" iniciada no período áureo dos "Trinta Gloriosos
("explosão escolar" nos anos 60) não mostra indícios de abrandar. A crescente
insatisfação com a escola traduz-se numa intensificação da procura e na opção
por percursos escolares mais longos, como se a escola se tivesse transformado
num "mal necessário
Os debates sobre a escola têm mostrado alguma incapacidade de procurar com-
preender, de forma articulada. este conjunto de paradoxos e a confusão que frequen-
temente os marca, mais do que a complexidade da "crise da escola", expr/me uma
crise do modo de pensar a asco/a. É muito provável que os instrumentos conceptuais
que mobilizamos para este debate nem sempre se revelem como as ferramentas mais
adequadas a uma elucidação crítica do problema.
E a primeira questão reside precisamente em saber se estamos perante uma
'crise" e se este conceito entendido como correspondente a uma patologia que
rompe temporariamente um equilíbrio é adequado para descrever a situação actual
da escola. Bernard Charlot (2000) respondeu recentemente pela negativa, notando,
com Ironia. que. "a existir uma crise da escola, é espantoso que, após mais de trinta
anos, o doente ainda não esteja morto". Em vez do conceito de crise, que remete
para problemas de natureza conjuntural, julgamos mais pertinente o. conceito de
mutação, que remete para mudanças e problemas de carácter estrutural.
Qualquer imobilismo é ilusório, apesar da aparente estabilidade da escola nos dois
últimos séculos e do seu carácter refractário a mudanças deliberadas. A escola de hoje
não é a do princípio do século nem sequer a escola da "reprodução" descrita por
Bourdieu. A escola sofreu mutações que engendraram as contradições estruturais e os
paradoxos em que hoje se move.
Os paradoxos da escola
Este sentimento de frustração em relação às promessas da escola tem permanecido
e alimentado o debate sobre a "crise da escola", sem que este se tenha traduzido, de
modo fecundo, na nossa compreensão de alguns dos paradoxos que, na segunda
metade do século XX, marcaram a expansão da escolarização:
- o primeiro reside no facto de, por um lado, o inequívoco triunfo da escolariza-
ção, no final do milénio, ser contado como uma história de "progresso" e de
vitórias", o que contrasta com a visão pessimista da "crise", instalada desde os
anos /u;
o segundo reside no facto de a "erosão" a que foi submetida a educação esco-
lar, por via de uma crítica permanente e sistemática. ser contemporânea da
hegemonia do modelo escolar que tendeu a contaminar todas as modalidades
educativas, podendo afirmar-se que a educação permanece refém do escolar;
um terceiro reside no facto de a crescente escolarização das nossas sociedades
ser concomitante com o agravamento de problemas de natureza social (guerra.
Escola: os níveis do debate
O que é, então, a escola? Esta pergunta é susceptível de uma pluralidade de res
postas
Não há dúvida de que estamos em presença de uma invenção histórica, contem-
porânea da dupla revolução industrial e liberal que baliza o início da modernidade e
que introduziu, como novidades, o aparecimento de uma instância educativa espe-
cializada que separa o aprender do fazer; a criação de uma relação social inédita. a
relação pedagógica no quadro da classe, superando a relação dual entre o mestre e
o aluno; uma nova forma de socialização (escolar) que progressivamente viria a tor-
nar-se hegemónica
3 O movimento das "150 horas" nasceu no final dos anos 70 e consistiu em consagrar, ao nível da contra-
tação colectiva, o direito dos trabalhadores a gerir uma carga horária trienal de 150 horas para melho-
rar a sua cultura. Tratava-se de um processo de formação autogerido de modo colectivo e claramente
distanciado das concepções redutoras e funcionais que viriam a dominar a formação profissional
60 61
A compreensão deste conjunto de novidades apela a uma distinção analítica entre
três dimensõesda escola que pode corresponder a uma tentativa de definição: a
escola é uma forma. é uma organ/cação e é uma /nsf/tu/ção.
A forma escolar representa uma nova maneira de conceber a aprendizagem. em
ruptura com os processos de continuidade com a experiência e de imersão social que
prevaleciam anteriormente. Esta modalidade de aprendizagem, baseada na ret/e/ação.
na curou/at/v/(Jade e na exter/or/date, possui autonomia própria e pode, portanto,
existir independentemente da organização e da instituição escolar, como acontece nos
nossos dias. É neste sentido que podemos falar de uma escolarização das actividades
educativas não escolares.
Correspondendo à dimensão da pedagogia. a forma escolar é aquela que mais
tem polarizado uma tradição de crítica à escola. centrada nos métodos, de que
encontramos traço persistente, por exemplo, na literatura. Constituiu-se, progressiva-
mente. como a forma tendencialmente única de conceber a educação, o que teve
como consequências fundamentais, por um lado, conferir à escola o quase monopólio
da acção educativa, desvalorizando os saberes não adquiridos por via escolar e, por
outro, contaminar as modalidades educativas não escolares, modificando-as à sua
imagem e semelhança. Este empobrecimento do campo e do pensamento educativos
privou a própria forma escolar de referenciais exteriores que Ihe permitiriam criticar-se
e transformar-se.
A escola corresponde. também. a uma nova organização que. tendo tornado pos-
sível a transição de modos de ensino individualizados (um mestre, um aluno) para
modos de ensino simultâneo (um mestre, uma classe), viabilizou a emergência dos sis-
temas escolares modernos. A organização escolar que historicamente conhecemos
corresponde a modos específicos de organizar os espaços, os tempos, os agrupamen-
tos dos alunos e as modalidades de relação com o saber. Contudo, apesar de definir
constrangimentos que. parcialmente, determinam os modos de trabalho escolar (de
professores e alunos), a dimensão organizacional da escola constitui aquela que
menos debate e polémica conota. Ao longo dos dois últimos séculos, este tipo de
organização, que é histórico e contingente, sofreu um processo de naturalização, que
Ihe confere um carácter inelutável e o faz aparecer como "natural". Constituindo-se
na matriz que condiciona a acção dos actores educativos e. em simultâneo, o pensa-
mento crítico e transformador sobre a escola. este processo de naturalização não só
torna a dimensão organizacional relativamente "invisível", como também contribui
para a estabilidade da escola. De facto, se. por um lado, o processo de naturalização
desarma os educadores para uma perspectiva de compreensão crítica do modo como
exercem a sua profissão, por outro, os debates e os projectos de mudança sobre a
dimensão organizacional, ao respeitarem. em regra, os limites impostos pelo modelo
existente, conduzem a uma invariância organizacional que condena à ineficácia as
querelas" sobre os métodos pedagógicos.
Finalmente. a escola é uma instituição que, a partir de um conjunto de valores está-
veis e intrínsecos, funciona como uma fábrica de cidadãos, desempenhando um papel
central na integração social, na perspectiva durkheimiana de prevenir a anemia e prepa
rar a inserção na divisão social do trabalho. Como instituição, a escola desempenha,
do ponto de vista histórico, um papel fundamental de unificação cultural, linguística e
política, afirmando-se como um instrumento fundamental da construção dos modernos
estados-nação
A ausência de distinção analítica entre estas três dimensões tende a confundir o
debate, pela contraposição de críticas ou argumentos que não situam a discussão ao
mesmo nível para todos os interlocutores, nem permitem uma abordagem compreen-
siva da globalidade. As dimensões pedagógica, orgar712ac/ona/ e /nst/tuc/or?a/, faces
diversas de uma mesma realidade. remetem para campos de análise e de debate que
podem e devem ser distinguidos.
Uma outra maneira de analisar a escola e tentar compreender as suas mutações
corresponde a adoptar uma perspectiva diacrónica que permite identificar três perío-
dos distintos: o período da "asco/a das certezas" que marca o período forte da institui-
ção, tendo como referência o designado "Estado educador"; o período da "esmo/a das
promessas" que, a partir de meados do século XX, é concomitante com a construção
de um Estado-providência que se assume como "Estado desenvolvimentista"; e. final-
mente, a entrada na era de uma "asco/a das /ncertezas", durante o último quarto de
século, correspondendo à erosão do Estado-providência. à sua perda de legitimidade e
consequente emergência de um Estado "mínimo" ou "modesto", também designado
por "Estado regulador" (Queiroz, 1 995).
A escola num "tempo de certezas"
Em oposição a visões naturalizadas que encaram a escola actual como uma espécie
de realidade intemporal, a construção da escola como "objecto sociológico" supõe
que a sua emergência seja historicamente situada. O nascimento histórico dos moder-
nos sistemas escolares ocorre no processo de transição das sociedades de Antigo
Regime para as modernas sociedades industriais, fundadas no capitalismo liberal e
num sistema de estados-nação, representando a escola, não apenas uma "invenção
histórica", mas uma invenção recente que corresponde a "uma revolução nos modos
de socialização", ou seja, a uma forma diferente de "fabricar o ser social" (Queiroz,
1995, p. 6). A construção histórica da escola moderna supõe. por um lado, a invenção
da infância e. por outro, a emergência de uma relação social inédita, a relação pede
lógica, exercida num lugar e num tempo distintos das outras actividades sociais, sub-
metidos a regras de natureza impessoal e que definem a especificidade do modo de
socialização escolar
O nascimento histórico, a consolidação e desenvolvimento dos modernos sistemas
escolares situam-se num contexto que é indissociável da dupla revolução (liberal e
industrial) que marcou o final do século XVIII. Durante um largo período que, cronolo-
gicamente, podemos situar entre a Revolução Francesa e o fim da Primeira Grande
Guerra. a escola viveu o que. hoje. podemos retrospectivamente considerar uma
'idade de ouro", que coincide com o apogeu do capitalismo liberal e que permanece
no imaginário colectivo como um referente a confrontar com os "males" da escola
actual. É essa "idade de ouro" que designamos por "tempo de certezas", na medida
em que correspondeu, por um lado, a um período de harmonia entre a escola e o seu
62
organizacional), nem com forma escolar (que existe, independentemente da institui-
ção e da organização escolares), vamos retomar a obra recente de françois Dubet
(2002), consagrada à análise do "declínio da instituição". A escola. como instituição,
'fabrica cidadãos" a partir de valores que Ihe são imanentes e transcendem os actores
em presença. Deste modo, a escola funciona no quadro do que pode designar-se por
'programa institucional", entendido como um processo social que "transforma valo-
res e princípios em acção e em subjectividade através de um trabalho profissional
específico e organizado" (p. 24)
A extraterritorialidade aparece como uma característica do programa institucional,
o que apela a uma acção soclalizadora que ocorre em espaços separados e "protegi-
dos das desordens do mundo", encarados como "santuários", a que corresponde
uma específica grandeza arquitectural. A escola (à semelhança da igreja, do hospital
ou do tribunal) marca a sua distância do mundo ordinário através de uma arquitectura
que visa impressionar as multidões e os indivíduos" (p. 29). O funcionamento do pro-
grama institucional faz apelo a um tipo específico de profissionalismo que supõe uma
vocação, na medida em que a competência e a legitimidade profissionais não se res-
tringem a dimensões exclusivamente técnicas e instrumentais, mas também se defi-
nem pela adesão a um sistema de valores, incorporados na própria Identidade profis-
sional. No quadro do programa institucional, o profissional beneficiade uma
'autoridade carismática", na medida em que repousa numa legitimidade transcen-
dente (o padre representa Deus, o médico a Ciência. o professor a Razão). Presta-se-
-lhes obediência, na medida em que "(...) eles se entregam a uma causa superior. são,
com frequência, celibatários, não ganham tanto dinheiro como o poderiam fazer
defendem um bem comum, mais do que defendem os seus interesses próprios
(p. 32). Radica aqui a imagem do professor "missionário", imbuído de forte autori-
dade e prestígio que marcou a escola no "tempo das certezas" e que, ainda hoje. per-
manece, como referência nostálgica, no imaginário colectivo dos professores
A escola, enquanto instituição, comunga do paradoxo fundamental que atravessa
as várias modalidades do programa institucional. Este paradoxo consiste em promover
uma acção socializadora que encara os destinatários, ao mesmo tempo, como objec-
tos e como sujeitos de socialização. Como refere François Dubet, é nesta duplicidade
que reside "a verdadeira magia do programa institucional" que produz, simultanea-
mente. "um actor conforme às normas e às regras sociais e um sujeito senhor de si
próprio" (p. 35)
Como esclarece Jorge Ramos do Ó (2001), a marca mais distintiva da escola. neste
período, é a da incorporação de princípios morais, através de uma prática da liberdade
e da autonomia. A disciplina escolar deve. então, ser encarada menos como um con
junto de regras impostas pela força e mais como um processo de adesão e interioriza-
ção pessoal, em que cada um, na sua acção relacional, as descobre e assimila de
forma indutiva. A socialização escolar confunde-se, então, com uma adaptação Indivi-
dual, livre e espontânea à vida escolar "como se cada um devesse aprender a instituir
um lugar social no lugar que ele próprio ocupa" (pp. 8-9). É neste sentido que o pro-
grama institucional, mais do que um processo de imposição coerciva de regras, deve
ser encarado como um tipo particular de relação social
r
contexto externo e, por outro, a um período de harmonia e coerência internas entre
as suas diferentes dimensões.
No plano externo, a escola "das certezas" aparece historicamente associada à pro-
nova ordem soc/a/ e uma nova ordem econó-
fundamental para compreender as especifici-
dades da escola neste período e, portanto, compreender o que distingue este período
histórico dos seguintes.
.lítica, umaile.11
processo é
Uma nova ordem política
Do ponto de vista político, a escola moderna significou subtrair à Igreja a tutela
sobre o ensino, a partir da criação de um sistema nacional de escolas. apoiado num
corpo de funcionários libertos das tutelas locais. A escola tornou-se o instrumento de
uma nova "religião laica" ou "cívica". para relembrar a expressão de Rousseau de
indubitável importância na construção de sociedades baseadas no liberalismo político.
O projecto de escolarização representou um instrumento decisivo de integração
social, no quadro da simultânea construção dos estados e das nações, fornecendo-
Ihes novas fontes de legitimidade, por referência à soberania popular, num contexto
de subordinação do local ao nacional e do particular ao geral (Green, 1997; Hobs-
bawn, 1 990).
No processo histórico de emergência do Estado-nação, a escola desempenha um
papel de fundamental importância na construção.dg.uma coesão..g.-solidariedade
nacionais, funcionando como o principal sustentáculo de um sistema político baseado
na representação (Petitat, 1982). A necessidade de assegurar a unidade do Estado
nacional, a partir de uma cultura concebida como objectiva e universal, faz da sociali-
zação escolar uma educação moral (Barrêre e Sembel, 1998), apresentada por Jules
ferry como uma "religião da pátria". Assim deverá ser entendido o modo como Ferry,
num discurso em Junho de 1 879 (citado por Leliêvre, 1999, p. 56), apresenta a missão
do "Estado educador": o Estado não é doutor em matemática, em fisiologia ou em
química, nem se ocupa da educação com a finalidade de criar verdades científicas,
mas, sim, para "manter uma certa moral de Estado, certas doutrinas de Estado que
importam à sua conservação". É deste ponto de vista, da escola como "fábrica de
cidadãos", que podemos definir a escola como uma /nst/fu;ção que, assumindo as
funções anteriormente desempenhadas pelas instâncias religiosas nas sociedades tra-
dicionais, "socializa os actores nos valores laicos e universais das sociedades moder-
nas". Trata-se de tentar interligar, num mesmo modelo, a integração social do indiví-
duo e a sua autonomia, ou seja, "a subjectividade dos indivíduos e a objectividade das
funções sociais são percebidas como duas faces de uma mesma realidade" (Dubet e
Martucelli. 1996, p. 528). Está em causa. como escreve Jorge Ramos do (1) (2001), em
termos sociais, formatar uma espécie de "homem novo", a partir da transferência que
o poder liberal faz do "essencial das tarefas destinadas à efectivação das categorias
modernas de pessoa e de cidadão"(p. 5) para o âmbito da socialização escolar.
Para clarificar melhor o que caracteriza a escola como instituição, a não confun-
dir com orçam/zação escolar (a instituição comporta várias formas possíveis, ao nave
64
CCE2-QE-S
65
U ma nova ordem soda l Uma nova ordem económica
Do ponto de vista social, a escola participa na construção de um novo tipo de laço
social, construído em torno da relação salarial, contribuindo para acelerar o declínio
do rural tradicional, a transferência da população para as zonas urbanas industriais,
Do ponto de vista económico, a escola participa historicamente na construção de
uma sociedade industrial, tendo como referência o capitalismo livre concorrencial, tal
como o teorizaram os economistas clássicos.
A cobertura do território nacional por uma rede de escolas baseava-se numa con-
cepção de homogeneidade e uniformidade deste mesmo território e era tributária da
mesma concepção "desterritorializada" que prevalecia na esfera económica. Esta
'desterritorialização", que. no caso da escola. representa um nascimento em ruptura
com o local, favorece o processo de "destruição criadora" das solidariedades comuni-
tárias características do Antigo Regime e que se constituíam como um entrave à emer-
gência de uma lógica de mercado. Registe-se o aparente paradoxo, assinalado por
vários autores (Petitat, 1982; Delamotte. 1998), de. numa sociedade que se pretende
Inteiramente regulada pelo livre mercado, a escolarização ser claramente assumida
como um empreendimento de iniciativa e de controlo estatal
Para os economistas clássicos, a educação representa, desde os alvores da revolu-
ção industrial, uma necessidade cuja justificação não é tanto a qualificação profíssio
nal, mas, sim, a disciplina dos exércitos de assalariados. Neste período histórico, a
escola é, fundamentalmente. uma instância de educação moral. É chamada a desem-
penhar um papel importante na produção de uma força de trabalho disciplinada
IDelamotte, 1998) e capaz de se integrar em modalidades de crescente racionalidade
da organização de trabalho, ljlseada na hierarquia, na s(Bmentação das tarefas e na
jissociação entre o »aHaÜ)r e o produto do seu trabalho. Como refere Jogo Bar-
roco, a escola afirma-se cõúo "um instrumento de inculcação de valores e normas
sociais" que enquadram o processo de escolarização das classes populares "e a sua
preparação para o trabalho fabril" (1996. p. 500)
A construção histórica da escola e a sua exterioridade relativamente ao mundo
social conduziram ao aparecimento de uma nova categoria social, o aluno, por efeito
da transformação da criança e sua adaptação às regras escolares. Um mesmo para-
doxo atravessa o universo de trabalho do aluno e do proletário moderno. Se este.
como ironizou Marx, está condenado, para sobreviver, a vender livremente a sua força
de trabalho, cada escolar, como assinala Jorge Ramos do Ó, "está livremente obrigado
a definir e trabalhar a sua identidade numa dinâmica que sobrepõe, em imagem
única. as formas da totalização e da individualização"(2001 , p. 6).
proletarizando-as.Este processo de ylbgn 4qçilç! ç dg prQ çlg;
se prolongou até aos nossos dias, r# H.ê
dades rurais tradicionais em modernas sociedades baseadas na produção Industrial.
Esta transformação implicou a construção social de uma outra visão do mundo, em
que o lazer e o trabalho se dissociarem e a precisão e quantificação do tempo, com
base no relógio, passaram a regular a vida quotidiana, na fábrica e na escola.
A escola foi chamada a desempenhar um papel importante nesta autêntica mutação
cultural.
Está em causa a transformação e/ou a criação de grupos sociais, nomeadamente a
transformação progressiva de um campesinato preso a particularismos e solidarieda-
des locais (pessoais e territoriais) num proletariado urbano que tem como única pro-
sendo obrigado a vendê-la por razões de subsistên
rculação. A escola, pela transmissão de uma cultura
única que é o suporte último de uma integração nacional, em torno de uma língua
única e de um conjunto selectivo de valores patrióticos, contribui para a criação de
uma noviordem social:'em oposição às sociedades de Antigo Regime. A passagem de
uma sociedade em que o estatuto social é transmitido por via familiar para uma socie-
dade em que o estatuto social é adquirido pela acção individual, no quadro de estru-
esce
apa
nte mobilidade. representa uma das mais decis
rece associada(Martucelli, 2000)
No quadro de transformações sociais tão profundas, a escola é também chamada a
desempenhar um papel na regulação da conflitualidade social, prevenindo, no con
texto da explosiva "questão social" que marcou o século XIX, os eventuais excessos
das "classes perigosas". Em discurso proferido em 20 de Setembro de 1892, no anfi-
teatro da Nova Sorbonne. Jules ferry, dirigindo-se aos professores, chamava-os ao
exercício de um apostolado contra "essa utopia criminosa e retrógrada que alguns
chamam a guerra de classes" (Leliêvre, 1999, p. 58).
Ainda no plano social, a invenção histórica da escola corresponde a instituir uma
relação social inédita que se autonomiza das restantes relações sociais e induz uma
nova forma de socialização que rapidamente se afirma como hegemónica. A hegemo
nia do escolar tende a traduzir-se por uma desvalorização das anteriores formas de
socialização e de aprendizagem, induzindo uma pedagogização das relações sociais e
desapossando alguns grupos sociais das suas competências e prerrogativas (Vincent.
1994). Assim se explicam alguns fenómenos de resistência à escola. Assim se com
preende. também, o processo de acentuada desvalorização social de grupos específi-
cos, alvos de estigmas que só fazem sentido numa sociedade escolarizada. É o caso
das populações rurais cuja ausência de alfabetização é percepcionada como um
entrave ao progresso.
Uma coerência dupla
O longo período histórico da escola num "tempo de certezas" é marcado por uma
dupla coerência da escola, quer em termos externos(a escola é consonante e está fun
cionalmente adaptada a uma nova ordem política. social e económica), quer em ter-
mos internos (a conflitualidade interna é reduzida ao mínimo e há harmonia entre a
escola e os seus públicos).
Durante este período, a escola goza de uma forte legitimidade social, na medida
em que é socialmente percebida como justa, apesar de funcionar num registo clara-
mente elitista (Dubet e Martucel11, 1996). Trata-se de uma escola que, sendo elitista.
66 67
favorece a mobilidade social ascendente de alguns que mais se destacam pelo seu
mérito. Como as desigualdades sociais se situam a montante e não a jusante da
escola, esta pode ser ilibada de responsabilidades directas na produção de injustiças
sociais. Num período em que o funcionamento do mercado de trabalho está relativa-
mente dissociado dos diplomas escolares, a escola não pode ser apontada como
estando na origem de problemas cíclicos de falta de trabalho. Por outro lado, o pró-
prio malthusianismo inerente a um sistema elitista favorece a rentabilidade de percur-
sos escolares longos. A desvalorização dos diplomas ainda não começara (Dubet.
Neste contexto, no período de transição do século XIX para o século XX (auge do
funcionamento da escola segundo o "programa institucional") viveu-se, na expressão
de Névoa (1989), "um tempo forte na profissão docente" Como agentes culturais e
como agentes políticos:
os professores são investidos de um imettso poder: doraoattte, detêm as chaves da
clscensão social de largas camadas da população. Futtciottários do Estado e agen-
tes de reprodução da ordem social dominattte, os professores da ordem sacia!
dominante, os professores personificam também as esperanças de mobilidade
social de pátios extractos da sociedade'
2000)n
por cada unt dos selas deveres, nuns tertlpo tão cuidadosamente regulado que não
pode dar lugar a nenhum mouitttento imprevisto, cada um submete a s a activi-
dade nos princípios ou regras que a regetn
A forma escolar introduz e generaliza, em termos históricos, uma forma de apren-
der em ruptura com os processos que. até então, haviam sido dominantes e que privi-
legiavam a continuidade da experiência individual e social. Baseando-se num princípio
de revelação (o mestre que sabe ensina ao aluno ignorante) e num princípio de cumu-
latividade (aprende-se acumulando informações), o modo escolar propõe processos de
aprendizagem baseados na exterioridade relativamente aos sujeitos. A memorização, a
abordagem analítica, a penalização do erro e a aprendizagem de respostas configu-
ram um processo em que a aprendizagem é pensada com base na desvalorização da
experiência dos aprendentes e, portanto, na desvalorização de atitudes de pesquisa e
descoberta. Na escola, as crianças deixam de fazer perguntas e passam a dar as res
postas que lhes são ensinadas.
Nas últimas décadas, a prática e a investigação educativas vieram proceder à reabi-
litação de modalidades educativas não escolares (no campo da animação e da forma-
ção de adultos), tornando possível um olhar crítico mais fundamentado e mais relativi-
zado sobre a forma escolar. Um conhecimento mais aprofundado dos processos de
aprendizagem não escolares permite-nos interrogar a forma escolar e pensar a sua
superação
Os recentes trabalhos de Carmen Cavaco (2002) sobre os processos de aprendiza-
gem de adultos não escolarizados e de Mima Montenegro (2002) são dois exemplos
de investigação sociológica que. ao contribuir para compreender o modo como os
adultos "se formam". a partir de uma via experiencial, ajudam a conhecer, relativizar e
analisar criticamente as especificidades e os limites do modo escolar
Ao construir um objecto de estudo com base na abordagem biográfica de um
grupo de idosos não escolarizados e situados num contexto rural, tendo em vista a
reconstrução e a compreensão dos seus percursos formativos por via experiencial, Car-
men Cavaco realizou uma opção que Ihe permitiu situar-se num caso-limite que ajuda
a põr em evidência duas vertentes: por um lado, o património experiencial de cada um
no seu processo de autoconstrução como pessoa e, portanto, nos processos de apren-
dizageml por outro, a importância decisiva dos processos não formais de aprendiza-
gem. o que permite situar de uma outra forma. relativizando-o, o modelo escolar
actualmente hegemónico.
A originalidade e o interesse da contribuição do trabalho realizado por Mima Mon-
tenegro resultam da capacidade de cruzar um olhar diferente e implicado sobre as
comunidades ciganas, com um questionamento dos processos de aprendizagem dos
adultos (em particular dos educadores e professores), a partir do pressuposto de que
eles "se formam" num processo dinâmico que articula uma via experiencial e uma via
simbólica, ou seja. a acção e a reflexão. No caso das profissões de relação, como é o caso
de professores e educadores, esse processo é indisssociável da natureza das Interacções
estabelecidas com os destinatários e com a capacidade de os "escutar" e, por con-
sequência. "aprender com eles, transformando-se" . Nesta perspectiva, a investigação
(PP. 17-18)
As palavras do primeiro presidenteda República Portuguesa, dirigindo-se aos pro-
fessores num congresso pedagógico, são bem significativas do prestígio social e polí-
tico destes. Confiante no início de "uma pátria nova, redimida pela instrução'
Manuel de Arriaga considera os professores como "os grandes mentores, pais espiri-
tuais da geração nova", e afirma. comovido, "A pátria confia em vós, a minha sobera-
nia é vossa" (Névoa. 1986, p. 38).
Acolhendo públicos relativamente pouco numerosos, homogéneos e regulados de
forma diferenciada, a escola deste período pede articular harmoniosamente princípios
que se viriam a manifestar como contraditórios (por exemplo, o mérito e a justiça),
funcionando como "uma terra de justiça, face a uma sociedade de classes" (Dubet e
Martucelli. 1 996, p. 38)
(P. 28)
A hegemonia da forma escolar
A invenção histórica dos sistemas escolares modernos corresponde a instituir e tor-
nar hegemónica uma outra forma de aprender, a partir da criação de uma relação
social. até então inédita, a relação "pedagógica" entre um professor e um aluno, rela-
ção essa que tende. por um lado, a autonomizar-se das restantes relações sociais e.
por outro, a tornar-se hegemónica, relativamente a outras modalidades de pensar e
organizar as aprendizagens. Este novo tipo de relação social, designada por "forma
escolar", pode, segundo Vincent, Lahire e Thin (1994), ser. no esssencial, caracteri-
zada como:
(...) não uma relação de pessoa ci pessoa, mas lama submissão do mestre e dos alu-
nos a regras impessoais. Num espaço fechado e inteiramente ordenado à realização
68
l=elel
empírica conduzida por Mima Montenegro esclarece-nos sobre o carácter necessaria-
mente reversível da interacção estabelecida entre os ciganos e os professores e educa-
dores e o modo como os últimos, a partir da experiência desse contacto, aprendem com
os primeiros (condição necessária para que a sua acção profissional se revele proveitosa
e gratificante). Em termos metodológicos, o questionamento que serve de referência à
investigação empírica faz apelo a que se considere a singularidade do caso de cada pro-
fessor e educador e que essa singularidade seja analisada a partir de uma perspectiva
diacrónica sobre a trajectória pessoal e profissional que Ihe corresponde. Aqui reside a
pertinência metodológica do recurso à entrevista de cariz biográfico.
A investigação e a reflexão sobre os processos não escolares de aprendizagem per-
mitem-nos, hoje, construir uma visão teórica de como aprendem os seres humanos,
que pode sintetizar-se em três grandes princípios:
- Em pr\me\ro \usar. a aprendizagem corresponde a um trabalho que cada sujeito
rea//za sobre s/ própr/o. Ao interagir com o mundo que o rodeia. cada sujeito
constrói teorias que permanentemente testa através da acção. A articulação
entre a informação e a experiência assume um papel central, o que se traduz em
considerar cada sujeito como o principal recurso para a sua aprendizagem. A
aprendizagem na acção supõe uma actividade de experimentação, marcada pelo
processo de tentativa-erro, comum às crianças e aos investigadores em física
nuclear. De igual modo. em ambos os casos, a aprendizagem constrói-se no qua-
dro de uma interacção com pares e o ponto de partida é uma pergunta (não há
produção de conhecimento sem interrogação ou dúvida). O conhecimento do
mundo é também construído a partir de um processo de aproximações sucessi-
vas, em que a capacidade de mobilizar e conectar informação diversa se revela
mais importante do que acumular informação segmentada. a partir de uma abor-
dagem analítica.
- Em segundo lugar, a aprer7d/vagem co/nc/de com o c/c/o vila/. O Homem é,
quando nasce, um ser dependente cuja sobrevivência e construção como pessoa
humana supõe uma aprendizagem. Neste sentido, o Homem, enquanto ser ina-
cabado, está condenado a aprender e a aprendizagem. que corresponde a um
processo de hominização, representa algo de tão vital e natural como respirar. As
concepções teóricas e epistemológicas referenciadas à educação permanente e à
corrente das histórias de vida podem sintetizar-se neste princípio.
Em teíce\ro \usar. a aprendizagem é, no essencial, um processo difuso, não for-
ma/ que é coincidente com um processo largo e multiforme de socialização.
Decorre daqui que a aprendizagem ocorre em todos os contextos, o que significa
que a maior parte dos contextos educativos não são contextos escolares. Apren-
der significa, então, a capacidade de cada sujeito se apropriar de uma oportuni-
dade de aprender. "saisir I'occasion", para utilizar os termos de Daniel Hameline
(2002), sendo que a maior parte das aprendizagens não é o resultado de um pro-
cesso intencional e, muito menos, planeado. Como escreveu lvan lllich (1971,
p. 57), é fora da escola que toda a gente "aprende a viver, a falar. a pensar, a
amar. a sentir, a brincar. a blasfemar, a desenvencilhar-se, a trabalhar" e as crianças
não são uma excepção a esta regra: "elas aprendem a maior parte do que sabem
fora do sistema educativo tão cuidadosamente construído para elas". Concebida
como um processo largo de socialização, a aprendizagem configura-se. também.
como uma relação recíproca e reversível entre pessoas que entram em relação
Ineste sentido, os pais aprendem com os filhos, os professores com os alunos, os
médicos com os doentes)
O conhecimento que hoje temos acerca da educação não formal configura-a como
uma antítese dos processos de educação escolar. Com efeito, a afirmação hegemónica
do modo de socialização escolar produziu-se à custa de uma ruptura com modalida-
des de aprendizagem experiencial, na medida em que a escola correspondeu a criar
um lugar e um tempo específico para aprender. distintos do espaço e do tempo
sociais. Em consonância com o processo de "desterritorialização da economia", a
escola introduziu uma ruptura com a experiência dos indivíduos, fazendo emergir
modos de aprendizagem "deslocalizados". Nesta perspectiva. a experiência de cada
aprendente tende a ser encarada como um obstáculo à aprendizagem
À exterioridade dos processos de aprendizagem (relativamente, quer aos contex-
tos, quer às pessoas), associa-se uma concepção de carácter cumulativo (aprende-se
por acumulação de informação), bem como uma concepção autoritária (o saber é
revelado por um mestre). É este conjunto de características que dificulta uma constru-
ção de sentido e favorece uma dissociação entre o sujeito e o seu trabalho (escolar),
conferindo-lhe características de alienação. A convergência entre uma crescente perda
de sentido da escola e. por outro lado, a sua hegemonia e omnipresença apela a uma
superação crítica do modo escolar, mas, ao mesmo tempo, dificulta-a, na medida em
que a solução escolar aparece como a única "natural" e inevitável
O trabalho escolar: entre o prazer e o enfado
Os alunos, por aquilo que fazem (comportamentos considerados inadequados e
qualificados de "indisciplina") e por aquilo que não fazem (realização correcta e dili-
gente das tarefas escolares que lhes são pedidas), tendem a ser, cada vez mais, enca-
rados pelos professores como o problema principal da escola. A verificação recorrente
de que os alunos "trabalham pouco" é, do ponto de vista dos professores, compreen-
sivelmente preocupante: a aprendizagem corresponde, necessariamente, a um trabalho
realizado por quem aprende e os professores, cuja missão é ensinar, confrontam-se
com a impossibilidade de ensinar a quem não quer aprender (ou seja. realizar um
determinado tipo de trabalho)
Quem se deixar influenciar pela perspectiva apocalíptica sobre o estado actual da
escola que quotidianamente nos é transmitida por alguns nostálgicos de uma hipoté
tica "idade de ouro" da escola, a que o "facilitismo" e a "preguiça" teriam vindo põr
cobro, poderá ser tentado a pensar que estamos perante um problema novo, o que
está longe de ser exacto. Também não é, como já referimos, um problema "nacional"
que seria decorrente do nosso suposto "atraso" em matéria de educação. Segundo
nos informa o prestigiado diário francês Le /Monde(de 14 de Janeiro de 2003), 85%
dos professores dizem confrontar-se com a falta de interesse dos alunos e o próprio
70 71
ministro da Educação, Luc ferry, admitiu que, na escola. "se aborrecia como uma rata-
zana morta
Se recuarmos, em Portugal, ao período de autoritarismo salazarista e do elitismo
malthusiano que marcava o liceu dessa época, muito distante, portanto, dos "desva-
rios" democratizantes que se iniciaram na fase final do regime e se aprofundaram
depois do 25 de Abril, verificamos que o facto de os alunos se manifestarem refractá-
rios ao cumprimento dos seus deveres escolares já estava no centro das preocupações
políticas do regime. Senão vejamos, no mesmo ano em que Mário Dionísio (1956)
publicava, na revista Z-al)or, o texto da conferência que proferiu na abertura do ano
lectivo do Colégio Moderno com o título "Enfado ou prazer: problema central do
ensino", realizava-se o IV Congresso da União Nacional, ao qual D. Virgínia Gersão
apresentava uma comunicação com o seguinte título muito sugestivo e actual: "A
desoladora falta de interesse dos alunos liceais e a repercussão desse facto na vida
social"(Dionísio e Canário, 1995).
O diagnóstico enunciado na comunicação de D. Virgínia Gersão não é propria-
mente original: a "distracção quase sempre provocada pelo próprio desinteresse do
aluno", a "excessiva liberdade de que gozam em casa" e a "ausência de idealismo'
dos alunos são algumas das causas apontadas pela autora. As soluções propostas tam-
bém não primam pelo seu carácter imaginativo: fazer ver aos pais "os perigos a que a
demasiada liberdade conduz os filhos", obrigar a criança, na escola primária. "em cur-
tos espaços de tempo, a uma disciplina rigorosa", ou a adoptar, para o ensino liceal,
livros relativamente pequenos e bem feitost não esquecendo que pouco e bem vale
muito mais que muito e mal", são alguns exemplos.
Não é esta, obviamente. a perspectiva segundo a qual, na sua conferência, no
mesmo ano, Mário Dionísio equaciona o problema do desinteresse dos alunos. Nas
suas palavras, o que é necessário fazer é tomar todas as medidas necessárias para que
tantos milhões de crianças e adolescentes que, em todo o mundo, consideram o
estudo a mais detestável das tarefas e a cultura a mais enfadonha das inutilidades
possam aprender a encontrar neles "o seu bem mais pessoal e inviolável". Em síntese,
o que está em causa, na organização do trabalho escolar. é "substituir o critério de
obrigação pelo de necessidade, o constrangimento pela espontaneidade, a incompati-
bilidade pelo entendimento, o enfado pelo prazer'
A hipótese de que o problema da desafeição dos alunos pelo trabalho escolar
tenha as suas raízes nas próprias características da escola pode ser fundamentada no
facto, aparentemente paradoxal, de a escola ter vindo a ser submetida a uma crítica
constante e demolidora, precisamente por parte dos mais instruídos e, portanto, teori-
camente mais próximos da cultura escolar e mais esclarecidos sobre os seus benefícios
Numa entrevista publicada num livro muito recente, Noam Chomsky (2002) "vê" a
escola desta maneira
Qualquer llm qtle tenha lidado com crianças sabe que são ctlriosas e criativas.
Queretrl explorar as coisas e descobrir o cine acontece. Grande parte da escolariza-
ção consiste etn tetttar faze-las perder isso e adapta-las a um molde, fala-las com-
portar-se bem, deixar de pensar, Tlão causar probletnas.
Mas, se fizermos uma breve incursão pelo campo da literatura portuguesa', os
exemplos de referências críticas à escola são tão frequentes e incisivos que a dificul-
dade reside unicamente na escolha. A definição de Guerra Junqueiro, num poema
intitulado "Escola Portuguesa", é lapidar: "Escolas, esta farsadal São açougues da
inocência, São talhos de anjos, mais nada
A título de exemplo, lembremos as páginas de crítica mordaz à instituição escolar
escritas por Eça de Queirós e expressas na proposta de "reforma do ensino" apresen
tada na Câmara de Deputados pelo inefável Conde de Abranhos, em que este faz o
elogio da sebenta:
Etl cottsidero, porém, a Sebettta como a mais admirável disciplina para os
espíritos moços. O estudante, hnbituatldo-se, durante cinco anos, a decorar todas
as noites, palavra por palavra, parágrafos que há quarenta anos pertltanecem
imutáveis, sem os criticar, sem os comentar, ganha o hábito saltitar de aceitar
sem discussão e com obediência as ideias preconcebidas, os princípios adoptados,
os dogmas provados, as instituições reconhecidas. Perde a @.nesta tettdência
que tanto mal produz de querer indagar a lazão das coisas, examinar a uercictde
dos .factos; perde, enlitTI, o hábito deplorável de ncercer o livre-exattte.
(P. 34)
Numa autobiografia escrita em Genebra. aquando da sua passagem pelo Insti-
tuto mean Jacques Rousseau, recentemente publicada por Daniel Hameline e António
Nóvoa (1990), António Sérgio, figura de proa do Movimento da Escola Nova em
Portugal, descreve assim as suas memórias do trabalho escolar (apenas iniciado aos
10 anos)
(P.43)
Talvez o problema resida na escola
A escola define-se. historicamente. como um lugar destinado a dar e receber ins-
trução, em que a acção exercida sobre os alunos é realizada à força e não por livre
consentimento. Como se reconhece num manual de Sociologia do ensino (Waller,
1 932), a vida seria doce na sala de aula se os professores não tivessem que obrigar os
alunos a trabalhar. Infelizmente seria essa a realidade inelutável
Os atutlos devem aprender as coisas qtle eles não desejam aprender e deuent
aprettder até à nát sea mesttio as coisas que lhes interessam. Os professores têm
que obrigar os alunos a trabalhclr. Os professores devem manter a ordem na sala
cie nata de modo gELe os ciluttos possant apreitder.
(P. 355)
Trabalhei ben!, mas achada o meu trabalho }Ttuito abo ácido, sobrettLdo a
gramática (um mctrtírio de deJ:inições muito abstractas e de longas stlbtilezas), a
história (rosário de '.feitos tlotáueis' de cada reinado, sem nenhtlma relação entre
eles, nem com nada) e a corografia de Portugal (70l i7tJ:irLdáuel de cidades e Ditas
Consulte-se. a este propósito, a interessante antologia de textos, organizada por António Névoa e Jorge
Ramos do Ó, "A escola na literatura", publicada, em 1997, pela Fundação Calouste Gulbenkian
72 73
banhadas pelo respectivo rio, de montante n l sante}. Espatttaua-me de ter de
aprender dc cor coisas que adultos muito instnLídos (Olt seja, qtLe eu uia serem
assim considerados) ttão sabiaTn: data por isso tias conversas do meu pai com os
a mimos dele
problema. em Portugal, está documentada num recém-publicado estudo de uma
equipa de investigação da Universidade do Porto que procede à análise da incidência
do stress nos professores portugueses (Mota Cardoso e outros, 2002)
Para construir uma ideia aproximada da natureza e da amplitude do problema que
hoje constituem as diferentes modalidades de "sofrimento no trabalho" que afectam
os docentes de forma massiva (Correia, Matos e Canário, 2002), uma leitura atenta e
regular da imprensa é suficiente, tal é a frequência com que são publicados, sobre o
assunto, testemunhos, notícias e reportagens. A situação vivida é relatada com grande
'realismo" numa "carta aberta" de um professor do ensino básico, publicada no jor-
nal Púó/lco de 1 7 de Março de 2002. A citação é longa, mas justifica-se pelo seu inte-
resse documenta
(...) lama ntlla começa quattdo os alunos o permitem, isto é, basicamente qtlatldo
estão todos sentados, de caderttos a postos, atentos e em silêncio. Alguém Jorct do
ensino imagina qtlanto tempo isto pode demorar a ser conseguido, ainda qtle o
docente recorra ctlgumas vezes à chamada de atenção, à exasperação, ao teuntltar
da uoz? Na realidade, atgttém .faz ideia dct cotnédia em que pode torttar-se alma
aula? Desde 'senta-te', 'ccltem-se', 'está quietos', 'Tejam se estão caladosl'.
ouçam lá agora', 'tu, aí, Ol{ te calas OLI Tais !á para foral', nté 'desctLtpem, mas
não posso continuar assiml', 'se é o que querem, calo-me e .Fcamos assim até ao
fina! da aula',etc.etc.Atgtiént em seu pe#eito juízo imagina a agonia de um professor na balbúrdia
de tina sala de aula; os nervos contidos; a vontade de sair dali e injuriar quem !he
fez acreditar que era ctqueta a profissão; a tensão .face à {rottia das criattças; o
vexame /ace à troça.
Assim se explica que, do ponto de vista de um observador exterior à profissão, o
trabalho do professor possa ser descrito como uma espécie de "missão impossível"
Tal é o caso de uma reportagem realizada numa escola "difícil" e publicada na revista
Grar7de /?eporfagem (Jardim, 2001), a qual, para além do necessário domínio dos
'conteúdos" a ensinar, refere o conjunto de aptidões exigidas ao professor de hoje
nos seguintes termos:
Ê necessária a capacidade de concetlbração de uln neurocirurgião, a paciência
de tLm chinês e o sentido de espectáculo de um artista de etttretenimettto. É pre
cimo explicar a matéria, entrecortatldo o discurso cota reprimendas, apelos no
silêncio e lama visão de radar capaz de alcançar vinte pares de olhos. É funda
mental não perder n cctlma alem a compostura perante cometttários infantis ou
apertas pouco .felizes. E há qüe saber mouimetttar-se, fazer ftlltuar a uoz e criar
alguma diversão visual tlütn cenário cada uez mais desajustado à realidade desta
juventude.
Diagnosticando a situação desta forma, não custa a admitir nem a compreender
que, para um número crescente de professores, os alunos apareçam como o problema
número um da escola e os responsáveis directos pela sua infelicidade profissional.
E nesta perspectiva que o professor. autor da "carta aberta" que atrás citámos, for-
mula a seguinte questão: "Serão os alunos merecedores da ira dos professores?"
(PP.153-154)
Também um dos testemunhos autobiográficos deixados por Mário Dionísio (2001)
é bem esclarecedor da leitura crítica que este faz do seu percurso como aluno. Quer
na faculdade, onde o panorama. segundo as suas palavras, era tão ou mais desolador
do que aquele que conhecera no liceu, onde muitos professores, "lendo a sebenta
que ditavam há dezenas de anos" (a mesma que o Conde de Abranhos elogiava), exi-
giam vê-la reproduzida nas provas lps/s vero/s, "senão lá vinha o reparo de mau
agoiro: estou a desconhecer esta prosa..." (p. 26), quer no liceu, onde a sua experiên-
cia de estudante (no elitista Liceu Camões) é sintetizada nestes termos:
Um litro não chegaria para evocar, tltesrtío sem zelos de minúcia, esses sete
anos de aprendizagetn deplorável, etll qtle, por infeliz acaso certamente e saldo
dtlns excepções (digo e sublinho duas), uioi ria triste dependência de professores e
professores qtle setttpre }lte llía ttiuerarrt no equilíbrio assaz instável entre o
enfado ou a pontada de rir, às vezes irresistível, e o medo de ser 'chamado', entre
o desejo de saber e o receio de perguntar fosse o que .fosse, entre a alegria de ir
passando' e urna desconfiança silenciosa sobre a minha possível incapacidade de
aprender.
(P.4)
Testemunhos como o de Mário Dionísio contribuem para tornar credível a hipótese
de que a dificuldade em "põr os alunos a trabalhar" tenha. também, a sua origem em
razões internas aos próprios professores.
Talvez o problema resida nos professores
Numa reflexão sobre os modos possíveis de promover a melhoria do funciona
mento da escola. o famoso filósofo Karl Popper avança com a proposta aparente-
mente simples, mas algo desconcertante. de nos desembaraçarmos dos "professores
infelizes". Segundo Popper, muitos professores estão, de algum modo, prisioneiros da
escola e profundamente infelizes por não poderem sair. Para eles, a sua proposta é
clara: é preciso construir "pontes de ouro para que possam ir-se embora". E justifica:
Enquanto um grande número de professores permanecerem amargos, tornarão as
crianças amargas e infelizes
Independentemente da sua eventual bondade, esta proposta de Popper aparece.
infelizmente, como cada vez menos exequível. A tentativa de a pâr em prática quase
de certeza nos conduziria à situação de ficarmos praticamente sem professores. Esta
situação de "infelicidade docente" está longe de ser um problema nacional. Basta ler
os jornais diários para sermos permanentemente confrontados com problemas idênti-
cos e com maior amplitude. Assim, no Púl)//co, de 28 de Dezembro de 2003, noti-
ciava-se. com largo destaque, que "cerca de 200 mil professores ingleses e do País de
fales se dizem afectados pelo stress" e "precisam de ajuda". A existência do mesmo
74 75
L
Mas pergunta-se: será possível equacionar este problema de uma outra forma?
Não será razoável aceitar que os problemas que afectam os professores possam ser
simétricos daqueles que afectam os alunos? Toda a informação empírica de que dispo-
mos converge para confirmar a ideia de que os alunos "sofrem" na escola e que esse
sofrimento está relacionado com a natureza do trabalho que realizam e com a dificul-
dade ou a impossibilidade de construir um sentido positivo para esse trabalho. Se
assim for, o problema dos professores e o problema dos alunos é o mesmo X)rob/ema.
o que convida a uma relação de a//onça e não de confronto. Como, em geral, todo o
sofrimento no trabalho, o que, na escola. afecta os professores e os alunos é a conse-
quência de uma cisão entre a pessoa e o trabalho que realiza. A alienação do trabalho
escolar só pode ser superada de forma simultânea para professores e alunos, o que
implica que ambos se assumam como autores.
Como escreveu lvan lllich (1971), uma aprendizagem baseada na criação e na des-
coberta supõe participantes iguais, no sentido em que "possam experimentar. no
momento da sua reunião, espantos e curiosidades comparáveis" (p. 41). Nesta pers-
pectiva. os professores só podem resolver o seu problema se se modificar a forma e o
conteúdo do trabalho escolar que a escola tradicionalmente atribui aos alunos: rece-
ber e repetir informações.
Do ponto de vista dos conhecimentos e da relação de poder entre o professor e o
aluno, há necessariamente uma assimetria. Porém, há aspectos essenciais em que a
regra é a da simetria. no sentido em que Popper afirmava que os professores amargos
e infelizes tornam os alunos amargos e infelizes também. É difícil que um professor
possa desenvolver o gosto pela leitura e pelo exercício da escrita nos seus alunos se.
para ele próprio, a leitura e a escrita não forem actividades frequentes e feitas com
prazer. Não é concebível que um professor que não gosta de Matemática possa con-
tribuir para que os alunos vejam na Geometria "um prazer dos deuses'
Temos, hoje, nas nossas escolas, manifestações de recusa do trabalho escolar que
são comuns a professores e alunos e cuja resolução não pode ser dissociada. O pro
blema não reside em saber como é que os professores põem os alunos a trabalhar (na
óptica do capataz), mas, sim, como é que as escolas podem ser locais onde professo-
res e alunos (nos seus respectivos papéis) formem comunidades de aprendizagem que
tenham em comum o gosto pelo estudo.
como faz Perrenoud (2002), pâr em evidência. por um lado, o modo uniforme e estável
das modalidades organizacionais do trabalho escolar e, por outro, verificar como o
núcleo central dessa organização (a tecnologia da classe) tende a instituir-se como algo
que não é concebível mudar. As diferenças ou nuances organizacionais, entre diferen-
tes níveis de ensino, diferentes períodos ou diferentes regiões, não permitem ocultar a
universalidade de uma solução organizacional, claramente aparentada com o modo
taylorista de organizar a produção industrial. A organização escolar fundada na classe
permite que um professor ensine "muitos alunos como se fossem um só" (Barrosã,
1995), o que. historicamente, tornou possível a escolarização em grande escala. mas,
ao mesmo tempo, está na origem da indiferença da escola às diferenças dos alunos.
A uniformidade de tratamento é a regra e "a escola funciona como um hospital que
desse o mesmo tratamento a todos os pacientes"(Perrenoud, 2002. p. 21 2)
Como já tivemos oportunidade de argumentar (Canário, 1992, 1999), a organiza-
ção escolarque conhecemos e que tem vindo a sofrer um processo de naturalização
integra um conjunto de invariantes (a classe, a ordem espacial, a ordem temporal, a
compartimentação disciplinar, a divisão de trabalho entre os professores) que servem
funcionalmente um sistema baseado na repetição de informações. Alimentando-se,
em permanência, de informação recebida do exterior, essa informação é sujeita a um
processo de repetição por parte do professor (requisito didáctico) e por parte do
aluno, não só para aprender, mas também para provar que aprendeu (avaliação). Esta
lógica de repetição (de que a repetência represerlta um caso extremo, mas não raro) e
o seu carácter pré-programado e previsível estão associados a uma relação de exterio
ridade com o saber que dificulta uma construção positiva de sentido por parte dos alu-
nos, bem como a possibilidade de estes acederem a um estatuto de sujeitos.
Um estudo empírico recente que aborda, a partir de uma perspectiva etnográfica.
a realidade vivida numa escola do ensino básico (Araújo, 2002) permite-nos ilustrar de
que modo e com que consequências ela se traduz no quotidiano escolar. As citações
são excertos de testemunhos de alunos (l .' ciclo do ensino básico) entrevistados pela
investigadora
rosé: " Ela, mllitas Deles, }lo estudo do meio, Jaz perguntas e dá as respostas no
qLladro e, depois, ó outro dia a ficha é igtlalzinhal Assim, podemos ir ó cadertto e
copiar de tá as respostas
Migttel: "É sempre igual. Aprettdemos os litros e os decâmetros, mas ê sempre
a mesma col,sal;
Jogo: "É a }nesma coisa. É sempre a mesma coisa (...), eu nem sou repetente
mas é sempre água!
Mana: "Eta ensina-nos muitas coisas qüe lú aprendemos lhas não nos letnbra-
Daniel: "Ett reprobei o nno passado na qtlarta e elas bem... toca a aprender
outra bez e ando a aprettder quase tudo cio ano passado. E quase igual"
Rosa: "É sempre as ttlesmas coisasl É chato tuas tem qtle ser assim... é n
escolar
(PP. 301-302)
/nos
Escola: uma organização "imutável"
Como mostrou Jogo Barroso, a partir de uma abordagem empírica à evolução his-
tórica e funcionamento dos liceus (1995, 1996) a organização escolar que conhece-
mos constituiu-se a partir de uma estrutura nuclear, a classe. entendida como um
grupo de alunos que recebe. de forma simultânea, o mesmo ensino. A homogenei-
dade da turma, em termos etários e de conhecimentos, exprime um princípio mais
geral de homogeneidade que marca a organização do espaço, do tempo, dos saberes
e que representa uma marca distintiva da escola.
Uma tipificação dos principais elementos que caracterizam a organização escolar e
uma perspectiva diacrónica sobre a sua evolução nos dois últimos séculos permitem.
76 77 l
Numa perspectiva diferente, mas complementar desta, a professora explica por
que. do seu ponto de vista. se torna necessária uma constante repetição dos conteú-
dos curriculares:
Os 7tossos aluttos são alunos de se repetir a matéria milhares de vezes e eles
chegarem, às vezes, a alturas em que dizetn qtle a gente não deu aqtlilo. Isto
depois de n gente jú ter tudo feito... por exemplo, o caso dos verbos... as vezes que
lú se falou no passado, no presente, no lfuturo e, depois, agora até se falou que o
passado é o pretérito perfeito e ittíperfeito e eles (...) passado ltm dia ou dois se
pergLlntar eles dizem:
A{, nós hão demos {ssol
São miúdos que tem que se insistir... insistir... insistir... insistir... sempre rla
mesma... sempre na mesma... sempre na mesma... sempre... sempre... sempre... se
com a repetição é que eles .fazem algumas aprettdizagens.
(P. 305)
individual. Em termos dos actores, a participação no "jogo escolar" era percepcionada
como a participação num jogo de soma positiva. ou seja. um jogo do qual todos os
participantes têm a possibilidade de retirar ganhos
Escola e desenvolvimento
A economia mundial, no período compreendido entre o final da Segunda Guerra
Mundial e o primeiro choque petrolífero (início dos anos 70). cresceu de forma expo-
nencial, traduzindo-se numa era de prosperidade, sem paralelo na história da Huma-
nidade. Alguns indicadores, enunciados pelo historiador Eric Hobsbawm (1996), per-
mitem ilustrar a dimensão do fenómeno: entre o início dos anos 50 e o início dos
anos 70, o comércio mundial de produtos manufacturados multiplicou-se por dez; as
indústrias de pesca triplicaram o volume das suas capturas e a produção de cereais
mais que duplicou na América do Norte. Europa e Leste asiático. Este aumento espec-
tacular da capacidade de produzir bens está associado, por um lado, a novidades
científicas e tecnológicas, por outro, a modalidades de organização da produção que
permitiram substanciais acréscimos de produtividade e. por outro ainda. a um pro-
cesso de crescimento económico baseado no acesso, aparentemente sem limites, a
fontes de energia barata
A este período de crescimento económico esteve subjacente. no caso dos países
mais ricos do Ocidente e do hemisfério Norte, um modelo de regulação económica e
social que ficaria conhecido pela designação de regulação fordista e que pode ser sin-
tetizado nos traços seguintes (Mercure, 2001): produção em massa. com base em eco-
nomias de escala de bens estandardizados que alimentam um consumo de massa. sus
tentados por um regime salarial em que o crescimento dos salários acompanha o
crescimento dos ganhos de produtividade e num quadro de vínculos laborais estáveis
e de, praticamente. pleno emprego. A conflitualidade social é amortecida pelo papel
regulador do Estado-providência, que assegura mecanismos de redistribuição da
riqueza produzida sob a forma de um acesso generalizado a bens e serviços sociais
jsaúde. educação, lazeres, segurança social), sendo este compromisso social cons-
truído em torno de uma articulação entre o capitalismo industrial e a democracia polí-
tica, só abalado a partir dos anos 70. Este período de crescimento económico repre-
senta o auge de uma visão optimista do futuro, fundada numa ideia de progresso que
se traduz numa ideologia desenvolvimentista. Deixa de haver a perspectiva da alter-
nância entre bons e maus momentos ou a necessidade de conquistar uma posição
social e defendê-la. O horizonte normal de cada cidadão é o de esperar uma melhoria
regular e constante das suas condições de vida. Como escreveu Raymond Aron (1 969.
p. 226), aquilo que passa a ser considerado como o "curso normal das coisas" é que
'a produção e os rendimentos aumentem de ano para ano e que cada geração dispo-
nha de um volume de bens mais considerável do que a geração precedente
A "explosão escolar" que marcou este período, em especial nos anos 60, corres-
ponde ao reconhecimento do crescimento dos sistemas educativos como factor eco
nómico de primeira importância. Estabelecendo-se uma associação entre o progresso
económico e a elevação geral dos níveis de qualificação escolar das populações, as
A concepção de aprendizagem que está subjacente a esta forma de organização
exprime. não apenas uma relação específica com o saber, mas também uma dada
forma de organizar as relações de poder. A organização escolar não tem de ser apre
dada, apenas ou sobretudo, de um ponto de vista pedagógico, mas na óptica da sua
articulação com a vocação institucional da escola, enquanto instância de socialização
normativa que, além de funcionar como uma "máquina de ensinar", funciona, ainda.
na concepção de foucault. como uma máquina de "vigiar. de hierarquizar, de recom-
pensar"(Ramos do Ó, 2001, p. 39). Mais do que o conteúdo daquilo que é ensinado,
é a matriz organizacional que se constitui como um dispositivo que "socializa e
educa" através de "sequências de trabalho extremamente formalizadas, de exercícios
rituais infinitamente repetidos, de disciplina rigorosa e de punições, com frequência
físicas" (Dubet. 2002, p. 91). O progressivo declínio do programa institucional e o
facto de a escola já não funcionar eficazmente como uma fábrica de cidadãos acen-
tuam o carácter crescentemente anacrónico da "gramática" actual da organização
escolar.que persiste como uma sobrevivência do passado.
A escola num "tempo de promessas"
O período posterior à Segunda Guerra Mundial (Os "Trinta Gloriosos", 1 945-1975)
é marcado pelo crescimento exponencial da oferta educativa escolar, como efeito
combinado do aumento da oferta (políticas públicas) e do aumento da procura ("cor-
rida à escola"). O fenómeno da "explosão escolar" assinala um processo de democra-
tização de acesso à escola que marca a passagem de uma escola elitista para uma
escola de massas e a sua entrada num "tempo de promessas". Com efeito, à expan-
são quantitativa dos sistemas escolares estava associado um pano de fundo marcado
pela euforia e o optimismo em relação à escola, com base na associação entre "mais
esc':t ::: 11:==::T::::: T: promessa de desenl'o/I'/mento, uma promessa de
mol)//;Jade.Ro(./ar'!'HTTIT'FTBtTT81sa de água/dado. Tendo como fundamento e referente
a teoria do capital humano, as despesas com a educação escolar configuravam-se
como um investimento de retorno decisivo, quer do ponto de vista colectivo, quer do
79
despesas com a educação passam a ser encaradas, na óptica da teoria do capital
humano, como um investimento e esse investimento como uma condição do desen-
volvimento, necessariamente impulsionada pelo Estado. É nesta perspectiva que o
Estado educador. que dominou a escola do tempo das certezas, adquire as caracterís-
ticas de um Estado desenvolvimentista que gere um sistema educativo percebido
como uma grande empresa. A construção de uma escola de massas é realizada, neste
período, à imagem dos mesmos princípios reguladores presentes na produção econó-
mica: a produção em massa. com a tentativa de realizar economias de escala e ganhos
de produtividade através do incentivo à inovação tecnológica. Em síntese, organizam-
.se sistemas educativos "com as características típicas da produção em grande escala.
ou seja. de um modelo industrial", o que está. aliás, na origem da expressão usada na
época de "indústria do ensino"(Delamotte, 1998. p. 118).
desenvolvimento" ou em situação de "subdesenvolvimento". Crescem as críticas ao
modelo de desenvolvimento, à medida em que emergem as "desilusões do pro-
gresso", em que se denuncia o desperdício e a alienação das sociedades de consumo
IBaudrillard. 1 970) e em que se toma consciência da miragem representada pelo mito
das "sociedades de abundância" (Galbraith, 1963). Da euforia começa a deslizar-se
para uma decepção que culminaria no reconhecimento actual de que vivemos em
sociedades "doentes do progresso" (Ferro, 1 999).
Se a promessa e o modelo de desenvolvimento, associados à expansão da oferta
escolar e educativa, cedo começaram a frustrar as expectativas que alimentaram uma
euforia, porventura desajustada. também as promessas relacionadas com um acréscimo
significativo das taxas de mobilidade social ascendente e com uma redução das desi-
gualdades sociais foram postas em causa, na fase final deste período. Com efeito,
desde cedo, nos anos 60, estudos extensivos permitiram colocar em evidência processos
de produção de desigualdades escolares, articuladas com a produção de desigualdades
sociais expressas sob a forma de "macrorregularidades persistentes" (Dum-Bellat,
2000), as quais decorrem da soma do diferencial de valor escolar acumulado (desi-
gualdade de resultados) aos efeitos das escolhas feitas ao longo do percurso escolar
(estratégias dos actores). A persistência desta desigualdade social perante a escola
ganhou um lugar central no debate sociológico e político da época, na medida em
que, como refere Boudon (2001), esta desigualdade era vista. não só como persistente
e importante, mas, sobretudo, como ilegítima
Paradoxalmente. ao mesmo tempo que abre as portas e democratiza o acesso, tor-
nando-se. portanto. menos elitista. a escola. por efeito conjugado das expectativas
criadas e da crítica demolidora a que é submetida. é encarada como um aparelho
ideológico do Estado (Althusser, 1970) que, através de mecanismos de violência sim-
bólica, assegura a reprodução social das desigualdades. Ao contrário do que acontecia
no "tempo das certezas" e na medida em que comparticipa na produção de desigual-
dades, a escola passa a ser percepcionada como produtora de injustiça, o que não
sucedia quando estas se situavam a montante da escola. Como afirmam Dubet e Mar-
tucelli(1998. p. 1 52), "a massificação escolar mudou a natureza da escola
Da euforia à decepção
No início dos anos 70, se. por um lado, o primeiro choque petrolífero marca o fim
de um ciclo marcado pelas "ilusões do progresso" e pela tentativa de construção das
sociedades de abundância", o diagnóstico da "crise mundial da educação", por
outro, vem a coincidir com a verificação da falência das promessas da escola.
A investigação sociológica encarregou-se de demonstrar a inexistência, quer de uma
relação de linearidade entre as oportunidades educativas e as oportunidades sociais,
quer de uma relação linear entre democratização do ensino e um acréscimo de mobili-
dade social ascendente. A sociologia da "reprodução" pâs em evidência o efeito repro
dutor e amplificador das desigualdades sociais, desempenhado pelo sistema escolar. Na
medida em que se democratiza, a escola compromete-se com a produção de desigual-
dades sociais e deixa de poder ser vista como uma instituição justa num mundo injusto.
Como escreveu François Dubet (1998), "a escola perdeu a sua inocência'
O fim da energia barata, primeiro choque petrolífero, marca o confronto com os
limites do crescimento". Porém. a ideologia desenvolvimentista não está apenas con-
frontada com o carácter finito dos recursos naturais (nomeadamente energéticos), o
que cria um problema de /r7-puas, ela está também confrontada com os efeitos devas-
tadores deste modelo de desenvolvimento sobre recursos naturais indispensáveis à
vida, como o ar e a água, o que cria ou faz com que se consciencialize um problema
de out-puas. No que se refere à atmosfera, vejam-se. a título ilustrativo, os números
avançados por Hobsbawm (1996. pp. 260-261): as emissões de dióxido de carbono
quase triplicaram. entre 1950 e 1973, enquanto que. no mesmo período, subiu em
flecha a produção de clorofluorocarbonetos, produtos químicos que afectam a
camada de ozono. Estes efeitos negativos sobre o ambiente são comuns aos processos
de crescimento económico e da produção industrial, afectando com dimensão equiva-
lente, quer o "campo ocidental", quer o "campo socialista
No que concerne à escola. como o futuro imediato viria a confirmar. a expansão
rápida da escolarização de massas, alargada aos públicos adultos, não se traduziu
numa generalização do "bem-estar" à escala mundial, nem na ultrapassagem do
fosso que separava os países "desenvolvidos" dos que se encontravam "em vias de
A escola num "tempo de incertezas"
C) desencanto com a escola amplificou-se durante o último quartel do século XX,
em resultado das mudanças que afectaram os sectores económico, político e social.
Este conjunto de mudanças profundas afectou a juventude de forma muito particular.
nomeadamente no que diz respeito à natureza da sua relação, quer com a escola,
quer com o mercado de trabalho: passou-se de uma relação marcada pela previsibili-
dade para uma relação em que predomina a incerteza. Esta situação, se, por um lado,
é objectiva, é, por outro, vivida subjectivamente com sofrimento, uma vez que a incer-
teza é o mais difícil de todos os estados psicológicos porque corresponde àquele em
que "não é possível fazer planos para o futuro e em que é necessário agir com base
numa confiança cega na sorte ou na entrega ao curso dos acontecimentos" (Heilbro-
ner, 1986, p. 162).
80
CCE2-QE-6
81
As mutações económicas
Do ponto de vista económico, acelerou-se o processo de integração supranaciona
como fenómeno de âmbito mundial no qual se integra a construção da União Euro-
peia. O reforço e autonQnljg..ggçapital financeiro são concomitantes com a deslocação
dos centros de poder para os grandes grupos económicos internacionais e para órgãosde regulação supranacionais (Banco Mundial, FMI, OCDE, etc.), o que implica um declí-
nio, em princípio irreversível, dos "velhos" estados nacionais, que permanecem, con-
tudo, como um dos referentes principais da identidade e da missão histórica da escola.
enquanto instituição. Segundo números avançados por cousa Santos (2001, p. 36), a
integração económica supranacional, marcada por um crescente predomínio da lógica
financeira na esfera da economia, também se traduz num processo de concentração
do poder económico num reduzido número de grandes empresas de âmbito multina
cional: das 100 maiores economias do Mundo, cerca de metade são empresas multina-
cionaisl 70% do comércio mundial está sob o controlo de 500 empresasl e metade do
investimento estrangeiro é iniciativa de apenas 1% das empresas multinacionais.
Este vasto processo de transformação, vulgarmente designado por "globalização'
ou "mundialização", pode ser sintetizado (Mercure. 2001) com o enunciado de algu-
mas mudanças-chave e respectivas consequências que. no essencial, dizem respeito a
uma progressiva liberalização dos mercados, traduzida na liberalização das divisas e
dos movimentos de capitais, independentemente das fronteiras nacionais. Esta muta-
ção, que correspondeu a uma escolha política consentida e conduzida pelas autorida-
des políticas nacionais, produziu, como consequência, uma submissão das políticas
estatais à racionalidade de uma economia capitalista mundializada, com repercussões
directas na compressão das despesas públicas, na privatização de serviços colectivos,
na redução das protecções sociais e na desregulação do mercado de trabalho.
O "declínio" ou o "fim" do Estado nacional consagra uma mutação com conse-
quências importantes no plano da actividade política. Segundo Habermas (1998.
P. 74), vivemos hoje um processo de "evicção da política pelo mercado" que se traduz
num défice de legitimidade do Estado nacional. Do ponto de vista de Giddens (2000),
o declínio do Estado nacional aparece associado àquilo que ele designa por "paradoxo
da democracia": ao mesmo tempo que o regime democrático supostamente se
expande no mundo ou é objecto de uma tentativa de sistemática "exportação", assim
cresce a desilusão quanto ao regime de democracia "Na maioria dos países ocidentais
os níveis de confiança nos políticos têm vindo a decrescer nos anos recentes" (p. 72).
De facto, a distância crescente entre a soberania teórica e a soberania real, ao nível
do pessoal político dirigente. bem como a sua relação
Streeck (1996), o poder político nacional tem de responder perante duas instâncias
distintas por um lado, o seu eleitorado nacional, por outro, o mercado internacional
de capitais:
Pouco inclinados a revelar aos seus eleitores o 'uergotthoso segredo' da sun
impotência para decidir sobre as políticas económicas do seu país, os Batermos
precisam de conseguir, de lltna forma ou de outra, extrair do processo democrá
rico políticas conformes à uotltade geral dos mercados.
(P. 20)
Ainda segundo estes autores, a política de integração europeia constitui um
exemplo bem ilustrativo do modo como o discurso sobre a soberania nacional pode
coexistir com, e servir, um processo de liberalização e de integração económica supra-
nacional
As transformações que, de modo sumário, estamos a caracterizar têm implicações
imtHantes no campo da educação. Está em causa a criação de uma nova ordem que
altera'F'iÕiha obsoletos os sistemas educativos concebidos num quadro estritamenteO declínio do Estado naciona l
O progressivo apagamento do papel do Estado nacional, face à emergência de
modos de governo que transcendem as fronteiras nacionais, é hoje um fenómeno
observável a olho nu, em cuja verificação as análises da economia. da sociologia e da
ciência política convergem (Giddens, 2000; Habermas, 2000; Sousa Santos, 20011
Wallerstein, 1999). Enquanto a actividade humana permaneceu confinada e regulada
no quadro de um território delimitado de forma precisa por fronteiras físicas bem
identificáveis, a existência e a função do Estado nacional constituíram. nas palavras de
Rifkin (2000, pp. 269-274), "uma espécie de evidência". A progressiva desterritoriali-
zação da economia num contexto mundializado alterou profundamente esta situação:
retirou aos estados nacionais a capacidade de controlarem os fluxos no interior das
suas fronteiras e com os espaços exteriores e reduziu a sua acção a um estatuto cada
vez mais marginal, o que não significa, necessariamente. pouco importante. A sua
missão fundamental passou a consistir em assegurar a melhor integração possível da
sua sociedade no quadro mundial, ou seja. em contribuir para a concretização de uma
sociedade mundo", a que corresponde um "mercado mundial, único e auto-regu-
lado" (Mercure, 2001 , p. 1 5).
odução de uma cultura e de uma força de trabalho
numa perspectiva globalizada. A finalidade de cons-
truir uma coesão nacional cede, progressivamente. o lugar à subordinação das políti-
cas educativas a critérios de natureza económica (aumento da produtividade e da
competitividade) no quadro de um mercado único. De igual modo, a passagem de um
paradigma da qualificação para um paradigma da competência a passagem de um
regime de definição clara de qualificações sancionadasHphr um diploma escolar que
corresponde a posições estatutárias precisas para um regime mais fluido de compe-
tências definidas em contexto de trabalho representa, segundo Martucelli(2001,
p. 309), uma "erosão da centralidade da escola no monopólio legítimo da certificação
de conhecimentos
A nova questão social
O declínio do Estado nacional é coincidente com a ruptura do compromisso polí-
tico que. no período fordista, sustentará o desenvolvimento do Estado-providência. o
qual permitiria uma articulação harmoniosa entre o crescimento e a integração social.
82
Os novos tempos marcam uma tendência inversa. a do desmantelamento dos esta.
dos de bem-estar (Habermas, 1998), com consequências ao nível dos processos de
ruptura do laço social que estão no cerne da designada "exclusão social" As transfor-
mações no mundo do trabalho (desemprego estrutural de massas e precarização dos
vínculos laborais) fazem evoluir sociedades baseadas no pleno emprego para socieda-
des "doentes" do trabalho (De Bandt, Dejours e Dubar, 1995). As contradições entre
os que têm emprego e os que estão subempregados ou excluídos do mercado de tra-
balho configuram modalidades de dualização social que estão associadas a uma cres-
cente incapacidade reivindicativa por parte dos assalariados e a uma crescente fra-
queza das instâncias sindicais. Como mostrou Jogo Bernardo (2000), num mundo
marcado pela transnacionalização do capital e pela fragmentação dos trabalhadores,
os sindicatos tradicionais dificilmente encontram um lugar. A dualização social que
decorre das alterações no mundo do trabalho é complementada por processos de
dualização social decorrentes da "espaclalização" dos problemas sociais. expressos nas
sociedades ricas por verdadeiros fenómenos de segregação social e de criação de gue-
tos (Dubet e Lapeyronnie, 19921 Massey e Denton. 1995; Mingione, 1996). A "meta-
morfose" da questão social aparece. assim. ligada a um fenómeno não desconhecido
que marcou a primeira fase da modernidade e que, para usar a terminologia de Caste
j1 995), corresponde ao regresso da "vulnerabilidade de massa
Esta crise do mundo do trabalho é concomitante, quer com a capacidade para
aumentar globalmente o volume de riqueza produzida. quer com o crescimento, a
todos os níveis, de desigualdades que alimentam novos tipos de conflitualidade social.
Para o sociólogo Anthony Giddens(2000), "a desigualdade cada vez mais acentuada é
o mais grave dos problemas que a comunidade internacional tem de enfrentar": no
quadro de uma "aldeia global", vivemos um processo de "pilhagem global" (p. 26).
Por sua vez, para Boaventura de Sousa Santos (2001, p. 39), é hoje evidente que "a
iniquidade da distribuição da riqueza mundial se agravou nas duas últimas décadas'

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