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PENSAMENTO ENGAJADO
Ensaios sobre Filosofia Africana, 
Educação e Cultura Política
Editora EDUCAR
Centro de Estudos Moçambicanos e Etnociências (CEMEC)
Universidade Pedagógica 
MAPUTO, JANEIRO 2011
Severino E. Ngoenha
José P. Castiano
Ficha técnica
Título: PENSAMENTO ENGAJADO S ENSAIOS SOBRE FILOSOFIA 
AFRICANA, EDUCAÇÃO E CULTURA POLÍTICA
Autores: Severino E. Ngoenha & José P. Castiano
Revisão: Eduardo F. Buanaissa
Foto da Capa: José P. Castiano
Capa: José P. Castiano & Sérgio Zimba
Maquetização: Berta Maria Preciosa Samuel
Impressão: DINAME
Tiragem: 1000 exemplares
Nº de Registo: 6674/RLINLD/2010
Editora: Editora EDUCAR, Universidade Pedagógica
Publicação: CEMEC, Centro de Estudos Moçambicanos e
Etnociências, Universidade Pedagógica
Maputo, Janeiro 2011
Nota Introdutória ............................................................................................. 4
Introdução ........................................................................................................ 5
José P. Castiano e Severino E. Ngoenha
Por um Pensamento Engajado ......................................................................... 13
Severino Ngoenha ............................................................................................ 
O “Espírito” da Democracia ........................................................................... 45
José P. Castiano ................................................................................................ 
Ubuntu: Novo Modelo de Justiça Glocal? ...................................................... 71
José P. Castiano
Filosofia como Engajamento contra os Mitos ................................................ 85
Severino Ngoenha ............................................................................................ 
Engajamento por uma Educação Glocal ......................................................... 97
José P. Castiano ................................................................................................ 
A Actualidade de Junod ................................................................................... 110
Severino Ngoenha ............................................................................................
Educação e Pobreza ......................................................................................... 126
José P. Castiano ................................................................................................
Filosofia, Ensino e Intersubjectivacção ........................................................... 138
José P. Castiano
Mudança Paradigmática na Educação............................................................. 162
José P. Castiano
Vigilância Epistemológica através da Educação ............................................. 193
José P. Castiano ................................................................................................ 
Concepções Africanas do Ser Humano ........................................................... 206 
Severino Ngoenha ............................................................................................
Ensino da Filosofia e Povos Africanos ............................................................ 221
Severino Ngoenha ............................................................................................ 
O Diálogo entre as Culturas através da Educação .......................................... 238
José P. Castiano
Índice
Introdução
Comecemos pela imagem na capa deste livro: trata-se de uma árvore com 
cerca de 250 anos de idade, 42 metros de altura, cujo nome local é Mbaua 
e o científico é khya myasica. A árvore encontra-se a aproximadamente 80 
Km de Quelimane, na localidade de Umbauane, Província da Zambézia em 
Moçambique. Por um mero acaso ela ainda está «viva» e frondosa: esteve 
prestes a ser abatida em troca de apenas 100 dólares americanos com os 
quais um «empreendedor» estrangeiro queria comprá-la de um camponês 
que tinha a sua casa por baixo dela. Esta árvore serve de sombra e «sala de 
jantar e de estar» ao camponês. O empreendedor pretendia abater a árvore 
por causa da madeira. A sua intenção era de a revender na sua pátria lon-
gínqua, algures na Ásia. 
A vida desta árvore foi salva por um cidadão moçambicano engajado 
que ofereceu ao camponês o equivalente aos 100 dólares... como seu salá-
rio mensal, desde que este não a vendesse e cuidasse dela, como um «bom 
selvagem!». 
Só assim é que podemos hoje ainda ver esta árvore frondosa a olhar-nos 
através dos séculos comparando-se à figura literária Azaro, o rapaz espírito, 
na novela do escritor nigeriano Ben Okri, The Famished Road. Azaro, um 
menino que atravessa séculos da História da Nigéria «conversando» tanto 
com os vivos quanto com os espíritos dos parentes e outros já mortos, sem 
crescer e, por isso, a colocar as mesmas perguntas ingénuas e infantis em 
todas as épocas; ele indaga sobre o sentido dos episódios históricos que vai 
assistindo duma forma que embaraça os adultos vivos e mortos. Esta é uma 
imagem similar ao Menino da Trompeta do prémio Nobel da literatura, o 
alemão Günter Grass. 
Pelo que a acção deste cidadão, que salvou a árvore, representa, de-
cidimos dedicar o que este acto simboliza de patriotismo e africanismo, o 
Pensamento Engajado.
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano6
Os artigos contidos neste livro foram escritos em circunstâncias dife-
rentes. A primeira: a maior parte deles foi escrita, por cada um de nós sepa-
radamente, em momentos diferentes para responder a diversas solicitações 
também do momento, algumas imediatas e outras que exigiram um pouco 
mais de reflexão; isto explica uma aparente dispersão dos temas que são 
abordados nestes artigos. 
A segunda circunstância é talvez a mais importante: no momento em 
que escrevemos os diferentes artigos, encontravamo-nos a viver em países 
totalmente opostos em termos de desenvolvimento, de consequência, as 
nossas preocupações eram diferentes, pois estavam ligadas aos contextos 
científicos e culturais em que nos encontrávamos. Uma boa parte de artigos 
foi escrita na Suíça e a outra em Moçambique. Naturalmente que somente 
este facto pode ter concorrido para o desenvolvimento temático diferenciado. 
E, o que ainda poderia parecer pior, não houve troca de pontos de vistas e 
nem conhecimento sobre a actividade intelectual que íamos desenvolvendo.
Entretanto, estas diferenças acabaram sendo insignificantes quando 
decidimos «juntar» os artigos nesta obra. À medida que cada um de nós 
foi lendo os textos aqui contidos, fomos notando, para nossa surpresa, da 
existência de temas concêntricos. Em primeiro lugar resultou que os temas 
«Moçambique» e «África» estiveram sempre no centro das nossas lucubra-
ções, umas estritamente numa perspectiva filosófica, outras de carácter mais 
socio-antropológico: é difícil estabelecer fronteiras disciplinares quando o 
pensamento está engajado por preocupações patrióticas, porque é disso que 
se trata. Aliás, um dos títulos que veio à ribalta ainda na gestação deste livro 
era mesmo «filomoçambicando» porque se tratava de olhar primeiro para o 
nosso país, depois para a África, aplicando uma perspectiva filosófica. 
A perspectiva particular que a filosofia teima em cultivar é, a nosso 
ver, a do engajamento numa reflexão sobre a condição humana, neste caso 
concreto, sobre a condição humana dos moçambicanos e dos africanos na 
história. Moçambique e África são, portanto, o objecto comum das reflexões 
e o portador de uma história heróica na luta pela sua liberdade. Tornava-se 
urgente e imperioso compreender a fundamentação, o substrato, a génese 
do que podemos considerar o «fazer história» do conjunto de homens e 
mulheres que habitaram, habitam e vão habitar Moçambique e África. 
7Pensamento engajado
Cedo constatamos que a condição humana, com que os Moçambicanos e 
os africanos entram na história dita universal, é a de escravos, colonizados 
e, hoje, globalizados; enfim, como objectos e não sujeitose fautores da sua 
história. O «nosso» pensar filosófico engajado por Moçambique e pela África 
empurrava-nos para a emergência (nos seus dois sentidos: de «emergir» e 
de «urgência») de duvidar desta história e procurar os fundamentos não de 
uma história e condição humana objectivada pelos comerciantes de escravos, 
pelos colonizadores e, hoje, pelo globalizador, mas sim pelo sujeito epistémico 
moçambicano e africano.
E isto significa, sobretudo, pormo-nos a nós mesmos as seguintes 
questões: Existe algum substrato que possa justificar o conjunto de acções 
dos moçambicanos e dos africanos? Esse conjunto de homens ou mulheres, 
intelectuais ou camponeses, pedreiros ou arquitectos, macondes, tutsis, 
chonas, malinkés ou qualquer que seja a dita «etnia» que, no passado, se 
levantaram para resistir às tentativas de subjugação, de subalternização, de 
escravatura, de colonização, de opressão perpetradas pelos colonialismos, 
teriam eles um sonho comum que justificasse serem fautores da sua história 
colectiva? E os que decidiram abandonar os seus estudos, a comodidade das 
suas famílias, o emprego que custara a ter, o sonho de constituir uma família 
na normalidade, para se entregarem a uma luta com armas ou simplesmente 
com base em protestos, nas ruas, nas igrejas, nas machambas, nas fábricas, 
nas minas e em todo o lugar para libertarem a «terra e os homens» moçam-
bicanos e africanos? Teriam eles um sonho comum que estivesse por trás 
desta «união na diferença»? Aliás, somente um sonho muito mais profundo 
poderia justificar tal empreendimento, as Independências. Conquistadas as 
Independências, o que justifica os anos de escuridão em que, como africanos, 
não nos entendemos mesmo usando o mesmo idioma e linguagem? Porquê 
uma parte de nós ainda pegou em armas e foi «às matas» largando o doce 
sabor das Independências, fazendo alianças estranhas? Como justificavam 
estes africanos as suas acções? E hoje? Com a paz poderíamos dizer que já 
não há razões para continuar a luta, para o combate: o que nos move, ainda 
como países e continente, para as campanhas eleitorais esgotantes e onerosas 
insistindo em candidatar-nos ou em formar filas para escolher os «nossos 
representantes»? O que nos leva a lutar todos os dias para apanhar chapas e 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano8
combes, todos os anos a lutar por um lugar na escola, o que motiva os «5 de 
Outubros» nas ruas do continente, o que leva a alguns de nós mobilizarem-
se, alguns cidadãos das diferentes Beiras a «resistir» formando cordões de 
vigilância em volta da «coisa pública»? Como explicar os insultos mútuos 
e os intermináveis debates nos Parlamentos em torno das diferentes leis? 
O que motiva as pessoas a irem à rua protestar contra mortes macabras de 
jornalistas – Carlos Cardoso – economistas – Siba-Siba? Haverá um sonho 
comum, por trás dos vários sonhos particulares, que teima em atravessar 
épocas inteiras da nossa história, que teima em abrir brechas nas fronteiras 
étnicas e geográficas, profissionais, de idade, etc. num sinal de unidade na 
diversidade?
De facto, só pode haver um sonho dos sonhos, um motivo dos motivos, 
um fim dos fins que sempre que este sonho, este motivo ou fim, alguém 
ou alguns ousem pô-los em perigo, levantamo-nos todos e protestamos 
pegando naquilo que está ao nosso alcance, e o que as circunstâncias histó-
ricas particulares podem muito bem justificar, como arma de protesto: uma 
azagaia, uma AKM, um papel e lápis, um martelo, um pneu, uma proposta 
parlamentar. Este fim é a LIBERDADE. Mas trata-se, neste caso, de uma 
forma de Liberdade muito específica: A Liberdade de continuar a sonhar 
com mais liberdades, a Liberdade de continuarmos a lutar por este sonho. 
A consciência deste sonho, da sua importância, levou a que um dos 
autores escrevesse no livro Os Tempos da Filosofia: «Se existe um substrato 
filosófico que está na origem axiológica de Moçambique – e da África – é 
sem dúvida a busca da Liberdade». Por isso, o fim de todo o pensamento 
«filomoçambicano» (parafraseando o título inicial deste livro que ficou pelo 
caminho) e africano é a Liberdade. Isto quer dizer que, em nosso entender, 
o pensamento deve ter uma causa, deve engajar-se por uma causa; o que 
justifica uma busca filosófica sobre Moçambique e sobre a África é a Liber-
dade; o que justifica uma acção como sendo justa, é a medida em que esta 
mesma acção concorrer para aproximar-nos cada vez mais deste fim, é o seu 
engajamento pela Liberdade. Assim, a filosofia africana como uma das formas 
de pensamento, deve continuar a buscar respostas novas e contextualizadas 
à velha questão platónica do «melhor governo», em fundamentar e lutar por 
uma melhor sociedade no futuro. Este – a busca da Liberdade – é um tema 
9Pensamento engajado
concêntrico numa boa parte dos artigos contidos neste livro. É um dos eixos 
que escolhemos para o nosso pensamento e engajamento.
Um outro eixo temático subjacente aos artigos apresentados neste livro 
é a busca de novas formas de INTERSUBJECTIVACÇÃO. Isto é, um pro-
jecto de «deconstrução» e de «construção» epistémicas da ideia de África. 
Enquanto uma deconstrução epistémica, o projecto de intersubjecti-
vacção comporta duas partes: trata-se de deconstruir, por um lado, as con-
sequências que a implantação duma modernidade não negociada em África 
comporta como riscos para todo o continente: Continuaremos a olhar para o 
Ocidente como a fonte eterna do nosso modelo de desenvolvimento donde 
pretendemos copiar as suas instituições, a sua moda, os seus valores, os seus 
modelos democráticos, etc.? Substituímos Deus pelo Ocidente, quais camelos 
nitzscheanos que se rendem perante os valores decadentes de um Ocidente 
moribundo e desorientado? Aceitaremos simplesmente ser eternos escravos/
colonizados/globalizados de forma moderna?
Por outro lado, a deconstrução pretende revoltar-se contra um discurso 
que procura nas tradições milenares moçambicanas/africanas uma panaceia, 
uma caixinha mágica, donde podemos retirar soluções para os problemas que 
África moderna enfrenta; queremos deconstruir um discurso que busca o 
nosso futuro, como nação, deliberadamente no passado e, sobretudo, chamar 
a atenção para o facto de que o passado e as tradições milenares, interessam 
ao pensamento filosófico engajado, somente na medida que este passado 
oferece soluções válidas para afastarmos os obstáculos à nossa Liberdade 
de continuar a sonhar com a própria Liberdade e a de agir livremente em 
função deste sonho milenar.
A intersubjectivacção é, ao mesmo tempo e como dissemos, um projecto 
de construção epistémica no contexto africano; a construção integra duas 
partes fundamentais; a primeira: procura dizer adeus ao paradigma da dico-
tomia na análise dos fenómenos sociais, políticos, culturais e económicos de 
África/Moçambique; ou seja, hoje, não faz muito sentido olhar para a África 
como este continente dual onde, por um lado temos a tradição que nos puxa 
para trás e, num outro canto, a modernidade esperando pacientemente que a 
tradição se decida a avançar, ambos numa luta conflituosa eterna, de vida ou 
morte. Pretendemos dizer que esta forma (dicotómica) de olhar para o Ser 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano10
africano e as suas manifestações já não nos satisfaz. É preciso inventarmos 
novos conceitos que resumam o tempo filosófico da África de hoje. É uma 
África que não pode se deter nesta luta interminável entre o moderno e a 
tradição e gastar as suas energias nesta luta. A «crise do muntu» (Eboussi-
Boulaga) deve ser ultrapassada para podermos projectar este mesmo muntu 
de uma forma mais libertária porque amarrado pelo deus-moderno e pelo 
demiurgo-tradição num debate interminável; muitas tradições já se moderni-
zaram e feições trazidas pela modernidade emigraram para o lado da tradição.
Todavia, um segundo momento da construção da intersubjectivacção 
é a necessidade de fundamentar o diálogo necessário entre os pensadores/
filósofos profissionais e os pensadores/filósofosnão-profissionais, ditos «sá-
bios» (Odera Oruka). A academia deve reencontrar-se com as culturas num 
exercício em que não são as colectividades unanimizadas, mas sim sujeitos 
críticos e reflexivos das diversas culturas – entendidas não somente no seu 
sentido antropológico (veja o artigo O «Espírito» da Democracia inserido 
neste livro) - que entram em debate. Até poderíamos dizer que é um diálogo 
de «sujeitos hermeneutas e críticos» do interior de cada grupo cultural de 
que os mosaicos africanos são compostos. 
Desta feita, temos a veleidade de entender por diálogo intercultural, 
não somente como um diálogo limitado à interpretação comum na literatura 
filosófica moderna (no sentido vertical de Norte e Sul), como as chamadas 
«epistemologias do sul» parece pretenderem significar, mas, para nós, torna-
se inadiável cultivar o sentido horizontal do dito diálogo intercultural, isto é, 
entre as culturas africanas. Convém chamar atenção que, para nós, o termo 
«cultura», embora faça referência à dimensão antropológica do seu uso, po-
rém não se esgota aí; cultura para nós é empregue na sua acepção filosófica 
de «segunda natureza» humana. Neste sentido do termo, a cultura, embora 
contendo elementos de cultura material e valores tradicionais, tem a preten-
são de ultrapassar estes elementos do «passado» ao incluir as concepções e 
projecções societais da Africa moderna. 
Assim, o elemento-chave, o átomo, o centro para este diálogo, já não 
seriam as ditas culturas no sentido antropológico, mas sim os sujeitos episté-
micos destas «culturas». São os sujeitos e não as culturas que podem dialogar. 
É esta a razão de termos optado pelo termo «intersubjectivacção» no nosso 
projecto filosófico. Se nos é permitido inventar um termo, podemos chamar 
11Pensamento engajado
de «inter-sujeito» ao sujeito moçambicano e africano que está engajado em 
construir espaços da intersubjectivacção.
Repare-se que decidimos pelo termo «intersubjectivacção» e não, como 
seria de esperar, «intersubjectividade». Assim procedemos porque enten-
demos que, já agora, os inter-sujeitos estão em «acção», que para o tipo de 
praxis filosófica com a qual estamos comprometidos, a acção é fulcral. E a 
acção do filósofo deverá buscar e fundamentar novos espaços que podem 
ser criados para o exercício das liberdades individuais e colectivas. Embora 
procurando encontrar outros espaços onde o diálogo entre os inter-sujeitos 
possa ser possível, não é, no entanto, por acaso que o espaço de intersubjec-
tivacção privilegiado e por excelência, na maior parte dos artigos que este 
livro contém, seja a educação. A educação é o espaço, quanto a nós, onde 
a coexistência, já agora, entre o discurso moderno e o discurso tradicional, 
poderão entrar num debate argumentativo, sem contrições à liberdade de 
expor os sonhos particulares, e sobre problemas que ambas, porque con-
temporâneas, enfrentam. 
Enfim, digamos que vemos a filosofia da intersubectivacção não somente 
como um complemento necessário à filosofia que tem a Liberdade como 
paradigma (paradigma libertário), mas sim e sobretudo como condição fun-
damental para a realização e o exercício das liberdades.
No fundo, a teleologia da reflexão filosófica que coloca a Liberdade como 
paradigma axiológico das nossas acções e, por trás do projecto da intersubjec-
tivacção, está o engajamento pela emancipação da própria filosofia africana. 
Quer o paradigma libertário quer a intersubjectivação, são, no fundo, partes 
intrinsecamente ligadas no projecto da emancipação da filosofia africana de 
limitar-se em ser unicamente «africana», e poder constituir-se em uma parte 
importante da filosofia universal.
José P. Castiano e 
Severino E. Ngoenha
13
As análises sobre as votações moçambicanas de 1995 foram unânimes 
em afirmar que nós fomos votar pelo fim da guerra. A adesão massiva das 
populações às eleições da primeira legislatura da segunda República foram 
interpretadas em uníssono como sendo uma acção popular orientada para 
sancionar e legitimar o fim do conflito bélico. Se aceitarmos este facto como 
postulado de base da nossa análise, temos que admitir, a priori, que a primeira 
legislatura cumpriu com o mandato que lhe foi confiado. Durante os cinco 
anos que se seguiram às eleições, os deputados da Frelimo e da Renamo 
respeitaram o mandato que lhes tinha sido confiado pelos eleitores. O Go-
verno governou e a oposição tentou fazer oposição no respeito pelos papéis 
democráticos que lhes tinham sido confiados, sem nunca exceder nas suas 
prerrogativas, mas, sobretudo, respeitando a necessidade de prosseguir o 
conflito que os opunha em termos políticos e no respeito de um certo número 
de regras ditadas pelos acordos de paz e pela nova constituição.
Nesse mesmo período, o processo democrático e de reconciliação foi 
acrescido e alimentado pelas primeiras tentativas de criação do que co-
mummente se tem chamado de Sociedade Civil: nasceram novas formações 
políticas, mas sobretudo organizações cívicas e sociais; as igrejas começaram 
a participar em actividades de carácter cívico, educativo, sanitário; nasceram 
organizações de jovens e de mulheres; surgiram universidades privadas, 
imprensa independente e liberdade de opinião. A isto se deve juntar o 
crescimento económico (PNB), o restabelecimento da rede económica e 
comercial, o lançamento do processo de desminagem, a reconstrução da 
rede de comunicações, a luta contra o que se chamou de pobreza absoluta.
Uma vez mais, se fizermos fé naquilo que segundo os analistas políticos 
era o mandato do povo, a primeira legislatura da segunda República cumpriu 
quase integralmente com o mandato que lhe foi confiado. Contudo, dois 
POR UM PENSAMENTO ENGAJADO
Severino Elias Ngoenha 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano14
problemas cruciais surgiram durante a legislatura e merecem uma atenção 
especial da nossa parte: um económico e outro político (a organização dos 
poderes públicos).
No decorrer da legislatura nasceram nas diferentes comunidades moçam-
bicanas novas exigências e problemas, ligados ao processo da transformação 
em curso. Isto não anula em nada o a priori positivo da primeira legislatura, 
mas os actores políticos e a qualidade de uma legislatura não se podem limi-
tar ao cumprimento linear e lato do mandato popular, por mais importante 
e substancial que a paz possa ser. A legislatura e os actores políticos devem 
também ser julgados pela sua capacidade de interpretarem as necessidades 
«movediças» das populações que, por sua vez, dependem de mutações sócio-
económicas e mesmo epocais e históricas que bruscamente invadiram a vida 
das populações.
Neste contexto de aceleração histórico-temporal, aquilo que no meio dos 
anos noventa era o único objectivo das populações - a paz ou pelo menos em 
nome da qual se mobilizaram para votar - sofreu uma metamorfose enorme, 
ligada à dramática mudança da estrutura económica do país.
No decorrer da primeira legislatura, o elemento paz, sem nunca perder 
a sua importância e primordialidade, foi rapidamente igualado e mesmo 
ultrapassado pelos imperativos económicos ligados às mudanças radicais 
que se operaram na gestão do país e na sua organização social. O período 
da primeira legislatura foi marcado pela inversão da tendência económica 
de natureza distributiva e planificada e de toda a dimensão social que a 
acompanhava, para uma orientação individualista, concorrencial e toda a 
dimensão de violência social e de competitividade que a caracteriza. Isso 
trouxe consigo uma mudança radical, não só na organização económica, mas 
também na estrutura social e relacional entre os cidadãos.
O período da primeira legislatura coincide com o incremento dos in-
vestimentos estrangeiros, sob a forma de empréstimos, com as consequentes 
imposições de políticas por parte dos organismos internacionais e países 
estrangeiros. O país acumulou dívidas colossais e foi obrigado a proceder à 
privatização de infra-estruturas que, até então, tinham simbolizado parte da 
identidadenacional (basta pensar na indústria do caju). Não faço um juízo 
de valor. Constato simplesmente que o povo não só não era consultado na 
15Pensamento engajado
transformação radical da sociedade e na privatização dos espaços de impor-
tância vital e simbólica. O que sob o ponto de vista político me parece pro-
blemático é que o povo não tinha nenhum mecanismo de participação, nem 
sob a forma de referendo, nem pressionando os seus eleitos a defenderem 
os seus interesses e a sua visão da sociedade.
A este défice jurídico e constitucional deve-se acrescentar as dificuldades 
nacionais em termos de comunicação (televisão, rádio, jornais), o nível de 
analfabetismo elevado e, ainda mais importante, a discrepância entre as con-
cepções político-culturais das populações e o tipo de democracia estabelecido.
A questão filosófica que se põe é a seguinte: como fazer com que a de-
mocracia não se transforme num jogo de elites, que a maioria da população 
possa, de facto, participar com conhecimento de causa, não só através de um 
boletim de voto de cinco em cinco anos, como uma assinatura de cheque em 
branco para as elites políticas que se sentem legitimadas a fazer privatizações 
que vão em detrimento do povo que nelas depositou confiança?
Se quisermos ser mais explicativos podemos dizer que três níveis de 
problemas manifestaram-se no desenrolar-se mesmo da primeira legislatura: 
o papel do novo estado moçambicano na nova sociedade moçambicana, a 
questão da representatividade e a soberania nacional face à comunidade 
internacional.
 O Papel do Novo Estado Moçambicano na Nova Sociedade 
Moçambicana
É de uma evidência a la palisse que a natureza do Estado moçambicano 
da segunda República é radicalmente diferente da natureza do Estado da 
primeira República. Na primeira República, os fautores e os executores da 
política estatal conheciam exactamente o lugar de cada um e o que tinham que 
fazer. Podemos dizer que o Estado moçambicano, pela sua natureza libertária 
e socialista era, não direi providencialista, mas distributiva. O papel de cada 
funcionário do aparelho do Estado, desde o ministro até ao servente de uma 
escola primária, era estar ao serviço do que se acreditava ser o interesse dos 
moçambicanos. O Estado moçambicano era implacável contra tudo que, 
de longe ou de perto, se parecia com a corrupção, desvio de bens públicos, 
tentativa de enriquecimento pessoal, acumulação individual, etc.
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano16
Os valores moçambicanos eram contar com as próprias forças, o amor 
pelo trabalho, o direito à escola, à educação, à saúde; era o facto de que 
éramos socialmente responsáveis uns pelos outros; era a luta contra todas 
formas de discriminação, quer fossem na base da raça, da etnia, da tribo, da 
região origem, etc. Estar ao serviço do nosso povo era um valor, participar 
na construção de Moçambique através do trabalho e dedicação era um valor. 
Estes valores constituíam o essencial daquilo que era ou devia ser o Estado. 
Esta era a maneira através da qual o Estado estava (ou pretendia estar) ao 
serviço das populações.
Mas apesar das intenções excelentes, esse Estado era habitado por con-
tradições intrínsecas que acabaram anulando a grandeza dos objectivos prece-
dentemente anunciados. A dinâmica participativa estava subordinada a uma 
ideologia unilateral de uma única família política, que se arrogava deter a única 
visão justa para a construção do país. Essa ideologia política é compreensível 
no quadro da divisão do mundo que então se vivia, apesar de a Frelimo se ter 
visto forçada a aderir a um dos lados sem estar necessariamente convencida 
do bem fundado da sua «opção» ideológica. Aliás, esta tese encontra uma 
confirmação na adesão sem reservas da maioria da classe política de esquerda 
às teses e às posições ultra-liberais que repentinamente irromperam na vida 
social moçambicana durante o início da segunda República. 
De um dia para o outro as coisas mudaram. Era como se, de repente e 
sem aviso prévio, nos encontrássemos diante de uma passagem de nível sem 
guarda. Nesta mudança que corresponde à mudança das relações de força na 
política mundial, a sociedade moçambicana viu-se, de um dia para o outro, 
radicalmente mudada: de uma economia planificada para uma economia 
selvagem. Não digo liberal, digo selvagem, porque o liberalismo tem regras. 
Por exemplo, se o pressuposto é a livre iniciativa dos indivíduos e a possibili-
dade de concorrerem uns com os outros (Bentham), a situação moçambicana 
não se prestava a isso, quer porque as populações não tinham formação e 
informação, quer porque não tinham os meios financeiros necessários para 
entrarem neste tipo de economia. Abandonar as populações de um momento 
para o outro ao volante de um porsche que vai a duzentos quilómetros à hora 
sem lhes terem previamente ensinado a conduzir, significava condená-los 
inevitavelmente ao desastre.
17Pensamento engajado
Ora, a mudança política e económica comportou uma mudança nos 
métodos de governação e nas prestações dos poderes públicos. O Estado da 
primeira República pecava pela sua pan-presença. Ele decidia pela educação, 
pela saúde, pela moral pública e individual, pela justiça, pelos valores indi-
viduais e colectivos. E para isso combatia os alicerces individuais e culturais 
dos indivíduos e dos grupos.
A segunda República tomou uma postura inversa. Ela peca pela sua 
ausência. As populações não sentem no Estado – desde as instâncias mais 
elevadas até ao servente de uma escola ou dum hospital – «uma pessoa jurídi-
ca» que está presente e ao seu serviço. O Estado ficou «dólar-crático». Tudo 
se faz em função do rendimento, do ganho, das mordomias. O funcionário 
do Estado transformou-se de servidor público em servidor de si próprio, 
instrumentalizando o privilégio que o seu lugar lhe concede. O funcionário 
não serve: serve-se. Esta situação está em discrepância com a ideia que as 
populações fazem de um funcionário. A ideia que as pessoas têm de um 
professor é de um homem que é uma referência para as populações, não só 
pelo seu saber, mas também pela sua conduta moral. Ver um professor a 
vender notas e provas de exame é simplesmente escandaloso. Ver o hospital 
transformado num comércio ia contra a ideia que as populações tinham da 
deontologia médica, mesmo sem conhecerem o juramento de Hipócrates.
Apesar do famoso crescimento económico e dos índices do PNB, a 
situação das populações piora, a qualidade do ensino piora. Aos jovens dá-
se a consumir uma cultura feita de telenovelas e de slogans tipo «2M nossa 
tradição nossa cultura», ou então «a nossa cerveja, a nossa maneira de ser e 
de estar». O tratamento nos hospitais depende de dólares, a boa escola custa 
caro, todas as coisas a que as populações de baixo não se podem permitir. 
Isto põe um problema enorme de justiça, a nível distributivo e a nível de 
sanção jurídica.
Um dos primeiros sinais da ausência do Estado foi dado quando as 
populações começaram a fazer justiça com as próprias mãos. Muitas vezes 
queimava-se um miúdo que roubara para comer, quando funcionários do 
Estado e outros desviavam coisas muito mais consistentes - esvaziaram lite-
ralmente os cofres do Banco Austral, venderam bens essenciais do Estado 
a estrangeiros ou que têm 500 mil dólares para comprar apartamentos - e 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano18
eram indemnes a qualquer sanção. Esta violência social, porque é disso que 
se trata, tem que ser analisada em todos os seus parâmetros. As populações 
começaram a ser violentas. Podemos dizer que os miúdos da rua são violen-
tos, há assassinatos na cidade, assaltos à mão armada que culminaram em 
violência-espectáculo, com a morte de Carlos Cardoso e de Siba-Siba Ma-
cuácua. Todavia, toda esta violência pode ser conduzida à «dólar-cracia»: a 
instauração do dólar em valor supremo da nossa sociedade. O fim, «dólar», 
justifica todos os meios.
Então, ao mesmo tempo que o número e a qualidade de carros e casas 
de luxo aumenta na cidade, asviagens para compras na RSA, na Suazilândia 
e mesmo Portugal aumentam, que se multiplicam as viagens para Dubai, 
para bronzear-se no Estoril ou para o Carnaval no Rio, o número de pobres, 
de miseráveis não cessa de aumentar. O número de doentes que morrem de 
malária devido à falta de saneamento de meio aumenta.
Assim, a segunda República muito depressa oscilou da democracia à 
«dólar-cracia». Com a passagem da primeira à segunda República, deitou-se 
fora a água suja e o bebé. Valores verdadeiros para qualquer sociedade foram 
negligenciados, deliberadamente omitidos ou mesmo invertidos.
Durante o período da primeira República nós cantámos que a linha 
de ordem do nosso povo era a unidade, o trabalho e a vigilância. Podemos 
perguntar se estes valores não têm todo o seu lugar no Moçambique de hoje. 
Em que é que a unidade pode ser identificada com um regime político? A 
unidade do nosso povo, contra o tribalismo que está em voga, o regionalismo 
e o racismo não constitui um valor essencial para o Moçambique de hoje? O 
trabalho, o facto de contar com as próprias forças, num mundo de assistidos 
e objecto das ajudas e caridade internacional não é um valor a cultivar? A 
vigilância contra as divisões, com o perigo de recair no colonialismo, na 
dominação não é um valor a cultivar e a defender?
De facto, a falta desta vigilância condena a maior parte da população, 
os mais fracos, a processos que recordam muito o que era a época colonial, 
mas sobretudo distância entre o Estado da sociedade. Vale a pena recordar o 
debate português1 em volta da Sociedade de Geografia no fim do século XIX, 
1 BIGNASCA, A., La Singolarità terribile del Colonialismo Portoghese: il Dibattito 
della Società di Geografia. Roma: Armando, 1971, pp.71-82.
19Pensamento engajado
depois do ultimato que a Inglaterra impôs a Portugal. Homens como Eça 
de Queirós pensavam que Portugal deveria desinteressar-se dos «selvagens» 
que viviam nas colónias. Aliás, Portugal tinha-se mostrado mau colonizador 
e isso só lhe tinha valido frustrações e humilhações, desde a perda do Congo 
a favor dos belgas até ao ultimato britânico.
Contra estas teses, jovens como António Ennes defendiam que era 
necessário ter colónias rentáveis como moeda de troca para melhor integrar 
a Europa. Para isso, Portugal teria primeiro que pacificar as suas terras, 
controlá-las com militares e com a administração, e assim poderia dizer aos 
parceiros: tenho terra para cultivar, militares para defendê-la e, sobretudo, 
pretos para trabalhá-la. Era o início do trabalho forçado que acabou substi-
tuindo a recém extinta escravatura pelo chibalo que faz da colonização por-
tuguesa uma das mais cruéis e os povos de Moçambique dos mais sofredores.
Quando vejo certas práticas a que se prestam certas elites moçambica-
nas, como acordos de parceria com empresas ou indivíduos sem escrúpulos, 
acordos que não têm em conta os interesses das populações, pergunto-me 
se o discurso é diferente do discurso de António Ennes. Mas, sobretudo, o 
risco maior é condenar as populações mais fracas do nosso povo ao novo 
chibalo, evidentemente com a nossa cumplicidade.
Aliás, não é a primeira vez: todo o sistema de dominação do nosso povo 
contou sempre com a cumplicidade de grupos entre nós. A escravatura foi 
facilitada por certas práticas internas pela cobiça e sobretudo pela falta do 
sentido histórico, pois quando o momento chegou, vendedores e vendidos 
tornaram-se todos escravos e colonizados.
A falta de sentido histórico seria pensar que nós, pequenos grupos, 
constituiríamos as excepções de um processo neocolonial no qual somos ou 
podemos ser cúmplices. Se a questão é dinheiro, então somos mais baratos que 
os nosso predecessores. Temos que lembrar que uma espingarda no século 
passado era mais difícil de construir que um mercedes hoje. Se temos que 
nos vender para obter um carro, temos que pensar não só na traição histórica 
para com os nossos e a causa negra de uma maneira geral, mas também no 
preço dessa mesma traição.
Podemos considerar que a Frelimo traiu a sua causa? Aquela mesma 
Frelimo que era constituída por rapazes e raparigas que estavam dispostos 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano20
a morrer todos os dias durante dez anos em nome da liberdade do nosso 
povo? O que é que aconteceu?
Não foi, em primeiro lugar, a Frelimo que mudou. Há um facto que 
ninguém quer reconhecer, mas que é fundamental para entender o Moçam-
bique de hoje e as circunstâncias das nossas vidas e acções. Se raciocinarmos 
em termos libertários podemos afirmar de uma maneira apodíctica que face 
à intransigência e ao anacronismo histórico do fascismo português, nós, co-
lonizados e em busca da liberdade-independência, fizemos uma guerra justa 
e ganhámos. A guerra não foi ganha militarmente, mas o terreno de batalha 
não era esse. O terreno de batalha era político e foi um acidente histórico de 
responsabilidade portuguesa que obrigou Moçambique e as outras colónias 
portuguesas - fossem a excepção no contexto africano - a pegar em armas. 
Mas com o 25 de Abril essa anomalia histórica foi corrigida e abriram-se as 
portas para as independências políticas das então colónias portuguesas.
Na Dimensão Moçambicana da Consciência Histórica defendi que 
a Frelimo não escolheu o comunismo: foi-lhe imposto por um processo 
histórico-político. Agora, tristemente, tenho que defender que o liberalismo 
selvagem em curso não é também resultado de uma escolha, mas da derrota 
na segunda guerra. De facto, os objectivos libertários da primeira guerra 
foram derrotados na segunda guerra.
O período que vai de 1945 até 1989, como já se escreveu enormemente, 
foi dominado pelo conflito ideológico que opôs o bloco chamado de esquerda 
ao bloco de direita. Nós entramos neste conflito pela janela da nossa vontade 
de nos libertarmos do colonialismo. A prova da nossa participação periférica 
está no facto de termos parado com a guerra no momento mesmo em que 
os generais R. Reagan e M. Gorbatchov assinaram o armistício do fim das 
hostilidades. A guerra terminou com a vitória do bloco da direita. Dado que 
nós estávamos no bloco da esquerda, perdemos. Temos que ter a coragem 
de dizer que se ganhamos a guerra de libertação (nessa luta nós estávamos 
no sentido da história, contra o anacronismo histórico do colonialismo por-
tuguês), perdemos a segunda guerra.
O fim de todas as guerras é concluído com «actos cívicos» nas quais 
as partes se encontram, com aparente cortesia e mesmo cordialidade, bem 
vestidas e engravatadas para o processo de diálogo. Na realidade, trata-se de 
21Pensamento engajado
um encontro humanamente duro e humilhante para os vencidos, durante o 
qual os vencedores ditam as suas condições.
No panorama geral do conflito da guerra fria, a principal discussão 
do armistício fez-se em Helsínquia e teve como protagonistas Reagan e 
Gorbatchov. Assinado o documento principal, deixou-se que a resolução 
de detalhes ficasse a cargo dos burocratas ou dos oficiais subalternos, mas 
sempre no espírito da carta fundamental. Isto explica que os acordos de paz 
moçambicanos tenham sido assinados numa insignificante comunidade de 
Roma sem tradição nem prévia experiência política.
Os vencedores da guerra decidiram que em Moçambique, a Frelimo 
renovada – nome que nunca tomou, mas devia ter emprestado da Unita 
renovada – fosse a melhor força política para governar Moçambique. Com 
efeito, a natureza do capitalismo é não ter tempo. Dado que a estrutura ad-
ministrativa de Moçambique tinha sido escangalhada e recomposta por esta 
força política, para o funcionamento eficaz e imediato de um liberalismo que 
em termos de eficiência e cumprimento de prazos e datas é mais rigoroso 
que os sistemas de esquerda, o melhor governo seria o da Frelimo. Dava-se 
a Frelimo o mandato de governar com ordens precisas: utilizar as próprias 
estruturas para escangalhar o munus socialista e colectivista que ela mesmo 
tinha criado, introduzir o capitalismo contra o qual tinha lutado – sistemaque tinha sido historicamente responsável pela submissão dos moçambicanos.
Aceitaria a Frelimo destruir o que ela mesma tinha construído? Aceitaria 
dizer às pessoas que tinha educado que o homem novo agora era o capitalista, 
que a palavra de ordem era acumulação individual, era a exploração do mais 
fraco? Aceitaria a Frelimo dizer que, afinal de contas, o roubo e a desones-
tidade eram valores? Aceitaria a Frelimo transformar as funções estatais de 
serviços para o maior número em lugares de apropriação e de acumulação? 
Aceitaria a Frelimo destruir a sua lealdade com os camponeses, com os com-
batentes da Independência?
A bola parecia estar no campo da Frelimo: ou ela queria permanecer 
coerente consigo própria e, então, reconhecia a sua derrota e retirava-se, ou 
então ela se metamorfoseava e tornava-se uma «Frelimo renovada», atacando 
o poder a todo o custo. Existe, teoricamente, a possibilidade de a Frelimo ter 
aceitado a sua nova condição como forma de resistir, na medida do possível, 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano22
aos ditames dos vencedores a fim de continuar a defender os seus valores 
originais.
Então a Renamo estava condenada a ser oposição? A nova missão do 
pequeno batalhão era ser uma pistola apontada à têmpera da nova Frelimo, 
governante. Se a Frelimo se comportasse bem, a Renamo continuaria na opo-
sição quer ela quisesse ou não. Se a Frelimo se comportasse mal, a oposição 
premiria o gatilho e a Frelimo saltaria. Só que a Frelimo mostrou-se mais 
liberal do que era previsível. Isto leva-me a pensar que muitos socialistas da 
primeira República não o eram por convicção, mas por imposição ou por 
oportunismo político. 
A partir do momento em que a Frelimo jogava bem o jogo liberal, a Re-
namo transformava-se num espantalho que só serve para afugentar pássaros. 
Mas as duas questões de fundo são: primeiro, a Frelimo ultraliberalizou-se 
estrategicamente como forma de manter o poder (e servir os interesses dos 
moçambicanos) ou como estratégia de enriquecimento de um certo número 
de indivíduos? Se foi uma estratégia para conservar o poder, que fim tem o 
novo poder e Governo da Frelimo? Segundo: a comunidade internacional, 
virando as costas à Renamo e seguindo a estratégia da Frelimo, levanta o 
problema do futuro da democracia e da sua legitimação em Moçambique.
A Questão da Legitimação
A participação nas eleições de 1994, mais do que legitimar as novas forças 
políticas em presença e a nova governação nacional, era um assentimento 
que ia mais em direcção da necessidade de terminar com a guerra e todas 
as consequências que ele comportou em termos de acentuação da pobreza, 
da fome, da imigração das populações do campo para a cidade, etc. Mas, 
de nenhuma maneira, uma legitimação política. Com efeito, ninguém pode 
legitimar o que não conhece, e nenhuma legitimidade é possível (legítima) 
se ela não parte e não se alimenta do substrato mental, cultural e filosófico 
do povo que deve supostamente governar e representar.
Ora, as estatísticas mostram que mais de noventa por cento dos cida-
dãos moçambicanos não possuem os apetrechos intelectuais necessários 
para participarem, e por conseguinte, legitimarem uma democracia, cujos 
23Pensamento engajado
paradigmas respondem a pressupostos culturais e históricos ocidentais. Por 
outro lado, todos os trabalhos de história e de antropologia levados a cabo 
sobre as diferentes culturas moçambicanas2 mostram que a participação 
popular na coisa pública e os diferentes sistemas de governação das culturas 
nacionais, diferem em toda a medida do sistema constitutivo e da organização 
dos poderes públicos actuais.
Todavia, e não obstante as afirmações precedentes, as eleições políticas 
de 1994 marcaram o início de uma nova legitimidade política, não fundada 
sobre a tradição ou sobre a força das armas, mas pelo princípio da soberania 
popular. 
A nossa questão será justamente de nos interrogarmos quanto ao estatuto 
político desta nova legitimação.
Em Moçambique, o nascimento do projecto nacional está indissocia-
velmente ligado aos nomes de Eduardo Mondlane3 e da Frelimo. As lutas 
dos povos africanos pelas próprias liberdades, na qual se situa o projecto 
de Eduardo Mondlane e da Frelimo, inscreveram-se em dois movimentos 
históricos opostos. O primeiro inscrevia-se e fundamentava-se no substrato 
cultural dos diferentes povos autóctones, o segundo tem o seu fundamento 
na história do movimento Pan-africano que nasceu com os negros da diás-
pora: República das Palmeiras no século XVII no Brasil, Haiti de Toussant 
Louverture no século XVIII, os marrões da Jamaica no século XIX, mas, 
sobretudo, as metamorfoses históricas e culturais dos negros nos EUA:
Os primeiros movimentos eram culturalmente homogéneos, tinham as 
suas delimitações geográficas e políticas bem definidas. As fronteiras traça-
das ou reconhecidas por Berlim eram para os diferentes povos, entidades 
geo-políticas demasiado extensivas, mas sobretudo não correspondiam às 
dinâmicas políticas próprias dos diferentes grupos nacionais. As entidades 
políticas forjadas pelos povos africanos (Estados, Impérios) não paravam 
sempre nas fronteiras étnico-tribais, bastando pensar no império de Gaza 
ou no Império do Monomotapa. Contudo, a extensão de uma identidade 
política a grupos culturalmente heterogéneos era acompanhada por uma 
série de medidas de inserção jurídica, económica, política e cultural que se 
inscreviam nas dinâmicas culturais autóctones. Todavia, nenhuma destas 
2 Cfr. Documentos de Antropologia Moçambicana. Lisboa, 1996.
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano24
dinâmicas correspondia nem geográfica, nem politicamente àquilo que os 
portugueses chamaram Moçambique.
Se a entidade Moçambique era (como, aliás, todas as colónias africanas 
pós-Berlim) demasiado grande sob o ponto de vista geográfico e culturalmente 
heterogénea em relação às dinâmicas políticas autóctones a Moçambique e a 
África, ela era, ao contrário, demasiado reduzida em relação aos objectivos 
primeiros do pan-africanismo que prospectava uma unidade política de 
todos os negros do mundo no solo africano (Delany, Marcus Garvey). Os 
objectivos do movimento Pan-africano foram-se reformulando sem nunca, 
contudo, renunciarem ao objectivo de unir politicamente a África, como 
testemunha a obra política e literária de K. Nkrumah Africa Must Unit, ou 
mesmo os esforços da criação de uma África federal de Dubois ou, ainda, 
de Patrice Lumumba.
Eduardo Mondlane, como K. Nkrumah ou Azikiwe, pertence por forma-
ção e convicção ao movimento Pan-africano cujas ideias tiveram um impacto 
considerável nos anos em que ele viveu e estudou nos EUA. Contudo, a acção 
política de Eduardo Mondlane e da Frelimo foi precedida e condicionada 
por dois factos políticos e históricos importantes: a partir do congresso Pan-
africano de Manchester de 1945 fala-se abertamente e, pela primeira vez, da 
questão de autodeterminação dos povos africanos. Mas ao mesmo tempo, 
o congresso observou que «as divisões arbitrárias e as fronteiras territoriais 
delimitadas pelas potências coloniais constituem outras tantas medidas de-
liberadamente tomadas para impedir a unidade política da África».
Se a questão da independência estava posta sem equívocos, restava deli-
mitar o quadro geopolítico no qual estas independências se deviam inscrever: 
etnias, antigos Estados africanos, zonas economicamente viáveis, ou espaços 
coloniais delimitados em Berlim?
O co-presidente do congresso de 1945, Dubois (com Carter G. Woo-
dson, fundador da Association for the Study of Negro Life and History 
em 1915) foi também um dos promotores da redescoberta da História, das 
tradições e da cultura da África pré-colonial. Contudo, ele pensava – como, 
3 Cfr. NGOENHA, S.E., Para uma Reconciliação entre a Política e a(s) Cultura(s). Programa de Re-
forma dos Órgãos Locais (PROL), Texto de Discussão N° 3, Ministério da Administração Estatal 
(MAE), Editado por J. E. M. GUAMBE e B. WEIMER, Maputo, Agosto de 1997,p.14.
25Pensamento engajado
aliás, todos os líderes políticos da época – que a África fragmentada não 
podia, por si só, na sua própria terra, tomar claramente consciência da sua 
unidade a não ser sob a forma de uma muito vaga comunidade de origens 
e de tradições, consideradas num sentido muito geral. De facto, a noção de 
Pan-africanismo era afectada por um alto grau de abstracção em relação à 
realidade. Tratava-se mais de uma doutrina cultural (ou do reconhecimento 
de uma unidade espiritual entre negros, como dissera Langston Hughes) 
do que de uma verdadeira ideologia política. Foi o que fez Azikiwe com o 
seu Renascent Africa de 1937, Césaire no Cahier d’un retour au pays natal, 
a revista Presence Africaine, ou ainda Cheikh Anta Diop com as Nações 
Negras e Cultura.
Por falta de uma ideia clara de unidade e mesmo de condições práticas 
para que essa unidade fosse possível, começou-se a falar de unidades regio-
nais. Mas uma vez mais tinha que se definir os contornos políticos e jurídicos 
de tal unidade. E, sobretudo, definir-se se tal unidade devia preceder ou vir 
depois das independências das delimitações individuais daquilo que eram 
os Estados coloniais. Este assunto esteve no centro do debate político entre 
os anos 1957 e 1959.
Em 1961, um ano antes da fundação da Frelimo, a África independente 
divide-se claramente em dois grupos: o grupo de Monróvia e o grupo de Casa 
Blanca. Contudo, a ideia que prevalece é que a unidade que é preciso realizar 
neste momento não é a integração política dos Estados Africanos soberanos, 
mas a unidade das aspirações e da acção, do ponto de vista da solidariedade 
social africana e da identidade política.
O pan-africanista e funcionário das Nações Unidas, Eduardo Mondlane 
sabe, ao fundar a Frelimo, que o quadro geopolítico das liberdades (inde-
pendências) africanas por vontade da ONU, guiada pelas mesmas potências 
que em Berlim tinham, cinquenta anos antes, dividido o continente sem 
se preocuparem nem com as culturas nem com os homens negros que nós 
somos, com a conivência dos novos dirigentes africanos, deve ser o espaço 
da colonização europeia, portanto portuguesa, para Moçambique. Isto quer 
dizer: do Rovuma ao Maputo.
Ora, neste espaço geopolítico tinham precedentemente surgido for-
mas de nacionalismo que, sem serem o resultado de uma evolução política 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano26
interna às culturas locais, inscrevia a sua dinâmica nos substratos culturais 
locais. Não há dúvida que sob ponto de vista da evolução da política mun-
dial, Mondlane teve razão em criar a Frelimo, como meio de dar força e 
legitimidade internacionais – no sentido da ONU e, a partir de 1963, da 
OUA – às reivindicações dos povos que viviam no espaço geográfico que se 
estendia do Rovuma ao Maputo. Contudo, havia aqui uma transferência de 
legitimidade. A Udenamo, Unamo e Manu, reivindicavam a sua legitimidade 
nos povos respectivos. A Frelimo que, justamente, não queria nem podia ser 
um simples somatório dos três movimentos nacionalistas que o precederam, 
nem sequer era o somatório dos grupos etno-tribais de Moçambique, não 
podia imediatamente receber a sua legitimação do interior e, portanto, das 
dinâmicas político-culturais interiores aos povos de Moçambique.
Quanto ao exterior, a Frelimo podia receber uma caução, mas não le-
gitimação do Pan-africanismo que, entretanto, tinha sido redimensionado e 
mesmo isolado com a elevação do espaço colonial a quadro geopolítico para 
a proclamação das independências. A divisão de 1961 e a criação da OUA 
eram, de facto, uma vitória das antigas potências coloniais. E, paradoxalmente, 
eram a ONU e a OUA a legitimarem a Frelimo como movimento de libertação 
de Moçambique, e mais tarde, como representante do povo moçambicano.
Se as independências se devem inscrever no quadro geopolítico colo-
nial, elas não se podem inspirar culturalmente nem nas lutas autóctones dos 
diferentes povos de Moçambique e das suas evoluções e debates políticos, 
nem sequer se podem inspirar na dinâmica histórica do Pan-africanismo. A 
acção de Eduardo Mondlane e da Frelimo deve geopolítica e juridicamente 
inspirar-se e, de qualquer modo, dar continuidade ao trabalho de centraliza-
ção levado a cabo pelas autoridades coloniais portuguesas e, por outro lado, a 
partir do Partido transformado em Estado depois da independência, criar uma 
Nação à imagem e semelhança da Europa. Aqui surgem duas dificuldades:
 
a) Os portugueses para centralizarem a governação dos povos de Mo-
çambique, não só não legitimavam o seu poder a partir dos povos 
de Moçambique, mas violavam sistematicamente os seus direitos 
mais elementares. Se a Frelimo-Estado de Moçambique seguia esta 
governabilidade tinha ou que dialogar e fazer dialogar os diferentes 
27Pensamento engajado
povos e culturas nacionais, o que era tecnicamente impossível, tendo 
em conta sobretudo o factor tempo e os imperativos regionais; ou 
então, com uma legitimação proveniente do exterior, impor aos povos 
de Moçambique culturas políticas estrangeiras. Mas, se assim fosse, 
em que medida a imposição da Frelimo seria na prática diferente da 
imposição dos portugueses? Em que medida a governação da Frelimo 
seria menos colonialista em relação às práticas culturais dos diferentes 
povos e culturas locais?
b) A história social e política da Europa, que doravante servia de mo-
delo, tinha visto nascer o Estado a partir das Nações. Ora, em que 
medida o Estado de Moçambique estaria à altura de criar a Nação, 
tarefa primordial que lhe foi confiada pelo Partido?
A missão histórica que foi da Frelimo – criar uma nação moçambicana 
– partiu de movimentos políticos, culturalmente circunscritos (Udenamo, 
Unamo e Mani), mas teve que se forjar logo depois uma ideologia unitarista. 
Depois da independência, o postulado de unidade nacional, que em si mesmo 
não é nem pode ser discutível, implicou também uma governação a partir 
de cima. O primeiro paradoxo era que o governo legitimava o seu poder no 
povo, mas governava contra os pressupostos jurídicos das culturas nacionais. 
O segundo paradoxo era que a legitimação teórica e histórica dos pressupostos 
políticos de governação respondia a pressupostos europeus: recordemo-nos 
que o marxismo é filho de um debate histórico próprio da cultura ocidental.
Estes paradoxos e mesmo a desconsideração das culturas nacionais no 
processo político e de governação foram, historicamente, o preço que tiveram 
de pagar as culturas nacionais pela edificação do Proto-Estado moçambicano. 
A Nação democrática que se auto-proclamou em 1994 novo actor histó-
rico da vida política e social moçambicana quer, como afirma a constituição 
de 1990 e os acordos de 1992: Todos se reconhecem actores e sujeitos da 
história, ou seja, um partido único não pode ser o dirigente da sociedade e 
do Estado4 .
Por democracia se entende, portanto, um sistema de partidos. Ora, este 
sistema tipicamente ocidental desde há dois séculos tem vindo a provar a sua 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano28
funcionalidade. Contudo, no contexto histórico actual, caracterizado pelo 
fim do bipolarismo, muitos sociólogos e politólogos se interrogam quanto à 
pertinência da divisão clássica da política em partidos e a capacidade deste 
sistema de representar verdadeiras alternativas políticas e, sobretudo, de 
representar os diferentes estratos da sociedade.
Mas a questão mais interessante para nós é que em nenhum país africano 
o sistema de partidos como o proposto pela constituição e pelos acordos de 
Roma parece estar à altura de mobilizar o imaginário colectivo das popula-
ções. Das duas, uma: ou o africano (e, portanto, também o moçambicano) é 
geneticamente anti-democrático como sustentam alguns eugenistas (Medeved 
Arison), ou então o sistema de partidos é, talvez neste momento, um mal 
necessário, mas não corresponde ao substracto cultural dos nossos povos.
Não se trata de uma inadequação dos africanos à democracia, mas do 
modelo Europeu falsamenteuniversal, que não se coaduna com as nossas 
culturas. Não são as culturas que se têm de adaptar a todo o custo a mode-
los, que responderam ao génio próprio de certos povos num determinado 
momento da sua história, mas os modelos que se têm de forjar a partir das 
culturas. Isto significa que nós temos de inventar um modelo de sociedade 
que nos seja próprio, um modelo que corresponda às nossas culturas, às 
nossas sensibilidades, um modelo capaz de mobilizar o conjunto de moçam-
bicanos a participarem não só nas eleições, mas na vida integral da sociedade 
moçambicana.
Depois de uma entrevista que dei ao jornal Savana em Setembro de 1996, 
um deputado disse-me que ele tentava levar os seus eleitores a interessarem-se 
e mesmo a controlarem a sua actividade de deputado, mas em vão: os «eleito-
res não conhecem as suas prerrogativas jurídicas e políticas como eleitores».
Os deputados são, teoricamente, representantes dos interesses dos 
eleitores. Que tipo de mandato, eleitores que ignoram as suas prerrogativas 
políticas e jurídicas, podem confiar a um deputado? E se os deputados não 
têm um mandato claro dos seus eleitores o que é que eles representam? O 
que é que os autoriza a falarem em nome dos seus eleitores?
4 Cfr. NGOENHA, S.E. Para uma Reconciliação entre a Política e a(s) Cultura(s). Programa de Re-
forma dos Órgãos Locais (PROL), Texto de Discussão N° 3, Ministério da Administração Estatal 
(MAE), Editado por J. E. M. GUAMBE e B. WEIMER, Maputo, Agosto de 1997, p.21.
29Pensamento engajado
Mas supondo que os eleitores decidam controlar, acompanhar, influen-
ciar a execução do mandato de um deputado ou, mais profundamente, que 
eles queiram fazer presente a um deputado que representa no Parlamento 
as suas preocupações, que não são sempre iguais, mas variam com o tempo 
e com as circunstâncias: de que mecanismos jurídicos e constitucionais dis-
põem? Que mecanismos estão previstos pela lei que permitam que os eleitores 
interpelem os seus representantes?
Se os parlamentares representam simplesmente as posições dos próprios 
partidos, em discrepância total com os interesses e a compreensão das pessoas, 
estamos num sistema de partidocracia.
Será que o sistema de representação parlamentar é conforme o génio 
político e cultural moçambicano? Será que os mecanismos de representa-
ção tipicamente moçambicanos são os partidos? Os indivíduos, os grupos, 
as culturas e a sociedade exprimem as próprias opiniões, preocupações, 
posições através dos partidos, ou existem outros mecanismos, outras vias, 
outros veículos de opinião e de tomada de posição que são mais congénitos 
aos povos de Moçambique?
A democracia moçambicana e o seu sistema de representação vão ter que 
colocar o problema dos pressupostos. Temos que centrar os nossos esforços 
sobre a condição da democracia: a dimensão sócio-cultural. A democracia 
vai exigir, como condição preliminar, uma acção concebida a partir das rea-
lidades autênticas das nossas comunidades autóctones, apreendidas a partir 
do interior. Contudo, as eleições políticas de 1994 e a nova constituição, 
fundando doravante a legitimidade política sobre a soberania e a vontade 
dos moçambicanos, consagram simbolicamente uma ruptura fundamental.
Para além do princípio de legitimidade política, é o fundamento mes-
mo da relação social que é posto em causa. Na era da nação democrática, 
a política substitui o princípio religioso ou dinâmico para unir os homens: 
ela reivindica o direito de instaurar o social. Doravante, todos os homens 
no interior do espaço nacional são iguais em dignidade. Esta cidadania não 
é simplesmente um atributo jurídico e político, no sentido estrito do termo. 
É também um meio para adquirir um estatuto social: a condição necessária 
- mesmo se concretamente não suficiente - para que um indivíduo possa 
ser plenamente reconhecido como actor de vida colectiva. Existem, no 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano30
entanto, dois problemas fundamentais. Primeiro – o nascimento da nação 
democrática foi precedido, e talvez mesmo condicionado, pela presença de 
uma outra nação que vive no seu seio: a nação produtivista. Não é por acaso 
que a democracia foi precedida por uma adesão às instituições económicas 
internacionais como o FMI e BM, composta por indivíduos mais preocupados 
em satisfazer os próprios interesses que a satisfação dos seus deveres cívicos 
– que segundo Rousseau constitui o principal problema moral para aquilo a 
que ele chama o homem social. A lógica produtivista intimamente ligada à 
eficácia da produção, tende a preceder os valores propriamente políticos. A 
participação na vida económica é a fonte essencial do estatuto social. Assim, 
a dimensão económica e social da vida colectiva impõe-se em detrimento do 
projecto político. Este facto enfraquece ulteriormente o nosso «Proto-Estado 
Democrático» que se vê obrigado a renunciar às suas prerrogativas estatais 
(que lhe foram confiadas pelos eleitores) para satisfazer as imposições anti-
democráticas do FMI e do Banco Mundial5 que se arrogam a prerrogativa 
de legitimar o poder.
Como se isto não bastasse, os eleitores não têm mecanismos jurídicos 
legais previstos pela constituição que lhes permitam fazer-se ouvir ou sim-
plesmente participar no debate público. Existe, por conseguinte, um outro 
problema jurídico, desta feita ligado à democracia representativa.
A Democracia Representativa
A democracia representativa, em princípio, é uma democracia parla-
mentar. Todavia, para que o parlamento seja democrático, deve respeitar 
três princípios fundamentais: a tolerância, a separação dos poderes, a justiça. 
Isto significa que uma democracia digna desse nome não se pode contentar 
em ser uma democracia formal, cega às desigualdades materiais entre os 
membros da sociedade, mas ela deve visar um objectivo concreto: a justiça 
social. Podemo-nos perguntar: em que condições reina a justiça social? Isto 
é uma questão difícil. Em contrapartida, o que é claro é que a sua realização 
5 Cfr. NGOENHA, S. E., Para uma reconciliação entre a Política e a(s) Cultura(s). Programa de 
Reforma dos Órgãos Locais (PROL), Texto de Discussão N° 3, Ministério da Administração estatal 
(MAE), Editado por J. E. M. GUAMBE e B. WEIMER, Maputo, Agosto de 1997, p.33.
31Pensamento engajado
supõe, pelo menos, a criação de mecanismos susceptíveis de impedir o de-
senvolvimento de desigualdades demasiado grandes no seio da comunidade.
A nossa constituição, inspirando-se na história das democracias re-
presentativas, separa claramente o poder executivo do legislativo e este do 
judicial. Que mecanismos temos para garantir a separação de poderes e gerir 
eventuais conflitos entre eles?
Dois tipos de conflitos têm perturbado de maneira recorrente a vida 
das democracias contemporâneas: primeiro, o conflito entre o executivo e 
o legislativo, quer quando a constituição dá mais importância a um ou ao 
outro, quer quando os representantes do executivo usam todos os subter-
fúgios para fugirem ao controlo dos representantes do povo. O membro 
da Renamo ou do MDM quando se pronunciam no parlamento, fazem-no 
como representantes do povo. O executivo não deve ridiculizá-los ou fugir 
às questões, muitas vezes judiciosas e pertinentes levantam.
Segundo, o conflito entre o executivo e o judiciário. Nomeados pelos pri-
meiros, os agentes do segundo, isto é, os magistrados, têm muita dificuldade 
em fazer compreender aos responsáveis do executivo, que ninguém pode estar 
acima da lei. Este é um problema que os pais da democracia representativa 
não resolveram. Trata-se de uma questão que tem minado a vida política, 
mesmo nas democracias mais experimentadas. Em Moçambique podemos 
falar do paradigma Anibalzinho-Nyimpini.
Que o presidente Chissano tenha feito ou não pressão ao pé das autori-
dades judiciárias, os juízes não podem ser completamente livres de uma certa 
pressão psicológica no acto mesmo de instaurar um processo e de judiciar 
Nyimpini.
Mas a verdadeira questão não é nema atitude do presidente, nem Ani-
balzinho, nem Nyimpini. A questão é como fazer com que entre o poder 
executivo e o judicial não haja interferência, numa democracia que quer estes 
poderes iguais, mas subordina a nomeação do judicial à decisão do executi-
vo? Que o presidente faça pressão ou não, que diga algo ou não, que o seu 
pessoal governativo intervenha ou não, o seu estatuto vai necessariamente 
condicionar o desenrolar do processo. Este não é um problema só moçam-
bicano e, talvez ainda mais por isso, deve mobilizar as nossas inteligências 
com vista a encontrarmos uma saída…
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano32
A estes pontos tem que se acrescentar um que é a maneira particular 
como um certo Ocidente se arroga sempre mais, e de maneira antidemocrá-
tica, prerrogativas de legitimação anti-coloniais das emergentes democracias 
africanas, e mete sob tutela as nossas economias e, em consequência, a nossa 
soberania.
A Questão da Soberania
A constituição de 1975 prescreve em vinte e cinco artigos os princípios 
gerais ou, se quisermos, as proposições de base que orientam o conjunto de 
normas jurídicas e a promulgação das leis. Trata-se de ideias ou de proposi-
ções que inspiram e orientam todos os enunciados e todos os actos do direito.
O Moçambique de 1975 aparece, assim, no artigo I como «Um Estado 
soberano, independente e democrático sob a direcção da FRELIMO». O 
artigo II define a ideologia moçambicana como Democracia Popular. O ar-
tigo III indica a Frelimo como a entidade que «supervisa a acção dos órgãos 
estatais a fim de assegurar a conformidade da política do Estado com os 
interesses do povo». O partido e o Estado identificam-se. O artigo IV indica 
os objectivos fundamentais da República: «a eliminação das estruturas de 
opressão e exploração coloniais e tradicionais e da mentalidade que lhes 
está subjacente a extensão e reforço do poder popular democrático; a edifi-
cação de uma economia independente e a promoção do progresso cultural 
e social; a defesa e consolidação da Independência e da unidade nacional; 
o estabelecimento e desenvolvimento de relações de amizade e cooperação 
com outros povos e Estados; o prosseguimento da luta contra o colonialismo 
e o imperialismo».
Estes artigos mostram a vocação libertária da constituição e a filosofia 
prática subjacente ao direito moçambicano na sua primeira constituição.
A constituição da II República não renuncia ao substrato filosófico de 
base e aos seus corolários de lógica jurídica. Só que o exercício deste projecto 
libertário não se exercerá, doravante, através do partido Frelimo (apesar de 
se reconhecer o seu papel fundamental na construção de Moçambique), mas 
através de um sistema de competição entre partidos autónomos, com obri-
gação de respeitarem e defenderem a soberania nacional, entendida como 
33Pensamento engajado
espaço geopolítico (do Rovuma ao Maputo), e a unidade nacional através 
da luta contra o tribalismo.
Os pressupostos filosóficos estipulados na primeira República e con-
firmados pela segunda aparecem em contradição com os seus corolários 
políticos. Para compreender o que está por detrás deste fenómeno, tem que 
se recorrer à história das lutas ideológicas que a subentendem.
Lutar contra o colonialismo, libertar Moçambique e ser soberano são 
conceitos fundamentais e constituintes da nação moçambicana. A comuni-
dade internacional só pode ser positiva e a favor de Moçambique na medida 
em que respeite este substrato filosófico de base. Isto é, respeito pela sobe-
rania, configurada num espaço geopolítico bem determinado e pela unidade 
nacional.
Ora, o centro nevrálgico da constituição de 1975 era a liberdade/
independência. O centro da constituição de 1990/1992/1994 é liberdade/
democracia. Em 1975, a liberdade era entendida como contraposição ao 
colonialismo. Em 1992, à liberdade como anti-colonialismo se junta a demo-
cracia. Teoricamente, trata-se de um avanço considerável. Todavia, a opinião 
pública moçambicana parece acreditar que a nível da liberdade fundamental 
(independência e soberania), Moçambique tenha pura e simplesmente re-
gredido (regresso de portugueses, economia sob tutela, ONG, cooperação, 
doadores, etc.). Pode-se progredir em democracia, recuando em soberania?
A II República nasceu dos escombros da antiga União Soviética e do 
fim da guerra fria. Os valores que a ideologia vencedora apregoa são contrá-
rios ao espírito da Primeira República defendidos pela Frelimo. Mas serão 
compatíveis com o espírito que é, ou que devia ser, da Renamo enquanto 
partido nacional: a defesa e a promoção da unidade e integridade nacionais?
A situação actual de Moçambique caracterizada por democratismo (que 
é diferente da democracia), super liberalismo que se traduz em privatizações 
sumárias, e tutela governativa, são a prova da nossa entrada no fim da história, 
no ponto final da evolução ideológica da humanidade.
É neste contexto que deve ser vista a segunda República moçambicana. 
Mas resta uma questão de fundo: qual é a relação que existe entre o objec-
tivo de fundo que persegue o africano, o moçambicano, isto é, a liberdade 
de dispor de si mesmo e esta forma de hegelenismo político-social? Qual é 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano34
a relação que existe entre este sistema mundial dominante e a possibilidade 
real de ser soberanos, sem termos que obrigar os moçambicanos a terem que 
pegar em armas para uma segunda colonização, como escreve Heliodoro 
Baptista no artigo do Savana (nº 167, Março 1997)?
Duas aporias parecem remar contra a nossa liberdade e libertação: uma 
está intrinsecamente ligada à mesma ideia de soberania e outra à nossa inca-
pacidade como povo de assumi-la com tudo o que ela comporta em termos 
de responsabilidade. E outra é ligada ao Ocidente sempre mentalmente 
imperialista
Eis porque é ridículo e contraditório ter uma constituição cujo pres-
suposto filosófico (soberania) tem que ser garantido por uma comunidade 
internacional, democrata no interior dos países de origem, mas selvagem nos 
seus princípios políticos, jurídicos e nas suas práticas económicas.
Falar de soberania moçambicana é hoje um autêntico abuso de lin-
guagem. De facto, toda a estrutura constitucional moçambicana, desde os 
seus fundamentos filosóficos, jurídicos para terminar na prática política, 
encontra-se esvaziada de conteúdo. Eis porque a política moçambicana, 
apesar da aparente democracia, tornou-se numa coisa ligeira, leviana onde 
cada um procura os seus fins individuais: o «cabritismo» que é, de facto, o 
laissez faire, laissez passer moçambicano.
Todavia, esta situação é possível ou pelo menos é facilitada por um outro 
facto: «a nossa incapacidade de assumir o que a liberdade comporta como 
responsabilidade». O camaronês Mveng fala da pauperização antropológica 
do negro. Eis porque o maior comunista de ontem pode tornar-se no maior 
apóstolo do liberalismo selvagem; o revolucionário de ontem no reaccionário 
de hoje, os libertadores de ontem no instrumento de colonização de hoje.
A Frelimo viu-se obrigada, por razões militares e pela pressão exterior, 
a instaurar um sistema democrático, sem estar realmente convencida de 
dever compartilhar o poder, cuja legitimidade auria da luta armada contra 
a colonização portuguesa. Hoje a Frelimo vê-se obrigada a harmonizar as 
exigências de duas autoridades: a Renamo e a Comunidade Internacional. 
Ora, se a força da Renamo no contexto nacional é muito fraca, o mesmo não 
se pode dizer da Comunidade Internacional, que impõe literalmente de uma 
maneira abusiva e anti-soberana a política, a economia e o tipo de governação.
35Pensamento engajado
No contexto económico dominante, o governo precisa do dinheiro dos 
doadores e da comunidade internacional para melhorar a vida dos moçam-
bicanos, o que, aliás, é a sua função política como partido no poder, mas 
está consciente da divergência de interesses entre os moçambicanos e de uma 
certa Comunidade Internacional (cf. entrevista com Mariano Matsinha, in:Savana 25.04.1997).
A Renamo é vista como instrumento da Comunidade Internacional, 
cujos objectivos são o enfraquecimento do Estado, a divisão do país. Con-
tudo, a Comunidade Internacional, apesar da sua força, só pode governar 
de maneira indirecta, pois dificilmente pode pegar em armas e ocupar mili-
tarmente Moçambique, ou mesmo nomear governadores e administradores 
em Moçambique. A Frelimo submete-se aos dictats da Comunidade Inter-
nacional fazendo o que esta exige, a fim de obter dinheiro e financiamentos, 
ao mesmo tempo que a nível político, tenta isolar a Renamo (Carta Aberta 
aos Moçambicanos de Afonso M. M. Dhlakama, Savana, 04.04.1997) e os 
outros partidos da oposição. Todavia, apesar das aparências, o verdadeiro 
adversário da Frelimo, não é a Renamo, como ontem não era a Renamo - 
Samora Machel quis discutir directamente com os sul-africanos e não com a 
Renamo. Hoje a táctica é a seguinte: fazer a vontade dos doadores a fim de 
ter investimentos, mas isolar politicamente a Renamo e os outros partidos 
da oposição.
Às estratégias de apropriação do poder e do seu abuso por parte de uma 
certa Comunidade Internacional, a Frelimo responde com uma dupla táctica: 
docilidade e submissão aparente face à Comunidade Internacional, e isola-
mento das oposições políticas nacionais. Este processo faz-se em detrimento 
de uma democracia real que, portanto, se tinha começado a engodar. Isto 
faz-se, por outro lado, em detrimento de um debate democrático cultural, que 
tenderia a deslocar realmente o centro de gravitação do poder em direcção 
às pessoas reais, aos grupos e às culturas. As consequências são: o isolamen-
to dos partidos da oposição, a diminuição da possibilidade da democracia, 
o centralismo político, que impede a possibilidade de uma cultura política 
moçambicana. Isto é, a criação de um substracto político nacional a partir 
dos valores do homem de Moçambique, o reforço das tendências autoritárias 
e centralizadoras do partido no poder, que se vê obrigado a recorrer a armas 
nacionalistas para defender o país.
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano36
A responsabilidade da Comunidade Internacional no que se passa em 
Moçambique é enorme. Existem diferentes Comunidades Internacionais, 
aquelas pretensamente neocoloniais e tuteladoras, e outras cujos objectivos 
são de ajudar a construir uma comunidade política soberana, democrática, 
solidária e fundada sobre valores moçambicanos. Penso que seria tempo 
de uma análise crítica das atitudes da Comunidade Internacional e da sua 
responsabilidade no clima que existe no Moçambique de hoje. Existe hoje 
um risco de confusão entre a democracia e o neocolonialismo; risco de ver 
na democracia e no liberalismo, simples avatares do neocolonialismo.
O maior erro, que poderiam cometer as «velhas democracias», seria 
apresentarem-se como modelos, como os que sabem como as coisas devem 
ser feitas, como os problemas devem ser resolvidos, o que elas não são e nem 
podem ser; e impor, mesmo em termos económicos, o modelo e o estilo de 
sociedade que elas consideram boa para Moçambique. Neste sentido, é extre-
mamente lamentável a atitude de certas organizações. Exigir que o Estado, o 
Governo, adopte e implemente práticas políticas e económicas decididas por 
investigadores e por centros de poder ocidentais, como condição da ajuda 
económica, é uma política que se baseia no desprezo pelos governantes na-
cionais. O perigo evidente, neste caso, é desacreditar gravemente o Governo 
aos olhos do povo, mas sobretudo desacreditar a própria democracia aos 
olhos do povo e dos seus líderes.
A comunidade internacional, pelo menos a não colonialista, deve rever a 
sua posição, deve compreender que ela não pode ser colonizadora, neocolo-
nizadora, tuteladora, sem ser contra Moçambique e contra os moçambicanos.
O específico das ciências filosóficas no contexto actual deveria ser a 
invenção de espaços e de mecanismos de incremento da soberania, quer 
contra o intervencionismo anti-democrático dos democratas ocidentais, 
quer, e sobretudo, no trabalho sobre as condições susceptíveis de libertar a 
imaginação e a criatividade nos moçambicanos, a fim de podermos assumir 
responsavelmente a nossa liberdade.
A «tarefa» da filosofia é não esquecer que a nível interno ainda não somos 
capazes de ser cabalmente responsáveis pela nossa liberdade. Incumbe-nos, 
portanto, descobrir e inventar espaços de liberdade concretos, dar material 
e instrumentos teóricos aos políticos nacionais.
37Pensamento engajado
A reflexão filosófica moçambicana tem que se situar na intersecção 
do conflito de soberania entre a soberania externa dos estados europeus e 
Moçambique; entre a nossa vontade de soberania e a nossa incapacidade de 
assumi-la; entre a nossa vontade de soberania e a incapacidade dos ociden-
tais de se libertarem dos seus élans coloniais. Em segundo lugar, ela deve 
investigar as razões históricas, culturais e sociais que estão na base da nossa 
fraqueza existencial e as maneiras concretas de combatê-la. A ideia da sobe-
rania (liberdade) tem uma valência interna condicionada pelo movimento de 
participação cultural, que comummente se chama democracia. Esta deve ser 
internamente garantida por uma cultura política moçambicana que se forja 
a partir das culturas políticas nacionais, e que tenha em conta a preservação 
e o incremento da soberania moçambicana.
A filosofia africana na sua valência política deve contribuir para a re-
alização das exigências de justiça. Por conseguinte, filosofar sobre a acção 
significa interrogar as legitimidades edificadas pelos homens (nacionais e 
internacionais), e tentar dar palavra às pessoas, grupos e culturas que foram 
privadas dela até aqui. A filosofia não se pode contentar em justificar o status 
quo, mas, ao contrário, deve dessacralizar os equilíbrios políticos que pare-
cem únicos. Eis porque eu proponho um contracto cultural, social e político.
Contrato Cultural
A democracia comporta duas partes: uma axiológica e outra institucional. 
A dimensão axiológica repousa essencialmente no princípio da igualdade 
em direito concebido como uma abstracção para corrigir as desigualdades 
naturais. Ela impõe, de uma maneira apodíctica e não negociável, o respeito 
pelos direitos do homem, a igualdade entre os cidadãos e o respeito pela 
dignidade das pessoas. 
Se os valores não são negociáveis, as instituições, ao invés, nunca conhe-
ceram, na história das democracias, uma forma única. Se os valores têm uma 
vocação universal, a dimensão institucional da democracia releva da história, 
das sociedades e das culturas. 
As instituições, melhor, os modelos institucionais da democracia podem 
e devem mudar, podem e devem ser aculturados, aurir a sua legitimidade 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano38
dos imaginários colectivos, das linguagens das pessoas, da maneira como eles 
concebem a sua vida social e colectiva. Eis o que eu chamo contrato cultural. 
Contrato Social
A segunda República é percebida pelos moçambicanos como profun-
damente injusta. 
O conceito de justiça não é e nunca foi exclusivamente político. Ain-
da menos jurídico. Ele pode ser apreendido em diferentes sentidos: ético, 
metafísico-histórico (justiça imanente), religioso (transcendental), até mesmo 
estético. Entre estas múltiplas acepções, não separáveis por nenhuma fron-
teira bem definida, toda uma série de ligações mais ou menos subterrâneas 
se teceram durante séculos. Esta é a razão pela qual a dimensão política e 
a dimensão ética estão ligadas, como bem prova John Rawls (1987) na sua 
Teoria da Justiça que, há trinta anos, teve o grande mérito de dar um novo 
alento à questão da filosofia política, que tinha sido transcurado depois de 
Rousseau e de Kant.
Contrato Político
Sabemos da História que o processo da escravatura foi facilitado pelas 
nossas divisões internas; sabemos que o colonialismo foi também facilitado 
pelas nossas divisões; sabemos que, para neo-colonizar a África, o Ocidente, 
desde o Congo até Moçambique,passando pela Nigéria, utilizou ou suscitou 
divisões. 
Mas a Historia também nos ensina que quando fomos capazes de uni-
dade, fomos fortes e conseguimos, se não ganhar, pelo menos resistir! Eis 
porque o «contrato político» que permitiu a unificação da Udenamo, Unamu 
e Mani e a fundação da Frelimo tem um grande valor pragmático-político, 
mas sobretudo moral.
É necessário que as diferentes forças políticas e sociais do país sejam os 
principais interlocutores uns dos outros, que tenham o sentido da significação 
profunda da «palavra» em termos de escuta, diálogo, espaço de reconcilia-
ção. Mas como família moçambicana, que tenhamos o sentido do segredo 
39Pensamento engajado
(prudência, cautela) familiar, isto é, do que não pode a nenhum preço ser 
dito aos estrangeiros, seja eles quem forem. Isso permitiria evitar a ingerên-
cia dos que se sentem autorizados a meter o nariz nas nossas coisas privadas 
(ministérios) com a pretensão de querer resolver problemas em nosso lugar.
Por conseguinte, os partidos políticos devem considerar-se adversários 
e não inimigos. Devem rivalizar uns com os outros não a partir de pertenças 
étnicas ou regionais, de amizades e apoios internacionais, mas de progra-
mas políticos com vista a incrementar as liberdades nacionais, os espaços 
democráticos, a participação das culturas no debate civil, do nível de vida 
moçambicano, etc. É indispensável criar um espaço público e uma espécie 
de contratualismo moçambicano. Para isso, deve-se concretizar um múnus 
de princípios, um contrato político que os governantes, independentemente 
da família política a que pertençam, deverão imperativamente respeitar e 
defender a todo o custo, um número de valores mesmo materiais, que não 
podem ser alienados sem o consentimento explícito dos moçambicanos, 
através de um referendo, por exemplo.
As forças políticas e sociais moçambicanas devem ser os principais 
interlocutores umas das outras na vida política moçambicana. As forças 
políticas moçambicanas deveriam fazer um deal sobre o essencial, o indiscu-
tível, deveriam fazer com os povos de Moçambique uma espécie de contrato 
social sobre a essência mesma da liberdade moçambicana, sobre o que não 
é negociável, o que deveria constituir o fundamento normativo do Estado. 
A nível de bens económicos que constituem o património nacional (portos, 
caminhos de ferro, minas, a terra, etc.), de jurisdição política, espaços estri-
tamente nacionais que não são acessíveis a estrangeiros (ministérios, lugares 
de defesa, de segurança, de planificação, etc.), prerrogativas ciumentamente 
nacionais não cedíveis a ONG, cooperações, doadores, etc.
41
Embora o partido libertador e maioritário no Parlamento moçambicano 
hoje, a Frelimo, defenda, recorrendo ao que chama de verdade histórica de 
que ele é o autor da constituição de 1990, o primeiro texto mãe a consagrar 
liberdades democráticas individuais aos moçambicanos, e a Renamo argu-
mente, em contrapartida, que se não fosse a pressão que veio das matas não 
teríamos Democracia, na verdade, a «paternidade» do espírito da Democracia 
que se fez verter naquele pertence à história comum, e não de partes, dos 
moçambicanos.
Pretendemos, neste artigo, conceptualizar e defender este espírito à luz 
dos processos sistémicos, metodológicos e ético-morais do Moçambique 
de hoje. Faremos isto tornando frutíferas as evidências explícitas e implíci-
tas deste espírito centrando-nos no texto constitucional, sem, no entanto, 
limitarmo-nos a ele.
Uma cultura política baseada num culto ao conflito, ao contraditório, 
pode penumbrar o espírito da Democracia, espírito este que está profun-
damente impregnado na história comum dos moçambicanos. E dizer ou 
colocar as coisas desta forma não significa (e nem pode significar) esquecer as 
atrocidades cometidas durante a chamada guerra dos 16 anos, em que mor-
reram mais de um milhão de concidadãos. Bem pelo contrário. «Aquilo» não 
deve voltar a acontecer neste solo pátrio. Colocar a história de Moçambique 
do lado do espírito comum dos moçambicanos é deixar-nos conduzir pelo 
espírito da Democracia; ou seja, significa reconhecer o simples facto de que, 
se todos reclamam a paternidade da Democracia (e nenhum pai reclama a 
paternidade de um filho que não quer) é porque o espírito da Democracia 
O «ESPÍRITO» DA DEMOCRACIA
Severino Elias Ngoenha 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano42
(melhor: o espírito democrático) está impregnado no fundo, bem no fundo 
destas almas. E este espírito basea-se num acordo básico que temos como 
moçambicanos: de que precisamos de uma Constituição democrática para 
vivermos conjuntamente.
O texto constitucional aprovado pelo Parlamento moçambicano a 16 de 
Novembro de 2004, hoje em vigor, proíbe que se toque, de ânimo leve, no 
espírito democrático nele plasmado. De facto, no seu artigo 292º (Limites 
Materiais), no capítulo Revisão da Constituição, reza, na sua alínea b), que 
qualquer revisão deve respeitar a forma republicana de Governo, e, através 
da alínea l) que também as normas que regem a nacionalidade não podem ser 
alteradas para restringir ou retirar os direitos de cidadania. Qualquer grupo 
que quiser alterar estes e outros aspectos constantes nos limites materiais6 
devem estar sujeito a um referendo. O resto, podemos alterar.
Entretanto, qualquer asserção sobre o espírito da Democracia deveria 
começar como uma pergunta: Porquê precisamos de uma Constituição? 
A Constituição, esta lei-mãe, é como um espelho. Vamos ao espelho todos 
os dias, não somente por motivos estéticos, mas por motivos profundamente 
humanos, de rever-nos a nós mesmos, de nos reconhecermos a nós mesmos. 
Se não formos ao espelho por longo tempo, não nos reconheceríamos a nós 
mesmos. Há, no entanto, uma diferença entre o espelho e a Constituição: 
ao espelho vamos todos os dias, mas à Constituição somente e sobretudo, 
quando se sente que uma parte do corpo (Moçambique) está sendo violada 
ou há dificuldades de a manter sã e próspera. Assim, a primeira resposta bá-
sica à pergunta porquê precisamos de uma Constituição? A resposta é: para 
que todos nós nos possamos reconhecer neste texto-base, principalmente 
quando os nossos direitos que lá inscrevemos, como cidadãos e como grupos, 
estiverem a ser violados.
Porém, embora a resposta seja plausível, ela não é suficiente. É apenas o 
começo. Precisamos de discernir mais elementos constituintes da nossa De-
mocracia que, sem ferir, confiram a substância necessária que corporize um 
Estado e uma forma de convivência democrática. Quais são estes elementos 
complementares mas ao mesmo tempo fundamentais à constituição para 
que, no seu conjunto, o espírito da Democracia se reconheça no dia-a-dia 
dos moçambicanos? Quais são as várias e outras formas de materializar o 
43Pensamento engajado
espírito democrático que, de vez em quando, impregna nos reclamantes da 
sua paternidade, i.e. de todos moçambicanos? 
A intenção deste artigo é a de procurar resposta a uma questão que 
consideramos importante: Como corporizar o espírito da Democracia em 
Moçambique para além do texto-mãe constitucional? Partimos do pressu-
posto que as constituições garantem uma Democracia enquanto sistema; 
contudo, para além da garantia do funcionamento do sistema democrático 
há elementos, há dimensões da Democracia que não se encontram explícitas 
no texto-mãe, embora implícitas. Essas dimensões são o método de trabalho 
democrático e, ainda mais importante, os valores democráticos. Partimos do 
pressuposto que o espírito pleno de uma Democrcia terá que tomar em conta 
estas três dimensões: sistema, método e valores.
Democracia como Sistema
O espírito do sistema democrático, como bem fundamentaram os cássi-
cos da filosofia política (Locke, Rousseau, Hobbes), reside na chamada divisão 
de competências entre as instituições e os titulares dos poderes legislativo, 
executivo e judiciário e na garantia da participação dos cidadãos, individual 
e colectivamente, na gestão da coisa pública.De facto, os clássicos sublinharam a necessidade de separar entre quem 
formula leis, daquele que julga e, outrossim, daquele que tem por missão 
vigiar o seu cumprimento; deve perceber-se que este princípio de divisão de 
poderes visava, na óptica dos clássicos, combater as monarquias absolutistas 
(portanto combater a possibilidade institucional do abuso do poder) que 
imperavam na Europa e defender o direito do cidadão como portador da 
liberdade de emitir juízos sem o perigo de ser perseguido por isso. Pois, a 
invenção da cidadania implica isto mesmo: a possibilidade de cada indivíduo 
usar o espaço público para fazer o uso público e livre da sua razão, como 
diria Imanuel Kant no seu texto Was ist Iluminismus?
Este espírito, nomeadamente o da divisão de poderes e o da defesa do 
indivíduo perante a possibilidade do uso arbitrário do poder pelos titulares 
dos órgãos do Estado, está praticamente vertido em quase todos os textos 
constitucionais dos regimes democráticos africanos, salvo algumas excep-
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano44
ções. Em Moçambique, a julgar por este espírito, temos uma Constituição 
moderna e democrática.
Que ainda exista a grande preocupação de como assegurar a plena 
separação de poderes, no sentido de garantir que o poder executivo dos 
governantes do dia não intervenha nos processos judiciários, esta preocupa-
ção foi constatada e discutida num dos textos desta colectânea. Em Por um 
Pensamento Engajado, o texto referido, abordam-se dois conflitos que não 
são somente inerentes à nossa Democracia moçambicana: primeiro, o conflito 
entre o poder executivo e o poder legislativo que se manifesta a partir do 
próprio texto constitucional dando, num e noutro caso, importância diferente 
a cada um deles; por outro lado, é identificado o conflito potencial entre o 
executivo e o judiciário dado que os titulares e agentes deste são nomeados 
pelos titulares do executivo. Na prática e por causa desses conflitos, torna-se 
impossível garantir a máxima «ninguém está acima da lei».
Existem, no entanto, outros conflitos que ferem o espírito da democracia 
como sistema e que merecem ser analizados com mais cuidado. O primeiro 
desses aspectos refere-se à ideia de que uma Constituição deve ser um recurso 
último para gerir politicamente a diversidade cultural devido, como se argu-
menta, ao facto de Moçambique ser um mosaico de culturas; usa-se, neste 
argumento, o termo cultura numa perspectiva principalmente antropológica. 
O segundo aspecto a aprofundar é o caracter da ligação entre o liberalismo 
político (consagrado no texto constitucional) e o liberalismo económico 
(também indirectamente consagrado no mesmo texto): é uma ligação ne-
cessária ou contingente? Um terceiro aspecto de não menos importância do 
nosso sistema democrático diz respeito ao tratamento das minorias políticas 
(oposição) pelas maiorias que chegam ao poder democraticamente (por via 
das eleições). São estes os problemas do sistema democrático moçambicano 
mas que são extensíveis aos outros países africanos. Respostas não claras a 
estas questões têm levado a muitos problemas que concorrem para penum-
brar o espírito da Democracia dos sistemas de governo no contexto africano.
Comecemos pela questão da diversidade. Nos debates sobre a possi-
bilidade do contratualismo político insiste-se muito no tipo de contrato de 
natureza política que viabilize a convivência entre as diferentes culturas em 
Moçambique. Para tal constatação, tem sido tomado como pressuposto o 
45Pensamento engajado
chamado «mosaico de culturas». Argumenta-se, com razão, que a diversidade 
de línguas, de hábitos e costumes, de crenças colectivas, de práticas religiosas, 
etc., não deve ser fonte de desunião, senão exactamente o contrário: deve 
ser vista como uma riqueza. O discurso sobre as premissas principais para a 
formação de uma nação unida, portanto, para além de se basear na perten-
ça a um território e a uma história comuns de sofrimento, descriminação e 
luta, tem sido também argumentado com base no princípio da «unidade na 
diversidade». Enquanto a dimensão «unidade» é vista sob o ponto de vista 
político (como uma nação), a dimensão «diversidade» neste argumento, é 
tomada, geralmente, na sua acepção antropológico-cultural. Pensa-se que as 
culturas – enetendidas na sua dimensão antropológica – são a fonte primária 
das identidades diversas que deverão concorrer para a formação de uma 
identidade nacional7 .
Nesta argumentação – referimo-nos àquela que considera as culturas 
como a base e fonte primária das identidades que iriam confluir numa uni-
dade nacional – assenta-se sobre uma problemática sobreposição entre a 
concepção cívica e a concepção étnica do processo da formação das nações 
em África8 . Na primeira estamos a tratar de cidadãos, portanto como matéria 
constitucional da democracia; na segunda estamos a tratar de comunidades, 
ou seja, de grupos com um outro tipo de ligações (língua, costumes, religião, 
crenças, etc.) que primeiramente não operam numa esfera política, mas 
atingem-na como consequência. 
No caso de Moçambique, as comunidades étnicas não tiveram a ocasião 
de se desenvolverem e se tornarem formas de articulação política e econó-
mica. Este processo de amadurecimento, como sabemos, foi interrompido 
pela colonização. 
7 Veja-se, por exemplo, o Manifesto Eleitoral da Frelimo onde a justificação apresentada a mobilização 
do respeito pela «Unidade Nacional» são a «origem étnica, rácica, religiosa, de região» e também 
«línguas». (Frelimo, Manifesto Eleitoral. Maputo, Outubro 2004, p.16).
8 Aqui fazemos referência à diferenciação adiantada por Ferdinand Tönnies entre as noções Gesells-
chaft (sociedade) e Gemeinschaft (comunidade). Os laços entre os cidadãos numa sociedade são 
burocráticos (a Constituição é o último garante) e entre os membros das comunidades são sanguíneos. 
Os termos «concepção cívica» e «concepção étnica» foram emprestados de Habermas do artigo 
Porquê necessita a Europa de uma Constituição? In: ROCHA, A.S.E., «Europa, Cidadania e Mul-
ticulturalismo». Universidade do Minho/Centro de Estudos Humanísticos, Minho, 2004, pp. 21-40.
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Daí, seria ingénuo pensar que essas comunidades linguísticas e cultu-
rais poderiam formar hoje base de uma articulação política no contexto da 
formação da nação moçambicana. Não existe, neste momento, nenhuma 
esfera pública nem na economia, na arte, na cultura, nas diferentes regiões 
ou províncias, etc. onde a articulação dos diferentes actores tem como 
base a língua ou a cultura. Mesmo os diferentes agrupamentos em forma 
«Associações de Amigos de …» não se mostraram viáveis; o seu fracasso na 
articulação dos interesses dos pretensos membros e a sua incapacidade para 
evoluir para além dos seus membros fundadores é uma prova da inviabilidade 
de qualquer projecto político que tenha como base tais afinidades baseadas 
em «culturas» na esfera pública. Por fim, também não podemos considerar 
as províncias como culturalmente (no sentido antropológico) homogéneas 
para serem a unidade cultural que seria a base para a unificação política dos 
moçambicanos.
Não se pretende defender aqui que as permissas étnico-culturais não 
façam algum sentido para a articulação de iniciativas de políticas no contexto 
democrático. A política linguística é um bom exemplo de espaço de articu-
lação e comunicação, mesmo e sobretudo ao nível do Parlamento. O que se 
pretende dizer é que a viabilidade dessas comunidades, no sentido de Tönnies, 
veicularem interesses políticos com base nas afinidades étnico-linguísticas é 
extemporânea; a época histórica em que seria possível a essas comunidades 
culturo-linguísticas evoluírem para formarem sociedades políticas ficou his-
tóricamente, graças ao colonialismo, ultrapassada. As culturas não são um 
espaço de reivindicação de afinidades políticas de qualquer ordem.
Trata-se, pois, de fundamentar a unidade política e a política da unidade 
nacional de Moçambiquea partir de um outro ângulo, dum discurso de natu-
reza política e não cultural. O ponto de partida para esta nova argumentação 
da unidade nacional pode ser tomado da própria evolução constitucional em 
Moçambique. Somos do ponto de vista que, a começar pela Constituição 
47Pensamento engajado
de 19759 , passando pela de 199010 , até ao texto constitucional aprovado 
pela Assembleia da República em 200411 , emergiu uma nova forma de so-
lidariedade no seio dos moçambicanos: baseada no Direito e, na verdade, 
no direito fundamental de sermos e articularmo-nos como moçambicanos. 
Ser moçambicano passou a ser um valor. Aqueles textos constitucionais 
inauguraram e consagraram uma única cidadania, a moçambicana; neles, 
tomam-se as culturas diferentes como elementos que fundamentam o que 
chamamos por «concepção cívica» para a nação moçambicana. A procla-
mação da Independência Nacional foi, sem dúvida, o acto criador, o acto 
fundador, acto este necessário para qualquer processo identitário. Esta nova 
forma de integração social (cívica), que vai para além das relações pessoais, 
familiares, étnico-linguísticas, desenvolveu-se como possibilidade graças ao 
novo estatuto de cidadão moçambicano fixado pela Constituição de 1975. 
Extrapolando para os outros países africanos, podemos defender que as Inde-
pendências inauguram o espaço histórico, a primeira possibilidade empírica, 
para a formação e o desenvolvimento de sociedades civis nos diversos países 
africanos. Este espaço criado como resultado de uma luta armada é o que 
permite, mais tarde, a que todos os moçambicanos tivessem a oportunidade 
e o direito de reivindicarem uma cidadania mais activa, ou seja, a luta ou 
as lutas pela ampliação dessas liberdades. Esta cidadania activa tinha sido 
negada pelo colonialismo. Infelizmente, algumas dessas lutas posteriores de 
reivindicação e para a ampliação dos espaços de exercício da cidadania, pela 
ampliação do espírito da democracia, foram ou tiveram que ser violentas.
Hoje, porém, a fundamentação da unidade nacional deve acentar sob 
outros alicerces, precisamente porque se configuram novos espaços e, res-
pectivamente, outros substratos por debaixo das solidariedades.
9 Sobre esta Constituição lê-se, no preâmbulo do texto de 2004: com a Independência Nacional 
«devolveram-se ao Povo moçambicano os direitos e as liberdades fundamentais».
10 No mesmo texto lê-se: «A Constituição de 1990 introduziu o Estado de direito democrático […] 
para a instauração de um clima democrático que levou o país à realização das primeiras eleições 
multipartidárias».
11 Sobre a Constituição aprovada em 2004 diz-se que « desenvolve e aprofunda os princípios funda-
mentais do Estado moçambicano» (carácter soberano do Estado, baseado liberdade de expressão, 
organização partidária e garantia de direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos).
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano48
Em primeiro lugar, como resultado da nova aliança capitalista no con-
texto da globalização, formaram-se e articulam-se novas solidariedades entre 
os que estão do lado perdedor. De facto, há uma aliança sem precedentes 
entre os capitais manufactureiro (em países desenvolvidos poderíamos chamar 
por industrial), comercial e bancário-financeiro, com os bancos comerciais 
a ocupar o lugar central na aliança. Esta aliança dos sectores mais fortes da 
economia é feita à custa da democratização económica, em que o operário 
explorado é o mesmo: homens e mulheres da periferia. 
É neste contexto que o economista africano Ayittey, no seu livro Africa 
Unscheined, fala da nova cheetah generation: trata-se de uma nova geração 
que se despediu de duas heranças ideológicas, nommeadamente da ideologia 
do Estado-pai que exagerava pela sua pan-presença (Ngoenha) e das ideo-
logias baseadas no suposto conluio sistémico dos extrangeiros contra nós.
Relativamente à despedida da ideologia da paternidade (exagerada) do 
Estado: esta geração não acorda de manhã e espera que seja afectada num 
dos sectores considerados como prioritários para o nosso país. Os cheetah 
procuram o seu emprego percorrendo todos os dias as ruas das cidades 
capitais e distritais, procurando vender tudo o que lhes vem à mão; são já 
pais que reclamaram contra o facto de a polícia ter ensaiado o encerramento 
das fabriquetas de CDs fraudulentamente copiados dizendo que com este 
gesto ficariam sem poder levar o pão à casa, sem pagar as propinas da escola 
dos seus filhos (entrevista na TVM); são mães-jovens que desde manhã até 
à noite se sentam à porta dos prédios e lojas para venderem e revenderem 
produtos agrícolas, refrescos, doces, rebuçados e outros para poderem 
justificar o seu rendimento diário que, muitas vezes, acaba a caminho para 
casa; são os mesmos e as mesmas que, ao princípio da noite, empurram-se 
na azáfama das filas para matricular-se nas escolas técnico-profissionais ou 
faculdades universitárias, frequentam aulas de inglês e informática ou ain-
da secretariado. Não esperam pelo Estado para lhes indicar que decisões 
tomar: «viram-se» por eles mesmos, é uma «geração da viragem»! Tentam 
tudo para viver e sobreviver. Na verdade, como diz Ayittey, nasceram numa 
nova selva: a cidade onde cada um deve virar-se. Com uma diferença: são 
técnicos formados, são profissionais temporários, leêm jornais, participam 
em ralis políticos, informam-se sobre os processos que lhes são vitais (sobre 
49Pensamento engajado
a taxa de câmbio do dia, por exemplo) e, de forma semi-estruturada, sabem 
como exercer pressão a partir da rua e do «chapa 100». De facto, não são 
uma geração; o termo correcto para classificá-los é «classe», nomeadamente 
a classe dos perdedores da globalização, a classe dos afectados pelos riscos 
globais, como diz Ulrich Beck em Risikogesellschaft (Sociedade de Riscos)12 .
O que Ayittey considera cheetah generetion nós chamaremos por classe 
dos afectados pelos riscos globais. Eles vivem as consequências nefastas dos 
riscos e neles se baseiam as novas solidariedades. A propósito da mudança 
de uma sociadade classista capitalista para uma sociedade classista de riscos 
Beck escreve: 
A força motriz da sociedade de classes (capitalista) deixa-se resumir pela fra-
se: Tenho fome! O princípio que vai por a Sociedade de Risco em movimento 
será, pelo contrário, baseado na expressão: Tenho medo! No lugar da soli-
dariedade devido à miséria enfrenta-se a solidariedade baseada no medo.13 
É o medo cotidiano pelas consequências da pobreza, e não o medo da 
condição de pobreza em sí, que constitui a nova força motriz da solidarie-
dade desta nova classe; e é por isso que o seu engajamento político não é, à 
primeira vista, em torno de quaisquer valores patrióticos, sociais ou morais. 
É em volta da sobrevivência, é em volta do medo. Da mesma forma que esta 
solidariedade em volta do medo de sobrevivência atravessa todos os estra-
tos sociais, desde os mais desfavorecidos aos mais favorecidos, atingindos 
e ainda-não-atingidos, atravessa também todas as culturas no seu sentido 
antropológico (etnias, religiões, hábitos, costumes, etc.). Em todas as culturas 
encontramos os atingidos e os ainda-não-atingidos. (pensemos no risco de 
ser atingido pelo SIDA, no risco de respirar o ar poluído com tudo aquilo 
que a MOZAL representa no imaginário ambiental, no risco do aumento dos 
preços, no risco provocado pelas crises financeiras, etc.). É por isso, também, 
que as acções políticas da classe de atingidos parecem, aos olhos dos poderes, 
baseadas no irracionalismo, fanatismo, extremismo políticos, diz-nos Beck.
12 Cfr. BECK, U., Risikogesellschaft. Auf dem Weg in eine andere Moderne. Suhrkamp, Frankfurt 
am Main, 1986. Neste livro Beck divide a «Sociedade de Riscos» em duas classes: os «afectados» e 
os «ainda-não-afectados» pelos riscos, mas nenhuma delas pode evitar os seus efeitos.
13 Cfr. BECK, 1986,p.66.
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano50
Assim, também as justificações comuns («são as políticas do Banco 
Mundial que nos obrigam...»;«são consequências da globalização capitalis-
ta»; «os países ocidentais não gostam da nossa independência»; «comércio 
internacinal injusto para nós»; enfim, justificações baseadas numa teoria de 
conluio ao nosso desenvolvimento) sobre as causas do estado precário da 
sua situação social já não são plausíveis aos seus olhos. Da mesma forma que 
veêm como muita relutância os argumentos históricos, segundo os quais, 
vivemos ainda as consequências de uma longa noite colonial.
Um outro tipo de medo é característico na classe dos ainda-não-atingidos 
(as elites): o medo da invasão pela classe dos atingidos aos empregos, às man-
sões, aos carros (o «movimento de 5 de Fevereiro» em Maputo (2008) come-
çou por atingir o mais evidente símbolo de luxo na rua: o automóvel). Daí se 
perceber as alianças (ou solidariedades) entre as elites políticas, económicas e 
intelectuais. Estas também atravessam as frágeis fronteiras linguísticas, étnicas, 
regionais, costumeira de Moçambique. No entanto, porque os lugares ao sol 
são poucos, no seio desta classe surgem os que pretendem falar em nome das 
culturas, arvorando-se seus representantes. Assim se percebe a politização 
das etnias: fala-se em nome de uma comunidade (política) imaginada a partir 
das afinidades culturais e étnicas para se reivindicar ou assegurar espaços de 
articulação política, económica, social e académica.
Voltando ao nosso ponto central: o discurso sobre a unidade nacional - 
tanto por parte de quem a defende, como por parte dos que querem montar 
cancelas no rio Save para dividir Moçambique - torna-se obsoleto se continuar 
a ter como pressuposto o velho paradigma de «matar a tribo para erguer a 
nação». O que está errado nele é a sua base: a existência da possibilidade 
de articulação política de comunidades etno-linguísticas num contexto de 
sociedades políticas nacionais. Por isso, se há algo que pode marcar a linha 
divisória da diversidade em Moçambique, e que mereça uma atenção no 
sentido de desenvolver o espírito da Democracia como sistema, esta linha é 
marcada pela posição que os grupos sociais e indivíduos ocupam em relação 
aos riscos económicos e sociais e muito pouco em volta das línguas, hábitos 
culturais, crenças religiosas, etc.
A segunda grande questão resulta de uma abordagem bastante difusa, 
no debate político moçambicano, acerca da relação entre os liberalismos 
51Pensamento engajado
político e económico: existe, entre eles, uma relação necessária ou contin-
gente? Perguntando-nos de forma mais simples: Moçambique, ao consagrar 
constitucionalmente o liberalismo político, deve necessariamente adoptar, 
como consequência, uma economia liberal (liberalismo económico)? Ou pode 
ser possível que o regime da democracia liberal (liberalismo político) pode 
coabitar com as formas mais socialistas de estruturar e organizar a economia? 
O adeus ao regime político marxista (Estado-providente) em Moçambique 
deveria necessariamente significar também um adeus à orientação socialista 
da economia, enterrando o socialismo como um faraó, ou seja, levando con-
sigo ao fundo da terra toda a sua riqueza de medidas e solidariedade social 
instalando-se um Estado minimalista liberal?
De facto, nem teoricamente e nem na prática, existe uma ligação neces-
sária entre o liberalismo económico e político. Sob o ponto de vista teórico, 
é uma relativa distorção na interpretação teórica da tese de Marx - mais 
especificamente o princípio de que a infraestrutura económica explica, em 
última instância, a superestrutura político-ideológica - que levou a uma fa-
lácia de haver uma ligação necessária entre os dois processos, quanto a nós, 
independentes. Esta ligação falaciosa levou os actores políticos a tomarem 
opções de políticas económicas de certa forma anti-populares, em nome do 
liberalismo, porque os mesmos actores se teriam «esquecido» do termo «em 
última instância», preferindo fazer uma ligação directa.
Sob o ponto de vista prático, os sistemas económicos (socialistas) adop-
tados pelos países nórdigos como a Holanda, Noruega, Dinamarca, etc., são 
exemplos empíricos de regimes de liberalismo político, mas que descansam 
sobre uma economia baseada na solidariedade social para com os mais des-
favorecidos e no princípio de subsidariedade para derimir as disparidades 
de carácter regional.
O adeus ao marxismo não poderia ter significado também a morte de 
um Estado orientado pelos valores de solidariedade e justiça sociais na sua 
política económica e a consequente instalação de uma economia capitalista 
«selvagem» na qual cada um está por si só. O argumento político que se 
adianta, segundo o qual «não se pode distribuir o que não se produz» não 
pode traduzir-se no seu correlato «vamos esperar sermos ricos para podermos 
redistribuir a riqueza pelos pobres». O resultado desta poluição no debate 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano52
teórico sobre ou «liberalismo político ou socialismo» é um desvio do espírito 
da democracia, na sua vertente económica. Podemos ir mais longe afirmando 
que, nos países africanos de hoje, a maior ameaça à estabilidades dos regimes 
políticos democráticos (baseados na democracia liberal), é a falta de uma 
democracia económica e não da existência de diversidade de culturas.
O que queremos dizer com o termo «democracia económica?
«A democracia económica começa […] pela ética dos resultados. Não nos 
adianta muito saber que [os] dirigentes […] são bem intencionados, que 
contribuem para escolas das regiões pobres, se, no conjunto, o resultado é 
o aprofundamento das desigualdades […]» escreve o economista Douwbor 
no seu livro Democracia Económica14 .»
O que Dowbour propõe é, no fundo, um adeus à ideologia de que o 
mercado regula tudo porque o resultado desta economia capitalista selvagem 
é a pauperização progressiva dos mais pobres: o problema é que os grandes 
vencedores vencem sempre porque têm a capacidade de mudarem as regras. 
E quando o fazem, é sempre em atenção aos seus interesses empresariais 
(veja-se a última conversa chamada «público-privado» entre os ministérios 
económicos do Governo moçambicano e os representantes dos empresários 
[CTA, Conferederação das Associações Económicas]; na sua pauta de debate 
constam assuntos como «a depreciação do metical», «Regulamento da Lei 
Cambial», «revisão das tarifas e taxas dos scanners», «revisão dos preços e 
dos períodos dos pagamentos na contratação com o Estado», «revisão da 
taxa rodoviária para a exportação», «redução da carga fiscal», «eficiência da 
colecta de impostos», etc.). 
O princípio da viragem paradigmática proposto por Dowbour é simples: 
a gradual passagem (que ele chama de «deslocamento sísmico») do paradigma 
económico da competição substituindo-o pelo paradigma da colaboração. 
No paradigma económico da cooperação deve reinar o princípio da «pro-
ductividade sistémica» (ele empresta este termo de Celso Furtado que usa 
«rentabilidade social»). Como o próprio diz: 
14 DOWBOUR, L., Democracia Económica. Um Passeio pelas Teorias. Fortaleza, Banco do Nordeste 
do Brasil, 2007,p.171.
53Pensamento engajado
«A lógica básica é simples: quando um grande produtor de soja expulsa 
agricultores para as periferias urbanas de região, podemos eventualmente 
dizer que aumentou a produção de grãos por hectar, a produtividade da em-
presa rural. O empresário dirá que enriqueceu o munincípio. No entanto, se 
calcularmos os custos gerados para a sociedade com as favelas criadas e com 
a poluição das águas, por exemplo, ou o próprio desconforto de famílias ex-
pulsas das suas terras, além do desemprego, a conta é diferente. Ao calcular 
o aumento da produção da soja, mas descontando os custos indirectos gera-
dos para a sociedade, o balanço sistémico será mais completo e tecnicamente 
correcto. Ou seja, temos de evoluir para uma contabilidade que explicite o 
resultado em termos de qualidade de vida, de progresso social real.»15 
Da mesma maneira que, se um banco leva as poupanças dos seus clientes 
e aplica-as em acçõesespeculativas do mercado e, no fim do ano, apresenta 
no seu relatório de contas lucros fabulosos (veja-se os relatórios anuais dos 
bancos) aumenta o PIB, mas, provavelmente, esse «desvio» de aplicação 
(que segundo a ideologia do «mercado livre» não vê nenhum problema) teve 
como «resultado social» a descapitalização de comunidades ou uma redu-
ção do «uso productivo» das poupanças. O lucro, na óptica da democracia 
económica, tem de ser social, e a productividade tem de ser calculada numa 
base sistémica.
Podemos assim concluir que, pelo menos nas nossas circunstâncias, a 
ideologia do liberalismo económico, ou melhor, nas condições de um capi-
talismo selvagem, ou melhor ainda, da dolarcracia, oespírito da democracia 
continua sendo sistematicamente ferido.
Democracia como Método
Não é possível construir uma democracia sem democratas. «Demo-
cratas» são os titulares de órgãos políticos eleitos na base de regras claras e 
pré-estabelecidas. O método, neste contexto, define as vias segundo as quais 
os titulares de cargos políticos chegam ao poder.
15 DOWBOUR, L., Democracia Económica. Um Passeio pelas Teorias. Fortaleza, Banco do Nordeste 
do Brasil, 2007,p.172.
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano54
Uma característica importante de regimes democráticos – senão mesmo 
a condicionante para que qualquer regime seja classificado como «demo-
crático» – para além da divisão de poderes, é a eleição do presidente e dos 
parlamentares através de eleições periódicas e a consequente limitação no 
tempo do exercício do cargo, ou, limitação das vezes que os titulares podem 
candidatar-se ao mesmo. Ou seja, a organização de eleições depois de um 
determinado período (normalmente de 5 anos) é o método na base do qual 
as democracias modernas representativas procuram garantir a reprodução 
dos seus «democratas».
Neste contexto, quase todos os países africanos possuem, no mínimo, 
leis eleitorais que pretendem ser democráticas. Porém, só por sí a existência 
de uma lei eleitoral não garante que os eleitos sejam democratas. Tiranos ou 
populistas também podem deixar-se eleger por métodos democráticos ao 
nível nacional, tendo sido, porém, «eleitos» de forma não democrática para 
se tornarem candidatos ao nível dos seus partidos.
A existência de um sistema de eleições ao nível da nação, só por sí, não 
garante que os melhores filhos desta nação sejam os que são eleitos. Alguns 
dirigentes africanos foram eleitos e depois (ab)usaram dos poderes que tive-
ram para mudarem a Constituição por formas a se «fazerem» eleger de novo. 
Assim também, nem todos os bons e corajosos dirigentes que fizeram os seus 
países desenvolver, foram eleitos em processos democráticos. 
No que concerne aos regimes democráticos, o risco que sempre está a 
espreita de tiranos ou populistas se fazerem eleger, pode ser definido de duas 
formas: atarvés da limitação do período do exercício do poder pelo candidato 
vencedor e através da limitação das vezes que um mesmo candidato se pode 
recandidatar, independentemente de ter mostrado bons serviços. Estas limi-
tações, no mínimo, evitam que o poder seja exercido pelas mesmas pessoas 
durante muito tempo. Qualquer poder, quando exercido durante muito 
tempo, corrompe; ou, no mínimo, levanta a suspeição de se ter corrompido.
No entanto e como vimos, a aplicação do método democrático nas 
eleições ao nível nacional não é uma condição suficiente para garantir que 
tenhamos «democratas» como candidatos a titulares dos cargos mais altos. 
Ou seja, a realização das eleições periódicas não constituem por si uma ga-
rantia do «espírito» democrático. Dois passos em diante devem ser dados: 
55Pensamento engajado
o primeiro que obrigue os partidos políticos a realizarem eleições internas 
democráticas periodicamente e, o segundo, que obrigue os partidos diferen-
tes a entrarem num «pacto de transferência de poderes» no caso de haver 
mudança do partido governamental como resultado das eleições.
Os partidos políticos, junto às organizações da chamada Sociedade Ci-
vil, são a forma moderna de participação política organizada dos cidadãos. 
Nesta conformidade os partidos políticos deveriam ser o viveiro do espírito 
da democracia que depois iria transbordar ao nível nacional através da sua 
participação nas eleições. Assim, entre as obrigações dos partidos políticos 
(expressa em lei) deveria constar a apresentação de evidências de organiza-
rem eleições internas periódicas para o preenchimento de cargos partidários. 
Também, à semelhança do contexto nacional, ao nível partidário deveria 
haver a limitação do período de exercício dos mandatos mais importantes, 
particularmente do seu presidente e das comissões ou comités centrais. Estes 
pode ser considerados o «viveiro» dos futuros presidentes. Esta exigência 
seria duplamente favorável ao desenvolvimento do próprio partido: os seus 
membros haveriam de experimentar e interiorizar internamente o método 
democrático e instalar-se-ia um mecanismo transparente de selecção de líderes 
capazes de concorrerem à escala nacional que iriam aumentar as probabili-
dades de sua vitória. A ideia de base é a seguinte: a consolidação do espírito 
da democracia ao nível nacional passa necessariamente pela construção do 
mesmo espírito ao nível do funcionamento interno dos partidos que actuam 
na arena nacional.
Para garantir este propósito seria necessário condicionar a legalização 
dos partidos políticos ao cumprimento das normas democráticas no seu 
funcionamento interno. Da mesma forma, dever-se-ia instituir um órgão 
apropriado para monitorar e sancionar os partidos políticos que não cum-
pram estas normas. No Brasil, por exemplo, este órgão é o Tribunal Eleitoral. 
Embora sem eliminar totalmente, o estabelecimento de um mecanismo de 
natureza jurídica para sancionar o não cumprimento do método democrá-
tico, à semelhança de um Tribunal Eleitoral, diminuiria a probabilidade de 
candidatos com evidências de métodos tiranos de governar concorrerem para 
as eleições nacionais; isto diminuiria, por sua vez, a probabilidade da nação 
ser governada por um tirano ou por uma oligarquia.
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano56
Uma outra melhoria do sistema democrático diz respeito a prevenirmo-
nos, enquanto nação, para as mudanças de regimes políticos, ou seja, de 
partidos no poder. E aqui o assunto de fundo é a consciência e a regulação 
da separação e ligação entre o Estado e o Governo.
A essência de um Estado reside na organização das relações sociais 
(poder) usando procedimentos institucionais pré-estabelecidos; ou seja, que 
não obedecem às vontades de momento do líder. Em qualquer dos casos, 
estes procedimentos devem prevenir e, se este for o caso, poder neutralizar 
os focos de conflitos entre os membros e grupos sociais. Por isso, basta que 
uma parte da sociedade concorrente ao poder (partido, associação, igreja) 
ou um indivíduo (presidente, rei) se confunda com o Estado, então não 
haverá possibilidade deste Estado derrimir os conflitos que vão aparecendo 
na sociedade.
No entanto, a concorrência política para o exercício da hegemonia (para 
derrimir conflitos) num Estado – dado que nem todos podem estar na po-
sição de fazê-lo – detrminou o surgimento do fenómeno que consideramos 
ser «político». Ou seja, paradoxalmente à natureza contratual do Estado 
para manter a convivência social harmoniosa, esta somente pode ser mantida 
num ambiente social em que se criam espaços abertos a todos os cidadãos 
ou grupos destes para a competição no exercício do poder.
O sistema de representatividade parlamentar (para onde entram grupos 
e indivíduos vencedores das eleições) e a Constituição (documento-mãe que 
se aplica a todos os cidadãos) são duas das maiores conquistas do Estado 
moderno. Os parlamentos profilaram-se como o espaço para debater e apro-
var leis; a Constituição profilou-se como o espaço onde são fixadas as leis 
fundamentais. Nesta ordem de ideias, uma Constituição é um documento 
que fixa os aspectos fundamentais de um Estado.O Governo, por seu lado, pode ser definido como um conjunto de pes-
soas que exercem o poder político numa determinada sociedade e durante 
um determinado período. A responsabilidade dum Governo é, portanto, 
dirigir os destinos de um Estado durante este período. Pela sua precariedade 
temporal, o Governo e os seus titulares podem ser modificados com certa 
facilidade, o que não é o caso das estruturas do Estado.
57Pensamento engajado
Por sua vez, a essência de um partido político é a de ser uma associação 
de cidadãos livres com um fim deliberado de assumirem o poder político. 
Alguns partidos resultam de vínculos pessoais; outros, os de massas, atinjem 
uma complexidade maior que os seus laços só podem ser mantidos de forma 
burocrática e impessoal. Quaisquer que sejam os casos, os partidos políticos 
surgem para «representarem» algumas camadas da sociedade na corrida para 
o poder. A participação política está, portanto, na génese das associações par-
tidárias. É por isso que os partidos políticos surgem somente no contexto da 
institucionalização das democracias representativas no séc. XIX na Europa.
Ora, governos e partidos, pela sua natureza precária em termos de 
existência, tendem a ser temporários, portanto a mudar. Em contrapartida 
o Estado não.
Embora a noção de Estado pareça muito mais abstracta que as noções 
de Governo e de partido político, a ligação entre eles durante o período de 
exercício do poder de um determinado partido e seu respectivo Governo, 
é feita através de pessoas concretas. Assim, é «natural» que alguns partidos 
políticos, uma vez no poder, queiram criar o maior número possível de «car-
gos de confiança», ou seja, aqueles cargos em que as pessoas são nomeadas 
porque se deposita a confiança inteira nos seus titulares. Ora, esta é a forma 
mais comum que os partidos encontram para se manterem no poder: mistu-
rando os cargos políticos «de confiança» com os cargos administrativos do 
Estado. Este (ou seja, a mistura de cargos políticos com os cargos técnicos-
administrativos) é um dos efeitos perversos das democracias modernas que 
os teóricos da separação de poderes não conseguiram superar. Por isso, a 
este nível, se torna necessário introduzir um método para preservar o espírito 
democrático.
Desta forma, é com base na possibilidade de os partidos e os governos 
mudarem-se no exercício do poder e, para manter o espírito da democracia 
no Estado, que a transição de um Governo para outro deve ser acautelada 
por um «pacto de transição». Este pacto visa evitar a prática de the winner 
takes all. Esta prática iria perigar a própria essência do Estado que, como 
dissemos, é de concórdia e não de conflito. Dever-se-á, pois, definir, no 
quadro do pacto de transição, o princípio da separação de cargos políticos 
dos cargos técnico-administrativos. Os cargos políticos podem ser mexidos 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano58
pelo Governo do dia, equanto que os outros não necssariamente. O critério 
para substituir os titulares dos cargos políticos são as eleições, enquanto que 
o critério para a substituição dos cargos técnico-administrativos é a compe-
tência, e não a pertença a qualquer associação política, social, cultural ou de 
natureza religiosa.
A definição exacta dos cargos políticos e dos cargos técnico-administrati-
vos deveria ser matéria constitucional. O Governo e outros titulares nomeados 
pelo presidente vencedor são, por excelência, os cargos considerados como 
de natureza política. O espírito da democracia não pactua com dirigentes 
eternos, por mais bons e carismáticos que sejam.
Democracia como Valores
Valores constituem a base duma democracia vigorosa; manifestam, na 
verdade, o seu verdadeiro espírito da democracia. 
Numa democracia é importante ter informações sobre os processos e 
factos políticos dos partidos, sobre a acção dos Governos e das associações 
da sociedade civil, sobre as oportunidades de negócios, etc. O acesso à in-
formação, como se soi dizer, é fundamental na era moderna e pós-moderna, 
para poder tomar-se decisões políticas acertadas. A informação responde à 
uma questão básica em política, nomeadamente «o que se faz?», «quais são os 
dados à disposição?». Porém, embora sendo importante ter acesso às infor-
mações mais importantes, ela não é suficiente para um sistema democrático 
em desenvolvimento e nem pode alimentar por muito tempo o seu espírito. 
O mesmo tipo de informação que precisamos para poder ganhar eleições, 
pode ser usado também para manipular as mesmas eleições. Neste ultimo 
caso teríamos um vencedor das eleições pelo domínio de informações, mas 
seria um domínio manipulado. Em suma, teríamos uma democracia sem 
democratas.
Um democrata teria que ir mais longe do que obter informações. Ou 
seja, deve também ter conhecimentos consolidados sobre como funcionam 
as instituições e o sistema social. Em outras palavras, deve dominar o nível 
de teorias científico-sociais que respondem à pergunta «como se faz?» ou 
«como se organiza?». Esta questão é fundamentalmente metodológica, como 
59Pensamento engajado
vimos no capítulo anterior quando discutimos a democracia como método. 
O domínio dos métodos é fundamental para se poder participar nos debates 
democráticos de uma forma consciente, porque nos permite um certo prag-
matismo nas nossas propostas para melhorar o próprio sistema democrático. 
Karl Popper diria que nos permite fazer uma certa «engenharia social», ou 
seja, irmos substituindo «os males pelos males menores». A grande inven-
ção da democracia é, nesta ordem de ideias, permitir-nos poder substituir, 
periodicamente e cada vez mais, governos maus por governos menos maus. 
E, para que uma sociedade possa fazer isso, não basta ter informação sobre 
o «que se faz», mas também sobre «como se faz» ou «como se poderia fazer 
melhor» no interior do quadro democrático.
Embora o conhecimento dos métodos democráticos seja muito importan-
te, temos que reconhecer que em sociedades complexas como as modernas, 
seria inapropriado exigir que todos conheccessem com profundidade o mé-
todo de Hondt, por exemplo. O domínio de conhecimentos desta natureza é 
necessariamente elitista, isto é, só pode ser dominado por uma certa classe de 
profissionais ou de pessoas letradas. Em Moçambique somente uma pequena 
parte da população seria capaz de dominar o sistema eleitoral nacional, ou 
o que é usado dentro de um partido ou associação.
Tanto o acesso à informação, como o acesso ao conhecimento são ambos 
limitados a certas pessoas. No pior dos casos, o acesso a ambos pode ser so-
negado de diversas formas e artimanhas às pessoas comuns ou aos adversários 
(como aliás sucede frequentemente na esfera política e económica). Todavia, 
o que não é facilmente manipulável ou sonegável são os valores. Ninguém 
pode reclamar a exclusividade de dispor de valores somente para si mesmo 
porque é impossível imaginar uma vida humana sem valores.
De entre os valores, existem aqueles que podemos chamar por «uni-
versais» ou ainda «bens transculturais» (Acílio Rocha). Ou seja, aqueles 
que encontramos profundamente enraizados no ser humano enquanto vivo. 
Referimo-nos aos valores «liberdade», «tolerância» e «justiça social». Esses 
valores alimentam o espírito democrático e são independentes de quanta 
informação dispomos ou do nível de conhecimento que possuímos.
O valor mais elevado impregnado no espírito da democracia é a liberda-
de. Em «Was ist Iluminismus?» Kant nota que a modernidade caracteriza-se 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano60
pela saída do homem da sua menoridade. E diz que é o próprio homem que é 
o culpado da sua menoridade (selbsverschuldet). Acrescenta ainda que o lema 
do iluminismo é: «tem coragem de fazer uso do teu próprio entendimento». 
Assim, o valor máximo, que é a conquista da modernidade, é a liberdade 
(«para este iluminismo porém nada mais se exige senão Liberdade» – escre-
ve Kant). Este filósofo acrescenta ainda que a liberdade fundamental é a de 
fazer um «uso público» – diferentementedo «uso privado» – da razão em 
todas as questões. 
Em Locke, por exemplo, há valores que são prévios ao próprio contrato 
social entre os cidadãos, sendo a liberdade um deles (ao lado da propriedade 
e da tolerância). Ou seja, só homens livres é que podem entrar em contrato 
social. Por natureza, o soberano ou o tirano tiram partes da liberdade dos 
outros para poderem governar.
Um outro valor muito evocado no contexto do espírito democrático 
moçambicano é a tolerância. Em muitas campanhas para a paz foi frequente 
ouvir apelos para que todos os concorrentes nas lutas políticas permaneçam 
«tolerantes» para com os adversários. Este valor é muito cultivado no seio 
das congregações religiosas, particularmente após a guerra em Moçambi-
que. Curiosamente, porém, quase todos os escritos do iluminismo sobre a 
tolerância eram dirigidos contra a intolerância da religião cristã para com o 
pensar diferente.
O apelo à tolerância tem, em todo caso, a sua funcionalidade no con-
texto das democracias modernas, principalmente das democracias africanas, 
algumas das quais nasceram e triunfaram após lutas armadas. Portanto após 
um ambiente social de intolerância das potências colonizadoras. O que 
pode, porém, incomodar ao espírito da democracia, e a medida que ela se 
desenvolve como sistema e como método, não é o valor tolerância em si, 
mas os seus limites. Muitos adversários políticos no contexto dos debates 
democráticos parlamentares se perguntam frequentemente «até aonde pode 
ir a tolerância?» Ou seja, o paradoxo deste valor é mesmo o apelo de termos 
que ser tolerantes perante intolerantes: estaríamos legitimados a, em nome 
da tolerância, a não tolerar os intolerantes?
Mais uma vez, o problema do exercício prático do valor tolerância 
é teórico: não podemos chegar a uma definição positiva de quando é que 
61Pensamento engajado
estamos a ser tolerantes ou intolerantes perante fenómenos ou factos de 
natureza política. Só podemos discutir os limites da tolerância, ou seja, pela 
sua negativa perguntando-nos «onde termina a tolerância?»
O primeiro limite da tolerância deve ser a violência física. Ou seja, a 
tolerância deveria acabar quando o interlucutor começa a usar a violência 
física para fazer valer os seus interesses ou ideias. Este é um consenso fun-
damental ao qual a sociedade moçambicana teve que chegar, infelizmente 
após uma guerra fracticida. Por este limite (violência física) ser óbvio, não 
nos vamos ocupar mais dele. Há outro limite mais subtil: a injustiça social.
Não será violência quando nas nossas sociedades africanas uma grande 
maioria vive em condições de pobreza? Não é violência negar a uma criança o 
direito ao ensino? Não será violência quando uma parte da sociedade morra 
por falta de assistência médica, enquanto a outra tem todas as possibilidades 
de tratamento nas melhores clínicas? Ou quando negamos a uma parte da 
população o acesso à àgua potável e ao mesmo tempo uma pequena parte 
consome num dia a mesma quantidade que a outra usa numa semana? Esta 
é uma violência subtil.
Portanto, a injustiça social deve ser o segundo limite da tolerância. 
Formulado de forma positiva, diríamos que a justiça é um valor que deve 
complementar a tolerância. A tolerância, como dissemos antes, não é sufi-
ciente para manter a paz e a democracia. 
A justiça social é um dos bens que chamamos por transcultural. O seu 
espírito não depende de culturas e nem de camadas sociais. Sobre este aspecto 
há muita literatura. A mais conhecida é sobre «justiça como equidade» adian-
tada por John Rawls (Uma Teoria da Justiça). Walzer, Taylor, MacIntyre mas 
sobretudo Sandel criticaram, cada um a partir do seu ângulo, esta teoria da 
justiça adiantada por Rawls. Eles criticam sobretudo a ideia de Rawls sobre 
a «posição original»: uns dizendo que o liberalismo de Rawls baseia-se numa 
concepção deficitária de justiça por ser abstracta (Sandel). Ou ainda, como 
o faz MacIntyre, critica-se o facto de Rawls supostamente ter «inventado» 
princípios prévios às várias culturas concretas. MacIntyre defende que «o 
transcultural é abstracto».
A liberdade, a tolerância e a justiça social como valores não consti-
tuem, no entanto, o monopópio apenas da modernidade. Ngoenha tem 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano62
demonstrado, como o paradigma libertário no pensamento africano resulta 
do contacto que a África teve com a modernidade europeia. Os africanos 
entram na modernidade primeiro como escravos, depois como colonizados e 
finalmente como globalizados. No entanto, teríamos que pesquisar se, antes 
da sua entrada na modernidade, indivíduos ou grupos isolados africanos 
não se revoltaram contra os soberanos locais africanos da época. Aí poderí-
amos radicar a origem profunda do valor Liberdade que ainda hoje subsiste 
nos moçambicanos e vai alimentando, em cada fase histórica, o espírito da 
democracia.
O mesmo podemos dizer do valor tolerância. Este radica também na 
alma profunda das populações moçambicanas antes do seu contacto com 
a modernidade europeia. Os povos asiáticos que visitaram as nossas costas 
antes do século XV foram recebidos com tolerância (sem violência). O facto 
de os povos africanos terem abraçado as instituições, as religiões, para além 
dos produtos de troca que os povos asiáticos traziam, atesta a existência, já 
nesta época, do espírito de tolerância e alto sentido de interculturalidade. 
O que porém teria falhado, é o facto de não termos observado os limites da 
tolerância.
Ainda o mesmo podemos concluir sobre o valor justiça social. No caso 
africano, existe uma vasta literatura que aponta a solidariedade como sendo 
um valor tradicional que forma e se consubstancia no mundo da vida comu-
nitária onde existe ajuda mútua. Este espírito de solidariedade adjacente às 
almas africanas constitui a base sobre a qual se pode erguer, num contexto 
moderno e de globalização, o espírito da democracia. Nyerere tentou capatar 
esta solidariedade com o seu projecto social Ujamaa.
A luta de libertação lançou não somente os fundamentos políticos do 
futuro Estado moçambicano, como também e sobretudo, os fundamentos da 
ética política, ética esta centrada, em nossa opinião, no princípio da solida-
riedade. Recordemos o lema da luta armada segundo o qual «os responsáveis 
são primeiros no sacrifício e últmos em benefícios». Resta saber como este 
princípio pode alimentar, no contexto moderno do liberalismo político, o 
espírito da democracia.
63
A centralidade da questão da justiça é hoje sobejamente reconhecida 
pelos diferentes círculos de pensamento, não só filosóficos, mas também 
sociológicos, jurídicos e sobretudo económicos.
Deveria surpreender que o sec. XX com o seu processo colonial, e com 
tudo o que isso significa em termos de descriminação, de violação dos direitos 
mais elementares da pessoa e dos povos, de mortes, não tenha feito da ques-
tão da justiça um dos temas principais do seu debate de ideias. Digo deveria 
porque, na realidade, a identificação dos temas centrais do debate de ideias 
é intrinsecamente ligada à História, e esta é um campo aberto, multiforme e 
destituído de uniformidades. Porém a apreensão conceptual das prioridades 
históricas, no sentido hegeliano, depende de hermeneutas cujas prioridades 
interpretativas não são dissociáveis dos interesses e das relações de poder 
que marcam os seus lugares de observação. É assim que na primeira metade 
do sec. XX o debate de ideias foi dominado pelo estadual-centrismo intra-
europeu e, na segunda metade, pelo conflito ideológico entre os blocos da 
esquerda e da direita.
O fim desta disputa viu a emergência do que Francis Fukuyama, com uma 
falácia hermenêutica da Filosofia da História16 hegeliana chamou O fim da 
história, entendo a emergência de um pensamento único pós-dialéctico, que 
paradoxalmente ganha forma na hodierna meta-narrativa ultra-liberal, com 
os seus corolários da globalização, sob égide de uma economia individualista.
PUBUNTU: NOVO MODELO DE 
JUSTIÇA GLOCAL?
SeverinoElias Ngoenha 
16 NGOENHA, S.E., Duas Interpretações Filosóficas da História do Século XVII, Porto: Ed. Salesianas, 
1992.
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano64
Entre os vários questionamentos filosóficos que o processo da mundia-
lização suscita, ressalta a uniformização axiológica e cultural do mundo; o 
paradoxo ecológico, entre o imperativo de uma solidariedade diacrónica para 
com as gerações futuras e o esquecimento – no sentido heideggeriano – de 
uma solidariedade sincrónica para com os países pobres do planeta. Mas a 
questão crucial é a assimetria sempre maior entre a globalização de riscos e 
a localização de riquezas, o que levanta imediatamente a questão da justiça 
planetária. De facto, para o grande público, a mundialização apresenta-se 
como uma questão de justiça ou injustiça global, configurado simbolicamente 
pelo movimento não global e pelos alter-mundialistas, ou se quisermos, pela 
oposição simbólica entre Davos e Porto Alegre.
No seu início, o movimento de Porto Alegre apresentou-se como anti-
globalização. O facto mesmo que este movimento se tenha metamorfoseado 
e se tenha tornado num movimento por uma outra globalização, mostra 
de um lado, que a hodierna mundialização pode ser compreendida através 
de categorias agostinianas da teologia da história (mundus)17 , na qual a 
humanidade passa gradualmente da cidade terrestre a Civitatis Dei. Mas 
a esta modernidade pró-cristã, se deve acrescentar – o que Agostinho não 
previu – a modernidade pós-cristã, que comportou o gradual esvaziamento 
das categorias da teologia da história e a emergência de uma nova volteriana 
civis terrestre – filosofia da história – baseada sobre uma iura humana con-
tratualista, como ele emerge nos alvores da modernidade com os trabalhos 
de Hobbes, Rousseau, Locke, Monstesquieu.
Mas por outro lado, um dos principais problemas desta nova politeia 
baseada sobre o contracto – quer nas suas vestes liberais, como demonstra 
o surgimento dos socialismos utópicos (Fourier, Jean-Giresse, Robet Ower) 
e depois do marxismo – como nas suas vestes neo-liberais é a justiça: como 
fazer com que o Príncipe (Maquiavel), o Leviathan (Hobbes), ou os detentores 
dos poderes democraticamente instituídos (Rousseau, Locke, Montesquieu) 
sejam o menos injustos possíveis? O pensamento utópico (Gioacchino di 
Fiore, Campanella, Thomas More) que acompanha suspeitosamente toda 
a modernidade, funciona como revelador da discrepância entre os ideais 
17 DUMOUCHEL, P., Mondialisation et Philosophie de l’Histoire. In: BONIN Pierre-Yves (dir.), Mondia-
lisation: perspectives philosophiques, Laval: Les Presses de l’Université, 2001.
65Pensamento engajado
modernos e a sua efectiva realização. Aliás, este é o sentido da crítica pós-
moderna (Lyotard, Vattimo, Derrida e Rorty), na realidade começada pelos 
filósofos da suspeita Nietzsche, Freud e Marx.
A solução liberal-económica parece ser incapaz de dar a eudemonia 
para o maior número preconizada pelo utilitarismo de Bentham e Stuart 
Mill. Se Adam Smith parecia convencido que a solução do problema moral 
não estava no proibicionismo clássico das doutrinas morais, hoje podemos 
constatar que o livre jogo dos interesses egoístas, racionalmente calculados, 
não trouxe a eudemonia para todos que se procurava. Dos dois correctores 
postulados – Providência e Estado – o primeiro foi abandonado e o segun-
do é um artefacto em crise. Alias, a globalização axiológica e de crenças 
levanta(ria) um problema de uma organização mundial do político e do 
económico subordinado a substratos teológicos, num mundo de disparidades 
de panteões, mas também de munus axiológicos não ancorados a nenhum 
credo transcendental.
O Estado, principal regulador das relações sócio-económicas da moder-
nidade, é hoje um artefacto em crise. A sua saída da cena política remete(ria) 
as relações sociais aos simples ditames da razão económica, o que é de natu-
reza a aumentar as discrepâncias sociais e a repropor o postulado hobbesiano 
bellum omnia contra omnes. É sintomático que a chamada «revolução de ‘68» 
tenha sido feita em nome de valores da esquerda, contra um Estado que era 
tido por opressor e fazedor de guerras e que hoje, volvidos cinquenta anos, 
a esquerda anti-estadual de ontem, se tenha transformado no maior defensor 
do Estado, contra o privadicionismo do liberalismo global. Para os herdeiros 
da esquerda hegeliana, o Estado já não funciona como lugar da realização da 
liberdade, mas como último baluarte de uma justiça social em perigo.
De facto, não se vislumbram no horizonte instituições susceptíveis de 
substituir o Estado na sua função de regulação e de equilíbrio social, o que 
Rousseau considerava a correcção do estado da natureza. Apesar do sec. XX 
ter visto a emergência de instituições globais, elas não parecem estar à altura 
de se substituírem ao Estado na regulação do social. A ONU, instituição 
não democrática e sem nenhum poder de coerção sobre os seus membros, 
serve de caução às relações assimétricas entre países no nome do Direito 
Internacional, como alias já fizera a Ius Inventionis de Cristóvão Colombo 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano66
que serve de substrato do direito internacional moderno desde a escola de 
Salamanca até Kelsen.
As outras instituições globais importantes FMI, BM, OMC inscrevem 
as suas acções no interior de um paradigma económico-centrista que levam 
a extremos problemáticos as desigualdades e injustiças entre países.
Mas de uma maneira mais preocupante, assiste-se a emergência de máfias 
globais, empresas de drogas; mais paradoxalmente e na esteira do Estado 
moderno, trata-se de organizações com duas caras, pretensão de ser politica-
mente correctas no Ocidente, mas com atitudes e funcionamentos selvagens 
no terceiro mundo. Ainda mais paradoxal, é o facto destas organizações 
funcionarem com o assentimento implícito ou mesmo com a conivência e 
cumplicidade de Estados democráticos.
Em definitiva, os alter-mundialistas levantam a questão da justiça no 
mundo global. Se a globalização não parece uma questão discutível, o que 
põe problema é saber se esta globalização pilotada por grandes grupos eco-
nómicos, por doutrinas neo-liberais, de Davos, do FMI, BM, das bolsas de 
valores, não é um mecanismo orientado a exacerbar ulteriormente a fractura 
entre ricos e pobres. Isto evidencia todo o mecanismo de violência que acom-
panha a questão da globalização económica. Mas esta questão, justamente 
por causa da sua dimensão global, ultrapassa as fronteiras regionais, apesar 
de algumas tentativas de filósofos pós-modernos em teorizarem o fim de um 
discurso meta-narrativo a favor de uma espécie de tribalização epistemológica.
Dois argumentos podem demonstrar a fragilidade deste discurso, pri-
meiro, a dimensão meta-narrativa do discurso neo-liberal e da globalização, 
com os seus assertores teóricos que são o G8, Davos, BM, FMI, OMC etc. 
Segundo, a existência de um enunciador epistémico comum transversal a to-
das as sociedades, isto é, a questão da justiça. São prova disso, o ressurgimento 
da filosofia política nos EUA envolta dos trabalhos de Rawls, a teologia da 
libertação latino-americana ou ainda as teorias pós-coloniais; todos centrados 
sobre a questão da justiça.
Com efeito, o ultra-liberalismo e a globalização, como discurso único 
e como novo discurso meta-narrativo, tem mobilizado um número sempre 
crescente de intelectuais e pensadores, pela aversão filosófica de uma sote-
reologia imanente que o liberalismo é suposto representar na teologia da 
67Pensamento engajado
história fukuyamana; pelos limites objectivos de um sistema antropocêntrico 
e de depredação da natureza; pela insustentabilidade antropológica e social 
da uniformização axiológica do mundo e das culturas; mas sobretudo pela 
injustiça planetária que ela provoca, globalizando os riscos humanos e sociais 
dos seus empreendimentos mas privatizando as suas benesses.
Se o grande problema da filosofia desde Karl Marx, consiste em não 
contentar-seem interpretar o mundo mas em militar para a sua transforma-
ção, então a questão é saber se o liberalismo pode incorporar preocupações 
fundamentais de justiça social e planetária, e se não, questionar-se quanto a 
possibilidade de pensar a um modelo alternativo.
Se a correlação ontológica necessária entre as categorias heideggerianas 
de Sein e mit-Sein não surtiram efeitos nas doutrinas morais e políticas da 
segunda metade do sec. XX, podia se ter esperado que a categoria existencial 
do Sein-In-der-Welt, levasse através do reconhecimento dos limites ontoló-
gicos intrínsecos ao homem, a reconhecer através de uma ecologia primeiro 
filosófica e depois política, a necessidade de repensar os modelos políticos, de 
desenvolvimento – a famosa questão de decrescimento económico avançado 
por Serge Latouche18 – o relacionamento com a natureza – os contractos 
naturais de Michel Serre e Luc Ferry19 – mas sobretudo a necessidade de 
associar a necessária solidariedade diacrónica com as gerações futuras com a 
solidariedade sincrónica com todos os povos, corrigindo assim a contradição 
histórica de uma modernidade que tornou-se possível graças ao encontro 
com os outros, mas realizou-se contra esses mesmos outros (E. Dussel)20 .
Infelizmente a Real Politik presidida pelo postulado egoísta da não 
negociabilidade do nível de vida dos ricos, matou ao nascer a possibilidade 
de um compromisso histórico global, em favor, uma vez mais, de estratégias 
de dominação.
18 LATOUCHE, S., Décoloniser l’imaginaire: la pensée créative contre l’économie de l’absurde. Paris, 
Parangon, 2003.
19 Cfr. NGOENHA, S.E., O Retorno do Bom Selvagem. Uma perspectiva filosófica-africana do problema 
ecológico, Edições Salesianas, Porto, 1994.
20 DUSSEL, E., L’éthique de la libération. À l’ère de la mondialisation et de l’exclusion, Paris: 
L’Harmattan, 1998.
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano68
A verdadeira questão glocal de hoje – no sentido que interpela as rela-
ções entre grupos no interior de todas as sociedades, mas também a relação 
entre as diferentes partes do mundo – é a justiça. Trata-se então de estender 
a questão posta a África do Sul, pelo graffiti que ornamentava a casa de 
Desmond Tutu na Cidade do Cabo, ao mundo inteiro: How to turn human 
wrongs into human rights?
Esta questão esteve na base do movimento, primeiro, da teologia de 
libertação latino americana - basta consultar os trabalhos de Leonardo 
Boff - depois do movimento de filosofia de libertação – cfr. a centralidade 
da questão da justiça no pensamento de Dussel – e hoje nos trabalhos da 
filosofia de interculturalidade (Raul Bentacourt).
Mas como se sabe, o movimento da teologia de libertação latino-ame-
ricano foi precedido pelo movimento de Black Theologie of Liberation dos 
EUA com os trabalhos de James Cone, que por sua vez depende de todo um 
movimento político-cultural de revindicação de igualdade de direitos, quer 
dizer de justiça, que ganha forma nos EUA já durante o período da escravatura 
e cujo ápice foi atingido em Harlem da Black Rennaisance com os trabalhos 
sócio-filosóficos de Dubois, literários, de Langston Hugues, políticos de 
Marcus Garvey. Todavia, os eventos dos anos sessenta com Martin Luther 
King e Malcom X – definidos por James Cone como partes complementa-
res de um mesmo processo, ou ainda a emergência de movimentos como o 
Black Power, estão a demonstrar que os problemas da justiça não tiveram 
um êxito positivo. 
A filosofia africana, por seu lado, reclamou a justiça, primeiro como 
reconhecimento da dignidade humana dos africanos, depois como direito a 
soberania política. Hoje a questão de fundo é a possibilidade de utilizar os 
recursos africanos para o desenvolvimento do continente, o acesso aos mer-
cados internacionais contra as barreiras proteccionistas dos potentes, uma 
soberania alimentar, direito a não ser sufocado pelo sistema da dívida, etc.
Nos últimos anos o Ocidente aproximou-se das questões dos danados 
da terra. Alter-mundialistas, sociólogos, economistas, filósofos reabilitam a 
filosofia política com a questão da necessidade de um novo contracto social. 
É obvio que não se pode dizer que o terceiro mundo tenha inventado a justiça 
como questão maior da filosofia política. Alias, a justiça está presente sob for-
69Pensamento engajado
ma de Filia em Aristóteles, Eros em Platão, Ágape em Agostinho, distributiva 
em Thomas de Aquino, equidade em Kant, etc. Isso não obstante, a particular 
contribuição sul-africana da justiça através do conceito operatório Ubuntu 
(justiça restaurativa) merece uma menção especial, e isto por duas razões.
Primeiro, a filosofia africana ocupou-se essencialmente de problemas 
particulares do mundo negro: luta contra a escravatura, integração social 
das diásporas, emancipação política, luta contra a pobreza absoluta. Esta 
é a razão pela qual não teve eco fora do mundo negro, e mesmo aqui de 
uma maneira diferenciada. As questões postas pela filosofia africana nunca 
interessaram os asiáticos. A teologia da libertação interessou os latino ameri-
canos, mas muito rapidamente trilharam caminhos diferentes dos nossos. As 
questões da filosofia Bantu, da etnofilosofia, da Negritude, da autenticidade, 
são questões de uma filosofia que corre o risco de ser etnocêntrica, racial ou 
quando muito afrocêntrica. Interessar-se pelas questões da justiça significa 
debruçar-se sobre questões que ultrapassam o âmbito afro-africano, e por 
conseguinte, a qualidade e a pertinência da resposta podem constituir uma 
contribuição africana no âmbito da filosofia em geral, mas também, dada a 
natureza polissémica da justiça, ao direito, a moral e a política.
Neste sentido a RSA com o seu conceito de justiça restaurativa, como 
foi praticada e como pode ser teorizada, pode constituir uma das primeiras 
contribuições importantes do continente africano para um debate de ideias 
que ultrapassa a dimensão africana. Não é por acaso que o processo da 
reconciliação interessou filósofos como J. Derrida, P. Ricoeur entre outros.
A segunda razão tem a ver com a especificidade e a pertinência teórica 
do conceito Ubuntu na reflexão sobre a justiça.
Em relação ao resto do continente negro, a RSA tem a particularidade 
de não ser uma colónia mas uma República independente com um sistema 
político baseado sobre a segregação racial. Por isso, enquanto os nacionalis-
mos que atravessaram o continente, sobretudo na segunda metade do sec. 
XX, eram de natureza emancipadora, o nacionalismo - ou os nacionalismos 
sul-africanos - é, como os movimentos pós-escravatura nos EUA, anti-
segregação. Isto explica aliás, alguns empréstimos teóricos que contribuem 
a dar um respiro histórico amplo a reflexão sul-africana.
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano70
No seu livro auto-biográfico Africa, The Time has Come, Thabo Mbeki21 
mostra-se um fino conhecedor da história dos movimentos panafricanos e 
das filosofias políticas que subentenderam os seus diferentes movimentos. 
Por isso, quando fala de African Rennaisance conecta deliberadamente o 
substrato filosófico-político da nova África do Sul, com o espírito do movi-
mento de Harlem entre os anos ‘20-‘40, que mereceu da parte do filósofo 
afro-americano Alain Locke, o nome de Black Rennaisance.
O pai imputativo do movimento americano, William Dubois, desde os 
seus primeiros trabalhos The Philadelfia Negro, passando pelo Black Folks, 
até às controversas com Booker Washington, tinha claramente demonstrado 
que a questão negra era fundamentalmente política, e era a esse nível que 
tinha que ser resolvida. O objectivo de Dubois era fazer com que os negros 
gozassem, como os outros cidadãos, de todas as prerrogativas previstas pela 
constituição americana. Mas esta passagem tinha que ser acompanhada por 
uma série de medidas de descriminação positiva, susceptíveis de levar os 
então negativamente descriminados a integrar a sociedade global. A posição 
deboista recorda de perto a política pós-apartheid da África do Sul.
Langston Hugues,na tentativa de colmatar o maior deficit histórico-
identitário dos negros nos EUA, como aparece no Black Folks de Dubois22 , 
isto é, a necessidade de uma autónoma definição de si lança-se a procura da 
sua blackness. Porém, nesta sua busca existencial ele descobre a sua twoness. 
A busca de uma autodefinição de si, leva-o a cair na conta que para fazê-lo, 
como os intelectuais do Renascimento Irlandês, tinha necessariamente que 
passar pelo outro, pelas suas categorias linguísticas e culturais. Ele então se 
dá conta que o pluralismo cultural lhe é interior. Ele poderia ter dito como 
Rambow eu sou um outro. Este é o sentido profundo da sua afirmação eu 
também sou a América.
O espírito que atravessa o renascimento afro-americano e o sul-africano, é 
de uma busca identitária que por razões históricas e sociológicas não pode ser 
exclusiva mas inclusiva, não é de separação mas de integração no respeito da 
dignidade e das particularidades de cada pessoa e grupo. Este é o significado 
mais profundo do conceito Ubuntu, cuja expressão iconográfica é Rainbow 
21 Ed. por Thabo MBEKI, 1998.
22 DU BOIS, W. E. B., As Almas da Gente Negra, Lacerda Editores, 1999.
71Pensamento engajado
Nation. Contudo, o espírito de Ubuntu como orientação performativa da RSA 
pós-apartheid encontra-se já no discurso de Albert Luthuli na recepção do 
prémio Nobel para a Paz em 1961: A futura África do Sul será africana, mas 
não será necessariamente negra. Estavam lançadas as bases que se tivessem 
sido cuidadosamente analisadas, poderiam ter orientado diferentemente a 
filosofia africana e sobretudo evitado debates estéreis envolta de questões 
etnofilosóficas, negritude ou ainda de autenticidades.
Mas se o objectivo não era expulsar os estrangeiros ou invasores, porque 
não havia estrangeiros nem invasores; se a luta não era racial mas anti-racial, 
se não se tratava de dividir mas unir, quais eram os apetrechos intelectuais 
capazes de servir de fundamento a uma tal empresa? Em outras palavras, se a 
questão era mudar as relações de poder e de sociedade, qual era a concepção 
operacional da justiça que podia favorecer a emergência de uma vida comum 
entre as diferentes raças – o que supunha provavelmente uma reconciliação 
entre as partes – mas desta feita, no respeito do espírito de igualdade que 
toda e qualquer democracia supõe?
As tradicionais concepções operacionais de justiça eram evidentemente 
inadequadas. Tratava-se de encontrar um conceito operacional de justiça, 
que não se configura como o Maat egípcio ou como a Minerva grega, cujos 
corolários das suas visões do que é justo, acabam quase sempre leviatanamente 
cortando, separando, dividindo; mas quase nunca recriando, recompondo, 
recosendo o tecido social. Paul Ricoeur23 fala da produção da violência pela 
justiça, e considera que o direito penal é um escândalo intelectual, na medida 
em que acrescenta um sofrimento a um sofrimento, o sofrimento da pena ao 
sofrimento do mal feito a uma outra pessoa.
A isto pode se acrescentar a preocupação manifestada por Karl Jaspers24 , 
em resposta aos crimes da segunda guerra mundial, em encontrar uma justiça 
que não de limite a estabelecer os factos, mas que compreenda uma dimensão 
catártica; ou como diz Derrida25 , que liberte o opressor.
23 Avant la justice non violente, la justice violente, In: CASSIN, CAYLA, SALAZAR (dir.), Vérité, 
reconciliation, réparation, Paris: Ed. Seuil, 2004, pp.159-171.
24 Cfr. GARAPON, A., La Justice comme Reconnaissance, In: CASSIN, CAYLA, SALAZAR (dir.), 
Vérité, Reconciliation, Réparation, Paris: Ed. Seuil, 2004, pp.181-203.
25 DERRIDA, J., Versöhnung, Ubuntu, Pardon: quel Genre?, In: CASSIN, CAYLA, SALAZAR 
(dir.), Vérité, Reconciliation, Réparation, Paris: Ed. Seuil, 2004, pp.111-156.
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano72
Onde ir buscar uma justiça que compreenda os imperativos da catarsis 
através do reconhecimento do outro e da reconstrução da relação social? A 
justiça que se procurava, era a justiça de uma costureira que com o trabalho 
tenaz e de muita paciência cose a diferentes partes afim de construir uma 
peça única. Onde ir buscar um tal conceito?
Aqui reside a segunda fonte específica da busca sul-africana: a dimensão 
teológica. A escolha de uma comissão de reconciliação e não a instauração 
de um tribunal especial para punir os crimes contra a humanidade, mostra-
va claramente que o caminho a percorrer para passar do human wrongs ao 
human rights subordinava a tradicional justiça punitiva à reconciliação. Isto 
é, o reconhecimento público do mal cometido, o arrependimento, a vontade 
de reintegrar a comunidade com uma nova atitude relacional (é o que se 
chama Ubuntu). 
Ora Desmond Tutu não foi só o executor material desse processo, mas 
de certa maneira também seu conceptualizador. É na mediação teológica, 
trabalhando de uma maneira particular São Paulo (metanóia) mas também 
a tradição vetero-testamentária do retorno dos malfeitores a justiça e ao bem 
comum, que Tutu construiu durante as suas pregações de combate que ele 
livra ao Apartheid a partir de 1976, o pensamento de reconciliação.
Todavia, Tutu inspirava-se teologicamente na Black Theologie of Libe-
ration dos USA iniciada por personalidades como James Cone. Esta teologia 
com um processo que os pós-modernistas chamariam de dekostrution, chama 
em causa a instância última da garantia moral da sociedade americana, aquele 
Deus bíblico que serve de garante da constituição.
Fazendo uma exegese histórica das manifestações de Deus, os teólogos 
da libertação negra americana evidenciam que o Deus bíblico inscreve a sua 
acção num quadro histórico dominado pela hegeliana contraposição dia-
léctica mestre-escravo. Mas a particularidade do Deus vetero-testamentário 
era estar sempre ao lado dos oprimidos, e os oprimidos nos EUA eram os 
negros, como vão também ser os negros na RSA. Esta conclusão exegética 
vai constituir o leit motiv de toda a teologia negra nos USA, o que aliás vai 
ser retomada primeiro pela teologia de libertação latino americana e depois 
pela sul-africana.
73Pensamento engajado
Todavia, apesar de estar ao lado dos oprimidos, o Deus vetero-testame-
tário não quer a morte dos opressores mas a sua conversão, o que a teologia 
Paulina chama de metanoia. A premissa deste restorative justice encontrar-
se-ia, segundo Gustavo Zagrebelsky26 , na oposição que o direito hebraico 
faz entre nispat e ryb, isto é, entre a justiça concebida como intervenção de 
uma terceira pessoa e a justiça entendida como encontro entre o culpado e a 
vítima cujo objectivo não é a punição do culpado mas a composição da con-
troversa graças ao reconhecimento do mal feito, o perdão e de consequência 
a reconciliação e a paz. A finalidade desta forma de justiça é a inclusão, é 
recozer as relações sociais.
Contudo, mesmo que se reconheça o seu fundamento hebraico, não se 
pode ignorar a novidade sul-africana em ter estendido esta forma de justiça ao 
plano colectivo e nacional, em suma ao plano político. Pode-se então deduzir 
que a RSA promoveu um novo modelo de Justiça? Trata-se de um imbróglio 
jurídico-político-ético-religioso como parece sugerir Barbara Cassin, ou de 
um abandono positivo das limitações disciplinares?
Quid da reparação? Pode a nova justiça negligenciar a questão da re-
distribuição?
A restorative justice, na argumentação de Tutu, implica a reparação. Só 
que o prelado introduz uma diferença entre o conceito de reparação e o con-
ceito de compensação. O reconhecimento público dos males subidos é uma 
reparação, mas compensar implicaria a possibilidade de quantificar os sofri-
mentos, restituir alguém pela perda de um ser querido. Esta argumentação é 
considerada por Jacques Derrida não convincente sob plano intelectual27 , e é 
contestada no plano prático, por exemplo, pelos companheiros sobreviventes 
de Steve Biko, fundador do movimento da consciência negra28 .
26 Cfr. GARAPON, A., La Justice comme Reconnaissance. In: CASSIN, CAYLA, SALAZAR (dir.), 
Vérité, Reconciliation,Réparation, Paris: Ed. Seuil, 2004, pp.181-203.
27 DERRIDA, J., Versöhnung, Ubuntu, Pardon: quel Genre?, In: CASSIN, CAYLA, SALAZAR (dir.), 
Vérité, Reconciliation, Réparation. Paris: Ed. Seuil, 2004, pp.111-156.
28 Cfr. CHARLAND, M., Prudence Plurielle. In: CASSIN, CAYLA, SALAZAR (dir.), Vérité, Re-
conciliation, Réparation, Paris: Ed. Seuil, 2004, pp.205-215
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano74
Esta justiça como reconhecimento (recognition) que implica a restau-
ração da dignidade humana das vítimas, pode fazer a economia da justiça 
penal e retributiva e ainda mais da justiça social distributiva?
O objectivo final da justiça restaurativa (ubuntu) não era simplesmente a 
identificação do outro, nem mesmo perceber o outro como semelhante, mas 
também dar-lhe o respeito, admitir que a minha vida é igual a sua. Trata-se 
do reconhecimento do seu ser, da sua existência, da sua identidade, do seu 
lugar numa cidade comum. Fazer comunidade é tornar-se uma sociedade de 
com-munia, isto é de dádivas (munia) partilhadas.
A mútua construção de uma comum comunidade de destino não impli-
ca então uma redistribuição social dos bens oriundos da segregação que se 
quer ultrapassar, não necessariamente como reparação dos tortos subidos, 
mas tradução para o terreno existencial dos postulados ético-jurídicos? Se 
essa justiça não se faz ágape/dilectio não se corre o risco de se transitar de 
racialização política-jurídica do apartheid a uma racialização económico-
social pós-apartheid?
O tecido social que a costureira começou a coser com coragem e ab-
negação, necessita de muito fio e muita bordado para que não se rasgue 
ao primeiro movimento desajeitado. Este processo de solidificação, pode 
prescindir de uma redistribuição económica?
A RSA, mundo em miniatura, onde uma minoria detém os meios de 
produção, o saber, os meios económicos e a maioria é miserável, pode ser 
um laboratório onde se experimentam as soluções de justiça susceptíveis de 
ser globalizáveis (rainbow world); como pode ser uma simples extensão do 
sistema mundial baseado sobre a desigualdade, onde os negros como nos 
EUA, na Jamaica no Brasil, para dar alguns exemplos, passaram pura e sim-
plesmente de escravatura a semi-cidadãos, tributários unicamente de deveres 
servis. Em suma, rainbow world ou apartheid económica?
75
A filosofia, como qualquer outra ciência, está na fronteira máxima entre 
a acção ou o agir e a reflexão ou o pensamento.
A particularidade dos filósofos, porém, é que eles residem nos ambos 
extremos: ou pensam demais ou agem demais. Entendo o demais como sendo 
sinónimo de para além das fronteiras epocais e políticas. Isto quer dizer que 
há, na História do pensamento filosófico, dois paradigmas de conceber o papel 
do filósofo numa sociedade: o paradigma duma filosofia da contemplação 
(que se concentra mais no pensamento) e o paradigma de uma filosofia de 
intervenção (que concebe o pensamento para servir a acção, em particular 
a política). O primeiro poderia chamar-se de um paradigma hegeliano e o 
segundo de um paradigma marxiano. Para Hegel, a filosofia é o resumo do 
tempo no pensamento (ou num conceito) e como tal ela só vem ao entardecer 
quando tudo já aconteceu. Para Marx, pelo contrário, a filosofia é chama-
da não somente a revelar e compreender o mundo, mas sim e sobretudo a 
transformá-lo. O acto de revelar e de compreender o mundo não é um fim 
em si, mas sim um meio para mudá-lo. Assim, o filósofo não deve somente 
contemplar o mundo, mas sobretudo ajudar a mudá-lo, assevera-nos Marx, 
ou a moldar o futuro, como sustenta Ngoenha.
Poderia propor outros exemplos que ilustrem esta contraposição na 
História do pensamento filosófico desde a Grécia até aos nossos dias. Porém, 
acho que este é um debate falso. Mesmo a contraposição entre a contempla-
ção e a intervenção é falsa porque, para mim, um filósofo é ambas coisas: um 
FILOSOFIA COMO ENGAJAMENTO 
CONTRA OS MITOS * 
José P. Castiano
* Apresentação perante estudantes de filosofia e docentes na Faculdade de Medicina da UEM no dia 
22 de Setembro de 2007. O tema inicial deste artigo foi “O meu credo filosófico”.
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano76
contemplador em acção e um actor em reflexão. Eu penso que há um eixo 
que une estes dois paradigmas aparentemente opostos da filosofia: é que os 
dois paradigmas são, na sua essência, um engajamento de desmistificação per-
manente contra os mitos. Para mim a filosofia é uma arma de desmistificação 
ou de revelação dos mitos. Em outras palavras e paradoxalmente, a filosofia é 
um espelho do mito, isto é, torna os mitos perceptíveis aos humanos através 
de um exercício de reflexão crítica.
A Filosofia como Espelho do Mito
Se não fosse o espelho, não nos conheceríamos a nós mesmos. Se fi-
cássemos muitos anos sem nos vermos ao espelho, o mais provável seria 
não reconhecer a nossa própria foto actualizada. A nossa face seria a de um 
estranho. No entanto, por mais estranho que pareça, por mais atraente que 
seja um espelho, ninguém gosta de ir ao espelho nu. Nós só vamos ao espelho 
depois de nos vestirmos para vermos se a máscara (a nossa personalidade) 
ficou bem, conforme o que queremos parecer. Mas mesmo assim, são pou-
cas as pessoas que ficam satisfeitas com a sua imagem ao espelho: sempre 
gostaríamos de trocar de roupa para criar melhor impressão.
É assim a filosofia: quando ela se coloca perante o espelho vê mitos. Não 
é por acaso que a filosofia nasceu do mito. O mito vai ser sempre o que a 
filosofia vê quando se põe perante um espelho numa batalha interminável. Por 
isso, a natureza e a essência da filosofia é desvelar estes mitos. Neste empenho 
de desmistificação, a filosofia chega até ao extremo de olhar-se ela própria 
como um mito e não o seu oposto. Não é, pois, por acaso que Richard Rorty 
pensava que o maior erro da filosofia foi o de ter-se visto como «espelho da 
natureza», ou seja, que tem a possibilidade de conhecer e revelar a verdade 
que governa os fenómenos naturais e os factos sociais. A razão se tornara 
ela própria um mito. Pois, se sabemos que a filosofia nunca vai ser capaz de 
conhecer a natureza das coisas, porquê então filosofar?
No entanto, mesmo estando constantemente a se descobrir como um 
mito, a filosofia nunca deixou de lutar contra o mito. O mito é a sua imagem, 
o seu reflexo e ao mesmo tempo o seu oposto, a sua sombra. Assim, radicali-
zando a nossa posição, a filosofia leva o tempo a lutar consigo própria (o mito).
77Pensamento engajado
Daqui deriva a posição central que quero defender: um filósofo digno 
deste nome é um caçador de mitos, isto é, de si mesmo. A sua arma é o argu-
mento. Ele é severo, rigoroso e intransigente quando se trata de argumentar 
contra o mito.
Mas há uma pergunta à qual não podemos escapar se estivermos de 
acordo com o pressuposto de que a essência e a origem da filosofia está na 
sua luta e amor contra e com o mito: será que a filosofia se desenvolveu re-
alizando uma transformação gradual dos mitos ou nasceu por uma ruptura 
radical com os mitos do seu contexto?29 
O mito é uma narrativa sobre a origem de alguma coisa. A palavra mito 
tem, na sua origem grega, duas acepções. Uma: contar, narrar, etc. E outra: 
conversar, anunciar, designar, etc. Assim temos que o mito é um discurso 
que é feito para um certo número e tipo de ouvintes. É uma narrativa feita 
em público por um narrador (na Grécia por um poeta). Outra característica 
básica do mito é que o público aceita o que ouve como verdadeiro, pois o 
poeta é um escolhido dos deuses para narrar aos ouvintes o passado, ou seja, 
a origem das coisas. Assim, a palavra do poeta como o enviado divino – o 
mito – é uma revelação também divina. 
Houve dois grandes poetas na Grécia Antiga: Homero – de família aris-
tocrata, escreveu duas obras a Ilíada e a Odisséia e Hesíodo – um camponês, 
de classe mais baixa que escreveu Teogonia e Trabalho e seus Dias. 
O mito, tal e qual é narrado na Grécia Antiga, tem três formas principais 
de justificar aexistência e o estado das coisas. 
A primeira forma: Tudo o que existe decorre de uma relação sexual entre 
forças divinas que geram titãs (seres semi-humanos e semi-divinos), heróis 
(filhos de um deus com uma humana ou de uma deusa com um humano), 
humanos, o resto das coisas da natureza e as suas qualidades respectivas 
(quente, frio, bom, mau, etc.). Esta é uma narração de origem ou genealógica.
O exemplo duma narração genealógica: 
Observando que as pessoas apaixonadas estão sempre cheias de ansieda-
de e de plenitude, inventam mil expedientes para estar com a pessoa amada 
ou para seduzi-la e também serem amadas, o mito narra a origem do amor, 
29 Os exemplos que se seguem foram adaptados da página electrónica http:/www.algosobre.com.br 
(consultada a 20 de Setembro 2007).
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano78
isto é, o nascimento do deus Eros (Cupido). A seguir dá-se um exemplo 
extraído do Banquete 203a, de Platão: 
Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre os demais se 
encontrava também o filho de Prudência, Recurso. Depois que acabaram de 
jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza, e ficou na porta. Ora, Recurso, 
embriagado com o néctar – pois o vinho ainda não havia – penetrou o jardim 
de Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza então, tramando em sua falta de re-
curso, engendra um filho de Recurso, deita-se ao seu lado e pronto concebe 
o Amor. Eis por que ficou companheiro e servo de Afrodite o Amor, gerado 
em seu natalício, ao mesmo tempo que por natureza amante do belo, porque 
também Afrodite é bela. E por ser filho, o Amor de Recurso e de Pobreza, 
ficou nesta condição . Primeiramente ele é sempre pobre, e longe está de 
ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e 
sem lar, sempre por terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às portas 
e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a 
precisão. Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom, e 
corajoso, decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer maquinações, 
ávido de sabedoria e cheio de recursos, a filosofar por toda a vida, terrível 
mago, feiticeiro, sofista: e nem imortal é a sua natureza nem mortal, e no 
mesmo dia ora ele germina e vive, quando enriquece; ora morre e de novo 
ressuscita, graças à natureza do pai; e o que consegue sempre lhe escapa, de 
modo que nem empobrece o Amor nem enriquece, assim como também está 
no meio da sabedoria e da ignorância. Eis com efeito o que se dá. 
A segunda forma: Explorando a rivalidade ou uma aliança entre os 
deuses. No caso da rivalidade o mito explica as guerras e no caso da aliança 
entre as forças divinas surgem novas coisas no mundo.
O poeta Homero, no livro Ilíada, explica as derrotas e as vitórias ora dos 
troianos, ora dos espartanos a partir das rivalidades dos deuses que estavam 
divididos e o Zeus, de cada vez, tomava partidos diferentes. O interessante é 
notar, porém, que a causa das guerras era a deusa do amor – Afrodite – que 
aparecera como a escolhida nos sonhos do príncipe troiano – Páris – e as 
outras deusas zangaram raptando a mulher do general grego – Menelu – co-
meçando aí uma guerra entre os humanos.
79Pensamento engajado
A terceira forma: O mito distribui as recompensas ou os castigos que 
os deuses dão, dependendo se as pessoas ou os semi-deuses obedecem ou 
desobedecem. 
O uso do fogo pelos homens é um bom exemplo pois, para os homens, o 
fogo é o que os diferencia dos animais; ele serve para cozinhar os alimentos, 
a iluminar caminhos na noite, a se aquecer e serve para fabricar instrumen-
tos de metal para o trabalho e para a guerra. 
Um titã (semi-deus), Prometeu, mais amigo dos homens do que dos deu-
ses, roubou uma centelha de fogo e a trouxe de presente para os homens. 
Prometeu foi castigado (amarrado num rochedo para que as aves de rapina, 
eternamente, devorassem seu fígado) e os homens também. 
Qual foi o castigo dos homens? Os deuses fizeram uma mulher encantadora 
(Pandora) a quem foi entregue uma caixa – conhecida por Pandora box – 
que conteria coisas maravilhosas, mas que nunca deveria ser aberta. Pandora 
foi enviada aos humanos e, cheia de curiosidade e querendo dar a eles as ma-
ravilhas, abriu a caixa. Dela saíram todas as desgraças, doenças, pestes, guer-
ras e, sobretudo, a morte. Explica-se, assim, a origem dos males do mundo. 
A filosofia emerge – e penso que não deve perder esta sua origem e na-
tureza – de uma luta com o seu oposto, o mito, encostando os argumentos 
que tenham fundamentos duvidosos cada vez mais contra a própria parede.
O Meu Credo Filosófico 
Porém, nem todos os filósofos, ao olharem para o espelho, acertaram 
sempre na definição do mito. Isto porque o mito consegue sempre deslocar-se 
para zonas de maior penumbra e esconder-se lá onde raramente um filósofo 
desprevenido poderia pensar em procurar o seu lado perverso: no próprio 
íntimo do homem. Quando o filósofo pensa ter destruído o mito, ele volta a 
espreitar com mais força.
Porquê esta persistência do mito? 
Muito simples: porque, como descobriram os antropólogos e historiado-
res nos meados do século passado, os mitos são parte integrante da organi-
zação social e cultural de todas as sociedades; no mito estão profundamente 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano80
entranhados os modos de pensar e de sentir de uma sociedade. Assim, embora 
a filosofia seja uma racionalização do mito, ela não consegue sair do interior 
do próprio mito. 
Como dizia, filósofos diferentes caçaram e acertaram em mitos diferen-
tes. O meu credo filosófico gira em volta daqueles filósofos que penso terem 
sido os que mais acertaram deconstruindo os mitos que ameaçavam as suas 
sociedades e, por isso, transcenderam as suas épocas. A minha escolha des-
tes filósofos prende-se, portanto, pelo facto de terem desvendando os mitos 
que nos ajudam a compreender o nosso tema de hoje: o papel do filósofo 
na desmistificação dos mitos da globalização. Naturalmente que nem todo 
pensador que escolho é filósofo. Mas como pensadores souberam transcender 
as suas épocas, isto é, engajaram-se no combate contra mitos que a maior 
parte dos seus contemporâneos acreditaram. Esses filósofos são: Sócrates, 
Marx, Nietzsche, Eduardo Said, Cheikh Anta Diop, Hountondji e Ngoenha.
O primeiro, Sócrates, engajou-se contra o mito que todos nós temos 
em algum momento e é o básico para ser destruído em primeiro lugar, se 
queremos ter a pretensão de sermos considerados filósofos: o mito de sermos 
os detentores da verdade, de sabermos tudo, enfim, de nos considerarmos 
superiores aos outros. Sócrates, como é sabido, gostava de dizer: «só sei que 
nada sei, e é nisto que penso superar aos que pensam que sabem». Com isto 
Sócrates queria dizer que explicar a origem e a verdade das coisas através de 
objectos e realidades materiais torna-se absurdo. Só no interior do homem 
se pode encontrar a verdade e Sócrates passa toda uma vida a ridicularizar 
aqueles que pensam saber qualquer coisa que não seja de natureza espiritual. 
Até Platão, seu discípulo, se indignou pela maneira como ele assistiu a De-
mocracia a ser capaz de condenar à morte ao seu mestre por «adorar deuses 
falsos» e por não aceitar ser impingido uma verdade que não fosse produto 
do pensamento. Hoje, num mundo considerado globalizado, o Ocidente se 
comporta e é visto como um mito de uma civilização avançada a qual sabe 
o caminho que os nossos países devem seguir o modelo democrático por ele 
construído. Sócrates nos inspira como exemplo para, na pretensão de sermos 
filósofos africanos hoje, combatermos este mito. Ou seja, deconstruirmos o 
Ocidente como um mito.
81Pensamento engajado
Marx, por sua vez, desmistifica o capitalismo mostrando que este siste-
ma é uma ideologia que se baseia no carácter fetichista perante o dinheiro. 
Ele descobre que, por causa do dinheiro, o homem aliena-se da sua essência 
que é o trabalho. O capitalismo não é uma ordem natural da sociedade e 
nem a última palavra do desenvolvimentodas sociedades. É por causa deste 
elemento de alienação capitalista que Marx denuncia, que hoje somos capa-
zes de ter consistência teórica na luta contra a opressão do capital global e 
podemos denunciar que o liberalismo político não assenta necessariamente 
numa ordem económica capitalista. Por outras palavras, Marx despertou-nos 
para a ideia de que podemos ter uma democracia liberal que esteja assente 
numa ordem económica mais justa que supere as injustiças inerentes ao ca-
pitalismo selvagem (i.e., sem regras que limitem o fetichismo pelo dinheiro 
e pela propriedade), como o que impera hoje em Moçambique. Mostrar as 
fraquezas e as contradições internas de um capitalismo selvagem deveria ser 
uma batalha de qualquer que se preze ser filósofo africano engajado pela 
liberdade.
Nietzsche foi o mais radical na destruição do mito. Ele denuncia a racio-
nalidade como sendo um mito da modernidade. Quer transmutar todos os 
valores modernos. Para ele o Homem moderno sucumbira perante a religião 
e perante o Estado, tornando-se um camelo. É preciso renascer como uma 
criança que abandona toda a carga da tradição. Para ele a razão não é mais 
outra coisa que a vontade pelo poder, uma ambição que a razão ocultara em 
forma de iluminismo.
Nietzsche quer ver de volta o culto ao Dionísio: Zeus engendrou Dioní-
sio com Semele, uma mulher mortal. Hera, mulher de Zeus, ficou colérica e 
condenou Dionísio à loucura. Desde então, Dionísio vagueia sem rumo pela 
África do Norte e na Ásia Menor. Um «deus estranho» este que vagueia e 
desaparece de repente. Dionísio distingue-se de todos os deuses pelo facto 
de ser um deus ausente. Mas ele voltará liberto da loucura, renascido dos 
mistérios da vagabundagem. Assim, o caos do Ocidente é um presságio do 
regresso de Dionísio para repor a moral, a ordem e a liberdade. Para mim, um 
filósofo deve desvelar tudo o que se tornara tradição: a própria racionalidade 
e a tradição propriamente dita. Aliás, um filósofo deve ir muito mais além: 
demonstrar que o pensamento dicotómico, que está por trás da nossa forma 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano82
de analisar as sociedades africanas de hoje, já não faz sentido epistémico para 
abarcar as dinâmicas sociais africanas e resumi-las num conceito.
Eduardo Said, em Orientalismo, mostra como uma civilização, o Ociden-
te, fabrica o mito de uma outra, o Oriente. Neste livro se percebe muito bem 
como o Ocidente, para dominar os outros territórios, projectou a ciência para 
o conhecimento do Outro, objectivando-o. Said mostra como um discurso 
científico – feito em forma de relatos de viagens, de discursos políticos, de 
pinturas, de literatura, de romance, de estudos antropológicos, geográficos, 
linguísticos, etc. – foi capaz de legitimar a dominação. Tudo isto, segundo 
Said, fazia parte de uma arquitectura monumental de criação do Oriente 
pelo Ocidente. Nas palavras do próprio autor, entretanto, o orientalismo 
não pode ser compreendido como um complô imperialista ‘ocidental’ para 
subjugar o mundo «oriental». (…) É antes uma distribuição da consciência 
geopolítica em textos estéticos, eruditos, económicos, sociológicos, históricos 
e filológicos». Este estudo de Eduardo Said foi seguido, no contexto africa-
no, pelo livro The Invention of Africa de Mudimbe. Para mim estes livros 
desvelam o mito da invenção do Outro (africano ou asiático) pelo Ocidente.
Para Cheikh Anta Diop a origem e o berço da humanidade assim como 
a emergência da civilização do mundo devem ser procurados em África. O 
lugar que a Grécia ocupa na História do pensamento científico filosófico, 
deveria ser ocupado pelo Egipto Antigo, e, no sentido mais alargado, pela 
África. A civilização egípcia é especificamente negra. Anta Diop aponta como 
sendo características comuns de toda África o matriarcado a espiritualidade, 
o humanismo e o pacifismo. Em Precolonial Black Africa Diop destaca o 
desenvolvimento da produção do saber científico (escrita, matemática, lógica, 
astronomia, medicina, etc.) nos centros do saber do Egipto, em Tumbuktu, 
no Benin (que ele compara com o classicismo grego); e destaca, em segundo 
lugar, o desenvolvimento técnico (arquitectura sudanesa, ganêsa e nigeriana, 
a metalurgia, o fabrico do vidro, a tecelagem, técnicas ligadas à agricultura, 
pesca, caça, etc.) nesses centros de produção do saber. Anta Diop é aqui 
alinhado não tanto pelo conteúdo do seu discurso, mas por ter sido um dos 
primeiros a recentrar África na História do pensamento e da criação científica. 
Destruiu o mito de uma África à margem da História universal.
Hountondji lança uma crítica geral ao que ele mesmo cunhou por 
83Pensamento engajado
etnofilosofia. Este filósofo destrói o mito do unanimismo (a ideia de que 
os africanos pensam da mesma forma, adoram os mesmos deuses, dançam 
da mesma forma, etc. adjacente aos estudos etnológicos e antropológicos). 
Hountondji não considera etnofilosofia como uma filosofia, porque mesmo 
que esta consiga mostrar as contribuições que são especificamente africanas 
na civilização, elas são simplesmente aspectos da Mitologia. A filosofia co-
meça onde a sabedoria e a opinião popular terminam já que estas últimas 
constituem acepções a-críticas em relação às tradições e à autoridade que os 
costumes exercem sobre o homem africano. A existência da filosofia pres-
supõe, segundo Hountondji, a emergência do logos e da escrita a partir da 
oralidade e do mito. Por outro lado a filosofia só pode ser concebida como 
resultado de uma actividade crítica de um sujeito autónomo que não está 
totalmente submerso no grupo e no mundo, senão que se põe a si mesmo à 
margem deste grupo e do Mundo. Embora Hountondji possa ser tomado 
com reservas por ter elitizado o conceito e a prática da filosofia ao submetê-la 
aos critérios do logocentrismo e da escrita, isto não invalida porém o grande 
mérito de nos ter alertado para a necessidade de preservar o carácter crítico-
reflexivo da filosofia profissional africana. Filosofia é um engajamento crítico.
O Filósofo e os Mitos na Globalização
O Ocidente é, para Moçambique e para África, uma espécie de Deus; 
os africanos substituíram Deus pelo Ocidente – como diz Severino Ngoe-
nha em Os Tempos da Filosofia. Em tudo o que pretendemos fazer, como 
o desenvolvimento, fazemo-lo à imagem e semelhança do Ocidente como 
horizonte, como justificação, como legitimação. Hoje, um filósofo que tenha 
a pretensão de tal ser, deve, em relação a esse mito, deixar de ser tradutor 
do pensamento ocidental, para ser um intérprete daquele. 
Ulrich Beck na Sociedade de Riscos defende que as sociedades capita-
listas modernas já não se caracterizam pela distribuição desigual de capitais, 
mas sim por uma distribuição desigual de riscos globais. Esses riscos, por 
serem invisíveis, continua ele, distribuem-se desigualmente de forma argu-
mentativa. O intelectual moçambicano deve ser capaz de interpretar, para o 
seu povo, o que certas opções e propostas teóricas e políticas do Ocidente 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano84
comportam como riscos para os nossos povos. Resumindo os riscos que a 
globalização pode comportar para o caso dos países africanos incluindo Mo-
çambique, Ngoenha, como texto final de Mukhatchanadas, escreve: Então 
Deus, por trás do seu sacrário, satisfeito nos seus sapatos made in CEE, nas 
suas calças «Tio Sam» e a sua camisa FMI e BM, ordenou à Caritas Interna-
cional, à Cruz Vermelha, aos Médicos sem Fronteiras, que mandasse para 
os países dos danados algumas centenas de toneladas de arroz, milho, feijão. 
E acrescentou: Oh, não se esqueçam sobretudo de meter debaixo dos sacos 
de arroz algumas toneladas de granadas, de bombas e metralhadoras! Ah, 
metam também dentro os nossos desempregados e resíduos nucleares.
O segundo mito que um filósofo nas condições de Moçambique e face 
à globalização tem pela sua frente é a sua própria tradição. Os intelectuais 
moçambicanos/africanos estão encalhados numa espécie de dança de amor 
muito estranha com as suastradições-mães: convidam-nas para à pista de dan-
ça quando se sentem exaustos de dançar com o seu Ocidente-Pai. O convite 
à mãe é formulado quando se sentem abandonados pelo pai e precisam da 
mãe para, de alguma forma, continuarem a sobreviver como intelectuais. A 
tradição é um refúgio onde têm a certeza que podem continuar a dançar no 
palco do grande público global. Na tentativa de recentrar o sujeito africano na 
História, vêm a tradição como o último reduto. A perdição do nosso filósofo 
é maior porque, habituado a livros na sua confrontação com o pensamento 
ocidental, quando se vira para a tradição-mãe nota que não há livros, mas 
sim pessoas sentadas à volta da fogueira imbuídas no exercício da palavra 
(oralidade). O nosso filósofo fica, assim, perdido porque primeiro não domina 
o instrumento fundamental que o haveria de permitir sentar-se à fogueira 
com os outros: a língua. Segundo porque a interpretação do que a tradição-
mãe diz pressupõe uma mudança radical nos termos do método (deixar de 
trabalhar num contexto de escrita para passar para um contexto oral) e em 
termos éticos (deixar-se ensinar pelos seus interlocutores tradicionais).
85Pensamento engajado
Qualquer projecto de educação fundamenta-se na concepção predo-
minante sobre o homem. Pois, o homem é o ponto de partida e de chegada 
da acção educativa. Ele é o ponto de partida porque a educação parte da 
imagem que temos do homem que queremos construir. O mesmo homem é 
o ponto de chegada porque a finalidade do acto educativo é a de desenvolver 
as faculdades deste. Será assim na educação glocal que, quanto a mim, inicia 
com a introdução do currículo Local em Moçambique? Sob que fundamentos 
ela assentaria?
Para empreender qualquer acção educativa partimos, no entanto, da 
crença que este homem tem condições (faculdades) potenciais para ser educa-
do. A educabilidade do homem, isto é, a capacidade do homem ser educável, 
assenta no facto de ele ser um ser racional; um ser que, segundo Sartre em 
Ser e Nada, se fragmentou do ser entanto que tal, para ser em si possuidor 
de uma consciência. Dizer que o homem é um ser racional significa, no fun-
do, que este homem é potencialmente capaz de usar as suas faculdades de 
pensar e julgar para poder decidir sobre a sua acção sobre factos e artefactos 
com os quais entra em contacto. Por outras palavras, cada homem usa a sua 
faculdade de pensar, i.e. de usar a sua razão, e de julgar para poder agir ou 
emitir juízos sobre os fenómenos que o rodeiam.
Por isso, a primeira fundamentação para a educação é a de libertação: 
libertar as faculdades do homem poder pensar sobre si mesmo e de poder 
formular seus próprios juízos. De fazer o uso público da sua razão, diria o 
filósofo de Koenisberg, Immanuel Kant. Este é o sentido profundo quan-
do dizemos que a educação é um instrumento de libertação do homem. 
ENGAJAMENTO POR UMA 
EDUCAÇÃO GLOCAL
José P. Castiano
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano86
Refere-se portanto a uma libertação no sentido de o homem ser capaz de 
pensar correctamente e de emitir juízos de valor de forma autónoma e sem 
contrições positivas.
Dissemos antes que a educação se deve centrar no homem. O seguinte 
problema educativo começa, entretanto, quando temos como pressuposto 
que todos os homens são iguais, todos os homens são diferentes. Como ga-
rantir assim que todos sejam tratados de forma igual e de forma diferente ao 
mesmo tempo? Daqui infere-se a segunda fundamentação da educação que 
é a de garantir a igualdade de todos porque todos são educáveis; ao mesmo 
tempo, porém, a educação deve reservar espaço para que as diferenças entre 
os homens e grupos sociais não morram dado que ela deve, por exemplo, 
garantir que cada utente dos serviços educacionais possa desenvolver a sua 
própria cultura. Formulado mais concretamente: podemos perguntar-nos se 
cada aula providencia a ocasião institucional no qual se concretiza a ideia de 
que todos são iguais, mas diferentes ao mesmo tempo. É possível o professor 
atender a todos de forma igual ao mesmo tempo que trata a todos de forma 
diferenciada?
Daqui deriva a terceira fundamentação para a educação que é a de cul-
tivar um homem universal (i.e., que possa viver na base do saber e valores 
universais) mas ao mesmo tempo que conheça e pratique as suas tradições 
familiares e culturais. Ela deve permitir que a criança entre no mundo global 
com os pés firmes, apontamos já algures30 .
A educação é um caminho que começa na família – onde a criança 
nasce – até ao sistema-mundo, passando pela comunidade e pela nação. 
Ora, o caminho da criança ao sair do seu meio familiar para um em que as 
autoridades comunitária e estatal se acrescentam à autoridade familiar, não 
deve ser percorrido de uma forma violenta. Na entrada para ser um membro 
de pleno direito da sua comunidade e depois para cidadania, a criança não 
deve ser nem fisicamente, nem simbolicamente violada.
Até agora já se conseguiu, pelo menos formalmente, fazer com que a 
criança não seja fisicamente agredida; no entanto ainda resta muito por fa-
zer para eliminar aquilo que se considera como sendo violência simbólica, 
se emprestarmos um termo muito usado por Bourdieu. É desta forma que 
o professor tem a gloriosa responsabilidade de fazer com que a marcha da 
87Pensamento engajado
criança da família para a sociedade e para o sistema-mundo não seja nem 
corporalmente e nem simbolicamente (espiritualmente) violenta.
Chegados aqui urge perguntar em que medida a introdução do currículo 
local no sistema do ensino moçambicano vem responder a estes fundamentos 
da educação?
O currículo local é uma parte do currículo do ensino básico (20% do 
tempo alocado para cada disciplina) que deve ser preenchida por conteúdos 
que os membros da comunidade abrangida por uma certa escola, de uma 
forma organizada, acham ser relevantes para a criança inserir-se na sua própria 
comunidade, após ou mesmo durante o período da sua frequência na escola.
Portanto, não se trata de conteúdos que são determinados centralmente 
pelo Instituto Nacional de Desenvolvimento (INDE) ou pelo ministério mo-
çambicano de educação, embora ambas instituições, por serem de carácter e 
dimensão centrais, possam de certa forma influenciar na determinação dos 
conteúdos. Trata-se sim de conteúdos que devem ser produzidos pelos pro-
fessores com a ajuda da comunidade, dos próprios alunos e das instituições 
locais como as da saúde, da agricultura, do meio ambiente, etc.
No entanto, para que estes conteúdos se tornem ensináveis, ou seja, para 
saírem da cabeça dos membros das comunidades e dos papéis das instituições 
locais para a sala de aulas, é necessário que o professor os adeqúe à idade, 
à classe/ciclo dos alunos e atendam às competências localmente necessárias 
para a vida da criança na comunidade. Para além disso, o professor deve 
produzir textos (brochuras do currículo local) e materiais didácticos. Assim, 
os professores devem ser capazes de trazer para a sala de aulas os factos e 
artefactos culturais do local onde uma certa escola se encontra inserida.
Em relação ao levantamento dos conteúdos relevantes para serem abor-
dados pelos professores na sala de aulas já se fez muita coisa embora reste 
ainda muito por fazer. Foram, neste âmbito, levantados conteúdos sobre a 
história local da escola e da comunidade, sobre a proveniência do nome da 
escola, sobre as principais culturas locais, sobre os recursos locais, sobre a 
vegetação e a fauna, sobre as estruturas administrativas e tradicionais locais, 
sobre os principais pratos, sobre as profissões locais, sobre os hábitos e 
costumes das localidades, sobre as crenças colectivas, etc. O desafio agora 
(2009) é trazer estes conteúdos para a sala de aulas repartidos em ciclos e 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano88
classes assim como elaborar materiais de ensino e de aprendizagem na base 
desses conteúdos para que a criança possa efectivamente aprender aspectos 
ligados à sua cultura e que sejam relevantespara a aprendizagem.
Muitos conteúdos, portanto, dizem respeito às tradições e aos costumes 
levantados pelos professores nas comunidades. No entanto, como educado-
res, a nossa tarefa não termina na recolha e na sistematização dos conteúdos 
considerados relevantes localmente, e nem deve por aí terminar. Pôr um 
ponto final aqui seria continuar a condenar aos alunos a meros elementos 
que se destinam a absorver as tradições e os costumes ancestrais; estaríamos 
a perpetuar, usando a educação, aquilo que alguns filósofos africanos chama-
ram de anthropological mess, ou seja, a ensinar um conjunto de conteúdos 
não relevantes para a vida do estudante hoje e aqui. É necessário, portanto, 
fazer mais do que isso, mais do que o INDE fez até agora. É preciso passar-
mos para o passo seguinte: o de fazer justiça ao sentido da palavra educação 
usando, naturalmente, esses conteúdos recolhidos.
Dissemos antes que a primeira fundamentação da educação é a de de-
senvolver a faculdade de cada aluno pensar por si mesmo e de julgar. No que 
diz respeito a uma Educação Glocal, é muito importante que desenvolvamos 
nas crianças não só o conhecimento dos conteúdos e tradições locais como 
os que demos exemplos acima; é ainda mais importante desenvolver, e só 
assim faz sentido falarmos de educação, a faculdade de cada criança julgar, 
ou seja, de formular seu próprio juízo sobre estes mesmos hábitos e tradições 
que o professor recolhera das cabeças das comunidades e das instituições 
tradicionais locais.
Portanto, a maior forma de inserir a criança numa determinada tradição 
viva não é só dizendo-a sobre o quê (conhecimento dos factos e artefactos), 
mas sobretudo o porquê desses factos e artefactos locais (faculdade de julgar). 
Aliás, esta é a missão da educação para o futuro.
Um parêntesis: quando falamos de factos locais referimo-nos aos eventos 
próprios de um local, sejam eles ligados com a história de um determinado 
local como a batalha de Manhiquene; sejam eles de carácter cultural, como por 
exemplo o M´saho (festival de timbilas de Zavala ou de Varimbas de Sena). E 
quando falamos de artefactos culturais referimo-nos aos produtos materiais 
que são fabricados nas diferentes comunidades culturais de Moçambique. 
89Pensamento engajado
Por exemplo, o vestuário tradicional da Ilha de Moçambique é diferente do 
vestuário tradicional de uma outra parte qualquer.
Cultivar a faculdade de pensar significa, portanto e no âmbito do currí-
culo local, que nos esforçamos para que o aluno conheça e aprenda os factos 
(eventos do passado e presente), artefactos (produção material específica) 
da sua cultura assim como a vida espiritual da zona. Portanto, uma imple-
mentação correcta do currículo local vai permitir inserir ao aluno e à aluna 
na vida económica, social, política e espiritual da comunidade em que ele 
está inserido ou inserida.
Por outro lado, cultivar a faculdade de julgar significa, no âmbito do 
currículo local, que o professor deve proporcionar ao aluno e à aluna os 
instrumentos teóricos necessários para ele se confrontar criticamente, isto 
é, argumentativamente, com os mesmos factos, artefactos e a vida espiritual 
da comunidade onde vive. Isto vai fazer crescer, sem dúvida, o espírito de 
engajamento pela coisa pública na comunidade por parte dessas crianças, 
uma vez conhecerem do que se trata e, por isso mesmo, poderem defender 
ou argumentar com propriedade sobre aquilo que se pode considerar como 
tradição local e sobre os acontecimentos de natureza política, porque é disso 
que se trata.
Escola como Espaço Glocal
Na definição que demos acima sobre o currículo local vimos que este 
é preenchido por conteúdos pedagogicamente considerados como sendo 
relevantes para a aprendizagem do aluno a partir da comunidade segundo 
a definição que nos é dada pelo Instituto Nacional de Desenvolvimento da 
Educação, uma instituição moçambicana ligada à pesquisa de base na edu-
cação. Parte-se portanto da ideia que cada escola está inserida num determi-
nado meio cultural e que se deve dar oportunidade a cada aluno e aluna para 
poder explorar as potencialidades educativas que este meio oferece a fim de 
melhorar a qualidade da aprendizagem dos alunos e das alunas.
Entretanto, ao fazermos o levantamento das questões locais, é muito bem 
possível que surjam conteúdos que podem ferir os Direitos Humanos, podem 
ser discriminatórios com base ao género ou à raça ou ainda que possam ir 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano90
contra o ideal da dignidade humana. É esta a oportunidade educativa para 
humanizar a educação. Para isso é importante estarmos vigilantes para que 
este tipo de conteúdos seja efectivamente retirado dos programas de ensino. 
O currículo local não tem o objectivo de instigar a qualquer forma de dis-
criminação racial, cultural ou em termos de género; também não pretende 
e nem deve ser uma fonte do divisionismo baseado em pertenças étnicas ou 
mesmo contra a dignidade de qualquer ser humano.
O espírito do currículo local é que as crianças se confrontem racional 
e criticamente com o meio natural, social, cultural, epistémico e político no 
qual vivem e que o professor seja o facilitador desta confrontação com o 
respectivo meio. Quando usamos o termo confrontação não nos referimos 
somente ao conhecimento das danças, das lendas, das profissões, da história 
local, das tradições, dos hábitos e dos costumes, etc. O que é ainda mais 
importante é desenvolver o saber fazer e o saber estar com outros na comu-
nidade e sociedade. Por exemplo, não basta que a criança saiba como é que 
tradicionalmente os seus pais e tios sempre construíram e constroem uma 
palhota africana, mas é necessário dar ferramentas para que a criança possa 
melhorar essa mesma palhota, isto é, torná-la mais segura e confortável, sem 
no entanto deixar perder a estética e arquitectura básica da casa africana 
(normalmente redonda, principalmente o seu tecto/cobertura). E esta tarefa 
(desenvolver a nossa civilização africana) é da educação e é educativa.
O que queremos dizer com este exemplo é que o levantamento e o 
conhecimento das tradições ou dos valores que governam a vida local não 
é e nem pode ser um objectivo em si e terminal da educação com base nos 
conteúdos locais. Esse levantamento e conhecimento são apenas um ponto 
de partida necessário para podermos efectivamente desenvolver as nossas 
tradições, enfim as nossas civilizações africanas. Porque um verdadeiro de-
senvolvimento só se pode basear no conhecimento profundo das tradições 
culturais e valores locais. Mas, por outro lado, nós podemos desenvolver 
estas tradições e valores somente na medida em que eles oferecem respostas 
alternativas válidas para resolver os problemas sociais, económicos, políticos 
e espirituais da actualidade. Na globalização só podemos estar firmes na 
medida em que oferecemos soluções locais para os problemas que nascem 
do interior desta mesma forma de existência global. Por via do currículo 
91Pensamento engajado
local abrimos a porta ao aluno e à aluna para que eles mesmos se inspirem 
na cultura local para poderem encontrar soluções localmente fundados aos 
problemas globais.
Na prática, porém, para conhecer as tradições, não basta (embora seja 
importante) que o aluno ou a aluna seja levado a observar factos e artefactos 
na sala de aulas ou através de uma visita de estudo. É necessário que o pro-
fessor elabore textos onde descreva estes eventos históricos ou os artefactos 
culturais; os textos devem ser escritos por formas que sirvam de apoio ao 
próprio professor e sirvam também como meio de aprendizagem ao aluno e 
à aluna. Para isso, o professor precisa de registar minuciosamente os eventos 
e artefactos no acto da recolha dos conteúdos junto à comunidade e às insti-
tuições locais. O professor precisa de reunir o maior número de informações 
possível, não só sobre o passado mas também sobre o presente de que ele 
deve ser um testemunha atento.
Pensamos que para poder recolher as informaçõese registá-las correc-
tamente, o professor precisa de um apoio concertado das autoridades da 
educação e das instituições do Ensino Superior, particularmente da Universi-
dade Pedagógica. Este poderia muito bem constituir também um dos campos 
ainda virgem para muitas investigações dos estudantes do nível de mestrados.
Da Escola como Espaço sem Violência
Em que medida uma educação Glocal, como a que viemos fundamentan-
do, é uma oportunidade para construir uma escola sem violência, sobretudo 
a simbólica?
Todos sabemos que quem tem poder, se não tiver o devido cuidado, 
estará sempre tentado a usá-lo em seu benefício violando os direitos dos 
outros. O professor ou a professora têm, no contexto da sala de aulas, de-
masiado espaço, no contexto legislativo educacional actual, para exercerem 
o seu poder sobre os alunos ou as alunas; e isto pode conduzir ao uso da 
violência física e simbólica.
No tempo colonial, por exemplo, um aluno que não fosse capaz de 
assimilar uma determinada matéria na aula era batido com reguadas na mão 
ou noutra parte do corpo qualquer. Esta prática constituía uma violência 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano92
corporal ou física que inculcava a dimensão do medo na aprendizagem. Este 
tipo de atitude, por parte dos professores, não é educativa e constitui uma 
violação aos direitos da criança. Também não podemos insultar a criança ou 
submetê-la aos castigos corporais de qualquer espécie. A criança merece o 
nosso respeito para que ela nos possa também respeitar.
Mas há um outro tipo de violência mais subtil, a que chamamos de sim-
bólica ou espiritual. Quando uma criança entra pela primeira vez na escola 
e lhe é praticamente vedada a possibilidade de comunicar-se e desenvolver a 
língua com a qual cresceu no seu ambiente familiar, estaríamos, no fundo, a 
dizer à criança duas coisas muito graves: que a língua com que se comunica 
em casa não serve para adquirir conhecimentos científicos na escola e, o que 
é ainda pior, estamos a dizer que aquela língua é inferior em relação àquela 
que se usa na escola. Assim, estamos a violar um símbolo importante que a 
criança trás de casa. Mas também estamos a fazer uma violência simbólica e 
espiritual quando, ao invés de ensinar a tocar a timbila na escola, ensinamos 
somente a tocar uma viola. Fazemos violência simbólica quando classificamos 
de dialectos em vez de língua, de feiticeiro/curandeiro em vez de médico 
tradicional, de droga em vez de remédio, de seitas em vez de religião.
Dos Perigos 
Há certos perigos que podem espreitar ao tentarmos implementar uma 
Educação Glocal, onde uma das bases é o currículo local.
Em primeiro lugar é preciso alertar para o perigo do folclorismo ao in-
troduzir os conteúdos ou temas do currículo local. É preciso ter em atenção 
que, ao introduzir-se o currículo local estamos a tentar implementar dois 
princípios de cada ser humano não negociáveis por via da educação: o do 
direito à diferença e ao mesmo tempo o da igualdade de oportunidades. 
O princípio do direito à diferença exige uma atenção muito especial aos 
processos de produção e valorização das culturas e do ambiente social em 
que cada escola se encontra e exige, como disse, que se aproveitem todas 
as possibilidades e potencialidades naturais, sociais, culturais, históricas e 
políticas locais para a aprendizagem da criança. Todos os aspectos locais 
têm um valor educativo em potência. 
93Pensamento engajado
Por seu lado, o princípio da igualdade de oportunidades exige que a 
educação possa oferecer as mesmas oportunidades de progressão a todas as 
crianças no sistema de educação, independentemente do lugar onde estudam 
dentro do país. O perigo que correm as pedagogias que tentam valorizar as 
culturas locais no contexto da educação glocal é o de usar os elementos das 
culturas locais como uma espécie de folclore, ou seja, que só sirvam para 
embelezar o currículo nacional com alguns elementos da tradição sem no 
entanto tomar a sério estes elementos em todas as fases da actividade pe-
dagógica. Geralmente, em nome da igualdade sacrifica-se a diferença. Não 
se trata pois de desenvolver o que se pode designar por um currículo para 
turistas, ou seja, o tipo de currículo que admite esporadicamente e de forma 
fragmentada temas de natureza local cultivando nos alunos atitudes exóticas 
e folclóricas quando estão perante as suas próprias tradições. Trata-se, pelo 
contrário, de fazer com que os alunos reconheçam e se confrontem com a 
sua tradição viva, promovendo um olhar do diferente como algo de estra-
nho e de exótico, numa atitude comparativa que tem, muitas vezes, o efeito 
perverso de separar o nós dos outros e de realçar as diferenças, reforçando 
os estereótipos entre as gerações e povos.
Em segundo lugar é necessário alertar para o perigo da mistificação 
das tradições ou dos conteúdos locais. O objectivo último da introdução de 
conteúdos locais não é só para ter em conta a função reprodutiva da escola 
(como uma instituição que deve espelhar o que a sociedade/comunidade 
tem como valores e tradições), mas também se deve olhar para a função 
produtiva/inovadora da escola, i.e. a responsabilidade desta instituição em 
melhorar a vida das pessoas que vivem nas comunidades. A inovação só pode 
ser possível se se der a oportunidade às gerações mais novas de se confronta-
rem criticamente com os valores e as tradições locais (o que não significa não 
respeitá-las). Lemos em várias escolas a tendência de mistificação das tradições 
e costumes em lugar de se mobilizar, através da escola, um esforço intelectual 
para compreender a racionalidade que está por trás delas. Como manifestação 
desta mistificação pode observar-se a tendência de só considerar-se os velhos 
da comunidade como informantes ou pessoas de recurso.
O terceiro perigo que pode matar o processo de implementação do 
currículo local é o que diz respeito à preparação teórica (mediar uma con-
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano94
frontação argumentativa e não contígua de saberes de natureza e lógica de 
fundamentação diferente), pedagógica (elaboração de textos didácticos a 
partir de conteúdos locais) e ética (humildade intelectual para aprender 
com os membros das comunidades escolares) dos professores. Embora 
tenha encontrado muitos professores que se mostram entusiasmados com 
a possibilidade de abordar na sala de aulas aspectos do mundo da vida dos 
alunos e da comunidade circundante, este entusiasmo porém é insuficiente. 
Sob o ponto de vista teórico é preciso preparar os professores para 
mediarem uma confrontação argumentativa entre os saberes de natureza 
argumentativa diferente. Sob o ponto de vista pedagógico torna-se necessá-
rio preparar os professores a tornarem os saberes, temas e conteúdos que 
recolhem das comunidades ensináveis, ou seja, destrinçar os conteúdos em 
objectivos e competências assim como fragmentá-los em tempos lectivos e 
de aprendizagem. Há muitos conteúdos relevantes que já foram recolhidos 
do seio de personalidades das comunidades diferentes deste país, mas o 
problema parece prevalecer em como levá-los à sala de aulas (definir objec-
tivos e competências, enquadrar, dosificar, etc.). Sob o ponto de vista ético 
os professores devem ser preparados para tratar os assuntos muito sensíveis 
da vida da comunidade. São assuntos que dizem respeito aos tabus, às cren-
ças, à medicina tradicional, etc. com que o professor se vê pela primeira vez 
confrontado em abordar na sala de aulas. Ainda sob o ponto de vista ético os 
professores deverão ser preparados para exercerem a sua função investigativa 
dos saberes locai com a necessária humildade intelectual, isto é, de serem 
capazes de deixarem-se ensinar conteúdos, valores e saberes por parte dos 
membros da comunidade (mulheres, homens, jovens, velhos, etc.).
Estas matérias deverão fazer parte dos módulos tanto de formação ini-
cial assim como das capacitações (formação em exercício). Também temos 
que considerar que o papel do professor passa a ser,no contexto de uma 
educação glocal, não só o de transmitir conhecimentos (que vêm nos livros 
escolares) mas também o de produzir os mesmos através da sua própria 
investigação e dosificação para serem ensinados. Este último aspecto dá 
matéria suficiente para se repensar nas estratégias pedagógicas nas formações 
(inicial e em exercício) dos professores, ou seja, em buscar novas estratégias 
de formar um professor-investigador. Teremos que baixar alguns conteúdos 
95Pensamento engajado
metodológicos que, no contexto da educação actual, são ensinados somente 
ao nível superior universitário, para a formação de professores primários, se 
apostarmos numa educação glocal de qualidade.
A escola é uma instituição de transmissão de conhecimentos e saberes. 
O quarto perigo reside na possibilidade de se introduzir na escola conteú-
dos ou valores de qualquer tipo (ex: de natureza supersticiosa, boatos ou 
anticonstitucionais). Por isso é necessário, numa primeira fase, desenvolver 
mecanismos de selecção (não confundir com censura) dos conteúdos rele-
vantes. É uma responsabilidade social das estruturas de educação garantir 
que estes conteúdos sejam veiculados pela escola de forma mais científica (no 
sentido de um conhecimento fundamentado) possível. Uma das formas de 
certificar-se desta cientificidade é garantindo que o professor tenha material 
didáctico de consulta (livros) em relação ao currículo local, o que actualmente 
não existe. Por isso propomos que esta grave lacuna de falta de material seja 
minimizada na base de temas gerais de nível de cada Província as autoridades 
provinciais de educação se encarregariam por elaborar brochuras didácticas 
em redor aos temas provinciais propostos.
Um último perigo diz respeito à exclusão dos alunos e jovens na definição 
dos conteúdos de aprendizagem. Como nos referimos acima, a tendência das 
consultas que se fazem às comunidades e instituições locais quando se ela-
boram as brochuras escolares do currículo local é a de abrangerem somente 
ou quase que exclusivamente às pessoas idosas das comunidades, deixando 
os jovens e os próprios alunos à margem. De facto é preciso recordar per-
manentemente que não há ensino possível sem o seu reconhecimento, por 
parte daqueles a quem o ensino é dirigido. 
De tudo o que foi abordado, pensamos, porém, que o maior desafio ao 
nível da formulação de uma educação glocal que se impõe ao nível teórico, é 
o da formulação de um discurso lógico que mostre que este tipo de educação 
se enquadra num âmbito mais amplo de uma utopia social. A nossa utopia 
social é a de construir um Moçambique mais justo. Pois, se ontem o para-
digma da nossa acção deveria ser julgado na medida em que ela se aproxima 
à liberdade dos moçambicanos contra o jugo colonial, hoje a nossa utopia 
deve ser formulada em termos do que a liberdade conquistada comporta 
como responsabilidade; pensamos que o eixo desta responsabilidade está 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano96
num engajamento pela justiça social. Lutar pela liberdade hoje significa lutar 
por uma justiça social, é o que queremos dizer. Uma educação glocal deve 
estar em condições de avaliar os aspectos do passado, dos hábitos culturais, 
dos saberes locais a partir do ângulo em que eles se aproximam ao ideal da 
justiça social. Este é, se assim quisermos, um fim pelo qual vale a pena engajar 
o nosso pensamento e engajarmo-nos.
97
Este artigo resulta de uma série de conferências organizadas em Maputo 
por Nicolas Monnier no quadro do lançamento da Fundação Henri Alexan-
dre Junod. A primeira dessas conferências foi feita por Mia Couto, na qual, 
com toda a eloquência que se lhe reconhece, traçou um portrait biográfico 
exemplar de Junod, ainda por cima apoiado por uma série de ilustrações 
fotográficas do etno-missionário e do Moçambique do seu tempo. Por isso 
não vou refazer a biografia de Junod, mas reflectir sobre a actualidade da sua 
obra, isto é, trato de reflectir sobre uma série de actualidades sociais a partir 
dos problemas que se depreendem de uma leitura atenta do missionário e 
etnólogo romando. Para isso vou tomar como postulados algumas questões 
paradigmáticas solevadas por Mia: i) As suas classificações linguísticas e a 
sua dimensão antropológica; ii) A sua posição pró-Gaza e anti-portuguesas; 
iii) Os encontros com Frei de Andrade a Genebra que o levaram a atenuar 
as suas críticas ao colonialismo português.
A Dimensão Antropológica
Decidi subordinar esta reflexão às metamorfoses do meu percurso iden-
titário e a maneira como entrei em contacto com a minha identidade tsonga, 
categoria etno-linguística intrinsecamente ligada as classificações linguísticas 
e a monografia etnológica de Junod.
Eu nasci na então cidade de Lourenço Marques, de pais oriundos da 
província de Gaza, Ngoenha -Tusini da parte paterna e Mondlane - Cambane 
da parte materna. O estado actual das investigações da etno-história moçam-
PORA ACTUALIDADE DE JUNOD
Severino Elias Ngoenha 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano98
bicana avança a hipótese de uma origem Ndau dos ngoenhas, que teriam sido 
forçados a emigrar para as actuais províncias mais ao sul, sobretudo Gaza e 
Maputo, em seguida aos conflitos zulo do sec. XIX que acabaram levando os 
vencidos a fugirem para Moçambique e a constituírem o Império de Gaza.
A minha avó paterna, apesar de ter sempre sido idiomática e cultural-
mente uma Changana perfeita, quando tinha dois copos, metamorfoseava-
se e metia-se a cantar em Ndau. Contudo, apesar da guerra, dita civil, que 
assolou o nosso pais durante anos, ela nunca quis deixar o seu Chibuto natal, 
provavelmente porque nessas terras repousavam os restos mortais do seu 
querido marido, Ukjafeno Ngoenha, avó que não tive a sorte de conhecer. 
Assim, apesar dos esforços de toda a família ela persistiu em ficar em Chibuto 
perto do seu marido.
Todavia, o fenómeno das terras pesadas acabou fazendo claudicar a sua 
tenacidade; e quando se sentiu muito perto da morte tomou a última grande 
decisão da sua vida, mas infelizmente foi para trocar Chibuto pelo cemitério 
de Lhanguene.
O meu pai, se tivesse hoje vinte anos estaria na moda! Desde sempre tem 
dois furos nas orelhas, o que significa moda para muitos jovens hoje, mas que 
no passado remoto, era sinónimo de submissão aos vencedores Ngunis que 
chamavam aos futuros Tsongas junianos, thongas isto é vencidos, escravos 
ou mesmo cães.
Quando eu nasci, os meus pais viviam no Bairro do Aeroporto. Em 
casa, a língua era obviamente o Changana, mas bem cedo o meu Changana, 
como de muitas crianças da minha idade era uma mistura entre o Changana 
-intra-muros- e o Ronga da socialização ambiente, gradualmente substituí-
dos pelo português devido ao factor escola e por ter ido habitar num bairro 
cristão-lusofilo de São José de Lhanguene. 
Nós changanas-rongas-lusofilos não tínhamos ritos de iniciação, grios, 
circuncisão, e se os tínhamos, eu não os conheci. Os meus pais, cristãos 
praticantes, eram também contrários aos Timambas, não acreditavam nos 
feiticeiros, não frequentavam curandeiros. Breve, não fui educado no orgu-
lho de uma particular pertença identitária nem a nenhum munus axiológico 
culturalmente (etnicamente) conotado. A isto contribuiu o facto que quando 
a independência chegou eu tinha doze anos apenas.
99Pensamento engajado
Com a independência surgiu a primeira consciência identitária. Fas-
cinado por Samora Machel, pelos seus discursos carismáticos e incisivos, 
como todos os adolescentes da minha geração aprendi a ser moçambica-
no. Mas este postulado identitário era acompanhado por uma negação de 
outras identidades consideradas nefastas para a identidade moçambicana; 
tribalismo, regionalismo, racismo. Quer dizer que a minha compreensão 
identitária supunha a afirmação de uma identidade moçambicana, que por 
sua vez supunha uma apreensão negativa e a consequente negação de uma 
suposta identidade Ndau de onde provavelmente provêm os meus bisavôs 
(ou mesmo trisavôs), Changana de proveniênciados meus pais, Ronga do 
meu lugar de nascimento.
A minha afirmação como moçambicano foi de tal maneira marcante, que 
ainda hoje, talvez também por outras razões, continuo a fazer da moçambi-
canidade o socle fundamental da auto-compreensão do meu Eu em termos 
identitários. Eu me identifico, me compreendo e me afirmo antes de mais e 
sobretudo como moçambicano.
Apesar de ser então seminarista e membro da Igreja Católica (o que quer 
dizer universal) foi como moçambicano que fui continuar os meus estudos 
em Roma em 1984. Paradoxalmente, na capital da cristandade aprendi a ser 
africano. Não fui o primeiro nativo de algures em África a africanizar-se na 
Europa. Personagens como Senghor, Cheikh Anta Diop, Sekou Touré (…) 
tinham ido para Europa (França) como Walof, Serere, Bamaleque e foi em 
Paris que descobriram o orgulho de uma certa africanidade. Para isso tinha 
contribuído o encontro primeiro através da literatura e depois ad personam 
com os escritores da Black Rennaissance americana, em particular Langston 
Hugues, Claude Mackay; a descoberta do lugar central que ocupavam as 
chamadas artes negras na grande cultura parisiense – Josephine Baker – e eu-
ropeia – a importância do Jazz nos anos trinta, o reconhecimento da influência 
da escultura negra na revolução que o cubismo de Picasso, Braque, Matisse 
representa para a revolução da arte ocidental do sec. XX. Mas sobretudo, a 
mudança paradigmática da antropologia francesa a partir dos anos trinta, de 
uma perspectiva evolucionista, administrativa, residualista e racista, versus 
uma perspectiva crítica, que resultou na reabilitação das culturas africanas 
por Maurice Delafosse, Les Negres, Paris Rider, 1927; Georges Hardy, L’Art 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano100
Nègre, Paris, Laurens, 1927; Leo Frobenius, Histoire de la Civilisation Afri-
caine, Paris, Gallimard 1926. A este esforço de reabilitação vieram juntar-se 
os grandes nomes de Michel Leiris, Marcel Griaule, Georges Balandier, 
Lévi-Strauss, Mircea Eliade. 
Quando eu cheguei a Europa, na década oitenta, o movimento da negri-
tude estava já sem fôlego para seguir a corrida dos tempos, e estava substituído 
por uma literatura africana crítica com pressupostos e objectivos diferentes 
dos valores defendidos por Senghor, Cezaire e Damas. A partir dos anos 
setenta nos países francófonos e anglófonos os processos das independências 
africanas deixam no palco problemas identitários que ganham corpo através 
do nascimento de uma literatura filosófica, primeiro de carácter etnológica – 
Tempels e Kagame – e depois crítica – Hountondji, Towa e Eboussi.
Assim, enquanto a pouca filosofia que se aprendia em Moçambique era 
uma simplificação do marxismo para o maior número e escolástica para o 
exíguo número de seminaristas ao qual eu pertencia, os meus novos colegas 
oriundos da África anglófona e sobretudo francófona analisavam a emergência 
de um pensamento filosófico grego a partir de uma perspectiva que Assante 
chamaria de afroncêntrica que ia de Cheikh Anta Diop até Obenga, liam 
a filosofia da história e de direito de Hegel com os olhos críticos de Towa, 
analisavam as teorias diferencialistas de Gobineau a partir do criticismo de 
E. Firman e racialistas de Blyden, etc.
Então comecei a deixar-me instruir, não só pelos meus professores, es-
pecialistas em Aristóteles, Kant, Sartre, Habermas, Lyotard (...); mas também 
pelos meus colegas iniciados na neo-tentativa de filósofos africanos a levar a 
Africa a ser sujeito da sua Historicidade, através da mobilização dos métodos 
desta disciplina na análise da actualidade dos problemas do continente.
Esta introdução filosófica-africana de carácter teórica e epistemológica 
foi acompanhada por uma imersão nos dilemas etno-antropológicos de 
uma africanidade vivida, que se manifestavam sob forma de etnicismos, que 
levavam muitos colegas de um só e mesmo país a agruparem por zonas de 
origem, pertenças étnicas, línguas de comunicação comum, etc.
Em relação a esses colegas eu sentia-me diferente, distinto, particular. 
Porque fazia parte do último grupo de países a aceder a Independência? 
Porquê a Independência teve que passar por um processo de luta de liber-
101Pensamento engajado
tação nacional? Pelas opções ideológicas do país que é o meu? No colégio 
urbano, em frente mesmo da Basílica S. Pedro, onde vivi quatro anos, colé-
gio histórico construído sobre um antigo cemitério romano por vontade de 
Urbano VIII em seguida aos eventos que tinham levado a condenação de 
Jordano Bruno e de Galileu e a necessidade de dar uma formação substancial 
e uniforme (propaganda fidei) aos futuros evangelizadores do novo mundo, 
Moçambicanos éramos dois, mais tarde três. Um do sul, eu, um do centro 
e outro do norte.
Contrariamente aos nossos colegas, quer fossem do Uganda, do Zaire ou 
da Nigéria que apesar do catolicismo e no alto nível de instrução juntavam-se 
só por regiões de proveniência, nós moçambicanos estávamos sempre juntos, 
falávamos sempre português (características sobre as quais o colonialismo e 
a Frelimo estavam de acordo) para a surpresa e incompreensão dos nossos 
colegas. Aliás, a questão mais comum colocada por eles era: vocês vêem da 
mesma tribo, são da mesma região, porque falam português entre vocês?
Padres ou seminaristas, nós moçambicanos, membros de uma qualquer 
etnia, raça ou região, universalistas pela nossa profissão de fé; nós luso-falantes 
pelo assimilacionismo colonial português e pelas estratégias de unidade post-
colonial, éramos antes de tudo e sobretudo moçambicanos.
O afro-moçambicano talvez fosse melhor dizer o moçambicano-africano 
em que eu me tinha tornado, solicitou um professor alemão para dirigir a 
sua tese de licenciatura sobre temas de filosofia africana. Isso não é filosofia, 
ouvi-me responder. E de uma maneira mais pertinente, você é jovem, aprenda 
a fazer filosofia debruçando-se sobre os clássicos da disciplina, quando tiver 
aprendido e consolidado o método e o espírito da filosofia, então fará o que 
quiser. Que remédio, aceitei a melhor parte deste discurso epistemologica-
mente e moralmente discutível e fiz uma tese de licenciatura sobre Giovanni 
Battista Vico e um doutoramento sobre Vico e Voltaire.
Enquanto me debruçava sobre a minha tese, durante as férias de verão fui 
a Londres para um estágio linguístico. Inscrevi-me numa escola, a Tottridge, 
quarteirão norte da cidade, dirigida por uma sul-africana. Numa sexta-feira, 
depois de uma pequena festa da escola, a directora pediu-me para acompa-
nhar uma estudante que vivia perto da casa onde eu era hóspede. Como sou 
obediente e fiel aceitei, e desde então acompanho essa jovem, que desde há 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano102
doze anos tornou-se minha esposa. Por acaso essa moça era Suiça – da parte 
italiana e, ainda mais por acaso, entre as diferentes possibilidades que tinha 
ela escolheu fazer os seus estudos universitários em Lausanne.
Junod era suíço de Neuchatel. O azar quis também que a única missão 
Suiça de língua francesa - havia outra de língua alemã em Basel - tivesse sido 
fundada em Lausanne. 
Foi um antropólogo de Universidade de Lausanne, Gerald Berthoud, 
que me levou a me interessar pela missão romande. Nunca soube se a sua 
principal motivação fosse a estima que ele tinha pelo trabalho científico de 
Junod, a quem ele consagrou um capítulo num dos seus livros, Antropolo-
gia Geral Teoria, ou se estava a procura de traços de um outro Berthoud 
que no fim do sec. XIX de Neuchatel, de onde ambos eram oriundos, tinha 
desembarcado em Moçambique fundado a missão Suíça. Alías Berthoud e 
Junod são os únicos missionários cujos restos mortais repousam em Rikathla.
Apesar de existirem algumas obras e objectos, sobretudo de carácter 
etomológico e etno-museológico nos depósitos e na biblioteca do museu de 
etnologia de Neuchatel, os principais trabalhos de Junod encontram-se nos 
arquivos de departamento missionário de Lausanne, sobejamente conhecido 
entre nós, por ter sido frequentadopor investigadores, como Teresa Cruz 
e Silva, Alexandrino José, Janet Mondlane, Nicolas Monnier, entre outros. 
Quando pela primeira vez fui ao Departamento Missionário, fui rece-
bido por um bibliotecário angolano que se mostrou interessado em receber 
um investigador moçambicano, mesmo se o meu «catolicismo» e percurso 
jesuíta – a universidade gregoriana onde fiz a minha tese é a Meca do saber 
jesuíta – suscitou algumas perplexidades. Soube rapidamente que o traba-
lho de arquivo e de catalogação dos diferentes documentos existentes na 
biblioteca era obra de um certo André Clerc, antigo missionário que depois 
do seu regresso definitivo para Suiça nos anos sessenta, tinha dedicado a 
esse trabalho o essencial do seu tempo. Para além de ser a principal chave 
para a compreensão da particular organização dos arquivos do DM, André 
Clerc passou a ter para mim uma importância ainda maior quando soube 
que ele tinha sido o tutor de Eduardo Mondlane com quem manteve uma 
correspondência intensa – que se pode consultar nos arquivos – quer no 
período em que Mondlane esteve em Chikuki, quer no período americano 
103Pensamento engajado
passando pelo período delicado dos seus estudos na África do Sul. Por outro 
lado, vim a saber que Clerc tinha sido o fundador dos miklawas onde tinham 
germinado ideais nacionalistas nos jovens como Mondlane, Mocumbi, Graça 
(…). Soube que Clerc era o responsável da comissão das bolsas de estudo 
que permitiu a formação de um certo número dos quadros moçambicanos 
do post-independência. Soube das relações estreitas que existiram, durante 
a Luta de Libertação Nacional, entre a Frelimo e o DM; basta pensar que 
esta estava constantemente sob vigilância da PIDE.
Um dia enquanto trabalhava na biblioteca e falava com curiosidade e 
interesse do papel importante de Clerc na vida de Mondlane, de Moçambique 
e da sistematização dos arquivos ouvi-me perguntar, porque não vai vê-lo? 
Ele é velho mas ainda completamente lúcido.
Foi assim que vim a saber que ele estava ainda vivo. 
Pedi o número de telefone e chamei imediatamente. Alô, aqui André 
Daniel Clerc. Quem é o senhor? Quem era eu? Ou para dizer como Mon-
taigne, quem sou eu? Católico educado em Roma por Jesuítas, casado com 
uma Suiça, membro da Universidade de Lausanne, não como estudante, mas 
como professor. A minha imagem (portait) não correspondia em nada ao 
que o «velho missionário», educador de gerações de moçambicanos poderia 
esperar.
– Sou «moçambicano» e chamo-me Severino (…); antes que eu pudesse 
terminar Clerc interrompeu-me para perguntar U wa ka mani (Donde vens 
e de quem és filho ou qual é o teu apelido):
Ni wa ka Ngoenha, ni huma kapfumo (je suis un Ngoenha, je suis ori-
ginaire de Maputo).
U wa ka hina (Tu és dos nossos!). Eu acabava de descobrir, que ao lado 
da minha identidade moçambicana ligada, primeira a delimitação geo-colonial 
de Berlim e depois a Independência nacional mas sobretudo a minha escolha; 
ao lado da minha identidade africana ligada a minha africanização em Roma 
mas também a minha adesão, eu tinha uma outra identidade imputativa que 
até então eu ignorava: que se declina missiologica e antropologicamente 
como Tsonga.
O que é que significava e de quê (circunstâncias) e quem dependia uma 
tal identidade?
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano104
Em poucas palavras e a priori se pode responder que a ideia de uma 
identidade Tsonga é intrinsecamente ligada à missão, aos seus debates etno-
linguísticos ligados às suas necessidades de evangelização, às necessidades 
escriturais do repertório protestante, e por último à circunspecção etnográfica 
dos trabalhos de Junod. 
A razão de ser desta pretensa identidade tem, portanto, que ser procurada 
do lado da missão suíça, nas metamorfoses históricas que levaram à criação 
da missão de Vaud (conflito com o poder político da terra de origem), na 
dimensão missionária da jovem Igreja Livre, no repertório protestante que 
exige a transmissão da fé através da Bíblia, nas vicissitudes histórico-sociais 
da Europa na fase da industrialização, nos paradigmas evolucionistas do sec. 
XIX, nos processos classificatórios das ciências a partir do sec. XVIII, nos 
conflitos católico-protestantes, etc. Breve, é do lado de Lausanne e da missão 
Suíça que se tem que indagar a razão de ser desta construção identitária.
Ora, no Moçambique da II República, começaram veleidades tribais 
bastante veementes. Não se trata simplesmente de Ndaus e Senas no Centro, 
ou Macuas e Macondes no Norte, mas sempre mais se ouve falar nos Rongas, 
Changanas e Bitongas no Sul; e mesmo de Tsongas sobretudo pelos membros 
da Igreja Presbeteriana... 
Também participa desta forma de veleidades étnico-tribais, o surto 
repentino de associações de amigos de Gaza, da Zambézia, do Maputo; e 
risca de ganhar proporções políticas se o Ministério de Educação tem que 
deferir ou transferir a introdução do ensino bilingue por razões de equilí-
brio étnico-linguístico ou pior, se ou principais partidos políticos nacionais 
se identificam ou são identificados com uma região, ou pior, com uma dita 
identidade étnica. O que significa que não somos indemnes de um conflito 
étnico no país, com consequências que podem ser muito nefastas como vimos 
no Biafra dos anos sessenta ou no Ruanda dos anos noventa. 
Estudar Junod, como outras figuras de invenção identitária pelo Mo-
çambique fora, deveria levar-nos a ter consciência da dimensão construída, 
inventada, das nossas ditas identidades étnicas muitas vezes por razões – 
bíblicas, teológicas, cristãs, missionárias, coloniais – alheias e em princípio 
coercivas em relação a uma certa autonomia aos nossos processos sociais. 
Mesmo se devemos também reconhecer, que a invenção exógena partiu de 
105Pensamento engajado
dinâmicas proto-culturais que já estavam presentes, e foram seguidas por um 
processo de re-apropriação pelos actores locais.
Ter consciência destes processos talvez nos leve a moderar/atenuar 
certas adesões acríticas a certas reivindicações identitárias, que na realidade 
representam ou podem representar uma ameaça a convivialidade civil mo-
çambicana, espaço identitário que não resulta simplesmente da arbitrária 
divisão de Berlim, nem das estratégias assimilacionistas luso-católicas de 
António Ennes; mas da capacidade dos nacionalistas moçambicanos de faze-
rem uma leitura histórico-política objectiva quanto ao espaço geo-político da 
reivindicação das independências, que não podiam ser de nenhuma maneira 
as etnias, como também não puderam ser nem a África unida de Nkrumah, 
nem os espaços de complementaridade cultural de Cheikh Anta Diop, nem 
os espaços de complementaridade económica de Mamadou Dia; mas as fron-
teiras coloniais assumidas pela carta da Organização da Unidade Africana. 
E segundo lugar, pela coragem de mobilizarem os eláns proto-nacionalistas 
existentes (Udenamo, Unamo, Mani) alguns nascidos mesmo nos miklawas 
tsonga-centradas, para reivindicarem uma moçambicanidade.
Uma das funções (talvez fosse melhor dizer desafio) dos estudos sociais 
e antropológicos é deconstruir estas realidades identitárias, relevando o seu 
carácter «construído» por razões, muitas vezes exógenas e desconhecidas aos 
actores locais. Em todo o caso, ter consciência da dimensão construída das 
identidades étnicas e culturais deveria relativizar adesões muitas vezes acrí-
ticas a certos etnocentrismos que podem minar a identidade moçambicana.
Mas a identidade moçambicana é também uma construção – eu diria 
mesmo a infieri – em nome da qual, num primeiro momento combateram-se 
ideologicamente (matar a etnia para nascer a Nação) as identidades locais. 
O problema é saber como equacionar os diferentes níveis de pertença não 
para que se excluam nem que se combatam, mas para que se completem. 
O segundo desafio da ciência entre nós é criar os pressupostos, as bases, 
as teorias, os postulados, os axiomas, para fazer uma ciência que nos permita 
de melhor apreender as nossas realidades sociais.
Há alguns anosatrás em frente da entrada principal da Universidade 
Eduardo Mondlane viam-se muitos trabalhadores que participavam na cons-
trução das embaixadas da China e da Alemanha. A maioria dos pedreiros, 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano106
carpinteiros que participaram nessas empresas limitavam-se a seguir ordens 
e ignoravam completamente quer a estrutura das obras em construção quer 
o resultado: um edifício de arquitectura asiática e outro europeu. Quem 
conhecia antecipadamente o resultado era o arquitecto que projectou a obra.
Fazer ciência significa não limitar-se a ser pedreiro, mas ousar ser ar-
quitecto. Este é um déficit ou, se quisermos, um dos desafios da ciência em 
Moçambique. Ora, Junod também correu o risco de limitar-se a ser pedreiro e 
nunca ser um arquitecto, pois os seus primeiros trabalhos etnográficos foram 
subordinados a um questionário que recebeu do antropólogo administrativo 
inglês Lord Brice. Muitos outros missionários na América Latina, na Austrá-
lia e em África e na Ásia tinham recebido questionários da escola francesa 
ou inglesa e o trabalho deles tinha sido preencher fichas e questionários e 
enviá-los aos antropólogos que estavam nas capitais. Morgan, Taylor foram 
alimentados assim e daí produziram as suas monografias. 
Junod não se contentou em preencher as casinhas que lhe foram man-
dadas pelos sábios de gabinetes, mas ele foi para além disso e é isso que faz 
com que ele seja reconhecido e os seus trabalhos pertinentes para as análises 
sociais hodiernas. Quer dizer que ele entrou em contacto com os paradigmas 
teóricos então vigentes, com os construtores de estradas ingleses mas também 
francesas. Se ele tivesse simplesmente preenchido as casinhas nunca teria 
sido o antropólogo que ele é hoje. Ele foi o trabalhador predestinado a ser 
pedreiro mas que com a sua curiosidade e trabalho ousou projectar o seu 
próprio edifício, é por isso que hoje ele faz parte dos antropólogos reconhe-
cidos pela sua particular contribuição ao mundo científico.
O desafio que se coloca às ciências sociais moçambicanas é que não se 
contentem em ser pedreiras dos arquitectos Bourdieus, Levy Strauss; Mas 
que procurem na emergente filosofia africana crítica e hermenêutica e post 
colonial – pressupostos teóricos de reflexão – sem que isso signifique virar 
as costas à teorização ocidental. Mas sobretudo, que não reduza o projecto 
antropológico ao estudo dos selvagens de Moçambique, mas ouse reflexiva-
mente uma auto-reflexão crítica (sciere) e mesmo tomar os missionários de 
ontem e de hoje – cooperantes, doadores, ONG – como objecto de estudo.
107Pensamento engajado
Entre o Assimilacionismo e o Multiculturalismo
A pertinência científica e a actualidade da obra de Junod reside também 
no facto de ele ser susceptível de ser mobilizado para uma melhor compre-
ensão de fenómenos socio-políticos que constituem preocupações actuais 
quer para a sociologia como para a filosofia política.
Com o fim do apartheid, a África do Sul orientou-se de uma espécie de 
multiculturalismo doutrinal iniciado por Henrik F. Verwoerd, em direcção a 
uma espécie de assimilacionismo (Ubuntu). Ao mesmo tempo, Moçambique 
fez o caminho inverso: do assimilacionismo colonial seguido pela doutrina 
revolucionária do «matar a tribo para criar a nação», foi se repristinando o 
reconhecimento e a valorização das diferenças culturais internas, a partir da 
introdução da educação bilingue (método pedagógico outrora praticado no 
Sul de Moçambique pelos missionários suíços), até a derrapagens etnicistas 
preocupantes que vão do surto repentino de organizações de amigos desta 
ou daquela cidade (que em alguns casos os nomes das cidades são simples 
sinónimos, apenas velados de revindicações étnicas) até uma certa etnicização 
da política. 
O mundo actual, dito de globalizado – utilizo globalização porque é 
ligado ao conceito geográfico de globus que entra na linguagem científica a 
partir do século XVI, enquanto mundialização é ligada a filosofia e teologia 
da história começada por Santo Agostinho no século IV (cfr. Marramão) – é 
caracterizado, entre outras coisas, por uma grande mobilidade de pessoas, de 
raças, de religiões e de culturas. Quando as pessoas vão do Sul ao Norte são, 
de todas as maneiras cunhadas de imigrantes e, por conseguinte, intimadas 
a se integrarem o que é de facto um eufemismo para dizer que se têm que 
assimilar. Em contrapartida, a deslocação Norte-Sul independentemente das 
razões chama-se cooperação, o que dá aos generosos «expatriados» direito 
a manter as suas especificidades culturais que de todas as maneiras são su-
periores que as práticas dos indígenas… 
No debate actual quanto aos «modelos de gestão da diversidade», a 
América do Norte (Canadá e Estados Unidos) privilegiam o modelo multi-
cultural, por razões inerentes a sua génese histórica: a situação da comuni-
dade amero-indiana, os afro-americanos, as perseguições e as guerras entre 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano108
religiões que estão na base da imigração de muitos europeus para os EUA 
entre os séculos XVI e XVII, a matris anglo-saxónica das elites americanas, 
as imigrações europeias dos séculos XIX e XX. 
Pode-se considerar que o apartheid na África do Sul foi, em definitivo, o 
multiculturalismo levado às suas consequências extremas, e esta tem sido uma 
das críticas que a Europa Ocidental tem feito ao modelo norte-americano; o 
perigo da criação de um apartheid sob forma de «gethização» com todos os 
corolários de conflitos sociais que uma tal situação provoca. É assim que ao 
invés do multiculturalismo, e contra o velho sistema assimilacionista praticado 
na época colonial (França e Portugal), a Europa política fala de integração (o 
que comporta o respeito de uma base axiológica comum que torna possível a 
vida social, mas ao mesmo tempo a possibilidade dos diferentes indivíduos e 
grupos terem valores próprios e fazê-los mesmo beneficiar aos concidadãos) e 
a Europa científica viu lá a possibilidade de abrir um novo domínio de saber 
intitulado intercultura.
Ora, esses debates que na Europa são contemporâneos, constituíram 
os substratos das ideologias políticas na África Austral desde o fim do sec. 
XIX com as estratégias assimilacionistas começadas com António Ennes em 
Moçambique, e as estratégias separatistas da África do Sul que com Verwoerd 
atinge simplesmente o cume de um processo iniciado muito antes.
Junod atravessou, de uma maneira atenta e muitas vezes crítica, as fron-
teiras políticas desses dois sistemas sem nunca chegar nem a aderir nem a 
opor-se totalmente a nenhum deles. Para o etnólogo – e teólogo romântico 
– que ele era, o apartheid sul-africano tinha uma faceta positiva na medida 
em que favorecia a emergência e a afirmação de particularidades, expugna-
das do outro lado da fronteira pelo assimilacionismo português. Ao invés, 
para o missionário, a irredutibilidade ontológica entre as raças no sistema do 
apartheid metia em causa a universalidade do cristianismo e abria espaço a 
teorias poligenistas e predeterministas, o que os pressupostos evolucionistas 
do assimilacionismo não permitiam.
Por conseguinte, a África, nas suas metamorfoses históricas e Junod na 
sua maneira de estar, entre o registo universalista e assimilacionista da missão 
e as preocupações particularistas do etnólogo, são de grande pertinência 
e actualidade nos debates hodiernos da filosofia política e sobretudo, na 
109Pensamento engajado
exigência actual de encontrar um modelo que permita uma convivialidade 
pacífica entre pessoas de culturas diferentes, que não é um epifenómeno, 
mas tornou-se constitutivo das sociedades contemporâneas.
Junod e o Colonialismo
Entre os vários conotativos atribuíveis a Junod – missionário, antropó-
logo – a categoria mais geral, mas também mais problemática é a categoria 
de colonizador. Com efeito, Junod defendia a colonização dos africanos, 
ele veio para a África como colonizador. Só que colonialismo no sec. XIX 
é um conceito positivo.Colonizar queria dizer libertar o negro da pobreza, 
da escravatura, do islamismo, etc. Então dizer-se grande colonizador no sec. 
XIX era sinónimo de grande filantropo, humanista. Os colonialistas, aliás 
humanistas de hoje chamam-se doadores, ONGs, cooperantes, ...
Se o missionário era tão colonizador como o militar e o mercante, eles 
diferiam contudo nos objectivos. O que diferencia Junod de António Ennes 
primeiro e de Mouzinho de Albuquerque depois, é que os portugueses que-
riam colonizar Gaza de um colonialismo de exploração. Enquanto Junod 
concebia a colonização da África e dos africanos por parte dos europeus 
simplesmente como meio para libertar os negros do paganismo e da igno-
rância. Como a escola de Salamanca no sec. XV (Soares, Vitória) a propósito 
da colonização da América, ele subordinava a Ius inventionis à Ius praedi-
canda evangelium. Era necessário que a colonização fosse rentável para as 
duas partes senão seria moralmente injustificável. Esta é a razão pela qual no 
conflito do fim do sec. XIX que opôs portugueses – que queriam reintroduzir 
a escravatura através do xibalo – e Gaza, ele era da parte de Ngungunhana.
Este combate de Junod é ainda de grande actualidade, dado que algumas 
práticas económicas e sociais de hoje (condições de trabalho e salários) levados 
a cabo pelos novos «Mouzinhos» de Albuquerque, que sejam moçambica-
nos, portugueses de volta, sul-africanos ou outros agentes da globalização 
económica se parecem muito com o xibalo do passado.
A diferença específica do colonialismo de Junod era a missão cristã. Foi 
por razões de envagelização que ele deixa a Suiça, e atravessa fronteiras geo-
gráficas, linguísticas, culturais até chegar no que hoje é Moçambique. Todavia, 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano110
ele trazia já consigo uma certa inclinação para os estudos sociais – o que vai 
muito interferir no seu trabalho de missionário -, na medida que ele fazia 
parte daquelas pessoas que olhavam com uma certa angústia as transforma-
ções bruscas que se produziram na Europa em seguida à revolução industrial 
e que levaram a perda de identidades locais, do folclore, de especificidades 
culturais, de referências morais, etc. 
Este processo de transformação era tanto mais significativo, quanto na 
esteira da filosofia e da teologia românticas, Junod pensava que as identida-
des, as línguas e as culturas fossem espaços epifánicos privilegiados para a 
revelação divina. Por isso, Junod chega à Moçambique com predisposição 
de defender particularidades. O grande dilema é como conciliar a actividade 
missionária com a actividade antropológica. 
O missionário é alguém com convicções fortes, que tem «verdades» a 
levar aos outros homens, povos e culturas. E em nome das suas verdades ele 
intima os outros a abandonarem as suas crenças e práticas culturais inerentes. 
Neste sentido o missionário é um reformador de crenças mas ao mesmo tempo 
também de culturas. Como consequência, o missionário que acredita que a 
sua fé pode ser difundida sem limites de fronteiras geográficas, linguísticas 
e culturais, é na realidade um universalista. 
O etnólogo, por sua vez, de um lado não tem verdades a transmitir, está 
mais interessado a aprender das culturas que a ensinar; por outro lado está 
interessado na maneira particular através da qual a humanidade dá razão a 
existência por meio de uma cultura particular. Neste sentido, a pior coisa que 
pode acontecer com um antropólogo é chegar a um lugar por onde tenha já 
passado um missionário.
Ora, Junod – e aqui reside ambiguidade do seu trabalho – é ao mes-
mo tempo um reformador de culturas e um defensor de particularidades. 
Podemos questionar a sua pretensão de ter estado, exactamente porque 
missionário, numa posição privilegiada para fazer a sua inchiesta etnológica, 
como podemos também questionar a pertinência epistemológica de inchiesta 
antropológica que se limita unicamente a aurir informações nos já convertidos 
membros da Igreja.
Mutatis mutandis devemos relevar que já na introdução da sua célebre 
monografia ele afirma querer ser o mais objectivo possível, tentando render 
111Pensamento engajado
as particularidades do grupo sem tentar influenciar e interferir nelas. Foi 
esta perspectiva teórica muito próxima da antropologia científica do seu 
tempo que fez dele um dos poucos antropólogos missionários: o facto de ter 
reconhecimento e pertinência nos debates académicos. 
113
A questão que pretendo tratar é esta: Nos tempos de pobreza que afec-
ta a maioria dos moçambicanos, qual pode ser a contribuição específica da 
pesquisa educacional no alívio ao sofrimento dos moçambicanos (devido à 
pobreza)? 
E a proposta que quero defender é esta: Para que a educação contribua 
realmente para o combate à pobreza é necessário que o projecto educacio-
nal assente nas necessidades materiais e espirituais das comunidades. Esta 
proposta parte do pressuposto básico que a pobreza da qual a sociedade 
moçambicana enferma, tem uma face material, mas também tem outra face 
que é imaterial. Por consequência, a pesquisa educacional é chamada em 
primeira linha a elaborar um discurso pedagógico a partir do inventário atu-
rado que deve fazer sobre as necessidades básicas de aprendizagem materiais 
e imateriais tendo como centro comunidades concretas. Penso que esta é a 
direcção que as linhas de pesquisa que se desenvolvem, tanto na Universidade 
Pedagógica assim como em outras instituições de educação, poderiam tomar 
se têm como pretensão serem úteis na luta contra a pobreza.
Se formos a falar em termos gerais, a pobreza material e a pobreza espi-
ritual, chama-nos a atenção para a necessidade de acelerar o aprofundamento 
de duas «revoluções» que penso estarem a tomar seus contornos próprios 
na sociedade moçambicana: uma é a revolução agrícola cujo objectivo é 
eliminar a fome e a pobreza material. A outra é a revolução cultural cujo 
marco fundamental é uma dupla abertura: para as novas tecnologias e para 
PEDUCAÇÃO E POBREZA* 
José P. Castiano 
* Texto da oração de sapiência pronunciada em Quelimane por ocasião da abertura do ano 
lectivo na Universidade Pedagógica, a 22.02.2005.
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano114
os saberes locais. A luta contra a pobreza é apenas uma fase dum objectivo 
mais amplo: o desenvolvimento de Moçambique. Mas o desenvolvimento 
deve basear-se no homem moçambicano que vive em comunidades concretas. 
Este deve estar apto para dominar tanto as novas tecnologias e usá-las em 
prol do desenvolvimento, assim como ser capaz de beber dos saberes locais 
e tradicionais que estão depositados em pessoas concretas nas comunidades 
na medida em que (as tradições) são mobilizáveis para dar respostas aos 
problemas inerentes à pobreza.
Para ilustrar a ligação entre a pobreza material e imaterial, permitam-me 
que o faça por meio de uma história: 
Durante um festival tradicional chamado «Ndaam Koya», David Millar, 
membro de uma organização denominada CECIK encontrou Adongo Nso, 
um velho da comunidade Gowrie-Konkwa no norte de Gana. O velho esta-
va a tocar um instrumento musical muito antigo que emitia melodias estra-
nhas, mas muito bonitas, próprias para celebrar o evento. Esta era a primeira 
vez que David via aquele instrumento e escutava aquele tipo de música, não 
obstante ele estar a trabalhar há muito tempo naquela mesma vila. Assim, ele 
aproximou-se ao velho que lhe fez revelações interessantes:
David: Que idade tem este instrumento e há quanto tempo o tem estado a 
tocar? Eu venho anualmente para estas celebrações de «Ndaam Koya», mas 
nunca lhe tinha visto a tocar este instrumento!
Adongo Nso: É um instrumento muito antigo usado pelos nossos antepas-
sados para adorar os seus antepassados ou para as cerimónias fúnebres. So-
mente a minha família tem habilidades de fabricar e de tocar este instrumen-
to. Não é possível encontrá-lo num outro lugar.
David: Imagino que tens uma família muito grande. Quantas pessoas da tua 
família sabem tocar este instrumentoe quantos jovens da tua família sabem 
tocar ou estão a aprender de si a usá-lo?
Adongo Nso: Somente dois de nós sabemos usar este instrumento. Eu e o 
meu irmão gémeo! Os nossos filhos e netos recusaram aprender porque eles 
disseram que é um instrumento tocado por homens pobres e que iria perpe-
115Pensamento engajado
tuar a sua pobreza; como vê, as pessoas vêm a pobreza em várias dimensões. 
Adicionando ao facto de não ter condições materiais, pode também ver-se 
como uma pobreza de espiritualidade, de conhecimento e de habilidades.
David: Podes explicar um pouco mais esta outra dimensão da pobreza?
Adongo Nso: Os missionários foram os primeiros a dizer-nos sobre a nossa 
pobreza espiritual. Eles pensaram que pobreza era venerar os nossos an-
tepassados. Eles mesmos ocuparam-se de fazer-nos cada vez mais pobres 
destruindo as nossas religiões.
A seguir os funcionários do Governo vieram com os seus conhecimentos 
sobre a produção alimentar e de novo nos disseram que o nosso conheci-
mento, a nossa capacidade de produzir era pobre. Estes também nos fizeram 
cada vez mais pobres ao tentar destruir o nosso conhecimento e substituí-lo 
com as suas técnicas. Hoje temos uma pobreza «absoluta» na nossa comu-
nidade e estes que substituíram os nossos conhecimentos e capacidades são 
responsáveis por isso.31 
David: E qual é a sua sugestão para isso?
Adongo Nso: O Governo deveria, de certo, olhar para a pobreza material. 
Mas a pobreza no conhecimento, capacidades e espiritualidade deveriam 
também fazer parte da sua preocupação.
O Governo de Moçambique acaba de anunciar que cerca de 75% do 
orçamento será aplicado nos diversos programas de redução da pobreza32 . 
Penso que a história que acabei de contar pretende mostrar que a pobreza 
não pode ser só equacionada em termos materiais. Aliás nos mostra que a 
pobreza espiritual está muito mais enraizada em nós do que às vezes pensa-
mos. Neste aspecto aprecio bastante o lado da pobreza que o actual Chefe 
31 Tradução livre minha de: MILLAR, D.; HOOFT, K.; HAVERKORT, B.; HIEMSTRA, W., An-
cient Visions and New Challenges. In: Compas Magazine for Endogenous Development. Nr. 4, 
March 2001. 
32 Segundo o Telejornal das 20 horas, de 17.02.2005 na Televisão de Moçambique (TVM).
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano116
do Estado costuma falar. Pois, se ele insiste na ideia de «os moçambicanos 
devem confiar nas suas próprias forças» para vencer a pobreza, isto significa 
que é um apelo para mobilizarmos os inimigos não materiais do desenvolvi-
mento, aos quais o nosso velho Nso na nossa história classifica de «pobreza 
de conhecimento, de habilidades e de espiritualidade».
Como então a pesquisa educacional pode redireccionar-se para que 
contribua para o combate à pobreza? Se quiser tornar a história frutífera 
para o tema que estou a abordar, ou seja redireccionar a pesquisa na educa-
ção para o combate à pobreza pondo no centro a comunidade na definição 
das necessidades de aprendizagem, então o velho Nso na nossa história faz 
quatro propostas interessantes, a saber: a primeira, em relação ao objecto da 
pesquisa educacional; a segunda, em relação ao sujeito da pesquisa educacio-
nal; a terceira, em relação às metodologias de pesquisa e a quarta em relação 
à utilidade social dos resultados da pesquisa (responsabilidade perante as 
comunidades).
Em seguida vou explorar cada uma destas propostas.
Primeiro: Em termos do objecto de pesquisa. A comunidade deve ser o 
objecto central da pesquisa educacional. Colocar a comunidade no centro 
significa que ela é o início e o fim da pesquisa educacional. Pondo a comuni-
dade como o objecto central da pesquisa no contexto da luta contra a pobreza 
significa, em primeiro lugar, equacionar as metas da «Educação Básica para 
Todos» assim como os «Objectivos do Milénio» a partir da comunidade. 
Concentremo-nos na Educação Básica para Todos tal e qual ela foi definida 
na Conferência de Jomtien. Para isso temos de equacionar o que significa 
«educação básica», por um lado, e o que significa o termo «todos», por outro 
lado Esta equação vai ser feita evidentemente a partir de uma comunidade. 
Comecemos pelo termo «básico». Na aplicação prática há uma restrição de 
educação básica para uma educação escolar ou primária. O termo básico 
pretende sublinhar que não é só com a formação escolar primária que se po-
dem cobrir as necessidades básicas de aprendizagem. Pois, as que se podem 
considerar como sendo necessidades básicas para um indivíduo, se estendem 
e variam ao longo de toda a vida. Portanto, não deve reduzir-se a educação 
básica a uma educação oferecida pela escola primária e esta não deve bastar 
117Pensamento engajado
para o indivíduo. Por outro lado o básico é confundido com o mínimo ou seja, 
as necessidades básicas passaram a ser entendidas e aplicadas no sentido de 
«o mínimo que se pode dar», de «pacote restrito e elementar de capacidades» 
úteis para satisfazer as necessidades imediatas. Na aplicação dos programas 
de ensino básico, o conceito de necessidades básicas passou a ter a conotação 
de «programa mínimo», «conteúdos mínimos», ou ainda «padrões mínimos» 
de aprendizagem. Mas partindo da ideia de que cada escola deveria ter o 
seu projecto pedagógico e este deve assentar-se nas necessidades básicas da 
comunidade, então e pondo a comunidade no centro da pesquisa, teremos 
que ser capazes de definir o que pode ser considerado uma educação básica 
para cada escola numa determinada comunidade.
O outro termo a equacionar é o de «todos». No tempo das matrículas, 
as nossas comunidades e bairros quase que se dividem em duas partes: en-
tre as crianças que conseguiram a matrícula e as que vão ficar mais um ano 
fora da escola; entre os pais e encarregados que conseguiram matricular os 
seus filhos e educandos e aqueles que não conseguiram fazê-lo. Então aí o 
termo «todos» se restringe aos poucos com lugar na escola. A pergunta é: 
e os «outros» que não conseguiram entrar na escola perdem o seu direito? 
Ficam desempregados? Quais são as alternativas que se lhes oferece? O sis-
tema de educação elitista que herdamos do colonialismo está desenhado por 
formas a «lavarmos as mãos» para os «outros» mal o processo de matrículas 
termine. Pois, após terminar o processo das matrículas, concentramo-nos 
então literalmente na parte das crianças da comunidade que conseguiram 
matricular-se para lhes fornecer livros, afectar ou contratar professores, etc. 
Os jovens que perderam a matrícula, os adultos e as mulheres fora do sistema 
escolar, ficam a espera para o outro ano. Estão condenados a não terem a 
oportunidade de desenvolver as suas capacidades para o combate efectivo 
à pobreza material e imaterial. A linha divisória nas comunidades e bairros 
entre as pessoas nas comunidades passa a ser a escola. 
Penso que aqui a pesquisa educacional tem muito a dar na luta contra 
a pobreza, apontando ou reordenando as linhas de pesquisa tanto para os 
que estão dentro do sistema como para os que estão de fora. 
Para as crianças que estão dentro do sistema poderia formular questões 
concretas que afectam a aprendizagem nas comunidades (que podem ser 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano118
tratadas usando métodos qualitativos e quantitativos). A título de exemplos 
de perguntas podemos formular as seguintes: qual a percentagem de crian-
ças que devem tomar conta dos irmãos em casa? Quais e como as crianças 
ajudam aos parentes nos trabalhos caseiros? Qual é a percentagem daqueles 
que desistem porque devem ajudar na agricultura e/ou na pastagem? Qual 
é a parte de crianças que num determinado ano teve de começar a trabalhar 
para poder ganhar o pão? Quais são as crianças que desistiram pelo facto de 
os pais não estarem interessados na sua escolarização ou na continuidade dos 
estudos? Quantas crianças desistiram por causa dos custos reais (apesar de a 
escola teoricamente ser gratuita)? Quantas crianças na comunidade desistiram 
porque tinham que tomar conta dos doentes nas suas respectivasfamílias? 
Por gravidez? Quantas refeições têm as crianças em casa? Estas e outras mais 
perguntas estão dirigidas para apurar os factores da pobreza que afectam a 
aprendizagem ou provocam a desistência obrigando o Estado a despender 
recursos enormes. Penso que o pesquisador, ao direccionar as linhas de pes-
quisa para estes problemas, pode influenciar positivamente para a definição 
de estratégias educacionais a nível da comunidade e pode também ganhar 
espaço na definição do discurso educacional. Mas penso também que este é 
o tipo de informações ou dados que os directores de escolas e os directores 
distritais de educação devem dominar para terem maior domínio das polí-
ticas educacionais a nível local e poderem optar por vias mais acertadas na 
implementação da educação para todos também ao nível local.
O que pode fazer o pesquisador educacional para os que estão fora da 
escola, sobretudo para os jovens e para as raparigas nos bairros e nas comuni-
dades? Penso que a ideia lançada em Jomtien e que infelizmente ficou apenas 
bastante teorizada, porque não se traduziu ainda em prática sistematizada, 
a ideia portanto de «educação básica fundada em necessidades básicas», 
deve ser explorada e aplicada usando como horizonte de implementação a 
comunidade. Se por um lado o pesquisador educacional se pode concentrar 
na inventariação do que são as necessidades básicas de aprendizagem em 
comunidades concretas, também poderá, por outro, desenhar programas 
educacionais adicionais e alternativos para esses jovens com base nessas ne-
cessidades. O que impede, por exemplo, a uma escola organizar cursos para 
preenchimento de requerimentos (para a obtenção de títulos de terra ou de 
119Pensamento engajado
negócios) ou o que trava a nossa Universidade Pedagógica em abrir cursos 
de capacitação, de actualização ou de reorientação profissional de acordo 
com a demanda? Penso que absolutamente nada, a não ser o próprio siste-
ma do ensino que é mais selectivo e excludente do que aberto e inclusivo. 
Naturalmente que o desenho destes programas alternativos ou adicionais vai 
requerer repensar no sistema de creditação ou certificação escolar. Mas isso 
é um problema técnico e não de princípios ou de fundamentos do sistema 
de educação.
Segundo: Em relação ao sujeito da pesquisa. O professor deve ser o su-
jeito central da pesquisa educacional. A actividade de pesquisa deve deixar de 
ser o privilégio elitista universitário. O termo bastante usado pelo Presidente 
da República que «os moçambicanos, para combater a pobreza, devem acre-
ditar nas suas próprias forças» é um apelo muito claro para a necessidade de 
passarmos a ser sujeito (e não objecto) do processo do desenvolvimento. Na 
educação significa que o professor deve ser o centro das nossas atenções. O 
desafio que é agora lançado ao professor é o de não ser só um transmissor de 
conhecimentos, mas também e sobretudo ele deve passar a ser um produtor 
de conhecimentos. O que aflige o velho Nso na nossa história acima é o facto 
de não ter campo ou espaço institucionalizado que lhe é posto à disposição 
para passar a ensinar aos mais novos a técnica do fabrico e a arte de tocar o 
instrumento tradicional para tocar melodias lindas. O que lhe aflige é o terror 
de não haver possibilidade de as cerimónias de veneração aos antepassados 
serem abrilhantadas com a música, dança e canções por ele consideradas de 
«apropriadas». Se a escola não se abrir totalmente para esse desafio, ou seja 
para o conhecimento, as habilidades e a espiritualidade, o desenvolvimento 
ficará adiado. A educação com base na comunidade é uma questão de «educar 
ou perecer» (educate or perish) como escreveu o grande historiador africano 
Joseph Ki-Zerbo.
As questões colocadas acima só podem fazer sentido se o professor tiver 
capacidade técnica de formulá-las e de investigá-las. Ou por outra, mesmo 
que a Universidade Pedagógica (neste caso) tome dianteira em chamar a 
atenção para aquelas questões, ela não está em condições de fazer aquele 
levantamento sem o auxílio dos professores concretos nas comunidades. É o 
professor que deve saber o porquê dos seus alunos e alunas terem problemas 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano120
na aprendizagem e até mesmo desistirem. Também é só com base nele que se 
pode elaborar um discurso em volta das necessidades básicas de aprendiza-
gem para alargar as ofertas educativas. Por isso penso que os programas de 
pesquisa educacional desenhados no contexto de combate à pobreza devem 
necessariamente envolver professores nas escolas. Este envolvimento deve 
mostrar claramente em que medida o professor é o sujeito e não um mero 
participante para fazer número.
Ao nível da Universidade Pedagógica foi um grande passo abrir cursos 
para a Educação Básica. No entanto, ainda estamos muito longe de pensar 
todo o sistema de formação de professores em função dos desafios que se 
colocam em termos de necessidades básicas de aprendizagem. O que temos, 
e para começar é bastante bom, é a vontade e a consciência da necessidade de 
oferecer um currículo de formação de professores baseado nas necessidades 
materiais e imateriais. Porém, enquanto não tivermos o conhecimento de 
quais são as necessidades concretas teremos sempre que adiar o desenho de 
conteúdos para uma formação que dê respostas claras para estas necessida-
des. Por isso, para mim, a Universidade Pedagógica e outras instituições de 
formação de professores deve formar um professor que deverá ser sujeito da 
pesquisa educacional porque só ele poderá ajudar a cada escola a desenhar o 
seu próprio projecto educacional. As experiências da ADPP mostram que o 
tipo de formação de professores baseado na comunidade é possível e é nossa 
a responsabilidade social de aprofundar aquela experiência.
Terceiro: Em relação às metodologias. penso que se estivermos a falar 
em termos de combate à pobreza, tanto os métodos quantitativos assim 
como os qualitativos são igualmente mobilizáveis para este combate, desde 
que tenham a comunidade no centro da sua pesquisa. Mas aqui penso que a 
Universidade Pedagógica e outras instituições de pesquisa educacional têm 
uma dupla missão. Por um lado é a missão de ensinar e treinar professores e 
disseminar as metodologias de pesquisa centradas nas comunidades e valores 
locais. Por outro, o que é mais complicado, é a missão de elaborar um discur-
so em torno dos métodos (locais/tradicionais) de ensino e de pesquisa. Isto 
significa na prática, que ao lado do inventário sobre as necessidades locais de 
aprendizagem que está a ser feito pelo Instituto Nacional de Desenvolvimento 
121Pensamento engajado
de Educação (INDE) no âmbito do currículo local, deve-se paralelamente 
fazer um inventário dos «saberes educacionais e/ou pedagógicos» também 
depositados e circulados nas comunidades. E também significa tornar estes 
saberes educacionais frutíferos para o processo de ensino e de aprendizagem 
na escola. Se resgatarmos somente o conteúdo das necessidades básicas e dei-
xarmos os métodos e as estratégias locais de como essas mesmas necessidades 
duma ou doutra forma são resolvidas no contexto local, então correremos o 
risco de falhar na contribuição que queremos dar para o combate à pobreza. 
Penso que a pesquisa educacional deveria tomar uma atenção especial na 
recolha e sistematização dos «saberes educacionais».
Naturalmente que a «viragem» da pesquisa educacional para a comuni-
dade levanta novos problemas éticos e epistemológicos que não serão aqui 
discutidos. Um exemplo para a reflexão ética seria a questão dos direitos de 
propriedade intelectual sobre o conhecimento produzido no contexto da 
pesquisa educacional com base na comunidade. O outro problema (episte-
mológico) seria pensar até que ponto os métodos de tradição positivista ou 
interpretativa se adequam e são plausíveis no contexto da pesquisa onde as 
pessoas nas comunidades vivem com muitas crenças anónimas e numa cultura 
oral. Estas questões, porém, já foram por mim discutidas numoutro âmbito33 .
Quarto: Utilidade social da pesquisa educacional. Uma pesquisa edu-
cacional que se quer no contexto da luta contra a pobreza deve estar em 
condições de mostrar a sua utilidade (imediata, a curto ou a longo prazo) para 
a comunidade onde ela foi realizada. Penso que a pesquisa educacional, tal 
como é praticada hoje, percorre um «caminho» muito longo para ter algum 
impacto directo na comunidade. O pesquisador que vai à comunidade ou 
a uma escola concreta, volta para a Universidade ou Instituto de Pesquisa 
com um conjunto de dados e materiais, mas também com uma boa vontade 
de melhorar as condições que encontrou. Faz um «relatório de campo» para 
a agência com as necessárias «recomendações» e entrega-o. Se se tratar de 
um trabalho de fim de curso, ele recebe a sua nota e considera a pesquisa 
«fechada». Se se tratar de uma pesquisa mais séria, o nosso pesquisador fica 
33 Cfr. CASTIANO, J.P., Community-Based-Research and Education: Towards an African Approach. 
In: INDILINGA 2003.
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano122
com a sensação de «missão cumprida» quando entrega o relatório «dentro 
do prazo». Para ele o problema acabou. Porém, na perspectiva da pesquisa 
com base comunitária, o problema da responsabilidade (ou do compromisso) 
social começa aqui mesmo. O que se faz hoje com as «recomendações» saídas 
destes relatórios? Praticamente quase nada, senão desaparecer em seminários 
de pesquisa ou em conferências que se fazem em inúmeros hotéis nas capitais 
provinciais e em Maputo. Quem é responsável por elas? Quase ninguém! 
Acho que a nossa responsabilidade social aqui deveria ser a de estudarmos a 
possibilidade de «reciclar» estas recomendações por formas a terem retorno 
na comunidade onde a pesquisa foi feita. Naturalmente que quando falo de 
«retorno» não significa que todas as recomendações deverão ser aplicadas; 
isto seria utópico e também não seria desejável. O termo «retorno» aplica-se 
no sentido de as ideias ganhas pelo pesquisador serem circuladas e debatidas 
ao nível local por formas a enriquecerem as estratégias e as ideias locais na 
construção de uma escola que seja vanguarda na luta contra a pobreza. É 
necessário fazer da escola na comunidade um espaço de debate de ideias e 
de valores e torná-los frutíferos no combate a pobreza.
Estas propostas sobre a pesquisa educacional no contexto de luta contra 
a pobreza não têm necessariamente que ser as únicas. Mas penso que vão fazer 
parte de outras propostas para eliminarmos o mais depressa possível tanto a 
nossa pobreza material como a imaterial. A pesquisa educacional tem agora 
a oportunidade de arregaçar as mangas e fazer-se à luta contra a pobreza. 
E para isso tem o melhor aliado que jamais poderia ter tido: o Governo de 
Moçambique que acaba de declarar que vai disponibilizar muitos recursos 
para esta luta por via da educação. Mas a pesquisa educacional baseada na 
comunidade tem uma oportunidade redobrada porque o mesmo governo, na 
pessoa do Presidente da República, aquando da investidura dos governadores 
provinciais, declarou que os distritos devem transformar-se na base e centro 
de toda a acção governativa. Que outra oportunidade podemos esperar para 
arregaçar as mangas e ir para as comunidades? Para tornar realidade o sonho 
do velho Nso em poder ensinar na escola aos mais novos o conhecimento e as 
habilidades do fabrico e a arte de tocar lindas melodias, enfim para sairmos 
da «pobreza espiritual» que ele mais temia, teremos que repensar a pesquisa 
educacional pondo no centro a comunidade concreta.
123
O tema Filosofia, Ensino e Intersubjectivacção tem como motivação a 
necessidade de hoje reflectirmos sobre o estatuto do ensino da filosofia nas 
escolas, na formação dos professores de filosofia (até agora a decorrer somen-
te na Universidade Pedagógica) e nos programas de investigação filosófica. 
Usaremos o termo filosofia profissional ou filosofia institucionalizada para 
classificar a esta filosofia ensinada nas escolas e na universidade. Chamarei, 
em contrapartida, filosofia não-profissionalizada ou não-institucionalizada ao 
saber crítico reflexivo expresso individualmente pelos sábios num determi-
nado contexto cultural. Enquanto a primeira filosofia é geralmente baseada 
no texto escrito, a segundo baseia-se na oratura.
O intuito desta comunicação é fundamentar a necessidade de a filoso-
fia profissional africana submeter-se a si mesma a uma dupla emancipação, 
nomeadamente emancipar-se do eurocentrismo e emancipar-se do debate 
tradicionalista. Isto faz parte de um programa ainda mais amplo que é o da 
emancipação da filosofia africana de ser africana. Vejo a dupla emancipação 
como um caminho necessário para que a filosofia profissional possa desmargi-
nalizar-se a si mesma e desmarginalizar à(s) filosofia(s) não-profissionalizadas 
ou não-institucionalizadas nos programas de aprendizagem, de formação 
e de investigação filosóficas em Moçambique. É só desmarginalizando as 
outras formas do saber que a filosofia profissional ganhará o seu estatuto 
primário enquanto filosofia do ensino e formação: não ensinará pensamentos 
(teorias), ensinará sim os alunos e formandos pensar por si mesmos, como 
Kant defende.
FILOSOFIA, ENSINO E 
INTERSUBJECTIVACÇÃO
José P. Castiano
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano124
Para ajudar-me a reflectir sobre este tema vou convocar principalmente 
Foucault, Marx, Hountondji e Odera Oruka. 
A paixão teórica de Foucault, segundo Jardine34 , consistia em examinar 
os mecanismos e os efeitos práticos do poder e do conhecimento. Nesta ópti-
ca, Foucault serve-me para deconstruir os mecanismos pelos quais a filosofia 
profissional institucionalizada exerce o seu poder de marginalização perante 
as filosofias não-profissionais e não-institucionalizadas. A deconstrução dos 
mecanismos institucionalizados de exclusão que a filosofia profissional usa 
para com as outras filosofias é uma boa porta-de-entrada para mostrar os 
possíveis caminhos da auto-emanciapação da filosofia profissional do euro-
centrismo e do debate tradicionalista. 
Por seu turno, a paixão de Marx foi desmistificar o capitalismo como 
um sistema económico e fundamentar uma sociedade pós-capitalista em 
que a classe trabalhadora se veria livre das relações de trabalho baseadas na 
exploração do homem pelo homem. Ou seja, Marx quis pôr a filosofia ao 
serviço das mudanças sociais. Por isso, ele ajuda-me a reflectir sobre como, 
no contexto moçambicano, renovar o estatuto filosófico do ensino e da 
formação filosóficas: ensinar uma filosofia que seja responsável, engajada e 
comprometida para com os problemas nacionais e mundiais.
A paixão do filósofo beniniano Hountondji foi, numa primeira fase, a de 
desmistificar a tendência unanimista que a filosofia Africana parecia, aos seus 
olhos, estar a tomar devido a um debate poluído pela antropologia. Para ele, 
a Etnofilosofia de Tempels e outros não passava mais de uma antropologia 
com a pretensão de ser filosofia especial dos diferentes povos africanos. A 
ameaça da antropologização da filosofia ainda não desapareceu. Pois, nas 
nossas universidades parece que a febre das chamadas etnociências (incluin-
do a tendência para a etnofilosofia) está a ser moda. A obra de Hountondji, 
sobretudo a sua filosofia do sujeito, ajuda a olhar para o ensino e a formação 
filosóficas em Moçambique como um empreendimento que deve ter em 
conta os diferentes imaginários culturais dos povos de Moçambique, sem, 
no entanto, cair no antropologismo ao qual Hountondji já nos teria alertado.
Por último, a paixão do queniano Odera Oruka foi de dar voz (no 
sentido de pôr o sábio a falar por si) ao que chamei acima de filosofias não 
34 Cfr. JARDINE, G.S M., Foucault e a Educação. Edições Perdago, Portugal, 2007,p.43.
125Pensamento engajado
profissionais africanas. Oruka, em vida, desenvolveu um tipo de investigação 
filosófica que acabou por se estabelecer na filosofia Profissional Africana 
como uma corrente denomina por Sage Philosophy.Neste sentido, Oruka 
vai ajudar-me a procurar e a propor formas de como os imaginários sócio-
culturais moçambicanos e as formas filosóficas adjacentes podem ser tidas em 
conta nos programas de ensino, formação de professores e de investigação 
filosófica institucionalmente.
Termino esta comunicação explorando a possibilidade de a universidade 
moçambicana tornar-se um verdadeiro espaço de inter-subjectivacção, ou 
seja, um espaço virado ao saber desinteressado e que não marginaliza os 
saberes não profissionalizados do seu seio. A filosofia profissional, que por 
definição significa amor (desinteressado) pelo saber, deve tomar dianteira 
neste combate e causa.
Para quê Ensinar Filosofia?
Depois desta breve introdução e antes de abordar o tema directamente, é 
necessário responder à seguinte questão clássica sobre o ensino da filosofia: é 
possível ensinar filosofia? Porquê se deve ensinar uma tal ciência que, segundo 
opiniões comuns, só atrapalha e serve somente para falar? Aliás a essência 
da própria filosofia pode levar a confirmar a tendência de se considerar a 
filosofia como sendo inútil do ponto de vista económico e social. Heidegger, 
para quem a linguagem é a casa do ser, confirma que a palavra é o elemento 
fundamental numa casa da filosofia.
Sob este ponto de vista, a filosofia está, nos tempos modernos em Mo-
çambique e no mundo, em desvantagens relativas. Primeiro: o mundo de 
hoje é de poucas palavras e de muita imagem. O tempo que gastamos em 
frente ao televisor a ver filmes, vídeos e reportagens sensacionalistas é muito 
superior em relação ao tempo de leitura e de conversa com os colegas e fami-
liares. Também os recursos que usamos para adquirir aparelhos multimédias 
parece tender a superar de longe ao que gastamos na compra de livros ou 
em construir bibliotecas. Em quase todo o mundo as editoras e os jornais 
de qualidade sobrevivem a muito custo. As bibliotecas das nossas cidades 
e universidades andam às moscas. Segundo: este tempo em Moçambique 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano126
parece ser mais de negócio que de ócio, como disse o professor Machado da 
Universidade do Minho. O desenvolvimento económico com a sua filosofia 
de empreendedorismo parece estar a conquistar mais espaços na educação 
em Moçambique do que a reflexão desinteressada. Uma boa vida é, hoje em 
dia, aquela que procura permanentemente dar respostas mecânicas às ne-
cessidades materiais. O penso logo existo cartesiano passou a ser substituído 
pelo consumo logo existo. Ninguém como o filósofo francês Gilles Lipovetsky 
fundamentou a era do consumo. No seu recente livro A Felicidade Paradoxal 
ele sustenta que a sociedade evoluiu para o hiperconsumismo: o indivíduo, 
divorciado da política e do interesse colectivo, centra-se no prazer buscando-
o no consumo dos bens materiais. Ora, o ócio é a casa da filosofia porque é 
nele que se reflecte. Pensar passou a parecer luxo e inutilidade. Terceiro, a 
institucionalização da filosofia no ensino, formação e investigação parece estar 
contrária à essência da própria filosofia como um pensar livre. É que assim a 
filosofia passa a submeter-se aos critérios de utilidade. E neste caso ela não 
tem outra saída senão ser tentada a ser uma espécie de estudo de legislação, 
estudo do direito, ou como é o caso na UP, a aceitar o seu lado pragmático 
criando um curso de filosofia do desenvolvimento. Filosofia começa a ficar 
ao serviço do Estado desde Napoleão Bonaparte. Em vez de, com o ensino 
da filosofia, se cultivar para uma cidadania crítica, cultiva-se para uma cida-
dania aparentemente engajada, significando este engajamento justificar ou 
fundamentar a normatividade do Estado. Nas universidades não se ensina o 
pensar senão o empreendedorismo.
Uma quarta desvantagem específica para Moçambique é a desconfiança 
(ou o desejo) permanente de que filosofia aprendida seja ou uma ideológica 
ou religiosa. A recente experiência de Moçambique com o ensino unilateral 
da filosofia marxista e com uma literatura filosófica mais virada para o campo 
libertário (Fanon, Nkrumah, Cabral, Nyerere) encontra-se ainda recalcada 
nas preconcepções das pessoas que, quando ouvem falar de filosofia, não a 
separam das conotações ideológicas. Por outro há a experiência do ensino 
da filosofia nas escolas missionárias que leva a ligar a filosofia à religião, 
confundindo-a ou reduzindo-a ao ensino da moral religiosa.
Com estas desvantagens todas é lógico que a pergunta (o que significa 
o ensino da filosofia e a respectiva formação filosófica dos professores hoje?) 
ganha ainda mais sentido hoje em Moçambique. 
127Pensamento engajado
A estas desvantagens extrínsecas à filosofia profissional, acrescentam-se, 
como se não bastasse, as desvantagens intrínsecas à própria filosofia e ao acto 
de filosofar. À pergunta filosófica se faz algum sentido ensinar filosofia teve 
diferentes respostas pelos próprios filósofos.
Para Baruch Espinosa, por exemplo, há uma incompatibilidade entre 
filosofia e o seu Ensino. Quando um filósofo é obrigado a ensinar filosofia, este, 
praticamente perde a sua liberdade de pensar porque teria que estabelecer 
fronteiras entre o que deve dizer, quando deve fazê-lo e em que medida deve 
fazê-lo no âmbito de um programa preestabelecido. Ele declara que nunca 
aceitaria ser professor de filosofia numa faculdade. Frederich Nietzsche é 
ainda mais radical. Para ele o Estado constrange aqueles que seleccionou 
a passarem um tempo determinado, num lugar determinado, no meio de 
homens determinados, para um aluno determinado a fazer filosofia. Pode 
realmente um filósofo, com plena consciência, passar a ensinar, ou seja, em 
horas preestabelecidas, ter que dizer certas coisas? Para Heidegger, por ou-
tro lado, afirma que ensinar (filosofia) é mais difícil do que aprender, não 
porque o professor deva ter mais conhecimentos que o aluno de filosofia, 
mas porque ensinar é fazer aprender.
Estas breves considerações sobre a aprendibilidade (não ensinabilidade) 
da filosofia mostram que ela, ao longo da história e em diferentes contextos, 
trouxe mais problemas que soluções. Ou seja, dito de uma forma mais filosó-
fica, o horizonte aporético da filosofia é muito mais vasto do que o horizonte 
eurético que ela pode oferecer à sociedade. (como disse Fernado Machado)
Em nossa opinião, a aparente dificuldade de se ensinar filosofia em Mo-
çambique e na África em geral prende-se com o facto de a própria filosofia 
profissional (esta que se deve ensinar e que se institucionaliza) estar à margem 
da sociedade por duas formas: pelo conteúdo do seu ensino e pelo facto de 
praticamente marginalizar as formas de pensar filosóficas ainda não-profis-
sionalizadas. O pressuposto é que se as preocupações temáticas da filosofia, 
reflectidas nos seus programas de ensino, formação e pesquisa, estiverem a 
procurar respostas a problemas concretos de Moçambique, então esta filo-
sofia será relevante e daí, aprendível. Interessa, pois, em seguida, olhar para 
dentro da filosofia profissional para revelar os mecanismos institucionalizados 
pelos quais ela se marginaliza a si mesma, concomitantemente, marginaliza 
as filosofias ainda não-profissionalizadas. Para isso, nos vai ajudar Foucault.
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano128
Focault
O que significa, então que a filosofia profissional africana deve des-
marginalizar-se? Significa que ela deve deixar de predeterminar as condições 
epistémicas pelas quais se produz um discurso para que seja considerado 
como filosófico. 
Michael Foucault encontra três procedimentos externos e outros três 
internos na base dos quais um tipo de discurso exclui outros discursos con-
correntes. Aos procedimentos externos pertencem a interdição, a oposição 
entre o racional e o louco e a oposição entre o verdadeiro e o falso (Foucault 
1971,10pp.). Aos procedimentos internos de exclusão dos discursos perten-
cem o comentário, o autor e a disciplina.
Comecemos pelos três procedimentos externos dos quais a filosofia 
africanaprofissional deve esconjurar-se para que ela própria esteja apta para 
desmarginalizar-se. A forma elementar de exclusão que os filósofos africanos 
profissionais mais usam é a interdição, isto é, tirar o direito aos seus colegas 
sábios de dizerem tudo e em quaisquer circunstâncias; justifica-se que não 
é qualquer um que pode ser cientista e, por extensão, filósofo. Os sábios 
interditos de entrarem nas instituições públicas (escolas, hospitais, tribunais, 
etc.), embora possam contribuir lá com o seu saber. O sistema formal de 
qualificações não prevê equivalências para as suas qualificações e nem os 
quadros nacionais profissionais prevêem as suas qualificações. Embora uma 
grande parte da sociedade recorra aos seus préstimos para resolver vários 
tipos de perturbações individuais e colectivas, esses sábios são interditos, na 
linguagem de Foucault, de aparecerem nos espaços públicos. 
Foucault chama o segundo procedimento por oposição razão e loucura: 
[O] louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros. A 
palavra do louco é muitas vezes considerada nula e não é acolhida, não tendo 
verdade nem importância. Os procedimentos instituídos encarregam-se de 
excluir a sua palavra, de ser suspeitada como possível blasfémia, de não ser 
escutada como sendo verdade; enfim, de ser considerada como palavra de 
louco. No entanto, diz Foucault, todo este discurso do louco não desaparece, 
mas continua a provocar ruído no seio do discurso formal. Por isso, diz ele, 
que é no teatro onde o louco apresenta-se e representa, pois aí tem a possi-
129Pensamento engajado
bilidade de representar o papel da verdade mascarada (Foucault 1971,11p.). 
Assim procede também o filósofo africano profissional. Ele criou proce-
dimentos para que a palavra do sábio tradicional seja logo rejeitada, mal seja 
proferida num espaço público. A filosofia profissional africana criou rituais 
para declarar a maior parte do que vem da tradição como sendo supersti-
cioso, ou no mínimo suspeito. O sistema de educação construiu um aparato 
burocrático que não deixa o sábio tradicional desenvolver o seu discurso ou 
cair no ridículo. São declarados loucos no sentido de Foucault. A coisa piora 
porque, num contexto desses, o que é encarado por louco não é somente o 
sábio tradicional mas também todo aquele que, embora treinado formalmente, 
pretenda estudar questões ligadas à tradição. A filosofia africana académica 
é racional; pelo contrário, a filosofia que emana dos saberes tradicionais é 
irracional, é de loucos (no sentido de Foucault empregamos este termo). No 
entanto, é o próprio filósofo profissional que volta e meia pretende ouvir, em 
surdina, a palavra dos sábios da tradição. Como o próprio Foucault diz, ao 
louco se lhe atribui estranhos poderes, o de dizer uma verdade escondida, 
o de pré-anunciar o futuro, o de ver com toda a ingenuidade aquilo que a 
sabedoria dos outros não pode perceber. É assim que são tratadas as áreas da 
medicina tradicional, a do direito costumeiro, a das filosofias etnocêntricas e 
por aí fora. Senão, qual é a universidade que lhes abriu as suas portas?
Há todavia uma terceira forma de exclusão do discurso periférico tradi-
cional: a oposição entre o verdadeiro e o falso. Segundo Foucault (1971,15), 
é nos séculos XVI e XVII, sobretudo na Inglaterra, onde se criam os crité-
rios e se institucionaliza a oposição entre o verdadeiro e o falso nas ciências: 
antecipando-se aos conteúdos actuais, desenham-se planos de objectos pos-
síveis, observáveis, mensuráveis, classificáveis. No caso da filosofia africana, e 
seguindo esta forma de proceder, a oratura (provérbios, contos, mitos, crenças 
colectivas, etc.) toma o lugar do falso. Para que ela se tornar verdadeira deve 
ser escrita e ser submetida ao tribunal da lógica. Os argumentos usados pelas 
filosofias ainda não-profissionalizadas são declarados, muitas vezes, pouco 
sólidos ou mesmo sem nexo.
Estes procedimentos externos completam-se com os procedimentos 
internos da própria filosofia Profissional Africana: o comentário, o autor e a 
classificação das disciplinas. 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano130
O pressuposto do qual Foucault parte para caracterizar o comentário 
como procedimento interno de exclusão é que todas as sociedades têm dois 
discursos: primeiro, estão os discursos que se dizem ao correr dos dias e das 
trocas, e que passam com o acto mesmo que os pronunciou. Este é o tipo de 
discurso que é efémero, do dia-a-dia, do quotidiano ou de narrativas menores. 
Segundo, existem as narrativas maiores que são os discursos que contam-se, 
repetem-se, propõem fórmulas e rituais perenes. São narrativas que estão na 
origem de certo número de novos actos de fala que os retomam, os transfor-
mam ou falam deles. Segundo Foucault, estes discursos podem ser textos 
fundadores religiosos ou jurídicos, podem ser também textos literários ou 
científicos. São narrativas ou discursos fundacionais. O que seria, entretanto 
o comentário? Segundo Foucault, o comentário é aquele que permite dizer 
algo para além do próprio texto (fundador), mas com a condição de que o 
texto mesmo seja dito e de certo modo realizado (Idem,21). Assim, o comen-
tário é periférico, pertence ao efémero, à sombra (e não à ideia) platónica.
Não será isso que se verifica na prática da filosofia institucionalizada? 
Às narrativas maiores não pertence apenas todo o cânone da filosofia oci-
dental (europeia e americana, mas sobretudo a europeia) e o discurso das 
filosofias tradicionais fica relegado às narrativas menores e toma a função 
de comentários? Sem dúvida que, quando fazemos programas e cursos de 
filosofia nos países africanos, duma forma aberta ou simulada, os saberes 
endógenos, tradicionais e locais permanecem como exemplos periféricos 
da filosofia, ou seja, com um estatuto subalterno e marginal. Se a própria 
disciplina da filosofia africana é dada, em muitos casos, como uma cadeira 
somente, então imaginemos o lugar que é reservado aos saberes indígenas e 
tradicionais originários de cada cultura africana. Mesmo nos casos em que 
os cursos de filosofia adoptem uma abordagem em que a filosofia africana é 
tratada transversalmente, e não como uma disciplina, aí os assuntos da filosofia 
tradicional também têm a função de comentários. Isto é, permitem reforçar 
o lugar de narrativas maiores aos textos fundadores da filosofia, que são os 
ocidentais. É isso que Kagamé fez ao encontrar as categorias aristotélicas no 
sistema do pensamento dos banyaruanda; é isto também que Tempels fez ao 
tentar mostrar que os Bantu possuem (também) uma ontologia comparável 
à europeia e por aí fora.
131Pensamento engajado
Passemos, em segundo lugar, para o autor. Foucault chama de autor 
não […] o indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o 
autor como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem 
de suas significações, como foco de coerência (Idem,22). Assim, no domí-
nio das narrativas pequenas, o autor do discurso não existe ou é apagado. 
O discurso que este pseudo-autor formula é considerado como conversa 
do quotidiano, como um discurso proferido por um louco. Este autor fica 
no anonimato dentro de uma colectividade. A partir do século XVII par-
ticularmente, a menção do autor de um discurso não serve somente para 
indicar o dono da obra; esta menção serve para dar um nome às teorias com 
um corpo coerente (marxismo, por exemplo) ou a um teorema (teorema de 
Pitágoras, por exemplo), ou ainda a uma linha de pensamento (kantianismo, 
por exemplo). Assim, o autor é aquele que indica a direcção em que devem 
ir as interpretações, que dá nós de coerência aos comentários que se fizeram, 
que se fazem e que se irão fazer.
Neste aspecto sobre o autor não precisamos de alongar muito ao adoptar 
a ideia para a nossa realidade. Pois, é notável que a oratura, forma privilegia-
da em que circula o texto das filosofias tradicionais africanas, não tem, aos 
olhos do etnofilósofo, seus próprios autores. A etnofilosofiae as etnociências 
fazem circular a imagem de existência de filosofias, ciências africanas de 
carácter colectivo (filosofia sem filósofos, ciência sem cientistas). Os autores 
tradicionais ficam diluídos, anónimos por trás dos provérbios, dos contos, 
das lendas, das canções. O que sucede é ainda pior: o etnofilósofo e o et-
nocientistas não se vêem obrigados a mencionar os autores dos saberes que 
recolhem, porque, doutra forma, a sua menção poderia tirar-lhes o mérito 
de serem eles que pensam e escrevem. É este o mecanismo pelo qual o autor 
tradicional desaparece na sua qualidade de sujeito que prescreve significações, 
que reflecte criticamente sobre a sua condição. O mecanismo de exclusão 
do autor tradicional funciona de duas maneiras: o autor etnofilósofo não 
menciona o colega tradicional reduzindo-o à condição de informante e o 
filósofo profissional africano à periferia e, desta posição epistémica, incapaz 
de fornecer grandes sistemas de pensamento com significações próprias.
O princípio de disciplina, juntamente com o do comentário e do autor. A 
disciplina define-se como um domínio de objectos, um conjunto de métodos, 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano132
um corpus de proposições consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de 
definições, de técnicas e de instrumentos (Foucault 1971,24). 
Foucault alerta-nos, no entanto, que nem tudo o que é dito e escrito 
sobre o objecto de uma disciplina faz parte desta mesma disciplina. Assim, 
nem tudo o que é dito e escrito sobre a doença pertence à medicina da mes-
ma forma que nem tudo o que é dito e escrito sobre as plantas pertence à 
disciplina de botânica. 
Ora, isto levanta o problema do critério da exclusão do conhecimento 
que não é chamado para o interior de cada disciplina. Por outras palavras, 
as perguntas que podemos lançar são: porque é que todo o corpo do que é 
dito sobre as doenças pela medicina tradicional não passa a pertencer au-
tomaticamente à medicina? Porque é que o conhecimento dos herbanários 
tradicionais não pode pertencer ao corpo de conhecimento da disciplina de 
botânica? Ou ainda: porque é que as posições que existem nos provérbios, 
nos contos, nos chamados usos e costumes, etc. não podem fazer parte dos 
capítulos da filosofia como sejam a ética, epistemologia e/ou metafísica, isto 
é, passarem a incorporar-se como parte integrante da filosofia praticada nas 
instituições formais? Enfim, qual é o critério de exclusão?
A estas perguntas Foucault responde dizendo que é [n]o interior dos 
seus limites [que] cada disciplina reconhece proposições verdadeiras e falsas; 
mas ela repele, para o outro lado das suas margens, todo o saber que esteja 
fora dos seus limites; em outras palavras estipula-se que uma proposição deve 
preencher exigências complexas e pesadas para poder pertencer ao conjunto 
de uma disciplina.
É este mesmo mecanismo que tornou possível chamar todo o (ou parte 
do) pensamento filosófico que não proviesse dos profissionais como sendo 
selvagem, primitivo, tradicional, ilógico e por aí fora. De facto, o que temos 
hoje na filosofia profissional africana são regiões do discurso que se abrem 
e se fecham às novidades sugeridas da tradição. Num primeiro momento 
fecham-se declarando errado ao conhecimento que emana das entranhas 
tradicionais ou tratando como loucos, primitivos, selvagens os seus autores. 
E num segundo momento a filosofia profissional africana abre-se quando 
precisa de se legitimar a si mesma enquanto filosofia africana. Este último 
foi e é o caso das etnociências e da etnofilosofia. De facto, fizeram o papel 
de comentários à filosofia ocidental.
133Pensamento engajado
Marx
Rechamar Marx para a filosofia hoje em Moçambique tem um duplo 
interesse: O ensino da filosofia na primeira República foi baseado (em al-
guns momentos quase que exclusivamente) em Marx e os seus discípulos 
do Leste como Lenine e Mão-Tsé-Tung. Estes são os «autores» no sentido 
de Foucault, que acabamos de ver. O facto de quase toda a nossa geração 
de moçambicanos nas décadas de setenta e oitenta ter-se confrontado quase 
única e exclusivamente com as obras de Karl Marx ou interpretações marxistas 
impregnou em nós uma estrutura mental e analítica que ainda hoje, cons-
ciente ou inconscientemente, recorremos para analisar os fenómenos sociais 
e políticos em nossa volta. Em segundo lugar porque o Marxismo pertence 
à uma espécie de tradição filosófica em Moçambique. Foi o marxismo que 
infundiu categorias como capital, classe, ideologia, partido, proletariado e 
outros por aí fora. São essas categorias que constituem hoje os alicerces da 
linguagem filosófica e social de qualquer um de nós hoje.
A tradição do ensino filosófico em Moçambique teve três fases: a colonial, 
a marxista-ideológica e a liberal. Na fase colonial a filosofia era ensinada em 
dois espaços: nos liceus e nos seminários. Nos liceus a filosofia era ensinada 
aos alunos do 6º e 7º anos. No 6º ano o programa de filosofia era basicamente 
a História de Filosofia alicerçado por dois compêndios de filosofia da autoria 
de Saraiva e Bonifácio. O peso aqui era dado à filosofia clássica aristotélica 
e platónica, assim como a escolástica. Ao lado da filosofia os alunos tinham 
uma cadeira denominada Organização Político-Administrativa de Portugal. 
Esta cadeira complementava à filosofia por subsidiar aos estudantes com 
rudimentos do direito administrativo e da configuração política do Império 
Português. Recorde-se que nos anos anteriores, isto é no 3º, 4º e 5º anos, os 
alunos tinham a disciplina de Moral e Religião que indotrina valores da reli-
gião cristã a todos eles. No 7º ano os alunos tinham psicologia como cadeira 
que substituía a filosofia. A filosofia estava muito ligada à psicologia. Convém 
acrescentar que todas eram cadeiras são obrigatórias para todos os alunos 
do secundário, independentemente da sua orientação profissional posterior.
Nos seminários, por seu lado, o ensino da filosofia era mais clássico. O 
programa de filosofia contemplava, para além do seu estudo, leituras obri-
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano134
gatórias de textos de Escolástica, da Lógica Antiga e Moderna, seminários 
de Aristóteles e Santo Agostinho, Teoria do Conhecimento e Filosofia da 
Natureza. Aristóteles, Platão, Tomás de Aquino assim também Heiddegger, 
parecem ter sido o prato forte dos seminaristas. Acrescente-se que o estudo 
e a leitura de textos em latim e alemão faziam parte da formação filosófico-
teológica. Este tipo de programa de formação em filosofia continua até hoje 
nos seminários médios. Isto é importante porque a maior parte dos estudan-
tes que seleccionamos até agora na UP, para serem professores de filosofia, 
provêm destes estabelecimentos de ensino. 
A segunda tradição de ensino e formação na filosofia em Moçambique, 
como dissemos, é a marxista. Esta, podemos chamá-la de tradição filosófico-
ideológica. Esta teve diversos espaços e níveis de ensino e formação. Nas 
escolas secundárias havia as cadeiras de marxismo-leninismo e de educação 
política (como é óbvio, as duas substituem, respectivamente, as cadeiras de 
filosofia e de organização político-administrativa do tempo colonial). À parte 
disso os alunos tinham aulas de preparação político-ideológica que também 
transmitia alguns rudimentos de análise marxista da sociedade. Ao nível da 
formação de professores tínhamos os institutos pedagógicos onde se formam 
especificamente professores para as cadeiras de Marxismo-Leninismo e Edu-
cação Política. Alguns professores, para o nível superior, foram formados 
nos países socialistas como a Alemanha Democrática, a União Soviética, 
Polónia, etc. Não se deve esquecer que as cadeiras de Marxismo-Leninismo 
e Educação Política eram de carácter obrigatório para todos os cursos de 
formação de professores. Os programas de ensino eram fundamentalmente 
naquilo que se considerava serem as três componentes fundamentais da dou-
trina do marxismo (chamados por fundamentos): O Materialismo Histórico,a Economia Política do Capitalismo e o Socialismo Científico. A leitura de 
textos nos manuais do marxismo-leninismo, de textos directos de Marx e 
Lenine constituíam os materiais de ensino e de formação. Estes textos são 
misturados com os discursos políticos partidários e presidenciais das grandes 
ocasiões como sejam as nacionalizações, os congressos do partido Frelimo, 
planos estratégicos de desenvolvimento, etc. Ao mesmo tempo, circulavam 
textos, que se consideram «literatura marxista revolucionária», de teóricos 
como Franz Fanon, Amílcar Cabral, Kwame Nkrumah, Julius Nyerere, 
135Pensamento engajado
Fidel Castro e outros para fundamentar a possibilidade da construção de 
uma sociedade socialista em Moçambique. Uma boa parte dos docentes que 
iniciaram e abriram os cursos de filosofia da Universidade Pedagógica foi 
forjada por esta tradição.
O marxismo deve interessar-nos, em primeiro lugar, pela função que 
reserva à classe operária Libertaria que às outras duas classes, nomeadamente 
a classe camponesa (que era vista como sequela da sociedade feudal deca-
dente) e a classe burguesa (que era a camada exploradora).
Sob o ponto de vista político, a ideia da praxis revolucionária significa 
auto-emancipação. Ou seja, expressa a convicção de que nenhum salvador, 
nenhum herói esclarecido ou uma elite intelectual irá libertar a classe maio-
ritária dos trabalhadores. Com esta posição, Marx colocava-se claramente 
contra o materialismo francês e contra o idealismo alemão, ao mesmo tempo 
que usava a filosofia para dar conta dos movimentos operários do sec. XIX.
A ideia marxiana da auto-emancipação pode ser feita frutífera para a 
problemática do ensino/formação/pesquisa da filosofia em Moçambique. 
De facto, a reflexão sobre o ensino da filosofia em Moçambique deve, num 
futuro breve, passar pela reflexão em torno da auto-emancipação da própria 
filosofia. O que quero mostrar aqui é que a filosofia deve encetar um combate 
contra os constrangimentos internos à sua própria emancipação. Esta auto-
emancipação da filosofia em Moçambique deve ser dupla: do eurocentrismo 
e do debate tradicionalista.
Em relação ao centramento do ensino da filosofia nos assuntos europeus 
não preciso muita argumentação: basta olhar para a série de temas que com-
põe o programa de filosofia nas universidades, olhar para os autores que são 
tratados desde a Grécia Antiga até aos pós-modernistas e olhar também para 
o conjunto de temas das teses defendidas tanto ao nível de licenciatura bem 
como ao nível dos mestrados de filosofia na Universidade Pedagógica. Neles, 
o lugar que é preservado para autores africanos e moçambicanos é exíguo e 
periférico. O ensino da filosofia deve, na minha opinião, auto-emancipar-se 
do Ocidente. Emancipar-se para mim não é uma espécie de luta contra o 
património do pensamento filosófico ocidental. É antes de mais cultivar nos 
alunos uma atitude de confrontação crítica para com os sistemas de pensa-
mento que evoluíram no Ocidente. Significa que devemos abordar Kant, 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano136
Hegel, Marx, Heiddegger, Habermas e outros com a consciência de que o 
seu edifício teórico foi constituído para dar respostas filosóficas a problemas 
concretos da sua região e época. Emancipar a filosofia profissional africana 
significa, para mim, insistir no princípio segundo o qual: pela sua natureza 
os problemas que a filosofia deve tratar são concretos num determinado 
contexto; pela sua natureza, as respostas filosóficas a estes mesmos problemas 
são universalisáveis. Esta deve ser a chave e o espírito para a emancipação 
da filosofia profissional e do ensino da filosofia. 
O ensino/formação/investigação da filosofia em Moçambique deve 
emancipar-se do debate tradicionalista. Esta emancipação é tridimensional: 
emancipação do essencialismo/unanimismo, da religião e do elitismo da escrita.
Emancipação do Unanimismo: Com efeito, o primeiro passo libertário da 
filosofia africana é libertar-se a si mesma da propensão de tender a dedicar-se 
a assuntos que as seguintes frases nos sugerem: «os africanos pensam assim», 
«os yoruba acreditam que…», «a essência da ontologia dos sena/ronga/macua 
é esta», «os bantu acreditam que…», etc. A filosofia deve manter-se vigilante 
a este tipo de busca filosófica onde uma comunidade ganha a capacidade de 
pensar, o que é filosoficamente uma aberração. Mesmo os velhos supostos de 
estarem em condições de orientar certas cerimónias e/ou ritos de iniciação, 
religiosos, familiares, etc. manifestam discordâncias nas suas interpretações 
sobre os mesmos fenómenos e processos. De outra forma não se justificariam 
os longos debates que antecedem o início de certas cerimónias. De facto, o 
unanimismo existe somente na cabeça do (etno)filósofo. 
A segunda dimensão da qual a filosofia profissional africana deve eman-
cipar-se é a religião. Há muitos que, como Mbiti, propõem que a verdadeira 
filosofia africana deve procurar-se por trás da religiosidade naturalista do ho-
mem africano. Nesta ordem de ideias, a tarefa da filosofia segundo Mbiti seria, 
primeiro, descrever as práticas religiosas dos homens africanos e, segundo, 
interpretar estes mesmos a partir da visão religiosa dos africanos. Porém, a 
filosofia africana não deve estar presa às profecias religiosas. Como sublinha 
Ngoenha no livro Das Independências às Liberdades, se adoptarmos uma 
visão futurista, a religião faz profecia e a filosofia utopia. Isto significa que a 
filosofia deve-se libertar da religião para que a própria filosofia não se veja 
na contingência de espalhar profecias e se concentre em elaborar utopias.
137Pensamento engajado
Emanciapação da Oratura: Quando falamos da filosofia nas condições 
de África, coloca-se sempre o problema do papel da oratura dos sábios 
africanos para a criação de um sistema filosófico. Em torno da problemática 
da oratura se tem levantado muitas questões a saber: os dizeres orais ou 
provérbios africanos podem ser considerados filosofia ou não? Ou é filosofia 
o conjunto de textos da interpretação filosófica da oratura que deve fazer 
parte do corpus da filosofia africana? Ou ainda ambas? Qual é o papel do 
filósofo africano profissional perante estes dizeres? Transcrevê-los ao estilo 
de Griaule? Interpretá-los com base na ordem discursiva formalmente esta-
belecida da filosofia como uma disciplina académica, seguindo, desta feita, as 
pegadas de Tempels e Kagamé? Ou entrarmos num diálogo intersubjectivo 
entre os sábios e os filósofos profissionais?
Resumindo, podemos dizer que a filosofia africana deve libertar-se de 
ser considerada africana pelo facto de estar a debater com muita insistência 
sobre a tradição. Ela, enquanto filosofia, deve tratar de questionar assuntos; 
enquanto africana deve tratar assuntos que dizem respeito (mas que não se 
limitam) à África. Nós pensamos que já é momento para a filosofia africana 
libertar-se a si mesma do debate tradicionalista. O debate tradicionalista é 
aquele que tende a mistificar em vez de desmistificar, tende a idolatrar os 
hábitos e costumes tradicionais, em vez de questionar a contemporaneidade 
dos valores que estariam no seu substrato; enfim, é um debate poluído pelo 
misticismo. Para a filosofia africana avançar um pouco mais na sua própria 
liberdade (porque está presa ao debate tradicional) ela deve acender o fogo 
libertário interno que queime os mitos que a prendem ao tradicionalismo 
e assim poder concentrar-se na busca de respostas a assuntos que dizem 
respeito ao futuro.
Para além de a doutrina de Marx ser útil para abordar a questão da auto-
emancipação da filosofia profissional e seu ensino/formação/investigação, ela 
propõe ferramentas alternativas de interpretação e abordagem de fenómenos 
actuais. Peguemos, por exemplo, na chamada crise económica mundial. Sob 
o ponto de vista marxista, a forma como se está a apresentar as terapias é 
contrária à sua solução. A crise não é somente financeira (dos bancos) ou de 
empresas de imobiliárias ou aindade empresas de automóveis. Não se deve 
tratar esta crise pelas partes, senão olhá-la de uma forma global. Olhar de 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano138
forma parcial aos fenómenos sociais como este é uma forma típica de como 
a burguesia capitalista tende a fazer. Se adoptarmos uma perspectiva mar-
xista, segundo o neo-marxista brasileiro Michael Löwy, esta crise de todo 
um modelo da civilização ocidental e moderno capitalista. O problema é que 
a classe operária mundial é actualmente duplamente explorada: de forma 
clássica isto é, pela venda da sua força de trabalho em troca de um salário, 
mas ao mesmo tempo pelo sistema financeiro através dos bancos que cobram 
juros astronómicos. Estes juros provocam um sucessivo endividamento dos 
operários que são obrigados a trabalhar cada vez mais. Portanto, trata-se de 
uma crise do sistema todo e não de cada um deles. Assim também, não se 
acaba com a crise com reformas senão com uma revolução total civilizacional.
Hountondji
O filósofo beniniano Hountondji interessa-nos na sua segunda fase onde 
ele retrata-se da sua posição em relação ao seu conceito inicial de filosofia. 
Em quanto que na primeira fase ele define a filosofia como um «conjunto 
de textos escritos por africanos e considerados por eles como filosóficos», 
Hountondji da segunda fase já admite que a filosofia africana pode também 
conter textos orais. Portanto, o Houndondji da segunda fase é aquele que, 
não abandonando a crítica unanimista, distancia-se da sua posição inicial 
admitindo implicitamente que pode haver filósofos de tradição oral.
É importante sublinhar que o projecto filosófico de Hountondji não 
visava escapar ao debate sobre os conteúdos que os chamados etnofilósofos 
arrolavam nas suas obras e que, de certa forma, estavam a fazer furor. Pelo 
contrário ele queria, com essa definição restritiva da filosofia, evitar que o 
debate sobre a identidade da filosofia africana se limitasse à ideia de que 
esta só poderia nascer e desenvolver-se em volta de questões tradicionais, 
e que, à semelhança da ideia geral sobre a tradição, a filosofia africana se 
transformasse num pensamento de consenso e unânime a todos os africanos. 
Ele queria cortar o crescimento de uma filosofia africana que tivesse uma 
imagem anti-filosófica: uma que não contem em si mesma a possibilidade de 
um debate crítico. Era preciso, segundo Hountondji, desmistificar a ideia de 
uma África homogénea no pensamento.
139Pensamento engajado
Para nós interessa repisar, usando Hountondji, que, ainda hoje, a ten-
tação unanimista está sempre a espreita. A filosofia profissional africana 
ensinada em Moçambique pode cair nesta tentação. Mas não é tudo. O 
projecto do Hountondji visava também libertar a própria filosofia africana 
do debate poluído tradicionalista. O método do Hountondji foi cortar este 
debate e permitir que, na filosofia africana, houvesse outras tendências que 
não fossem do continente negro.
Por último Hountondji dá-nos pistas para subjectivar a filosofia africa-
na. Como fazê-lo? O próprio Hountondji não dá resposta a esta questão. A 
resposta virá, no entanto, do queniano Odera Oruka. 
Oruka
Sage Philosophy, um projecto iniciado por Odera Oruka, parte dos se-
guintes pressupostos básicos: [i] Que o pensamento tradicional africano, em 
várias áreas, não está escrito ou transcrito; ele é veiculado de forma oral; [ii] 
Tal como Platão escreveu os diálogos de Sócrates (e através deste de outros 
como Thales de Mileto), ao filósofo profissional africano cabe-lhe a missão 
de transcrever o pensamento filosófico tradicional. Porque na sua maioria 
está de forma oral.
Estes princípios levantam, à partida também dois problemas, a saber: 
o problema do critério para identificar o «sábio» que potencialmente pode 
ser considerado como um filósofo; o segundo problema é o do critério ou 
dos critérios para classificar um certo pensamento tradicional como sendo 
filosófico.
Como pois identificar um filósofo tradicional do qual depende a escolha 
da pessoa que podemos transcrever o seu pensamento para texto escrito e 
comentado? Convém antes dizer que há uma atitude geral – denunciada por 
Oruka – segundo a qual considera-se «sábio» a uma pessoa iletrada que vive 
numa comunidade cuja maioria dos seus habitantes também é iletrada; supõe-
se também que a comunidade não seja tecnologicamente não desenvolvida. 
Assim, a sobrevivência da comunidade entanto que tal, a vida espiritual e 
transcendental é explicada e interpretada com a ajuda destes sábios. 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano140
Oruka alerta que devemos ter em atenção não confundir um sábio de um 
profeta, embora uma mesma pessoa possa ser ambas as coisas. Um profeta é 
aquele que tem a tendência de predizer ou adivinhar o futuro da sua comu-
nidade. Este conhecimento do futuro lhe é dito por revelação, algumas vezes 
em sonho, ou ainda através da leitura que fazem da sua própria experiência 
e passado. Muitos dos profetas exploram o futuro de uma forma sistemática. 
Oruka dá o exemplo de um profeta chamado Elija Masinde, do Quénia, que 
fez o predicamento do desaparecimento dos colonialistas brancos quase trinta 
anos antes do Uhuru (independência).
Embora um profeta possa predizer o futuro, na óptica de Oruka, esta 
pessoa não é (ainda) um sábio: A person is a sage in the philosophic sense 
only to the extent that he is consistently concerned with the foundamental 
ethical and empirical issues and questions relevant to the society and his abi-
lity to offer insightful solution to some of those issues ou seja, a pessoa é um 
sábio no sentido filosófico somente na medida que ele está consistentemente 
preocupado com questões éticas e empíricas fundamentais relevantes para 
a sociedade e tem a capacidade de oferecer soluções fundamentadas para 
algumas daquelas questões.
Em muitos países africanos – diz-nos Oruka – procurou-se sábios entre 
os não letrados. Mas isto não quer dizer que a sagacidade exista somente 
nas culturas iletradas. Segundo ele, a causa é porque as sociedades africanas 
perderam interesse em contactar a essas pessoas devido à educação formal 
introduzida pelos colonialistas. Esta valoriza mais o conhecimento adquirido 
através dos livros, nas bibliotecas e de pessoas com uma formação formal 
(técnicos). Deve notar-se, porém, que todas as sociedades têm sábios que 
procuram formular um discurso coerente em relação à sua existência. Oruka 
diz que não interessa se o nome que esta pessoa foi recebendo em diversas 
culturas foi o de filósofo, homem de Estado, sábio, ou cientista. Sob esta 
perspectiva podemos dizer que um Gandhi, um Marx, Nyerere ou John 
Rawls são todos eles sábios das suas respectivas sociedades.
Mas também há casos contrários em que alguns filósofos ocidentais, 
embora tenham escrito, coisas muito comuns (sabedorias populares) e pouco 
abonatórias para a categoria de grandes pensadores, são, no entanto, tomados 
como tais. Oruka dá o exemplo de Arthur Schopenhauer que teria escrito que 
141Pensamento engajado
mulheres são apropriadas para serem enfermeiras e professoras das crianças 
porque elas são infantis e não muito visionárias em relação aos homens. Para 
Schopenhauer as mulheres estão num estado intermediário entre a criança 
e o homem, ou seja, uma criança grande. No entanto os escritos de Schope-
nhauer são considerados como sendo de um grande pensador. 
A diferença entre as sociedades reside no facto de que numas sociedades 
a estrutura social leva a valorizar mais o pensamento expresso nos livros, 
enquanto noutras não estão estruturadas desta maneira. 
Desta forma Oruka acha que, tal e qual se fez com Tales de Mileto (de 
quem sabemos somente que defendia que o princípio de todas as coisas é a 
água) ou de Anaxímenes (de quem sabemos somente que teria defendido que 
o princípio de todas as coisas o fogo), se deve fazer o mesmo com os dizeres 
dos actuais sábios africanos. Ou seja, sabemos que essas frases se tornaram 
filosóficas por terem sido, ao longo da históriado pensamento, repetidas e 
comentadas como sendo argumentos diferentes em volta de um assunto. Esse 
foi o caso de Sócrates: para Oruka este não passou de um sábio consideran-
do que ele usou a sua sabedoria para abordar as questões na praça pública. 
Da mesma sorte foram os sofistas que vendiam o conhecimento que tinham 
sacrificando, algumas vezes, a própria verdade. Os sofistas violavam assim 
a definição verdadeira da filosofia (amor desinteressado pela sabedoria). 
Assim, também hoje em África devemos começar por transcrever os saberes 
dessas pessoas.
Sobre a questão dos critérios para o reconhecimento de que estamos 
perante um sábio, a resposta de Oruka é também clara ao afirmar que […] 
the best judge must be the community from which the person hails, ou seja, 
o melhor juiz deve ser a comunidade na qual a pessoa pertence. Embora 
o pesquisador se deva basear na informação e no julgamento dado pela 
comunidade, Oruka acrescenta que este deve também estar em condições 
de diferenciar entre os que são alegadamente sábios no sentido filosófico 
do termo, porque a própria comunidade pode ter alguns equívocos do que 
pode ser um sábio confundindo com alguns que são simplesmente charlatães. 
Oruka debruça-se também sobre as questões do método do sage philo-
sophy. Ele acha que, em primeiro lugar, o pesquisador deve assumir que, em 
qualquer sociedade, existe dois tipos de afirmações, nomeadamente aquelas 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano142
que são sábias e outras comuns (recorda-se que Foucault também opinava 
que em qualquer sociedade existem dois tipos de discursos: o racional e 
o do senso comum). Em segundo lugar, Oruka propõe que, por questões 
metodológicas, o pesquisador deve distinguir três tipos de afirmações: [i] 
afirmações sábias, [ii] afirmações comuns e [iii] afirmações loucas. 
Na sua opinião, o entrevistador-filósofo profissional deve agir como 
um provocador, de certo modo agindo com ironia socrática, para ajudar ao 
entrevistado a dar parto às suas ideias (método maiêutico). Oruka conta um 
episódio que demonstra que este papel nem sempre é fácil e gratificante. 
Numa das entrevistas ele perguntou sobre a morte. Enquanto um dos sábios 
mostrou-se indignado com a pergunta e reagiu perguntando se Oruka queria 
a sua morte, um outro, pelo contrário, respondeu dizendo que a morte é tão 
boa como a vida; porque segundo ele se não morrêssemos não haveria comida 
suficiente para todos e isto mostra, na sua própria opinião, a bondade de Deus 
A obra de Oruka é interessante para mim por duas razões: embora 
retomando o espírito principal do empreendimento da etnofilosofia (que é 
procurar conteúdos filosóficos por trás dos saberes populares), Oruka no 
fundo faz duas críticas fundamentais. Por um lado, nega alinhar no unani-
mismo da etnofilosofia. Por outro, ao apresentar os saberes tradicionais como 
resultado de uma reelaboração individual acerca de questões fundamentais 
da vida da comunidade por parte do sábio, ele critica a ideia de que os sábios 
tradicionais não têm pensamento individual elaborado sobre as questões 
fundamentais da vida. Oruka resiste assim à tentação unanimista da filoso-
fia africana denunciada por Hountondji, mas constituindo um projecto de 
filosofia subjectiva africana, mas consequente com a realidade africana do 
que o projecto do beniniano.
Conclusão
Kant, na sua informação acerca da orientação dos seus cursos no semes-
tre de Inverno de 1765/1766 apresenta-se mais desolado do que confiante 
perante o ensino e a formação filosóficos. 
143Pensamento engajado
Ele escreve no seu relatório que […] de um professor espera-se que, 
nos seus ouvintes, forme, primeiramente, o homem que entende, depois, 
o que raciocina e, finalmente, o sábio. Para ele o aluno não deve aprender 
pensamentos, mas aprender a pensar; não se deve levá-lo, mas guiá-lo, se 
se pretende que no futuro ele seja capaz de caminhar por si mesmo. Se o 
aluno aprende pensamentos (e não a pensar) então ele levará uma ciência 
emprestada para fora da sala de aulas. Ele sofrerá de uma doença que se 
chama ilusão da sabedoria.
Assim, o nosso projecto do ensino da filosofia (africana) deve passar 
pela transformação das aulas (de filosofia) em espaços em que debate entre 
si sobre questões fundamentais da nossa vida. Chamemos a este tipo de aula 
espaço de intersubjectivação.
145
I
Este artigo tem como objectivo explorar a possibilidade de referências 
teóricas na busca de respostas à seguinte questão: como e até que ponto os 
resultados de pesquisas realizadas pelos docentes universitários em contextos 
culturais moçambicanos são integrados nos programas de ensino, particular-
mente nos programas de formação de professores? Duma forma mais ampla a 
mesma questão coloca-se nos seguintes termos: qual é o estatuto dos saberes 
resultantes das pesquisas feitas pelos africanos no quadro geral da academia?
A resposta a esta pergunta parte do pressuposto da existência de duas 
formas idealtípicas de integrar os saberes produzidos localmente num con-
texto mais amplo da produção científica: Uma forma de integração é como 
«exemplo» e outra como «paradigma». Se abordarmos a questão em termos 
do estatuto desses saberes no quadro das (re)formulações curriculares em 
curso nas nossas universidades moçambicanas, significa que no primeiro caso 
– isto é como «exemplo» – o saber produzido localmente pelos docentes ad-
quire o estatuto periférico, marginal, ilustrador das regularidades e das formas 
(pré) estabelecidas no quadro das ciências modernas. Como diz Ngoenha35 
(num dos artigos deste livro), tem um estatuto de «pedreiro». No segundo 
caso – isto é como paradigma – o estatuto seria o de serem estruturantes, de 
modelos, de formas, enfim de organizadores do conhecimento, e não de um 
MUDANÇA PARADIGMÁTICA 
NA EDUCAÇÃO
Severino Elias Ngoenha 
35 MBEBE, A., As Formas Africanas de Auto-Inscrição. In: Estudos Afro-Asiáticos, V.23, n.1, Rio 
de Janeiro Jan./Jun. 2001.
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano146
simples exemplo como no primeiro caso. Emprestando o termo de Ngoe-
nha, diríamos, para este segundo caso, o estatuo de arquitecto. O arquitecto 
projecta a forma inspirada numa determinada cultura; o pedreiro tem a 
pesada tarefa de colocar os tijolos obedecendo às formas predeterminadas 
pelo arquitecto. Somos pedreiros ou arquitectos no quadro da produção do 
saber de natureza científica?
Neste artigo procuramos mostrar, em primeiro lugar, que o estatuto 
dos saberes produzidos localmente tem sido, até agora, periférico. Contudo, 
não pretendemos ficar por esta constatação: pretendemos, para além disso e 
tendo como pano de fundo as minhas pesquisas no quadro da introdução dos 
conteúdos locais/tradicionais no Ensino Básico em Moçambique desde 2003, 
explorar e tornar evidentes sinais e tendências de superação deste estatuto 
periférico pelo estatuto de paradigma. Dito de outra forma, este artigo procura 
evidenciar algumas referências teóricas à disposição dos pesquisadores uni-
versitários em Moçambique, à luz das quais se podem tipificar os paradigmas 
de enquadramento ou integração dos resultados da pesquisa nos programas 
de ensino. As referências paradigmáticas que exploramos neste artigo, são 
tornadas frutíferas a partir dos esforços de auto-inscrição36 dos intelectuais 
africanos no processo da criação/produção do saber de natureza científica ou 
que tivesse esse estatuto no concerto universal do que é aceite como ciência. 
Uma reflexão cuidadosa – mas ao mesmo tempo muito geral – para aferir 
a questão como é que os intelectuais africanos se representaram a si mesmos 
no quadro da produção do saber de natureza científica, mostra duas posições 
epistemológicas: a primeira posição é como objecto de estudos/pesquisas con-
duzidas, quer pelos próprios intelectuais e académicos africanos, quer pelos 
seus congéneres europeus no contexto da colonização e/ou da globalização. 
Nestes estudos o africano aparece como objecto da curiosidade científica 
dos pesquisadoressejam europeus, sejam eles africanos. A segunda posição 
epistemológica é a do reconhecimento dos africanos como sujeitos, ou seja, 
construtores de saberes que procuram interpretar a sua própria realidade. 
Desta se lhe abre (ao africano) a perspectiva de ser também um sujeito que 
formula juízos científicos sobre a sua própria realidade e, a partir disto, 
36 MBEBE, A., As Formas Africanas de Auto-Inscrição. In: Estudos Afro-Asiáticos, V.23, n.1, Rio 
de Janeiro Jan./Jun. 2001.
147Pensamento engajado
reclama ter o poder de formular sua própria epistemologia, não periférica e 
marginal, e que lhe seja outorgada o estatuto de conhecimento científico no 
quadro da educação, sobretudo superior, em África. Denominaremos estas 
duas tendências de objectivação e de subjectivação respectivamente. 
O aclaramento destas posições de auto-inscrição dos africanos (objec-
tivação e subjectivação) serve para justificar a necessidade de defender uma 
terceira posição epistemológica que consideramos como sendo emergente 
e a mais apropriada para fazer justiça à luta que afinal está por detrás dos 
dois paradigmas anteriores: a luta pelo reconhecimento do local (africano) 
como lugar epistémico não-periférico, que pode ocupar uma posição cen-
tral e estruturante no quadro das reformulações curriculares em curso nas 
nossas escolas e universidades. Insistimos aqui na questão de reformulações 
curriculares porque entendemos que este é um campo importante onde se 
(devia) receiam os estatutos epistémicos dos diferentes saberes. 
A terceira posição aqui defendida é a da intersubjectivacção. Na inter-
subjectivacção reserva-se papel central ao pesquisador no contexto local: ele 
deverá ser um agente activo na produção de novos saberes com base nos quais 
participa na criação de escolas moçambicanas de pensamento. As escolas (o 
mesmo que dizer paradigmas) nascerão da participação activa nos espaços 
de intersubjectivacção – argumentamos no fim deste artigo.
II
A tese que defendemos neste artigo, é a seguinte: existem (já) sinais e 
tendências de superação do estatuto periférico (exemplo, pedreiro) dos sabe-
res produzidos pelos pesquisadores africanos para um estatuto paradigmático 
(central, arquitecto) na produção (pesquisa) e na disseminação (educação); 
todavia, o pressuposto básico para esta mudança é o engajamento do professor-
pesquisador universitário na criação intencional e na ampliação de espaços de 
intersubjectivacção dos saberes produzidos. 
Para explicitar esta tese desdobremo-la em quatro argumentos a saber: 
primeiro que o estatuto quer dos saberes produzidos por pesquisadores africa-
nos nas universidades, quer dos saberes de natureza local/tradicional produ-
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano148
zidos pelos professores no âmbito do currículo local no âmbito micro-escolar 
permanece, para ambos casos, periférico, marginal, de exemplo perante os 
modelos, os paradigmas assimilados no quadro de um sistema de educação 
orientado e construído segundo os padrões de ciências ocidentais. Em se-
gundo lugar argumenta-se que o estatuo periférico dos saberes produzidos 
por ambos consubstancia-se no papel de servir apenas de exemplo quando 
integrados nos quadros curriculares do Ensino . Trata-se da continuação do 
argumento sobre a apropriação dos saberes locais pelo sistema de educação, 
argumento este que já defendemos algures37 . O terceiro argumento postula 
que existem sinais e tendências paradigmáticas de referência teórica a serem 
recuperados das propostas de auto-inscrição dos intelectuais africanos no 
concerto universal da produção do saber de natureza científica. Trata-se de 
tendências de objectivação e de subjectivação. O quarto e último argumento 
justifica a necessidade e o imperativo da criação formal de espaços de inter-
subjectivacção. Estes serão os celeiros de futuras escolas moçambicanas de 
pensamento. Só assim, defende-se, será possível superar tanto a objectivação 
como a subjectivação porque será nestes espaços onde nascerão referências 
de cariz paradigmático justamente para servir as reformulações curriculares 
que se quer justas em relação ao contexto em que fazemos educação.
Convém, porém, a este passo da nossa explanação, fazer dois reparos de 
natureza metodológica. O primeiro reparo é que os argumentos para consubs-
tanciar a tese são desenvolvidos obedecendo a dois níveis de ilustração: num 
primeiro aborda-se a questão do estatuto do saber produzido pelo pesquisa-
dor que trabalha nas universidades; num segundo plano aborda-se o estatuto 
do tipo de saberes educacionais elaborados pelos professores primários no 
quadro das suas tentativas em recolher os conteúdos locais relevantes para 
a aprendizagem dos alunos. A recolha destes saberes pelos professores tem 
como objectivo serem enquadrados no currículo moçambicano do Ensino 
Básico, o que recebeu o termo de currículo local. No primeiro caso, usarmos 
o termo formador-pesquisador para referir os professores universitários 
com o duplo papel, nomeadamente o de formador de professores e o de 
37 Cfr. CASTIANO, J.P., African Traditional Knowledge and Education Today. In: Hountondji, 
P.J.: La Production du Savoir dans l’Afrique d’Aujourd’hui. Centre Africaine des Hautes Études. 
Porto-Novo, Bénin, 2009,pp.425-456.
149Pensamento engajado
pesquisador; no segundo caso usamos o termo professor-pesquisador para 
fazer justiça ao facto de que, no âmbito da introdução dos saberes locais 
nas escolas moçambicanas, o professor deixa de ser somente transmissor do 
conhecimento plasmado nos programas de ensino, e passa a ser também um 
agente activo na organização e na produção dos saberes a serem ensinados 
na escola onde se encontra a trabalhar38 . 
O segundo reparo metodológico diz respeito à natureza não acabada dos 
argumentos aqui alinhados. De facto o epicentro desta análise são os saberes 
locais e a sua integração nos programas de ensino do nível básico, área que 
nos propomos concentrar-nos mais. Assim o nosso focus a partir do qual 
seguimos o fio de argumentação é a produção dos saberes educacionais por 
parte do professor-pesquisador e a análise do estatuto que estes saberes vão 
assumindo no processo de negociação da sua integração na escola oficial. 
No que diz respeito à análise de como o formador-pesquisador, portanto 
o docente universitário, integra os resultados da sua pesquisa nos seus 
programas de ensino carece ainda de um estudo mais profundo analisando 
exemplos mais concretos. Este nível só pode ser ligeiramente aflorado no 
quadro deste artigo, sem no entanto poder formular evidências acabadas. 
Assim, nos juízos que fazemos, limitamo-nos, por enquanto, às experiências 
pessoais como formador-pesquisador dos saberes locais e sua integração no 
processo de ensino e de aprendizagem (currículo local) e como docente de 
filosofia de educação na Universidade Pedagógica.
III
Formulamos o primeiro argumento da seguinte maneira: Tendo como 
pressuposto a extraversão na produção e na disseminação dos resultados de 
pesquisa, o estatuto quer dos saberes produzidos por formadores-pesquisadores 
africanos nas universidades, quer dos saberes de natureza local/tradicional em 
África produzidos pelos sábios nas comunidades permanece, para ambos casos, 
periférico, marginal, de exemplo. 
38 Cfr. CASTIANO, J.P.., Os Saberes Locais vão à Escola. In: Síntese, Revista da Faculda-de de Ci-
ências Sociais da UP, Maputo, 2008.
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano150
Por uma questão de lógica argumentativa, divido este argumento em 
duas partes: a primeira explicita o carácter periférico dos resultados dos 
formadores-pesquisadores que realizam as suas actividades de pesquisa no 
contexto da sua missão universitária (de pós-graduação ou como pesqui-
sadores seniores) e a segunda parte caracteriza-se os saberes educacionais 
produzidos pelos professores-investigadores ilustrando-os na base de alguns 
textos aleatoriamente seleccionados das brochuras do currículo local das 
províncias de Sofala eManica.
Comecemos, portanto, com a primeira parte do primeiro argumento. 
Hountondji (2000,p.41) sustenta que a característica geral da pesquisa nas 
universidades africanas é a extraversão; isto é, a pesquisa está virada para 
a exportação para o Ocidente dos saberes produzidos. Ele sustenta que há 
razões organizacionais e cognitivas que consubstanciam esta posição. Sob o 
ponto de vista da organização do processo de pesquisa nota-se que nos países 
africanos não existe uma produção industrial dos instrumentos que facilitam 
e garantem uma boa qualidade de pesquisa tais como microscópios, papel, 
computador, etc.; estes são importados a preços altíssimos, na sua maioria 
dos países europeus; as editoras, jornais de natureza científica e académica 
mais significantes – espaços onde os resultados das pesquisas podem ser 
divulgados –, as livrarias e bibliotecas mais prestigiadas – distribuidoras de 
informação científica – também se encontram, na sua maioria, nos países 
do Norte (Europa e América); as línguas por meio das quais se divulgam os 
saberes produzidos em África são de origem europeia (ou em inglês, ou em 
francês, ou ainda em português); isto coloca aos pesquisadores e estudantes 
europeus – utilizadores privilegiados das informações – em condições cul-
turalmente vantajosas no que diz respeito ao acesso e à disseminação dos 
saberes desta natureza. 
Sob o ponto de vista dos conteúdos do conhecimento nota-se, entre 
outras coisas, que a agenda de pesquisa e os interesses cognitivos que estão 
no substrato dos projectos de pesquisa são ditados, em última instância, por 
interesses ligados ao desenvolvimento da actividade científica das univer-
sidades do Norte acolhedoras; da mesma forma, os paradigmas e modelos 
teóricos, quer de natureza positivista-objectivista quer de natureza (cultural) 
interpretativa-subjectivista, são impostos aos formadores-pesquisadores em 
151Pensamento engajado
África pela própria lógica do empreendimento da produção científica; a legi-
timação dos resultados de pesquisa é feita na base do cânone predeterminado 
pela tradição científica europeia.
A organização da pesquisa na nossa Universidade Pedagógica assim 
como noutras universidades moçambicanas, está também a braços, por um 
lado, com dificuldades de ordem material e organizacional e de ordem epis-
temológica, por outro. As dificuldades de ordem material vão desde a falta de 
laboratórios bem apetrechados, o fraco acesso aos livros de especialidade, a 
não existência de assinaturas regulares de revistas especializadas que possam 
actualizar de forma permanente aos formadores-pesquisadores no que diz 
respeito às pesquisas realizadas por colegas em outras universidades, entre 
outras. A pouca actividade de pesquisa na Universidade Pedagógica é reali-
zada, na sua maioria, num contexto de pós-graduação ou de consultoria ou 
ainda daquilo que comummente se chama por acessoria. Esta situação leva 
logicamente a certos constrangimentos estruturais e temporais resultantes 
desta condição, mas sobretudo leva também a constrangimentos de ordem 
epistemológica. Se tomarmos em conta que nas pesquisas que os docentes 
realizam é feita quase sempre no contexto da sua pós-graduação – a maioria 
dos livros publicados são textos dos trabalhos de doutoramento – a fase do 
trabalho de campo é feita em Moçambique, ficando o chamado tratamento 
de dados e o seu respectivo enquadramento teórico para a fase de estadia 
nas universidades do Norte; para o caso da maioria dos docentes da Uni-
versidade Pedagógica são universidades da Alemanha, da França, do Brasil, 
etc. Esta extraversão determina em grande medida que o quadro teórico 
ou os paradigmas de análise são inspirados ou simplesmente copiados dos 
livros de autores recomendados como essenciais, na sua maioria do Norte. 
São teorias produzidas em contextos diferentes aos que o nosso formador-
pesquisador se confronta no seu trabalho de campo. Esta acepção se pode 
confirmar rapidamente com um simples olhar quantitativo e qualitativo à 
bibliografia das dissertações. A título ilustrativo pode ler-se num dos textos 
de resumo da comunicação do colega Jó Capece39 (título: Ligação Escola-
39 Este artigo foi escrito, primeiramente, no âmbito de uma comunicação apresentada no seminário 
sobre Formação de Professores em Moçambique, realizado na Universidade Pedagógica em Maputo 
(Maio 2008) no qual Jó Capece apresenta o tema referido no texto.
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano152
Comunidade e os Saberes das Comunidades Locais) no qual se lê: Tomando 
como referência as obras de Joseph Campbell O poder do mito, Jorge Torres 
Santomé O Currículo Local, Michael Apple Conhecimento Oficial: educação 
democrática numa era conservadora, Jean-Claude Forquim A escola e cultura: 
as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar e o depoimento 
da entrevista… (com) ... um conjunto de elementos que fazem ponte entre 
os saberes das comunidades locais e o conhecimento oficial. Está claro que 
Capece usa os depoimentos dos elementos da comunidade para confirmar o 
saber contidos nos livros. Uma coisa notável também, parece que estes ele-
mentos da comunidade não têm nome digno de se mencionar ou ser citados 
neste tipo de artigos ostensivamente académicos.
Continuemos, agora, com a segunda parte do primeiro argumento, 
explorando, desta feita, a questão dos caminhos de integração dos saberes 
educacionais produzidos pelos professores-pesquisadores a partir das reco-
lhas que orientaram nas diversas comunidades no currículo oficial do ensino 
básico em Moçambique. 
Em 2003 o então Ministério de Educação e Cultura moçambicano in-
troduziu algumas inovações no sistema de educação. Uma destas inovações 
é o chamado currículo local. Desde lá para cá ainda não houve um balanço 
sistemático e global (relatórios oficiais) avaliando os resultados daquela re-
formulação curricular.
Entretanto, em diversas sessões de capacitação dos professores em 
matérias de integração de temas locais no currículo centralmente definido 
surgem muitas questões colocadas pelos professores procurando saber como 
podem integrar estes mesmos na sua actividade de leccionação. Algumas das 
perguntas mais recorrentes são as seguintes: Como integrar os conteúdos do 
currículo local nos planos de aulas? Como seleccionar os conteúdos do currí-
culo local? Em que momento da aula pode tratar-se de matérias do currículo 
local? Que língua se deve usar para o tratamento dos conteúdos do currículo 
local (em caso de o professor não ser oriundo da zona)? É possível tratar os 
153Pensamento engajado
conteúdos do currículo local em todas as aulas e disciplinas40 ? Como é feita a 
integração dos 20% do currículo local? Pode fazer-se uma avaliação somente 
de conteúdos do currículo local? Como professor posso integrar conteúdos 
no currículo local que eu achar pertinentes para a aprendizagem do aluno 
ou somente tenho que obedecer aos conteúdos recolhidos e compilados na 
brochura? A brochura do currículo local é renovável? É possível integrar 
conteúdos provenientes de outras zonas, por exemplo danças? Como tratar 
os conteúdos que não são do domínio do professor?
Estas e outras perguntas aqui não reproduzidas apontam para a existên-
cia de dificuldades de ordem do conceito do currículo local, mas sobretudo 
no que concerne aos métodos para recolher e inventariar esses conteúdos 
e também métodos apropriados para poder abordar os mesmos na sala de 
aulas. Embora falte um acompanhamento sistemático dos professores por 
parte do Ministério de Educação e Cultura e por parte do Instituto Nacional 
de Desenvolvimento da Educação, o facto de os professores começarem a 
preocuparem-se com a formulação de perguntas para o melhoramento da 
sua própria actividade, não nos pôde passar despercebido.
Com efeito, para além de maior capacitação dos professores primários 
para poderem ter bases em metodologias de recolha dos conteúdos do cur-
rículo local e em metodologias apropriadas para ensinar os mesmos,o que 
os professores mais necessitam é de transformar as suas recolhas em material 
didáctico (textos de apoio) aos quais podem recorrer sempre que estiver no 
seu programa a inclusão dos conteúdos locais. O maior desafio, portanto, 
neste momento é o da transposição didáctica no sentido de transformar os 
temas, tópicos e alguns textos contidos nas brochuras do currículo local em 
textos que sejam coerentes, sistematizados, bem estruturados, mas sobretudo 
responsáveis aos anseios e conteúdos recolhidos nas comunidades. Para nós 
e no contexto da tese aqui em labuta, consideramos que é nesta fase – que 
aparentemente é a da transcrição dos resultados das entrevistas e de recolhas 
40 Deve notar-se que o novo currículo do ensino básico em Moçambique comporta três áreas curri-
culares, nomeadamente a área de Comunicação e Ciências Sociais (com as disciplinas de Língua 
Portuguesa, Línguas Moçambicanas, Língua Inglesa, Educação Musical, Ciências Sociais e Edu-
cação Moral e Cívica), a área da Matemática e Ciências Naturais (que comporta as disciplinas de 
Matemática e Ciências Naturais) e a área das Actividades Práticas e Tecnológicas (que comporta 
as disciplinas de Ofícios, Educação Visual e Educação Física).
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano154
nas comunidades – que o professor-pesquisador elabora a primeira parte 
dos saberes educacionais a partir de contextos locais. Os textos básicos são 
colocados no que o INDE convencionou chamar de Brochuras do Currículo 
Local.
Os textos a seguir são transcritos das brochuras de alguns distritos da 
província de Sofala. São textos elaborados na sua íntegra por professores 
primários após terem entrevistado (o termo mais usado pelos professores é 
recolha em vez de entrevista) sobre os temas e conteúdos locais aos membros 
das comunidades. Preferentemente foram alvos das entrevistas os pais ou en-
carregados de educação que fazem parte dos Conselhos de Escolas. A escolha 
dos textos é aleatória; o único critério foi evitar incluir textos que abordam 
os mesmos conteúdos locais dado que o objecto da nossa argumentação não 
é uma comparação, senão mostrar a variedade e a profundidade de como 
os temas de carácter local são transferidos pelos professores para um texto 
de natureza didáctica. A repetição foi também evitada, porque se pretende 
aferir, no fim, como é que os professores integram estes conteúdos no currí-
culo central e oficialmente definido para ilustrar os desafios que se colocam 
à construção e as reformulações curriculares no contexto da formação de 
professores. Os textos foram literalmente transcritos, i.e. copiados tal e qual 
foram elaborados pelos professores. Não procedemos à correcção linguística.
Texto 1: As Plantas Medicinais em Cheringoma
(FONTE: Brochura de Currículo Local de do Distrito de Cheringoma, Sofala)
Nhangarume, Ncundo-ncundo, Zingazimo, Nhampheraphera, Vungute, 
Raiz de Papaira (quer dizer papaeira), Raiz de piri-piri, Raiz de Santo-Antó-
nio, Ndulando, Mpundopundho, Papaia Verde, Raiz de Recino (quer dizer 
rícino), Kmbamcolo, Khundokundo, Mpanguire, Gona Zololo, Nhanfungu, 
Ntsembe, Nkotamo, Sequesse, Minimini, Fula, Mussequece, Pau-Preto.
Nhangarume – serve para curar abcessos ou enxassos (quer dizer inchaço) a 
partir das suas raízes raspando e pondo na ferida.
Ncundo ncundo – serve para dores de barriga a partir da sua raiz pondo 
água tomando-a 5 minutos depois.
Zingaazimo – é uma planta que serve para expulsar espíritos maus. Pilam-se 
155Pensamento engajado
as folhas e põem-se numa bacia com água depois esfrega-se todo o corpo, 
serve também para curar dores de estômago.
Nhapheraphera – serve para prevenir em caso de adulteiro, a continuação 
de doenças como: febres, diarreias e tosse. Recolhe-se as folhas, lava-se e 
mergulha-se num copo e os adultos tomam um copo e os adultos tomam um 
copo as crianças uma colherinha.
Folha de limoeiro – serve para curar tosse. As próprias folhas fervidas be-
bendo água.
Vungute – é uma planta que trata as mulheres que tem problemas em produ-
zir leite materno. Para os homens serve para aumentar sexo. Modo de pre-
parar: nas mulheres leva-se a fruta e fura-se a mesma e pegam nos mamilos 
e colocam-nos no burraco (quer dizer buraco) a mulher vai usando até sair 
leite sendo duas vezes por dia. Para os homens sobe na árvore e abre bura-
quinho na fruta fixa na respectiva árvore e o rapaz que ainda não atingiu a 
idade de casamento, vai subindo de manhã e a tarde para introduzir seu sexo 
no buraco (6 aos 11 anos).
Raiz de papaeira – cura dores de dente. Coloca-se no dente que possui um 
buraco, deve ser posto no dente que estiver a doer.
Folha de eucalipto alivia as febres fortes e malária. Junta-se as folhas de au-
calipto, da goiabeira, limoeiro e mistura-se numa panela com água que basta 
e ferve-se faz-se bafo (duas vezes por dia).
Raiz de piri-piri – usa-se para curar a mordedura de cobras. Preparação: tira-
se a raiz, raspa-se e deita no recipiente de preferência copo e mistura-se com 
água uma quantidade regulada e depois toma-se a água.
Raiz de rícino – serve para curar dores de dente. Preparação: leva-se a raiz 
de rícino e das bananeira, pilam-se e depois juntam-se com óleo do rícino 
mistura-se muito bem, coloca-se no buraco onde estiver a doer.
Kmbamcolo e Khundokundo serve para curar ferida; modo de preparar: 
pila-se a raiz de khundokundo e raspa-se; a farinha é posta da ferida.
Mpaguire – serve para tirar grávida (abordo). Tira-se as folhas, lava-se e 
pila-se. Põe-se no copo com água e toma-se a própria água. Evita-se usar a 
mulheres que tenham grávida de dois meses ou mais se não pode morrer.
Gonadzololo – serve para dar mais potência sexual masculina. Estrai-se 
(extrai-se) a raiz, lava-se, raspa-se e guarda-se e depois pila-se até ficar em 
pó e guarda-se num frasco. No momento preciso tira-se uma colheirinha e 
mistura-se com água e toma-se. Aconselha-se usar gonadzololo a partir dos 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano156
40 anos ou mais.
Nhanfunga – serve para dar força, vitamina, aumenta sangue as mulheres 
grávidas e fortalece a mulher no momento de parto.
Ntsumbe e Nkotamo – serve para tratar as mulheres que não concebem.
Sequece – serve para curar tuberculose e tosse. Modo de preparação: tira-
se folhas e as próprias raízes, põe-se na panela com água e põe-se a ferver. 
Toma-se a água fervida para adulto metade de chávena e duas colherinhas 
para as crianças, sendo três vezes por dia.
Minimini – serve para prevenir conjuntivite e complicações de parto. Modo 
de preparar: pode se tomar as sementes ou pilar-se mistura-se com água e 
toma-se. Também pode ser usada por pessoas que não têm boa mão para 
melhorar a criação.
Santo António: serve para dores de estômago e para curar cólicas (dores de 
barriga) para bebé.
Texto 2: A Pescaw
(FONTE: Brochura de Currículo Local de do Distrito de Cheringoma, Sofala)
C.Naturais
3. Classe
2. Ciclo
A Pesca é uma actividade extra praticada pelas comunidades que vivem per-
to do rio. Pela natureza dos rios do distrito de Marínguè. A pesca é artesanal 
e periódica. Para esta actividade a comunidade utiliza o anzol, redes, konga, 
ndzize. 
Os principais pescados são: peixe muni-muni, macacana e nsimbo.
Texto 3: Plantas de Valor Espiritual
(FONTE: Brochura do Currículo Local do Distrito de Gorongoa, Sofala)
6.Classe
Ciências Naturais
1.Ciclo
Objectivo geral: conhecer as plantas de valor espiritual
O distrito de Gorongosa é rico em plantas de valor espiritual usada pela 
157Pensamento engajado
população de azares e de espíritos maus. As plantas de valor espiritual são: 
Nktunite, Chizinga Ázimo, Ntondo, Mpangapanga (usa-se nas machambas), 
Mpacassa, Mulembe. Dada a importância destas plantas são respeitadas pe-
las populações.
Vocabulário
Valor: importância
Afugentar: expulsar, tirar, correr
Questionário:
Sugestões metodológicas
Propor aos alunos que tragam para a sala das aulas plantas de valor espiritual 
que os pais conhecem
Visitar um lugar onde estas plantas existem.
O professororganiza o plantio das plantas em redor da escola.
Texto 4: Os Mitos e Tabus do Distrito de Muanza
(FONTE: Brochura do Currículo Local do Distrito de Muanza, Sofala)
No distrito de Muanza, existem tradições com um papel educativo para a 
comunidade. Tabus são proibições que são feitas a certas práticas;
Mitos: são consequências da desobediência das práticas dos tabus.
As proibições
Em Muanza é proibido o seguinte: sacudir a roupa ou esteira no período 
nocturno, lavar panelas no rio, praticar relações sexuais na floresta, sentar 
no tronco caído na floresta, assobiar nas noites, pernoitar em cima de uma 
árvore.
Consequências
Crê-se que com estas práticas será devorado pelo leão ou leopardo.
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano158
Vocabulário
Mito: justificação
Tabu: proibição
Tradição: hábito, costume
Questionário
1.O que são mitos e tabus?
2.Quais são os tabus do distritos que aprendeste?
Sugestões Metodológicas
O professor poderá recorrer a entrevista aos líderes comunitários e pessoas 
mais velhas da comunidade, ou convidar alguém da comunidade para falar 
sobre o tema.
Texto 5: Estrutura da Comunidade
(FONTE: Brochura do Currículo Local do Distrito da Machanga, Julho 2004)
Na comunidade existem várias estruturas tais como:
Composição da estrutura administrativa:
 1º Administrador
 2º Chefe do Posto
 3º Presidente da Localidade
 4º Secretários de Bairros
 5º Chefes de Quarteirões
 6º Chefes de 10 Casas
 Sendo assim o Distrito de Machanga é constituído de Postos Administra-
tivos e 8 Localidades.
Postos Administrativos:
 1. Sede – com as seguintes localidades:
 1.1 – Mavinga
 1.2 – Zimuala
 1.3 – Javane
159Pensamento engajado
 2.Divinhe
 2.1 – Divinhe
 2.2 – Maropanhe
 2.3 – Buene
 3.Chiloane
 3.1 – Chiloane
 3.2 – Inharingue
Composição da estrutura política
Comité Distrital
Secretário do Comité Distrital – 1º secretário
Secretário para Organização, Mobilização e Propaganda
Chefe do DAF
Dentro desta estrutura existe uma outra denominada Comité de Verificação 
composta por 1º Secretário e 4 membros.
Comité de Zona
1º Secretário do Comité de Zona
Secretário para organização
Comité de Círculo
Secretário do Comité do Círculo
Secretário para a organização
Célula do partido
Secretário da célula
Assistentes
Composição da estrutura tradicional
1- Régulo 
2- Chefes de povoação
3- Chefes de grupos de povoação
O régulo tem a sua equipa de trabalho conhecida por Sacutas destes fazem 
parte os mensageiros, polícia do regulo e advogados.
Principais regulados do Distrito: Chiteve, Beia-Peia, Zimuala, Javane, Mo-
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano160
tongua, Vumone, Mutambanhe, Gumbaza (Maropanhe), Ziminine (Inha-
ringue), Nhanguvo, Chiloane, Metuge.
Funções das diferentes estruturas
 a) Estrutura administrativa: garantir melhor administração dos serviços;
 b) Estrutura Política: assegurar os trabalhos do partido através dos seus 
membros;
 c) Estrutura tradicional: garantir a tranquilidade na sua área de jurisdição, 
orientar cerimónias tradicionais e cobrança de impostos.
Ficou evidente, neste primeiro argumento, que, para ambos os casos, 
o resultado final dos saberes produzidos no contexto da pesquisa científica 
praticada pelos universitários e dos saberes produzidos em contextos edu-
cacionais mais localizados pelos professores-pesquisadores no âmbito da 
construção do currículo local, é de serem duplamente marginais: sendo no 
primeiro caso marginais no contexto universal da produção do conhecimento 
científico, e, no segundo caso, sendo marginais em função do conhecimento 
oficialmente aceite como apropriado para ser ensinado pela instituição escola. 
Em seguida, no argumento 2, vamos procurar concretizar mais mostran-
do como esses saberes estão sujeitos a uma apropriação estruturada. Faremos 
isso olhando mais especificamente para o papel desses saberes na construção 
do currículo e dos programas de formação de professores (tendo como foco 
de análise a Universidade Pedagógica) e na construção do currículo local 
como parte integrante do currículo centralmente definido em Moçambique.
IV
Vejamos, pois, o segundo argumento: O estatuto periférico e subordi-
nado quer dos saberes produzidos por formadores no âmbito das pesquisas, 
quer o que é produzido pelos professores-pesquisadores no âmbito do cur-
rículo local têm pouco impacto nas reformulações dos fundamentos das (re)
construções curriculares ao nível universitário e ao nível do Ensino Básico. 
Desdobremos, também, este segundo argumento em duas partes. Na 
primeira mostra-se que ainda está muito longe um impacto paradigmático dos 
resultados das pesquisas dos formadores na concepção das reformas curri-
161Pensamento engajado
culares em curso nas universidades africanas, na formulação dos princípios e 
fundamentações curriculares assim como na docência de disciplinas/cadeiras 
particulares. Na segunda parte do argumento mostra-se que, não obstante 
à pressão dos grupos epistémicos locais para a integração dos saberes locais 
na escola, o resultado da recolha e – para usar o termo do Instituto Nacional 
de Desenvolvimento da Educação – da integração dos chamados conteúdos 
locais no currículo nacionalmente definido é a manutenção, na sala de aulas, 
do estatuto subordinado, inferior, marginal dos conteúdos recolhidos para 
o currículo local. Portanto, em ambos casos há um processo de apropriação 
desses saberes por parte da estrutura e ordem científicas (pré)estabelecidas 
nos programas curriculares de formação de professores nas universidades 
assim como na escola básica. Em ambos casos podemos falar de haver um 
processo de apropriação dos saberes produzidos em condições periféricas. 
Esta apropriação é estruturalmente condicionada pelos princípios e funda-
mentações das reformulações curriculares que, deliberadamente, olham para 
a experiência ocidental na educação como o epicentro e para as experiências 
africanas na educação como periferia.
 A Apropriação dos Resultados de Pesquisa pelo Cânon Cur-
ricular Universitário
Comecemos por demonstrar a primeira parte do segundo argumento. 
Tomemos, de novo, a pesquisa que é feita na Universidade Pedagógica como 
ponto de partida.
Um dos ramos mais desenvolvidos e fortes da pesquisa na Universidade 
Pedagógica é, sem dúvidas, a etnomatemática. E isso deve-se principalmen-
te aos trabalhos do seu mentor principal: Paulus Gerdes. Por isso é justo 
começar por aqui. No texto da apresentação por ocasião do relançamento 
da 3ª edição (1ª edição 1979) do livro Exemplos de Aplicações da Matemá-
tica na Agricultura e na Veterinária, publicado pela primeira vez em 1982, 
Gerdes41 conta no início a ideia de investigar os conteúdos matemáticos 
nas culturas moçambicanas. Em 1977 começou a formação de professores 
41 Cfr. GERDES, P., Exemplos de Aplicações da Matemática na Agricultura e na Veterenária, Lulu.
com & TLANU, 3ª Edição, 2008.
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano162
de matemática para a 5ª e 6ª classes na então Faculdade de Educação da 
Universidade Eduardo Mondlane. Gerdes conta que era necessário motivar 
os poucos estudantes porque, entretanto, quase nenhum estudante gostava 
da matemática porque esta lhes parecia ser uma disciplina esotérica, pouco 
interessante, e pouco útil para o desenvolvimento social, cultural e econó-
mico do país. Gerdes prossegue dizendo que como um dos componentes de 
motivação, introduziu-se no currículo uma disciplina chamada Aplicações da 
matemática na vida corrente das populações. Entre outras coisas, a disciplina 
incluía visitas de estudos. Uma das visitas feitas foi à fábrica de cervejas onde 
os estudantes teriam, segundo Gerdes, constatado que operários pouco ou não 
escolarizados trabalhavam com números negativos para controlar vários pro-
cessos na fábrica… No prosseguimento das pesquisas, os estudantes teriam 
contactado primeiramente pessoas-na-vida-diária, tais como camponeses, 
agentes de extensão rural, médicos veterinários (…) para conhecer a natureza 
do seu trabalho e saber onde a matemáticaera usada na sua vida, saber quais 
eram as situações mais frequentes na sua prática onde surgiam dificuldades 
em lidar com números e figuras geométricas. A seguir, tentou-se formular 
os problemas matemáticos envolvidos numa forma acessível e didáctica…. 
Devo acrescentar que As aplicações tem capítulos de matemática aplicadas 
à sementeira, à adubação, ao combate à certas doenças que afectam o gado 
bovino (riquetsiose e coccidiose). Este livro pode ser considerado – e espero 
não estar a trair a ideia de Gerdes – como o texto fundador da pesquisa na 
etnomatemática em Moçambique. 
A Apropriação dos Saberes Locais pela Escola
Discutamos agora as questões colocadas para a integração destes textos 
exemplares nos programas do ensino.
No debate em relação ao texto Plantas Medicinais colocou-se o proble-
ma da sua integração nos programas do ensino básico da seguinte maneira: 
onde podemos enquadrar o assunto da planta Gona Dzololo no programa 
de ensino?
No debate acordou-se que este tema do currículo local pode ser perfei-
tamente enquadrado no tema Plantas Medicinais do 3º ciclo no programa de 
163Pensamento engajado
ensino centralmente definido. Também notou-se que este tema não deveria 
ser integrado na 5ª classe porque as crianças da 6ª classe são mais crescidas e 
as da 5ª classe não; também deixou-se de lado a possibilidade de enquadrar 
este tema no capítulo sobre Aparelho reprodutor da 5ª classe, porque esta 
planta não serve os propósitos da reprodução; a outra possibilidade afastada 
é de incluir a planta Gona Dzololo no capítulo que fala de medidas para 
evitar gravidez, da 7ª classe ou ainda na disciplina das Ciências Naturais, na 
6ª classe, onde existe uma unidade temática sobre plantas.
NOTA: neste caso viu-se que era importante o professor primeiro 
informar-se com todos os detalhes sobre o conteúdo do tema (Gona Dzolo-
lo). Em segundo lugar o professor deve consultar os programas de ensino e 
analisar os objectivos ou competências descritas no programa para decidir 
sobre a inclusão ou não desta planta na sua planificação da aula. Por exem-
plo, as competências contidas no programa de Ciências Naturais (6. classe) 
são: conhecer as principais plantas existentes na sua comunidade; conhecer 
a importância das principais plantas da comunidade; usar plantas da comu-
nidade para resolver os problemas da vida real; conhecer as características 
gerais botânicas das principais plantas da comunidade e dominar métodos 
de protecção e conservação das principais plantas da comunidade42 . Depois 
de estar claro sobre as competências o professor pode então decidir em que 
capítulo ou tema centralmente definido pode integrar o Gona Dzololo como 
um exemplo local.
Em relação ao texto sobre as pescas foi observado que é preciso localizar 
mais os textos. Localizar significa fazer um texto mais interdisciplinar abran-
gendo aspectos das Ciências Socais (que costumes e hábitos estão ligados à 
pesca? Quem vai geralmente à pesca? Como são distribuídas as partes do 
peixe? Há peixes que têm um significado especial como por exemplo azar, 
má sorte? O que se faz para que a pessoa tenha sorte na pesca? Quais são 
os mitos ligados à pesca), da disciplina de Ofícios (sugerindo que os alunos 
fabriquem ou tragam os instrumentos de pesca na escola como anzol, konga, 
ndzize). Uma outra vertente de localizar este tema significaria colocar os no-
mes tradicionais dos instrumentos, procurar saber o significado dos nomes dos 
42 MEC/INDE, Programa do Ensino Básico, 3, ciclo, 6. e 7. Classes. Maputo, Moçambique, 2003, p.496.
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano164
rios, perguntar sobre as cerimónias tradicionais praticadas nos rios, perguntar 
sobre os mitos ligados aos rios, transcrever contos locais sobre os rios, etc.
No que diz respeito ao texto sobre O valor espiritual das plantas foram 
colocadas algumas reservas pelos professores em relação à sugestão metodo-
lógica, nomeadamente a de fazer o seu plantio em redor da escola para que 
as crianças possam observar as plantas referidas como exemplos. Pelo facto 
de as plantas terem o valor espiritual deveria haver, segundo os professores, 
extremo cuidado em relação a esta sugestão dado que se deve pedir a anuên-
cia e a intervenção dos membros do Conselho de Escola para autorizarem a 
abertura deste mini-viveiro nos arredores da escola. 
Por fim, em relação ao texto sobre danças, observaram os professores, 
que dever-se-ia destacar os tipos de danças segundo a sua função (para alegria 
ou que expressam a tristeza); deveria também alistar-se as formas como se 
executa cada dança; e, finalmente, deveria especificar os actores e os execu-
tores das danças (crianças, adultos, homens, mulheres).
A partir das observações adiantadas acima que ilustram como os pro-
fessores integram, mas sobretudo, como negociam os conteúdos locais no 
quadro do sistema oficial de ensino e a sua integração neste mesmo sistema, 
feita acima, estamos em condições de passar para o argumento seguinte, o 
terceiro.
Este argumento pode ser formulado da seguinte forma: há sinais e/ou 
tendências novas paradigmáticas (de objectivação e de subjectivação) que 
podem servir, por um lado, de referência teórica para a construção curricular 
no âmbito de formação de professores e, por outro, como referência para a 
planificação curricular ao nível das diferentes cadeiras. As várias correntes 
de objectivação e de subjectivação podem também constituir-se em quadros 
teóricos paradigmáticos na elaboração e efectivação de projectos de pesquisas 
dos formadores-pesquisadores no esforço do resgate dos saberes locais para 
a formação de professores. 
A nova tendência paradigmática é tornada frutífera a partir das propostas 
dos intelectuais africanos no esforço da auto-inscrição da sua identidade no 
contexto universal da produção de um saber que possa ser legitimado como 
sendo de natureza científica.
165Pensamento engajado
Kuhn43 considera paradigmas as realizações cientificamente reconhecidas 
que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para 
uma comunidade de praticantes de uma ciência. Durante o período de pre-
dominância de um paradigma pratica-se aquilo que Kuhn chama de ciência 
normal; esta constitui uma promessa de sucesso que pode ser descoberta em 
exemplos seleccionados. A actualização da promessa de sucesso é garantida 
e constantemente renovada e ampliada à medida que abordamos novos 
problemas e encontramos as respectivas soluções no quadro do mesmo pa-
radigma. Kuhn44 também sustenta que os paradigmas orientam as pesquisas, 
seja modelando-as directamente, seja por regras abstractas.
A classe intelectual-académica africana – pelo menos no que diz respeito 
às ciências sociais e humanas, na filosofia em particular, – sempre procu-
rou auto-inscrever-se na história da produção do conhecimento científico 
procurando conferir-se a si mesma a autoridade de falar em nome do ima-
ginário colectivo africano. Uma leitura atenta à história desta auto-inscrição 
dos intelectuais africanos no mundo da ciência nos faz deduzir referências 
paradigmáticas que podem ser tornadas frutíferas para o nosso propósito. 
São paradigmas de objectivação e/ou de subjectivação do sujeito africano 
enquanto participante do empreendimento da produção técnico-científica. 
O que está em causa é, porém, a busca da identidade própria no seio da 
comunidade científica local e universal e a elaboração de um discurso de 
significação simbólica que pudesse dar conta da condição africana.
No eixo das reflexões académicas sobre a sua condição histórica e 
contemporânea, ou seja, no centro das diferentes formas da auto-inscrição 
(Mbembe) dos intelectuais africanos na história universal, repousam três 
eventos eixos: a escravidão, o colonialismo e a globalização. Nestes eventos 
o intelectual africano – mesmo que aparentemente fosse como membro da 
elite da sua sociedade – participa respectivamente na condição de escravo, 
colonizado e globalizado. É assim «natural» que oparadigma libertário, 
como sustenta Ngoenha (2005), ou seja a preocupação da fundamentação 
43 Cfr. KUNH, T.S., A Estrutura das Revoluções Científicas. Editora Perspectiva, Ciência, S. Paulo, 
Brasil, 2000,p.3.
\44 Idem, 2000,p.72.
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano166
da liberdade do africano, constitua a referência principal na actividade in-
telectual dos africanos.
Em relação aos três eventos ou processos foram desenvolvendo-se duas 
tendências paradigmáticas: a da objectivação e da subjectivação.
Paradigma da Objectivação
A primeira tendência, que chamo por objectivação, nasce da ideia de 
que, como consequência da escravidão, da colonização e da globalização, o 
Eu africano se tenha alienado a si mesmo a ponto de se tornar estranho ao 
seu próprio corpo (Mbebe 2001). O discurso sobre a condição da própria 
existência, a redimensão da identidade enquanto africano, são feitos a partir 
do lugar que a história dita universal, elaborada a partir duma perspectiva 
predominantemente do Ocidente, o reserva. É essa a base do ocidentalismo 
no qual a figura do africano sofre um processo de objectivação: ele entra na 
história dita universal como objecto (e não sujeito) da sua própria história. Na 
historiografia o Ocidente, apresenta-se como uma posição de localização his-
tórica e científica, como o centro referencial da produção do saber de natureza 
tecno-científica. O sujeito ocidental apropria-se das referências simbólicas e 
tecno-científicas, incluindo as que encontrara nas colónias, reelaborando-as 
e disseminando-as de acordo com o lugar e o estatuto que reserva ao outro 
africano. Se antes era a Antropologia que se encarregava de estudar o «ou-
tro», hoje encontramos uma certa continuidade da tendência objectivação 
no chamado movimento das etno-ciências, incluindo a etnofilosofia.
Depois da independência em Moçambique a tendência de objectivação 
continuou por uma série de estudos antropológicos, etnográficos em diversos 
ramos das etnociências, particularmente na Etnomatemática, levados a cabo 
nas diferentes instituições superiores e de pesquisa moçambicanas. Entretanto 
o saber científico moderno é o único que continua a ser reconhecido na esfera 
pública formal, precisamente pela sua qualidade de saber dominante. A sua 
transmissão nas diferentes vertentes é legitimada pela estrutura dos cursos 
ministrados em diferentes faculdades, perpetuando a condição colonial no 
ensino. 
167Pensamento engajado
Paradigma da Subjectivação
A segunda referência, que chamamos de subjectivação, tenta contrapor-
se à perspectiva eurocêntrica/ocidental do discurso sobre a condição su-
balterna do africano-objecto na dita história universal, refugiando-se num 
discurso do imaginário tradicional, de nostalgia em relação ao passado idílico 
e de idolatria às tradições locais. Mais do que isso, busca e rebusca a sua 
legitimidade em tradições muitas vezes recriadas a partir das quais pretende 
elaborar significações e identidades homogeneizantes. Trata-se, desta feita, do 
afrocentrismo e da filosofia ubuntu. Estas referências procuram re-centrar o 
sujeito africano na sua própria História e na produção do saber de natureza 
científica. O afrocentrismo e a filosofia ubuntu apresentam-se como esforços 
académicos de subjectivação ou seja de retomada da perspectiva das tradições 
e dos valores africanos depositados, acredita-se, nas comunidades africanas. 
Ambos manifestam-se numa semântica de «autenticidade», «originalidade», 
«nossa cultura» e por aí fora.
Senghor e Alassane Ndaw, na sua visão afrocêntrica, defendem uma 
posição animista do conhecedor (Cfr. Ngoenha 1992): para conhecer as 
propriedades do mundo a epistemologia africana tradicional defende que o 
sujeito cognoscente deve estar em união com o seu objecto, e não na posição 
de um observador alheio e frio – como é no caso da epistemologia ociden-
tal. Duma posição de observador não se chega ao âmago das coisas, não se 
chega ao conhecimento delas. Não é a análise do mundo, mas a união com o 
mundo que nos pode levar a conhecê-lo na sua essência, numa dança eterna 
de amor, pois, conhecer é captar o espírito da coisa, do objecto em causa. A 
epistemologia negro-africana ignora a separação entre a “ordem do conhe-
cer” e a “ordem do ser”. O conhecimento é um ser e não só um instrumento 
ao serviço do homem45 . De facto, assim se defende, é só numa relação de 
amor, de sentimento, que o conhecedor revela os mistérios do seu objecto 
do conhecimento, chega a compreender o sentido da existência do objecto. 
A unidade, e não a separação entre o objecto e o sujeito, é aqui defendida. 
No caso de Moçambique a Independência em 1975 trouxe consigo a 
necessidade de reconstituir e dar uma nova direcção à produção científica. 
45 Cfr. NGOENHA, S. E., O Retorno do Bom Selvagem. Edições Salesianas, Porto, 1992, p.24.
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano168
Na área da produção do saber de natureza científica, uma classe jovem de 
intelectuais moçambicanos fizeram uma ruptura com os moldes de produção 
científica vigentes no tempo colonial no domínio das ciências sociais e hu-
manas. Essa ruptura epistemológica entende-se como sendo a mudança do 
objecto da investigação para áreas temáticas como o impacto do capitalismo 
colonial e a sua relação com a economia africana, o paradigma dos movimen-
tos de libertação, direito e economia de Moçambique e da região, etc. Para 
o período da produção socialista e o da economia de mercado a temática da 
investigação em ciências sociais virou para a análise do processo da implan-
tação da economia e sociedade socialista, o impacto da guerra, a resolução de 
conflitos, o processo da paz e a construção de uma sociedade democrática, 
questões ligadas à pobreza, à posse e propriedade da terra, mulher, género, 
línguas moçambicanas, etc. Mais recentemente os temas de pesquisa na 
área social e humana estão mais virados para o impacto (social, económico 
e psicológico) do alastramento do HIV/SIDA, o contexto regional da do-
minação sul-africana sobre a economia moçambicana e regional, o impacto 
da cooperação internacional na soberania e independência moçambicanas, 
etc. Toda esta investigação social pós-independência, porém, realiza-se num 
contexto de forte dependência em relação aos doadores externos onde as 
consultorias matam a possibilidade de uma pesquisa séria e de qualidade. 
Como vimos, para o caso de Moçambique, a história intelectual do 
esforço de subjectivação na produção do saber de natureza científica carece 
ainda de uma reconstrução teórica. Por agora só existem pistas.
No entanto, por mais paradoxal que pareça, mas nem por isso surpreen-
dente, ambas referências (as etnociências e o afrocentrismo nas suas diversas 
variantes) representam, no fundo, um esforço de negação em relação ao 
estatuto de inferioridade e de subalternização reservado ao cientista africano 
na historiografia da produção científica universal. 
Paradigma da inter-subjectivação
Passemos agora ao quarto argumento segundo a qual, a inter-subjecti-
vação constitui uma referência de superação dos paradigmas de objectivação 
e da subjectivação.
169Pensamento engajado
O nosso programa de investigação, como dissemos algures, é o de superar 
as referências da objectivação e da subjectivação, porque ambas obsoletas 
para o contexto actual da África e, por inerência, de Moçambique. E, para 
isso, argumentamos, é necessário reconhecer os novos contornos criados já em 
volta dum novo referencial teórico: o da intersubjectivacção. Expliquemo-nos.
Este quarto argumento defende a criação intencional e de institucionali-
zação de espaços de intersubjectivacção e de escolas de pensamento nas uni-
versidades como uma forma de superação dos paradigmas de objectivação e 
de subjectivação. Adoptando uma prspectiva da sociologia do conhecimento, 
a intersubjectivacção refere-se ao aumento de espaços de argumentação que 
permitam o surgimento de escolas de pensamento nas universidades. Dessas 
escolas, argumenta-se, surgirãomomentos semelhantes a pré-paradigmas 
(Kuhn) e, mais tarde, de paradigmas. 
Em termos mais claros: é necessário criar e institucionalizar fóruns onde 
os produtores dos saberes locais e os pesquisadores e docentes profissionais 
da pesquisa científica se encontrem e se alimentem mutuamente; no fundo a 
ideia é a abrir as portas das universidades e institutos superiores de formação 
aos produtores de saberes até agora considerados marginais.
Como dizíamos, os momentos pré-paradigmátcos são caracterizados, 
segundo Kuhn, por debates frequentes e profundos a respeito dos métodos, 
problemas e padrões de soluções legítimas oferecidos pelos paradigmas an-
teriores. Pensamos que este momento pré-paradigmático pode ser induzido 
pelas universidades ao abrirem as suas portas para outras epistemologias (for-
mas de conhecer e de legitimar o conhecimento) alternativas e concorrentes.
O pressuposto que nos permite aventar a possibilidade de se induzir os 
momentos pré-paradigmáticos para a intersubjectivacção são inspirados, de 
facto, por Habermas: este tem a pretenção de ter mostrado que a Filosofia 
da Consciência, portanto centrada no sujeito (paradigma da subjectividade), 
se encontrava esgotada; dito de uma outra forma, quer dizer que a solução 
algo sentimental da solidão metafísica, à la Descartes, em que um sujeito 
entende tudo, apresenta sintomas de esgotamento. É preciso passarmos para 
um paradigma da intercompreensão ( nós chamamos por intersubjectivacção) 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano170
que, segundo Habermas46 , ...é a atitude performativa dos participantes da 
interacção que coordenam os seus planos de acção através de um acordo 
entre si sobre qualquer coisa no mundo.
Se adoptarmos uma perspectiva da intersubjectivacção, a verdade deixa 
de ser contemplada simplesmente na perspectiva da sua objectividade, ou 
somente na sua perspectiva de subjectividade; a verdade, na perspectiva da 
intersubjectivacção, passar a ser um processo, i.e. que se desenvolve no acto 
da troca das “pretensões de validade” (Habermas) entre os indivíduos em 
interacção. Portanto e nesta óptica, a verdade pode somente manifestar-se 
numa situação comunicativa na qual os interlocutores, cada um com a preten-
são de validade e em interacção, se engajam num exercício de argumentação.
Em termos concretos, o salto para um paradigma de intersubjecti-vacção 
deverá ocorrer a dois níveis. Ao nível da interacção entre os formadores-
pesquisadores dentro das universidades e ao nível da interacção entre os 
formadores-pesquisadores e professores-pesquisadores. 
Quanto ao primeiro nível (entre os docentes universitários pesquisado-
res) trata-se de, teoricamente, deixarem que os resultados das suas pesquisas 
empíricas lhes sugiram sinais de desafios aos esquemas teóricos aprendidos 
nos bancos da universidade. Significa perguntar-se, até que ponto os dados 
empíricos encontrados nos contextos tradicionais e africanos desafiam as 
ferramentas teóricas que se levam da universidade para o campo de pesquisa. 
A teoria deve deixar-se enriquecer e, se necessário, transformar pela prática.
Por seu lado, o segundo nível de intersubjectivacção, tem como objectivo 
estabelecer uma cadeia circular de interacção e legitimação dos saberes no 
qual os extremos estão as duas tradições de práticas académicas, a formal/
moderna (predominantemente escrita e universitária) e a local/tradicional 
(predominantemente oral e não formalizada). A legitimação e a validade do 
conhecimento produzido, seja no contexto institucional moderno na base da 
cultura escrita, seja no contexto institucional tradicional na base da cultura 
oral, será feita no contexto de um espaço coabitado por ambas comunidades 
epistémicas sobre temas e problemas comuns. Como participante, os deten-
tores dos saberes tradicionais locais ver-se-ão partilhando benefícios para a 
46 HABERMAS, J., Discurso Filosófico da Modernidade. Publicações Dom Quixote/Nova Enciclo-
pédia, Lisboa, 1998, p.277.
171Pensamento engajado
manutenção e desenvolvimento do seu capital cultural e de conhecimento. 
O desafio é desenvolver fóruns e mecanismos de levar o conhecimento local-
mente legitimado para fórums mais abrangentes de legitimação académica 
e global. 
Até agora a prática é que o conhecimento produzido nas universidades e 
nas instituições de pesquisa, para se afirmar, deve ser exposto nos fórums de 
carácter nacional e internacional. Esta não é uma prática nova. A novidade 
aqui proposta, porém, é que os fórums científicos nacionais e internacionais 
abram as suas portas para os portadores dos conhecimentos dos colegas 
pesquisadores do contexto local/tradicionais. Estes devem ser convidados 
a expor as suas ideias e conhecimentos no seio da comunidade científica 
global, numa ronda de um diálogo intersubjectivo circular. Se é certo que 
as etnociências e a etnofilosofia preocuparam-se até hoje em identificar os 
sábios das comunidades, estes porém, sempre foram tratados simplesmente 
como uma espécie de «fontes primárias», de «testemunhas», de «informan-
tes», para a recolha de dados e menos como interlocutores válidos na troca 
de conhecimento. 
Para além das novas formas de legitimação, um aspecto particular, e 
que faz parte da criação deliberada dos espaços de intersubjectivacção, diz 
respeito à escolha deliberada de modelos e ídolos africanos para serem in-
cluidos nos programas de ensino, particularmente o universitário. De facto, 
como em todas as actividades, o homem cultiva modelos a seguir, cultiva os 
seus heróis. Aquí trata-se, portanto, de desmarginalizar cientistas, invenções 
e ideias africanas na dita narrativa universal sobre a história das realizições 
científicas. Pensamos que um pricípio semelhante aos de quotas (descrimi-
nação positiva) na escolha de autores e cientistas a serem referenciados nos 
estudos e pesquisas, seria muito saudável. 
Na verdade, ninguém vai gostar do que não conhece. Esta máxima inclui 
também os nossos estudantes. Se eles não forem expostos aos pensadores e 
cientistas africanos, perderemos a oportunidade de construir o novo para-
digma da intersubjectivacção a partir dos seus sinais emergentes.
173
As inquietações que pretendo abordar neste artigo, são existenciais, e 
penso que também para muitos africanos contemporâneos. No centro delas 
estão as seguintes questões: Será que o discurso que apresenta a África como 
um continente entre a tradição e a modernidade é epistemologicamente co-
erente? questionando de forma mais construtiva: Não estarão o moderno e 
a tradição numa relação dialética de tese e antítese, portanto na eminência 
de epistemologicamente encontrarmos a síntese? Desde já adianto a minha 
hipotética resposta: Penso que já existem espaços epistémicos onde tanto os 
elementos considerados da tradição e aqueles que se quer da modernidade 
coexistem, mas não numa «coexistência silenciosa» como o filósofo de Benin 
Paulin Hountondji classificou, mas ambas vivem num debate de valores, de 
argumentação concorrendo para uma síntese. Por isso, partindo desta ideia, 
pretendo fundamentar a educação como um dos espaços importantes para a 
coexistência de discursos sobre a tradição e a modernidade. Em consequência 
disto pretendo justificar a necessidade de uma vigilância epistemológica para 
com as posições que exacerbam tanto o modernismo como o tradicionalismo 
no panorama actual do discurso educacional. 
As questões que se colocam surgem, no fundo, a partir de algumas 
inquietações e circunstâncias na experiência da minha vida pessoal. Pois 
me pergunto frequentemente: Porque é que eu para concorrer para o meu 
posto de trabalho tive que, ao mesmo tempo, escrever um requerimento e ir 
«tomar banho» dado pelos espíritos dos meus avós? Porque é que continuo 
a pensar que o facto de não ter sucesso em alguns empreendimentos da vida 
se deve às «cerimónias» que ainda não fui capaz de realizar para agradecer 
VIGILÂNCIA EPISTEMOLÓGICA 
ATRAVÉS DA EDUCAÇÂO
José P. Castiano
Severino E. Ngoenha& José P. Castiano174
aos meus antepassados? Porque é que quando vou ao hospital em muitos 
casos para «curar bem» tenho que «completar o tratamento» com uma visita 
adicional ao médico tradicional? Porque é que a minha sobrinha se chama 
Maria Luísa na escola e N´tsai em casa, sendo este último o nome que é só 
evocado nas cerimónias familiares? No final de contas será ela a mesma ou 
pessoa diferente quando está na escola e quando está em casa?
Porém o que me é mais dramático nesta «dupla existência» é que o 
meu «duplo», este «outro Eu», o outro mundo, este outro banho, este outro 
nome, não obstante eu usá-lo como recurso explicativo aos meus problemas 
existenciais de saúde, de emprego de família, etc., ele não emerge, não o 
ponho à disposição para o debate, não o levo ao escrutínio da argumentação 
científica e desinteressada.
Estas inquietações pessoais levaram-me a abrir mais o horizonte das 
questões que coloco à nossa existência como africanos: Como se inventou a 
África? Como nasceu a ideia da África? Como foi modelado o discurso sobre 
as tradições? Se perguntarmos com Hountondji47 : Como cresceu o «mito 
da africandade»? A história da «invenção» e do desenvolvimento da ideia 
do negro primitivo, ou seja, da imagem do «Outro» é o tema do livro The 
Invention of Africa de Mudimbe. Este defende que o discurso sobre uma 
África primitiva foi modelado por missionários, antropólogos, aventureiros 
europeus e finalmente filósofos na sua disputa por dominar a terra e as almas 
dos africanos, numa lógica imperialista de dominação do continente. 
No contexto da filosofia europeia da modernidade são notórias as 
posições dos filósofos alemães Kant e Hegel. As posições de Kant quanto 
ao negro podem ser tomadas do seu ensaio Von verschiedenen Rassen der 
Menschen, ensaio este escrito em 1775. Nele Kant é da opinião de que a raça 
branca é anterior à raça negra e que as tonalidades diferentes da pele dos 
seres humanos se devem a causas naturais, particularmente ligadas à posição 
geográfica em que cada uma habita. Assim, para ele, a raça negra é produto 
da humidade e do calor que actuou sobre a pele da espécie original, a «raça 
branca». (Cfr. Masolo 1995)
47 Cfr. HOUNTONDJI, P., The Struggle for Meaning. Reflections on Philosophy, Culture and De-
mocracy in Africa. Ohio University Center for International Studies, Africa Series No.78. Athens, 
Ohio, 2002.
175Pensamento engajado
As posições de Hegel quanto ao «Negro» só poderão ser devidamente 
compreendidas se forem equacionadas no contexto da sua filosofia da histó-
ria. Partindo da forma hegeliana de conceber o curso da história real como 
produto da (auto)objectivação do espírito, infere-se que um determinado 
nível de desenvolvimento histórico-cultural reflecte necessariamente o nível 
de maturidade da Razão do momento de um determinado povo. Pois se a 
cultura e a história europeias se apresentam desenvolvidas, este facto se deve 
à superioridade da racionalidade do povo europeu que toma consciência 
da sua história. Mas, ao analisar a história universal, Hegel procura saber o 
contributo dos diferentes povos para o que chama por a «autoconsciência 
universal» da história. Aí ele chega à conclusão de que a África Subsaharia-
na, «(n)esta porção da África, falar da história é um facto fora da questão». 
Em África a história não é o resultado da manifestação do espírito ou da 
sua autoconsciência, mas sim resultado de uma sucessão de contingências e 
surpresas. «Os africanos vivem num estado de inocência. Eles não estão cons-
cientes de si mesmos». Ele compara a vida dos africanos ao estado natural da 
vida antes de Adão e Eva na Bíblia em que o Homem não era consciente das 
suas potencialidades. Os africanos não conhecem a Razão, e por causa disso, 
eles não possuem história, não se desenvolvem, não têm cultura. Torna-se 
portanto bastante óbvio que o ponto de partida para a chamada «educação 
indígena» projectada no tempo colonial para a maioria dos moçambicanos 
fosse baseada na imagem de um negro primitivo e selvagem, comparado à 
uma criança que não atingira a maturidade. O negro não podia ter autonomia.
O último aspecto levantado por Hegel é retomado pelas teses «pré-
lógicas» do filósofo e sociólogo francês Lucien Lévy-Bruhl expostas nos seus 
livros mais conhecidos Les Fonctions Mentales dans les Sociétés Inférieures 
(1910) e La Mentalité Primitive (1922). Este dedicou quase quarenta anos a 
estudar as formas de pensamento dos africanos, ou, como ele denomina, a 
«mentalidade primitiva». Segundo Lévy-Bruhl, a mentalidade primitiva não 
funciona segundo estas inferências práticas e nem são baseadas na observação. 
Ainda segundo ele, os africanos estão constantemente a introduzir elementos/
factores não relacionados com a observação quando procuram formular um 
discurso sobre as suas experiências.
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano176
Ao lado das posições europeias cresce, entre os estudiosos de assuntos 
africanos, a etnofilosofia. A essência desta «corrente» é a de pressupor que 
o pensamento em África é eminentemente comunal. A etnofilosofia procura 
«descobrir» o conteúdo filosófico do mundo africano que se encontra por 
trás dos mitos, dos contos populares, crenças religiosas, provérbios e línguas 
africanas. Foi desta forma que Placide Tempels, John Mbiti assim como Alex 
Kagamé procuraram provar a partir de diferentes perspectivas a existência 
da filosofia africana. Tempels, por exemplo, pensa ter descoberto o espírito 
ou a «força vital» dos Bantu. Entre outras coisas ele defende que os africanos 
acham que o homem só está «completamente morto quando ele já não tem a 
possibilidade de, através do médium, entrar em contacto com as pessoas vivas 
e assim interferir no mundo. Assim, do ponto de vista dos Bantu, segundo 
Tempels, não há nenhuma acção em que não seja o homem responsável. 
O homem é o agente de tudo o que acontece de mau. Consequentemente, 
embora um Bantu reconheça que a causa é a mordedura da cobra, mas esta 
não seria considerada a causa suficiente para explicar o acto porque a cobra 
não possui vontade própria para prejudicar alguém. Há sempre uma pessoa 
que é considerada como autora moral do acto. Assim, e ainda de acordo 
com Tempels, para a cura da vítima não bastará uma cura farmacológica 
(material); será necessário encontrar o «causador moral», ou seja a força 
causadora, deste acto e comunicar com ele para depreender o que ele ou ela 
quererá. Só depois disto é que a ordem das forças regressará ao equilíbrio48 .
A Europa não só inventou uma África «tradicional». O grande intelectual 
palestino Edward Said escreveu um livro com o título de Orientalismo que 
leva o subtítulo O Oriente como Invenção do Ocidente. Ele mostra aí como 
o «Oriente» foi sendo criado baseado por um discurso de alteridade pro-
duzido e moldado pelo poder político (os países do oriente como colónias), 
pelo poder intelectual (como objecto de estudo das ciências modernas) e 
pelo poder cultural (hierarquização de valores). Ele mostra como a imagem 
do oriente é produto de energias intelectuais, estéticas, eruditas e culturais 
conjugadas em redor do imperialismo49 .
48 Cfr. MASOLO, D.A., African Philosophy in Search of Identity. East African Educational Publishers. Nai-
robi, 1995.
49 Cfr. SAID, E.W., Orientalismo. O Oriente como Invenção do Ocidente. Caminho das Letras, São Paulo, 1978.
177Pensamento engajado
Mas se a África primitiva, tradicional, comunal descrita pelos antropó-
logos, etnólogos, geógrafos, missionários e filólogos pode ser considerada 
uma lenda que os europeus inventaram e acreditaram nela, também não é 
menos certo que a tradição africana como ela é descrita por uma boa parte 
de africanos contemporâneos também pode ser uma lenda; mas é uma lenda 
que continua a ser inventada e contada por uma boa parte de intelectuais 
africanos menos atentos e continua a ser acreditada por uma boa parte das 
crianças africanas que vão diariamente à escola. A geração dos intelectuais 
pós-independênciaestava demasiadamente ocupada em lutar contra a ideolo-
gia remanescente do colonialismo e em fundamentar os «valores da unidade 
e soberania nacional» para se dedicar a uma «vigilância epistemológica» para 
desmistificar esta lenda. O primeiro grande desafio da filosofia africana, como 
defende Hountondji, é de «desmistificar a africandade», ou seja, destruir o 
mito do primitivismo e tradicionalismo africano, tal e qual ele foi defendido 
e continua a ser difundido pelos seus inventores.
No mesmo sentido de Hountondji, Edward Said apela para a decons-
trução em relação ao discurso hegemónico europeu. Usando este conceito, 
com a Independência de Moçambique a deconstrução abarcou inicialmente 
as áreas da administração e política, abarca hoje a área económica e, como 
desafio, deverá estender-se para a área tecnológica e epistemológica. Mas a 
deconstrução que defendo, deve ser também em relação ao tradicionalismo, 
ou seja, em relação à invenção e reinvenção das tradições para a legitima-
ção de certas esferas do poder. Um exercício teórico desta natureza teria 
consequências políticas fatais (legitimar o separatismo, por exemplo). Aos 
intelectuais cabe o desafio de estarem vigilantes contra este monstro.
A introdução do currículo local nas escolas básicas institucionalizou no 
espaço escolar a possibilidade de coexistência de discursos de deconstrução 
do tradicionalismo e do modernismo. Com este artefacto (currículo local), 
vão entrar «oficialmente» nesta instituição de negociação de saberes (escola) 
os diversos conhecimentos e saberes existentes nas aldeias. Os professores 
vão fazer esforço por casar saberes de natureza mais universal com os saberes 
de natureza e origem local. A criança vai aprender, para além dos valores 
éticos universais derivados da cidadania e da economia do mercado capita-
lista, também os hábitos e costumes locais e tradicionais. Isto é, a criança vai 
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano178
ser inserida ao mesmo tempo num discurso moderno científico universal e 
numa «tradição viva» local.
Mas a entrada dos saberes locais na escola básica deve ser antecedida 
por um vasto movimento de «re-apropriação». O capítulo 7 do último livro 
de Paulin Hountondji50 leva um título interessante: Reappropriation ou seja, 
«re-apropriação» em português. Neste capítulo ele começa por emprestar o 
conceito de «extraversão» de Shamir Amin que o havia empregue para carac-
terizar o tipo de economia dos países da periferia, particularmente dos países 
africanos. Segundo Amin, as economias africanas da periferia estão viradas 
para a exportação de matéria-prima o que perpetua o subdesenvolvimento e 
a pobreza nestes países. Hountondji empresta este conceito para se referir ao 
tipo de discurso e escritos que a etnofilosofia e as etnociências fazem: trata-se 
de um inventário dos chamados saberes tradicionais indígenas (ou locais) 
escritos sempre na terceira pessoa que tenta tratar, sem os «donos» estarem 
presentes, o que as pessoas nas comunidades africanas é suposto saberem. Na 
opinião de Hountondji, a etnofilosofia e as etnociências nasceram como um 
discurso em que o pesquisador, seja ele europeu ou africano, sabe de antemão 
que o seu público certo é não-africano e que ele pode se orgulhar por, na 
sua qualidade de «porta-voz» fiel da comunidade que estuda, por não correr 
riscos de ser contradito. A exclusão do público africano está clara não só na 
língua de publicação (inglês, francês, português), mas sobretudo no conteúdo 
do discurso, na escolha dos temas, nos métodos e na forma como se tratam 
os problemas. Daí Hountondji usa o conceito de «extraversão intelectual» 
com o tipo de economia dirigida para o exterior, sem no entanto se reduzir a 
isso. Penso que o primeiro passo das ciências sociais em Moçambique é a de 
libertarem-se a si mesmas da «extraversão intelectual» a que estão voltadas.
Até hoje, a história da educação em Moçambique tem-se caracterizado 
como um meio pelo qual se possibilita a «extraversão». A educação, no tempo 
colonial, era um instrumento importante para transmitir o sentimento de in-
ferioridade das populações locais africanas e manter o mito da superioridade 
50 Trata-se de The Struggle for Meaning. Reflexions on Philosophy, Culture and Democracy in Afri-
ca traduzido para o inglês por John Conteh-Morgan e leva um prefácio assinado por K. Anthony 
Appiah. O título original em francês leva o subtítulo Un itinéraire africain (Um itinerário africano) 
como Appiah nota no seu prefácio ao livro (HOUNTONDJI, 2002,xi).
179Pensamento engajado
racial dos portugueses. Já nos princípios do sec. XX, Blyden notava que o 
resultado da educação colonial era uma criança que era metade europeia e 
metade africana, uma criança em dois mundos. Isto contrariava o objectivo 
mais sagrado de qualquer educação que é o de formar em pessoas aquelas 
qualidades que lhe permitam mais tarde uma óptima inserção na sua própria 
sociedade e cultura51 .
Em Moçambique, desde o tempo colonial até hoje, a língua portuguesa 
é a língua oficial de ensino. Ela garante a ligação entre as elites económicas, 
políticas e intelectuais moçambicanas com o mundo internacional. Os falantes 
do português têm acesso mais facilitado aos mercados de trabalho e maiores 
possibilidades de ascensão social. O português também é o meio de participa-
ção política: É a língua parlamentar, é a língua pela qual circulam os panfletos 
eleitorais, etc. Dificilmente uma pessoa seria escolhida para cargos públicos 
de alto nível se ela não fosse bom falante e cultor da dita língua de Camões.
Com a introdução das línguas maternas no novo currículo do ensino 
básico deve estimular-se uma comunicação ‘inteligente’ com as milhões de 
pessoas vivendo no interior e aprender mais das culturas locais. Efectivamen-
te, no interior de Moçambique vivem milhões de moçambicanos que mantêm 
também as instituições correspondentes. O contacto com estas pessoas, so-
bretudo com os estudiosos locais, só pode ser frutífero através da sua língua. 
Retornando a Hountondji. Ele escreve sobre a necessidade de apropria-
ção da herança científica universal existente e desenvolvê-la duma maneira 
selectiva e independente de acordo com as nossas necessidades e programas 
de desenvolvimento. Ele continua dizendo que o «vasto movimento da 
apropriação» deve ser acompanhado por um processo de re-apropriação 
metodológica e crítica do que é usualmente chamado de Conhecimento Local 
e Tradicional. A re-apropriação seria, neste ponto de vista, uma condição 
básica para a existência e o desenvolvimento de uma ciência africana que 
seja responsável aos problemas específicos dos povos africanos. (Hountondji 
2002,243f.)
51 Cfr. AKIMPELU, J.A., An Introduction to Philosophy of Education. The Macmillan Press, London 
and Basingstoke, 1981.
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano180
No entanto há algumas inquietações: Como é que a lógica da extra-
versão pode ser quebrada? Como é que a marginalização do conhecimento 
local pode ser superada e ser estabelecida uma relação progressiva entre o 
conhecimento universal e o local? Como integrar o conhecimento local no 
vasto campo do conhecimento e da ciência universal? Quais são os meios 
que temos ao nosso alcance para abrir o conhecimento local para ser testado, 
validado, avaliado e criticado no contexto dos planos de desenvolvimento? 
Como é que podemos transcender a «coexistência silenciosa» entre o discurso 
institucional e científico moderno e o chamado discurso tradicional em que 
o conhecimento local se encontra embutido?
Não há dúvidas que para tirar os saberes locais da dupla marginalização 
será necessário primeiro um trabalho de re-apropriação do local. No entanto 
essa não pode ser cega. O critério que temos, para submeter o chamado co-
nhecimento local ao escrutínio, só pode derivar dos desafios da nação, entre 
os quais destaco a eliminação da pobreza. Uma vez feita a apropriação, o 
conhecimento local deverá ser integrado no discurso universal começandopela via do currículo local. Mas o problema da des-marginalização não se 
coloca e nem se reduz à integração das racionalidades locais no discurso 
científico universal. De facto, as racionalidades locais estão já integradas no 
discurso nacional desde o advento do colonialismo. Mas trata-se de uma 
integração incompleta e mutilada pela inexistência de um local de encontro 
que tivesse o papel de «espaço público» habamariano. A desmarginalização 
será real quando o retorno (no segundo sentido de Cesaire) às tradições 
locais deixar de ser em jeito de recurso. Ou seja, se for uma apropriação 
que se faz em função dos desafios actuais colocados pela globalização das 
economias e pelos avanços das tecnologias de comunicação. Não se trata pois 
de escolher as tradições e sistematizá-las num quadro epistémico lógico, mas 
sim de fazer um escrutínio destas tradições em função dos desafios nas áreas 
económicas, políticas e sociais. Aqui devemos trabalhar com a «hipótese de 
uma coexistência de discursos» cuja luz só uma verdadeira Sociologia da 
Ciência no contexto africano nos pode fornecer.
Severino Ngoenha escreve o seguinte no seu livro dedicado à cons-
ciência histórica da moçambicanidade: «O problema mais importante de 
Moçambique de hoje não é a escolha de um modelo político, jurídico, ou 
181Pensamento engajado
constitucional, mas é muito mais profundo do que isso. O problema é saber 
que lugar queremos exercer na história de amanhã. Se queremos continuar 
a ser simples instrumentos em mãos alheias como até aqui, ou se, por uma 
vez, queremos ser protagonistas da nossa própria história e do nosso próprio 
destino»52 
Penso que o desafio lançado de sermos protagonistas da nossa história é 
fundamentalmente filosófico. Porque a filosofia, no dizer de Hegel e cito de 
memória, «é o resumo do tempo no pensamento». A Modernidade é simples-
mente uma tese no pensamento; a tradição é uma antítese no pensamento. 
O grande desafio é procurar a síntese e traduzi-la em pensamento, isto é, 
num discurso que já não evoque a existência de dois mundos contraditórios, 
conflituosos ou senão mesmo incompatíveis. Hountondji (2002) chama-nos 
atenção para a necessidade de transcendermos esta «coexistência silenciosa» 
entre os discursos institucional-moderno e o tradicional-local. De facto, na 
África moderna, podemos partir já da hipótese de uma integração destes 
discursos. O desafio é reconhecer estes novos contornos (ou paradigmas) 
que se desenham e projectar-lhes numa racionalidade própria.
É uma tarefa ampla procurar os espaços de coexistência de discursos. 
Pode ser que ao nível do discurso (científico) se esteja atrás dos aconteci-
mentos enquanto na realidade esta coexistência já esteja a ser praticada por 
certos agentes sociais. Assim, podemos identificar, como hipótese, alguns 
contornos de espaços ou actores sociais que encarnam a coexistência entre 
os «dois mundos, com probabilidade de superarem a coexistência silenciosa 
de que Hountondji nos fala.
Eis alguns exemplos dos espaços.
Em primeiro, e o mais evidente é o da área da agricultura onde há uma 
partilha não só do espaço físico mas também ao nível do conhecimento e 
tecnologias. É muito interessante o papel dos extensionistas agrários (ou, 
ultimamente, a figura introduzida do «camponês de contacto») como in-
terlocutores entre os saberes dominados pelos camponeses e a infusão de 
52 Cfr. NGOENHA, E.S., Por uma Dimensão Moçambicana da Consciência Histórica. Edições 
Salesianas, Porto, 1992.p.22.
Severino E. Ngoenha & José P. Castiano182
técnicas modernas representadas por instituições como o Ministério para a 
Agricultura e Desenvolvimento Rural em Moçambique. 
Nas artes, a área da música é a mais evidente e que tem registado maior 
integração dos dois mundos. Efectivamente, com o fenómeno da utilização 
de instrumentos urbanos/modernos, lado a lado com o tambor, a timbila etc, 
resultando a fusion. O resultado é na prática uma terceira identidade que tem 
uma estrutura própria. Embora ainda seja uma mistura ela pode perfeitamente 
passar para um estado de constituição própria, de síntese. As músicas de Isaú 
Menezes, do grupo Djaka e as do saudoso compositor e cantor do Chiveve 
Mazembe são exemplos da síntese na área das artes.
Da mesma forma podemos explorar a educação em Moçambique, o 
currículo local em particular, como o espaço epistémico ao nível do Ensino 
Básico para cultivar a coexistência dos discursos. Também podemos ver no 
professor primário o potencial agente integrador entre o conhecimento local 
e o conhecimento universal, e a escola primária, por consequência, como a 
instituição privilegiada para o cultivo da coexistência dos discursos.
Outros exemplos também se podiam explorar na área da administração 
territorial, onde há cada vez mais e maiores zonas de intercessão entre as 
estruturas do poder local em representação do poder estatal instituído e as 
chamadas autoridades comunitárias que respeitam o direito costumeiro local.
Num estudo sobre o currículo local que recentemente fiz na cidade de 
Chimoio e nos distritos de Báruè e Sussundenga, cheguei à conclusão de que 
o professor é, de facto, o elo epistemológico mais fraco53 . Os professores 
devem ser valorizados para serem verdadeiros agentes no processo educativo. 
Eles não podem ser deixados sozinhos nesta «revolução» do conhecimento. 
Em parte, a introdução do currículo local no ensino básico vem desafiar 
toda uma lógica de fundamentar e praticar a educação em Moçambique: se 
ontem o professor era mais um transmissor de conhecimentos que lhe caíam 
em forma de «instruções pedagógicas» ou ainda de «orientações metodoló-
gicas», com o currículo local o mesmo professor deverá estar em condições 
53 Cfr. CASTIANO, J. P., O Currículo Local como Espaço Social de Coexistência de Discursos: Estudo 
de Casos nos Distritos de Báruè, de Sussundenga e da Cidade de Chimoio. Comunicação produzida 
para Primeira Conferência Nacional da OSSREA em Moçambique, Maputo, 2003.
183Pensamento engajado
de procurar e produzir conhecimentos. Ora isto exige novas abordagens não 
só metodológicas mas também na própria forma como o professor percebe 
a sua profissão.
Mas esta revolução é fundamentalmente de carácter ético e epistémico. 
Ético porque o professor terá de se confrontar com matérias de ensino que 
dizem respeito a usos, costumes e tradições locais, algumas das quais podem 
contradizer os seus próprios princípios éticos e religiosos ou serem pura e 
simplesmente de uma cultura alheia à sua origem; neste caso o professor terá 
que se referir à outras culturas, sem no entanto perder a perspectiva da sua 
própria identidade cultural. Mas sobretudo terá que ser vigilante em não 
impor os seus próprios valores usando o seu poder pedagógico.
O desafio é também epistémico porque o professor, com o currículo 
local, deixa de ser o único conhecedor da sua matéria na aldeia ou na comu-
nidade: em algumas questões ele terá que consultar aos elementos da comu-
nidade que mais informações têm ou mesmo ao próprio aluno seu. Em alguns 
momentos ele terá que conviver com a incerteza e insegurança profissional. 
Mas há um patamar mais amplo no desafio: Os professores deverão 
mostrar uma vigilância epistemológica pelo facto de ser o argumentador 
principal sobre os valores e conhecimentos entre os dois discursos (moderno 
e tradicional) na sala de aulas. Ele é a peça principal na área da educação que 
pode tornar a coexistência de discursos rumo ao diálogo entre as culturas e 
o poderoso discurso científico moderno.
Gostaria de terminar com as palavras de um antigo pensador grego mas 
que foram repetidas pelo Professor Veigas Simão aquando da sua oração 
de sapiência na abertura do ano lectivo 2004 na Universidade Eduardo 
Mondlane: «o vento só é favorável para quem sabe para onde ele sopra». O 
vento da modernidade só vai ser favorável à nossa agenda e história como 
moçambicanos se, como intelectuais e professores, mantivermos uma vigi-
lância epistemológica responsável

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