Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM � Conhecer as funções da literatura, de acordo com a tradição cul- tural; � Formular argumentos para o estudo, o ensino e a leitura literária no mundo atual. O texto literário e seu valor para a tradição cultural INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA PARAÍBA UNIDADE 02 AULA 05 2 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS - O texto literário e seu valor para a tradição cultural 2 COMEÇANDO A HISTÓRIA Na aula 4, fizemos um breve percurso histórico a respeito do conceito de literatura. Entendemos, na ocasião, que a noção que hoje temos de arte literária nem sempre foi a mesma. Agora, algumas perguntas podem ser colocadas para continuarmos nossa inserção nos estudos literários: � Para que serve mesmo a literatura? Ela tem alguma utilidade? � Por que devo estudar ou ensinar sobre poesia? � Como posso convencer meu aluno a gostar de ler um romance, um conto ou uma crônica? Essas perguntas se assemelham aos questionamentos apontados pelo crítico literário Antoine Compagnon, por ocasião de sua aula inaugural no Collège de France, em 2006: Por que falar – ainda falar – da “Literatura francesa moderna e contemporânea” em nosso início de século XXI? Quais valores a literatura pode criar e transmitir ao mundo atual? Que lugar deve ser o seu no espaço público? Ela é útil para a vida? Por que defender sua presença na escola? (COMPAGNON, 2009, p. 20) Tais questões serão discutidas ao longo da nossa aula. Esperamos que as respostas sejam importantes para o seu papel como professor da área de Letras, principalmente quando for questionado, em sala de aula, pelos alunos a respeito da razão de se estudar literatura. 3 TECENDO CONHECIMENTO Em primeiro lugar, é bom que se diga que a literatura não serve para nada! Calma, calma, calma, querido aluno-leitor, você não está estudando algo sem qualquer sentido. Por favor, não questione: “o que estou fazendo aqui?”, não se levante da cadeira e nem se retire do ambiente de estudo. Estamos fazendo uma provocação, e o sentido da expressão “não serve para nada” será contextualizado e esclarecido a partir de agora. Para tanto, vejamos as palavras do escritor italiano Umberto Eco: 3 Estamos circundados de poderes imateriais que não se limitam àqueles que chamamos de valores espirituais, como uma doutrina religiosa. [...] E entre esses poderes, arrolarei também aquele da tradição literária, ou seja, do complexo de textos que a humanidade produziu e produz não para fins práticos (como manter registros, anotar leis e fórmulas científicas, fazer atas de sessões ou providenciar horários ferroviários), mas antes gratia sui, por amor de si mesma – e que se lêem por deleite, elevação espiritual, ampliação dos próprios conhecimentos, talvez por puro passatempo, sem que ninguém nos obrigue a fazê-lo (com exceção das obrigações escolares). (ECO, 2003, p. 9) 3.1 A função estética Quando dissemos que a literatura não serve para nada, falamos no sentido de que ela não tem uma função utilitária, tal qual nos informou o texto de Umberto Eco. Em outras palavras, o texto literário, pensando naquela acepção artística discutida na aula anterior, não é como um manual de instruções que você lê com um propósito definido para montar um equipamento ou saber como funciona um eletroeletrônico, por exemplo. Nesse sentido, a literatura existe por si só, como construção artística, voltada para a beleza. É o que costumeiramente os livros chamam de arte pela arte. Arte pela arte: “Teoria segundo a qual a Arte visa exclusivamente a proporcionar prazer estético, ou seja, desconhece fins utilitários, como a moral, a política, a educação, etc. A idéia contida na expressão ‘arte pela arte’ remonta à Antiguidade clássica: Aristóteles recusava admitir propósitos didáticos para o fenômeno estético.” (MOISÉS, 2004, p. 41) Como forma de ilustração, leiamos o poema Motivo, da poetisa carioca Cecília Meireles. Você conhece? UNIDADE 02 AULA 05 4 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS - O texto literário e seu valor para a tradição cultural Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. Não sou alegre nem sou triste: sou poeta. Irmão das coisas fugidias, Não sinto gozo nem tormento. Atravesso noites e dias no vento. Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço, – não sei, não sei. Não sei se fico ou passo. Sei que canto. E a canção é tudo. Tem sangue eterno a asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo: – mais nada. (MEIRELES, 2004, p. 11) No poema em questão, o eu-lírico expõe o motivo de seu canto poético, afirmando que escreve (“canta”) porque o “instante existe”. Num sentido: se expressa poeticamente porque vive, porque existe, de modo que a vida se completa com a poesia. Nesse caso, a literatura existe por si só e se impõe ao poeta a cada instante, tornando-se razão de viver do sujeito poético. Observe que o poema, até pelo fato de ser metalinguístico, não tem necessariamente uma intenção didática ou social. É uma espécie de exercício literário, em que o eu-lírico, consciente da efemeridade da vida e, portanto, da própria finitude, exalta a poesia – o canto – como forma de justificar a existência. Figura 1: Cecília Benevides de Carvalho Meireles (1901-1964), uma das maiores expressões da poesia lírica brasileira, nascida no Rio de Janeiro. Além de poetisa, foi pintora, professora e jornalista. 5 Eu-lírico: também chamado de eu-poético ou sujeito lírico, é a designação da voz poética, ou seja, da voz que fala no poema, geralmente marcada explicitamente pela primeira pessoa do singular. Quando lemos um poema, aquela voz interna do texto não é a do autor, mas de uma entidade fictícia – o eu-lírico –, como se fosse uma personagem narradora dos próprios sentimentos. É por isso que é possível ler, nos poemas escritos por homens, vozes femininas ou vice-versa, como ocorre no citado poema de Cecília Meireles: a autora é uma mulher, mas o eu-lírico é masculino: “irmão das coisas fugidias” e “sei que estarei mudo”. A noção de que a arte não tem utilidade é uma ideia, talvez, do nosso mundo capitalista, que reduz tudo à questão do lucro. De fato, parece que a arte (e a literatura é uma manifestação artística) não visa primordialmente a um retorno financeiro. Mas quem disse que a vida se resume aos bens materiais? Eles são importantes, ninguém pode negar isso, mas também existem outros bens igualmente fundamentais: valores culturais, religiosos, espirituais e assim por diante. Outra ideia importante no que diz respeito à função estética é a que se refere ao próprio significado da palavra estética. Vejamos esse conceito: Estética: no grego aisthetikós, significando capaz de perceber pelos sentidos. A própria palavra é derivada de aisthesis = sensação, percepção. A partir do século XVIII, com a obra intitulada “Estética”, do filósofo alemão Alexander Baumgartem (1714-1762), o vocábulo passou a designar, em sentido amplo, o conhecimento da beleza na Arte e na Natureza, a teoria ou filosofia do Belo, entendendo-se por Belo o conjunto de sensações experimentadas no contato com a obra de arte ou manifestação da Natureza. Em sentido estrito, equivale a teoria ou filosofia da Arte. (MOISÉS, 2004, p. 166) Ao falarmos de função estética, portanto, podemos nos referir a duas coisas especificamente: 1) a possibilidade de a literatura causar alguma sensação no leitor; 2) a própria noção de criação artística subsistente em si mesma, sem qualquer intenção utilitária, como mencionada anteriormente. Cumpre ainda dizer que a função estética está associada à ideia de fruição, prazer e entretenimento. Assim como podemos nos divertir com o cinema, com a televisão, com o teatro, com o circo, entre outras formas de entretenimento, também podemos fazer da leitura um prazer, um passatempo, um hobby. Agora, a questão da possibilidade de alguma sensação no leitor provocada UNIDADE 02 AULA 05 6 INTRODUÇÃO AOSESTUDOS LITERÁRIOS - O texto literário e seu valor para a tradição cultural pelo texto literário relaciona-se também a um conceito caro na Poética de Aristóteles: a catarse. Mais adiante trataremos disso. É hora de exercitarmos. EXERCITANDO Observando os dois poemas abaixo, qual deles exemplifica melhor o princípio da arte pela arte? Justifique sua resposta, inclusive identificando qual o propósito do outro texto. A rosa de Hiroxima Vinícius de Moraes Pensem nas crianças Mudas telepáticas Pensem nas meninas Cegas inexatas Pensem nas mulheres Rotas alteradas Pensem nas feridas Como rosas cálidas Mas oh não se esqueçam Da rosa da rosa Da rosa de Hiroxima A rosa hereditária A rosa radioativa Estúpida e inválida A rosa com cirrose A anti-rosa atômica Sem cor sem perfume Sem rosa sem nada (MORAES, 1998, p. 381) A um poeta Olavo Bilac Longe do estéril turbilhão da rua, Beneditino, escreve! No aconchego Do claustro, na paciência e no sossego, Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua! Mas que na forma se disfarce o emprego Do esforço; e a trama viva se construa De tal modo, que a imagem fique nua, Rica mas sóbria, como um templo grego. Não se mostre na fábrica o suplício Do mestre. E, natural, o efeito agrade, Sem lembrar os andaimes do edifício: Porque a Beleza, gêmea da Verdade, Arte pura, inimiga do artifício, É a força e a graça na simplicidade. (BILAC apud CANDIDO e CASTELLO, 1964, p. 256) Figuras 2-3 7 Para concluirmos este tópico, é bom lembrarmos que você, caro aluno, pode se filiar à corrente que afirma que a literatura deve ser entendida, de fato, esteticamente e sem qualquer compromisso com a realidade ou, se preferir, pode aderir à ideia de que a literatura pode ter várias funções. É mais ou menos o que defende o escritor Umberto Eco: Para que serve este bem imaterial que é a literatura? Bastaria responder, como já fiz, que é um bem que se consuma gratia sui, e portanto não deve servir para nada. Mas uma visão assim desencarnada do prazer literário corre o risco de reduzir a literatura ao jogging ou à prática de palavras cruzadas – os quais, além do mais, servem ambos para alguma coisa, ora à saúde do corpo, ora à educação léxica. Pretendo falar, então, de uma série de funções que a literatura assume para nossa vida individual e para a vida social. (ECO, 2003, p. 10) A série de funções a que se refere o autor de O nome da rosa será apresentada mais adiante. 3.2 A função humanizadora Não sei se você se lembra da nossa aula anterior, sobre a conceituação da literatura. Algo que deve estar inserido em sua mente é que, nas discussões teóricas sobre o texto literário, dificilmente podemos tomar os conceitos e as teorias como absolutos, assim como vimos na oscilante trajetória de conceituação do fenômeno literário. Nessa mesma esteira, você verá que a função humanizadora da literatura, apesar de bem formulada, não garante a transformação do ser humano. De qualquer forma, os estudiosos e amantes da poesia em geral defendem a ideia Figuras 4: Umberto Eco UNIDADE 02 AULA 05 8 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS - O texto literário e seu valor para a tradição cultural de que a arte, particularmente a literatura, é capaz de humanizar, ou seja, de nos tornar seres humanos melhores. Veja o que diz Antoine Compagnon: Lemos, mesmo se ler não é indispensável para viver, porque a vida é mais cômoda, mais clara, mais ampla para aqueles que leem que aqueles que não leem. Primeiramente, em um sentido bastante simples, viver é mais fácil [...] para aqueles que sabem ler, não somente as informações, os manuais de instrução, as receitas médicas, os jornais e as cédulas de voto, mas também a literatura. (COMPAGNON, 2009, p. 29) Continuando sua argumentação, o autor cita Francis Bacon: A leitura torna o homem completo, a conversação torna o homem alerta e a escrita torna o homem preciso. Eis porque, se o homem escreve pouco, deve ter uma boa memória; se fala pouco, deve ter a mente alerta; e se lê pouco, deve ter muita malícia para parecer que sabe o que não sabe. (BACON apud COMPAGNON, 2009, p. 29) E complementa que, segundo Bacon, “a leitura evita que tenhamos de recorrer à dissimulação, à hipocrisia e à falsidade; ela nos torna, portanto, sinceros e verdadeiros, ou simplesmente melhores” (COMPAGNON, 2009, p. 30). Claro que essa visão pode ser interpretada como romântica, mas, como dissemos no começo do tópico, aqui não há absolutos. Existem pontos de vista. Ressalte-se, ainda, que o que Compagnon disse tinha a ver com a própria história das concepções do poder da literatura. Ele estava fazendo um apanhado de como se viam e interpretavam as funções da literatura ao longo do tempo. Entre nós, aqui no Brasil, a grande formulação da função humanizadora da literatura foi feita, sem dúvida, pelo crítico literário Antonio Candido. Em um ensaio bastante conhecido nos estudos literários brasileiros, intitulado O direito à literatura, o crítico defende que a arte, em geral, e a literatura, em particular, são bens indispensáveis ao ser humano. “Trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, [a literatura] humaniza em sentido profundo, porque faz viver” (CANDIDO, 2004, p. 176). Vejamos outras duas colocações de Antonio Candido a respeito do tema: 9 ela [a literatura] é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente. [...] A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apóia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é indispensável tanto a literatura sancionada quanto a literatura proscrita; a que os poderes sugerem e a que nasce dos movimentos de negação do estado de coisas predominante. [...] ela tem papel formador da personalidade, mas não segundo as convenções; seria antes segundo a força indiscriminada e poderosa da própria realidade. (CANDIDO, 2004, p. 175-6) Entendo aqui por humanização (já que tenho falado tanto nela) o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante. (CANDIDO, 2004, p. 180) EXERCITANDO a) Você já deve ter percebido que, de vez em quando, falamos em “crítico literário” e em “ensaio”, referindo-se ao texto de algum estudioso da literatura. Pesquise, em dicionários e na internet, os significados das palavras “crítica literária” e “ensaio”. Verifique se os sentidos em que os termos são empregados aqui são os mesmos do senso comum. b) Diante destas duas funções da literatura já apresentadas – a estética e a humanizadora –, como você argumentaria com seus alunos para convencê-los da importância de ler o texto literário? c) Observe a seguinte passagem da Poética, de Aristóteles: Duas causas naturais parecem dar origem à poesia. Ao homem é natural imitar desde a infância – e nisso difere ele dos outros seres, por ser capaz da imitação e por aprender, por meio da imitação, os primeiros conhecimentos –; e todos os homens sentem prazer em imitar. (ARISTÓTELES, 1999, p. 40) UNIDADE 02 AULA 05 10 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS - O texto literário e seu valor para a tradição cultural A palavra traduzida como imitar ou imitação, no grego, é mimesis. Ela assume mais o sentido de representar ou representação. Há ainda os que preferem, hoje, traduzir por ficção. Com base na leitura do fragmento acima, identifique duas funções da poesia, segundo Aristóteles. 3.3 A função catártica O filósofo grego Aristóteles, mais uma vez no seu importantelivro para os estudos literários – Poética –, afirmou que a tragédia, tipo de peça por ele estudado, era capaz de provocar a catarse. Catarse é um dos termos mais difíceis de ser explicado na teoria literária, pois Aristóteles não desenvolveu o significado da expressão, nem deixou totalmente clara sua associação com o literário. Temos, portanto, algumas possibilidades de sentido, que veremos a seguir. Primeiro, leiamos as duas passagens da Poética que se referem ao tema; depois, vejamos os sentidos que o Dicionário de termos literários, de Massaud Moisés, confere ao termo: A tragédia é a representação de uma ação elevada, de alguma extensão e completa, em linguagem adornada, distribuídos os adornos por todas as partes, com atores atuando e não narrando; e que, despertando a piedade e temor, tem por resultado a catarse dessas emoções. (ARISTÓTELES, 1999, p. 43) (grifo nosso) Os sentimentos de terror e pena, às vezes, decorrem do espetáculo cênico; em outras ocasiões, porém, vêm do ordenamento que se dá as ações, e este é o melhor modo, mais próprio do poeta. Pois a fábula deve ser constituída de tal maneira que as pessoas que a ouvirem possam, mesmo sem nada ver, aterrorizar-se e sentir piedade, como acontecerá com quem escutar a história de Édipo. (ARISTÓTELES, 1999, p. 52) (grifos nossos) 11 Catarse: “Gr. kátharsis, purgação, purificação. [...] Como o texto aristotélico não esclarece nem desenvolve a passagem, o vocábulo ‘catarse’ tem dado margem a numerosas interpretações, todas insatisfatórias. Sabe-se que o filósofo grego tomou a palavra de empréstimo à Medicina: designava a eliminação dos humores corporais maléficos para restabelecer o equilíbrio próprio da saúde. Por outro lado, antes dele o termo ainda se empregava com sentido religioso: consistia na purificação ritual, espécie de batismo ou cerimônia de iniciação. À primeira vista, Aristóteles apenas transferiu para o universo estético a purgação medicinal e religiosa, uma vez que a catarse na tragédia se propunha a ‘depurar o fundo emocional da alma, mediante o prazer procurado pela expressão artística’ (Reyes 1941: 303). As várias propostas em torno do vocábulo ‘catarse’ podem ser resumidas em duas principais: ora se entende que a purgação constitui a experiência da piedade e terror que o espectador sofre perante a tragédia que contempla, de modo a ‘viver’ a situação infausta do herói e aprender a distanciá-la de si; ora se julga que a visualização do tormento alheio proporciona à platéia o alívio das próprias tensões, ao menos enquanto dura o espetáculo” (MOISÉS, 2004, p. 71). A despeito das dificuldades em se definir o que é catarse, de forma simplista, mas com intenções didáticas, diríamos que tem a ver com as emoções e tensões que sentimos diante de um filme, de uma peça, de um romance, de uma novela, de uma música... Enfim, a literatura (assim como outras manifestações artísticas), por meio da catarse, é capaz de mexer conosco. 3.4 A função transmissora de cultura e conhecimento Indubitavelmente, o texto literário é capaz de nos transmitir saber, conhecimento, cultura, informações. Por mais que a literatura seja ficção, existem situações “comentadas” ou “contadas” pelas narrativas, dramas e poemas. Sem contar que houve época, como vimos na aula anterior, que literatura era sinônimo de conhecimento. Livros como Os sertões, de Euclides da Cunha, Os miseráveis, de Victor Hugo, e Os escravos, de Castro Alves, correm o risco de nos ensinarem mais sobre a UNIDADE 02 AULA 05 12 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS - O texto literário e seu valor para a tradição cultural Guerra de Canudos, a situação política da França do século XIX e a escravidão no Brasil, respectivamente, que qualquer manual historiográfico, com o acréscimo da beleza estética. É histórica a noção de que a literatura é um dos mais importantes patrimônios culturais de uma nação, associada, inclusive, à ideia de civilização, conforme atestou Antoine Compagnon: Do ponto de vista científico, desde o início do século XIX, a filologia aventava a hipótese da unidade constitutiva formada por uma língua, uma literatura e uma cultura – ou antes, uma civilização, como então se dizia –, conjunto orgânico identificado ao espírito de uma nação para o qual a literatura, entre as raízes lingüísticas e a folhagem cultural, fornecia o nobre tronco, donde a prolongada eminência dos estudos literários, estrada real em direção à compreensão de uma cultura em sua totalidade. (COMPAGNON, 2009, p. 22) A escritora Ana Maria Machado reforça essa ideia, enaltecendo o poder da literatura, que é capaz de dar vida ao nosso espírito e engrandecer-nos como seres humanos: Cada vez que um leitor abre um livro e começa a lê- lo, despertando-o de seu encantamento silencioso, ou cada vez que um usuário pega uma obra literária na estante de uma biblioteca e se põe a dialogar com alguns dos melhores espíritos da história da humanidade, o patrimônio cultural de nós todos está sendo reavivado pela escolha dessa companhia. [...] a cultura nos enraíza, celebra o espírito e constitui o mais precioso patrimônio humano. A literatura é apenas sua manifestação por meio da arte das palavras. Uma manifestação poderosíssima, visto que se entretece com a preservação, renovação e reinvenção do que talvez seja o mais precioso patrimônio humano, a língua. [...] Se todos esses conceitos – patrimônio, cultura, literatura – se referem a algo que dá vida a nosso espírito e nos engrandece enquanto seres humanos e enquanto brasileiros, o desprezo a eles nos corrói e nos apequena. (MACHADO, 2011, p. 106-7) 13 Para refletir: na qualidade de professor, o que você pode fazer, em termos de estratégias de ensino e projetos pedagógicos, para preservar o patrimônio cultural do nosso país, região, estado e/ou município? Pense no âmbito dos estudos literários. 3.5 A função social e conscientizadora Outro papel que a literatura pode assumir, segundo alguns autores, é o de conscientização da realidade política e social. Nesse sentido, o poeta deve escrever algo que provoque reflexão e convide o leitor ao exercício da cidadania. A literatura, nesses casos, pode ser um instrumento de denúncia, um manifesto, um protesto, uma crítica. Dois interessantes exemplos de poemas engajados são: O operário em construção, de Vinícius de Moraes, e O analfabeto político, do dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Pesquisa: procure na internet os poemas O operário em construção, de Vinícius de Moraes, e O analfabeto político, de Bertolt Brecht. Leia-os e discuta com os outros estudantes do curso. Aproveite e pesquise também o significado da expressão arte engajada ou literatura engajada. 3.6 A função educativa Parece ser ponto pacífico para vários escritores que a literatura é capaz de nos ensinar sobre a vida, sobre os relacionamentos, sobre a morte, enfim, sobre a existência humana, seus dilemas, desafios e esperanças. Umberto Eco, considerando a distinção entre uma narrativa hipertextual (passível de ser modificada na internet pela escrita de várias mãos) e um conto “pronto”, “impresso” (imodificável), entende que as histórias literárias podem nos educar para a morte e o destino: UNIDADE 02 AULA 05 14 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS - O texto literário e seu valor para a tradição cultural A função dos contos “imodificáveis” é precisamente esta: contra qualquer desejo de mudar o destino, eles nos fazem tocar com os dedos a impossibilidade de mudá-lo. E assim fazendo, qualquer que seja a história que estejam contando, contam também a nossa, e por isso nós os lemos e os amamos. Temos necessidade de sua severa lição “repressiva”. A narrativa hipertextual pode nos educar para a liberdade e para a criatividade. É bom, mas não é tudo. Os contos “já feitos” nos ensinam também a morrer. Creio que esta educação ao Fado e à morte é uma das funções principais da literatura. (ECO, 2003, p. 21) Mario Vargas Llosa, porsua vez, chama-nos à atenção para o fato de que a literatura é capaz de, com suas mentiras, expressar grandes verdades humanas: De fato, os romances mentem – não podem fazer outra coisa –, porém essa é só uma parte da história. A outra é que, mentindo, expressam uma curiosa verdade, que somente pode se expressar escondida, disfarçada do que não é. [...] Porque as fraudes, os enganos e exageros da literatura narrativa servem para expressar verdades profundas e inquietantes, que somente dessa maneira enviesada vêm à luz. (LLOSA, 2004, p. 12 e 20) E para concluir este tópico, fiquemos com as palavras de Compagnon (2009, p. 26): Exercício de reflexão e experiência de escrita, a literatura responde a um projeto de conhecimento do homem e do mundo. Um ensaio de Montaigne, uma tragédia de Racine, um poema de Baudelaire, o romance de Proust nos ensinam mais sobre a vida do que longos tratados científicos. 3.7 Outras funções Caro aluno, poderíamos enumerar ainda mais uma infinidade de poderes do texto literário. Exemplos e argumentos não faltariam. Porém, acreditamos que já demos razões suficientes para o estudo e o ensino da literatura. Por outro lado, para não dizer que não falamos das flores (parafraseando Geraldo Vandré), apenas citaremos outras funções possíveis, apresentadas por Umberto Eco (2003), Compagnon (2009) e Todorov (2009): 15 a) manter a língua como patrimônio coletivo (proporcionando unidade nacional); b) criar identidade e comunidade; c) manter em exercício a língua individual; d) transmitir um mundo de valores; e) oferecer um modelo de verdade; f) possibilitar aprendizado por meio da nossa própria identificação com personagens e situações; g) instruir e deleitar (concepção clássica); h) libertar o indivíduo de sua sujeição, garantindo-lhe autonomia (concepção iluminista); i) tornar-nos mais inteligentes e senhores da própria linguagem; j) representar a existência humana; k) sensibilizar o indivíduo... Ufa, haja poder, hein!? UNIDADE 02 AULA 05 16 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS - O texto literário e seu valor para a tradição cultural 4 APROFUNDANDO SEU CONHECIMENTO Quer aprofundar seu conhecimento sobre o assunto tratado nesta aula? Assista aos seguintes filmes: Filme: Sociedade dos poetas mortos Direção: Peter Weir Você já deve ter assistido a este filme várias vezes, estrelado brilhantemente por Robin Williams, pois todo professor de literatura gosta de apresentá-lo aos alunos. Mas, agora, nosso convite é para que você assista tentando associá- lo a todo o aprendizado das funções da literatura, identificando quais funções podem ser exemplificadas no filme. Filme: O nome da rosa Direção: Jean-Jacques Annaud Outro filme recorrente nas aulas de literatura. Trata-se de uma adaptação do romance de mesmo nome do escritor italiano, tão recorrentemente citado em nossa aula, Umberto Eco. Com uma trama envolvente e uma atuação impecável de Sean Conery, no estilo Sherlock Holmes, vale a pena conferir por que um livro pode ser tão temido e censurado. 17 Filme: O livro de Eli Direção: The Hughes Brothers Protagonizado por Denzel Washington, o filme mostra, em um cenário pós-apocalíptico, o quanto um livro pode ser sinônimo de poder. Nesse caso específico, a última cópia da Bíblia, bem como a mensagem das Escrituras, exemplificam que, quem detém o conhecimento, não só é livre, como também é autônomo e não se sujeita a forças autoritárias e manipuladoras. 5 TROCANDO EM MIÚDOS A literatura é um meio muito poderoso de instrução e uma forma muito rica de entretenimento. O prazer da leitura, para os amantes do texto poético (num sentido amplo), é indescritível. Muitos entendem que o fenômeno literário deve ser visto apenas esteticamente, com um propósito voltado para si mesmo, sem qualquer vinculação utilitária. Outros defendem que encarar a literatura apenas sob esse viés é desperdiçar o poder imaterial dessa arte, capaz de humanizar e promover saber, sensibilizando o indivíduo. 6 AUTOAVALIANDO Ao concluir esta aula, faça uma reflexão, como forma de autoavaliação, a partir das seguintes perguntas: a) Tenho condições de responder satisfatoriamente quando alguém me perguntar por que estudar literatura? b) Que argumentos eu já tenho formulado para convencer meu aluno da importância da leitura literária? UNIDADE 02 AULA 05 18 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS - O texto literário e seu valor para a tradição cultural c) Que exemplos de textos literários, que li e me impactaram, eu posso indicar para meus alunos? Lembrete: de nada vai adiantar saber todos os argumentos favoráveis ao estudo da literatura, se você mesmo não estiver convencido dessa importância e se você, como professor, não for, antes de tudo, um grande leitor. INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS - O texto literário e seu valor para a tradição cultural REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Poética. In: Aristóteles: vida e obra. São Paulo: Nova Cultural, 1999 (Os Pensadores). BILAC, Olavo. A um poeta. In: CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1964. V. 2, p. 256. CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. 4. ed. São Paulo; Rio de Janeiro: Duas Cidades; Ouro sobre Azul, 2004, p. 169-191. COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê? Belo Horizonte: UFMG, 2009. ECO, Umberto. Sobre algumas funções da literatura. In: Sobre a literatura: ensaios. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 9-21. LAJOLO, Marisa. O que é literatura. 17. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995 (Coleção Primeiros Passos). LLOSA, Mario Vargas. A verdade das mentiras. 3. ed. São Paulo: Arx, 2004. MACHADO, Ana Maria. Silenciosa algazarra: reflexões sobre livros e práticas de leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. MEIRELES, Cecília. Motivo. In: Os melhores poemas de Cecília Meireles. Seleção de Maria Fernanda. 15. ed. São Paulo: Global, 2004, p. 11. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2004. MORAES, Vinícius. Rosa de Hiroxima. In: Vinícius de Moraes: poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998, p. 381. TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. 2. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. O texto literário e seu valor para a tradição cultural 1 OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM 2 Começando a história 3 Tecendo conhecimento 3.1 A função estética 3.2 A função humanizadora 3.3 A função catártica 3.4 A função transmissora de cultura e conhecimento 3.5 A função social e conscientizadora 3.6 A função educativa 3.7 Outras funções 4 Aprofundando seu conhecimento 5 Trocando em miúdos 6 Autoavaliando REFERÊNCIAS
Compartilhar