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1 Sobre Ser São em Lugares Insanos D. L. Rosenhan Se a sanidade e a insanidade existem, como podemos reconhecê-las? A questão não é nem fantasiosa nem insana. Não importa o quanto nós possamos estar pessoalmente convencidos de que podemos distinguir o normal do anormal, as evidências desta distinção não são sempre determinantes. É comum, por exemplo, lermos sobre julgamentos de assassinato onde os psiquiatras da defesa e os da promotoria não chegam a um acordo em relação à sanidade do réu. Freqüentemente, existem muitos dados conflitantes a respeito da integridade, utilidade, e significado de termos como “sanidade”, “insanidade”, “doenças mentais”, e “esquizofrenia”. Finalmente, em 1934, Benedict já sugeria que a normalidade e a anormalidade não são universais. O que é visto como normal em uma cultura pode ser visto como aberrante em outra. Então, as noções de normalidade e anormalidade não podem ser tão precisas quanto as pessoas acreditam que sejam. Levantar questões referentes à normalidade e à anormalidade não significa, de nenhuma forma, questionar o fato de que alguns comportamentos são errados ou estranhos. Assassinato é errado. Então as alucinações também são. Levantar tais questões tampouco nega a existência da angústia pessoal que é freqüentemente associada com “doença mental”. A ansiedade e a depressão existem. O sofrimento psicológico existe. Porém a normalidade e a anormalidade, a sanidade e a insanidade, e os diagnósticos que fluem entre estas podem ser menos substanciais do que muitos acreditam que sejam. No fundo, a questão de que o são pode ser distinguido do insano (e se os graus de insanidade podem ser distinguidos um do outro) constitui um simples problema: as características marcantes que determinam o diagnóstico residem nos próprios pacientes ou nos ambientes e contextos em que os observadores as encontram? Bleuler e Kretchmer, os formadores de uma das edições do Diagnostic and Statistic Manual da Associação Americana de Psiquiatria, têm reforçado a crença de que pacientes apresentam sintomas os quais podem ser categorizados e - implicitamente - que os sãos podem ser distinguidos dos insanos. Recentemente, contudo, essa crença tem sido questionada. Baseado parcialmente em considerações teóricas e antropológicas, mas também em filosóficas, legais, e terapêuticas, vem crescendo a visão de que a categorizarão psicológica de doenças mentais usada de forma taxativa é prejudicial, enganosa, e pejorativa. Nesta perspectiva, os diagnósticos psiquiátricos estão nas mentes dos observadores e não são resumos válidos das características mostradas pelos observados. 2 Propusemo-nos a investigar como se dá a decisão de qual dos possíveis diagnósticos é mais exato ou aproximado submetendo pessoas normais (isto é, pessoas que não sofrem e nunca sofreram sintomas significativos de desordens psiquiátricas) à admissão em hospitais psiquiátricos, e observando se elas seriam ou não descobertas como saudáveis. Se a sanidade de tais pseudopacientes fosse sempre detectada, existiria evidência prima facie de que um indivíduo são pode ser destinguido do contexto insano em que ele é encontrado. A normalidade (e presumidamente a anormalidade), seria tão distinta que poderia ser reconhecida sempre, porque seria carregada dentro da pessoa. Se, por outro lado, a sanidade dos pseudopacientes nunca fosse descoberta, dificuldades sérias surgiriam para aqueles que apoiam os métodos tradicionais do diagnóstico psiquiátrico. Contando com o fato de que a equipe do hospital não seria incompetente, de que o pseudopaciente se comportasse de forma tão sã quanto se comportava fora do hospital, sem que nunca lhe tivesse sido sugerida uma internação em um hospital psiquiátrico, tal resultado duvidoso apoiaria a visão de que diagnósticos psiquiátricos analisam pouco sobre o paciente e muito sobre o ambiente em que o observador o encontra. Este artigo descreve tal experimento. Oito pessoas sãss tiveram admissão secreta em 12 hospitais diferentes. Suas experiências diagnósticas constituem os dados da primeira parte desse artigo; o restante é dedicado à descrição de suas experiências em instituições psiquiátricas. Poucos psiquiatras e psicólogos, mesmo os que trabalharam em tais hospitais, sabem como é esta experiência. Eles raramente falam sobre isso com seus pacientes, talvez por desconfiarem de informações fornecidas por pessoas previamente classificadas como insanas. Aqueles que trabalharam em hospitais psiquiátricos são suscetíveis a terem se adaptado tão completamente ao cenário que se tornaram insensíveis ao impacto dessa experiência. Embora existam relatórios ocasionais de pesquisadores que se submeteram à hospitalização psiquiátrica, normalmente estes pesquisadores permanecem nos hospitais por pequenos períodos, freqüentemente com o conhecimento da equipe do hospital. É difícil saber até que ponto eles foram tratados como pacientes ou como companheiros de pesquisa. No entanto, seus relatórios sobre o interior do hospital psiquiátrico foram validados. Este artigo estende esses esforços. Pseudopacientes e Seus Cenários Os oito pseudopacientes deste estudo formavam um grupo variado. Um era estudante de pós- graduação de psicologia na faixa dos 20 anos. Os sete restantes eram mais velhos e “estabelecidos”. Entre eles estavam três psicólogos, uma pediatra, um psiquiatra, um pintor, e uma dona de casa. Três pseudopacientes eram mulheres e cinco eram homens. Todos usaram pseudônimos para que seus diagnósticos não lhes trouxesse problemas no futuro. Aqueles que estavam em profissões relacionadas 3 à saúde mental alegaram alguma outra ocupação para evitar qualquer atenção especial que pudesse ser concedida pela equipe como medida de cortesia para com colegas afligidos. Com a exceção da minha pessoa (eu fui o primeiro pseudopaciente e a minha presença - até onde sei - foi comunicada somente ao administrador do hospital e psicólogo chefe), a presença dos pseudopacientes e a natureza do programa de pesquisa não foi comunicada às equipes hospitalares. Os cenários eram variados. Para generalizar os dados obtidos, procurou-se admissão em uma variedade de hospitais. Os 12 hospitais do programa estavam localizados em cinco estados diferentes nas costas Leste e Oeste. Alguns eram antigos e se encontravam em más condições, outros eram novos e bem instalados. Alguns eram orientados para pesquisa, outros não. Alguns tinham boa relação profissional-paciente (quantitativamente falando), outros tinham poucos empregados. Somente um era um hospital estritamente particular. Todos os outros tinham o apoio de fundos estaduais ou federais ou, em um dos casos, fundo universitário. Depois de ligar para o hospital marcando uma consulta, o pseudopaciente chegava no centro de admissão queixando-se de estar ouvindo vozes. Quando perguntado sobre o que diziam as vozes, ele respondia que eram muitas vezes sem clareza, mas que quando podia escutar elas diziam “vazio”, “oco” e “golpe”. As vozes não eram familiares e eram do mesmo sexo do pseudopaciente. A escolha destes sintomas foi ocasionada pela similaridade aparente a sintomas existenciais. Alega-se que tais sintomas surgem de preocupações doloosas sobre a insignificância da vida de uma pessoa. É como se a pessoa “alucinada” dissesse, “Minha vida é vazia e oca”. A escolha destes sintomas também foi determinada pela falta de um simples relatório de psicose existencial na literatura. Além de alegar os sintomas e falsificar nome, vocação, e emprego, não foram feitas alterações adicionais de pessoa, historia, ou circunstância. Os eventos significativos da história de vida do pseudopaciente foram apresentados como realmenteocorreram. Relações com pais e irmãos, esposo e filhos, pessoas no trabalho e na escola, consistentes com as exceções já citadas, foram descritas como eram ou como tinham sido. De fato, frustrações e transtornos reais foram descritos, bem como alegrias e satisfações. É importante frisar que tais relatos foram feitos, pois teoricamente, eles influenciariam fortemente os resultados subseqüentes em favor do diagnóstico de normalidade, já que nenhuma dessas historias pessoais ou comportamentos correntes eram patológicos. Imediatamente após a admissão à custódia psiquiátrica, o pseudopaciente parava de simular qualquer sintoma de anormalidade. Em alguns casos, houve um período breve de nervosismo e ansiedade, já que nenhum dos pseudopacientes realmente acreditava que seria admitido tão facilmente. De fato, geralmente eles temiam ser descobertos, expostos e envergonhados. Além disso, muitos deles 4 nunca tinham visitado uma instituição psiquiátrica; e mesmo os que já tinham, apresentaram algum medo em relação ao que aconteceria a eles. Seu nervosismo, então, era bem apropriado à novidade do cenário hospitalar e foi abatido rapidamente. Apesar daquele nervosismo de curta duração, o pseudopaciente se comportou na instituição como ele se comportava “normalmente”. O pseudopaciente falava com pacientes e equipe como falaria ordinariamente. Porque existe muito pouco para fazer numa instituição psiquiátrica, ele tentava engajar os outros em conversações. Quando questionado pela equipe sobre como estava, ele respondia que estava bem, e que não tinha mais sintomas. Ele obedecia às instruções dos atendentes, atendia à chamadas para tomar medicamentos (que não eram engolidos), e seguia instruções das normas de acesso e de uso do refeitório. Além de participar de tais atividades oferecidas pela instituição, ele passava seu tempo anotando suas observações sobre a instituição, os pacientes, e a equipe. Inicialmente essas anotações eram escritas “em segredo”, mas como logo se tornou claro que ninguém se importava, elas passaram a ser escritas em blocos de papel em tais lugares públicos como as salas comunitárias. Nenhum segredo foi feito sobre tais atividades. O pseudopaciente, muito como um verdadeiro paciente psiquiátrico, entrou num hospital sem nenhum saber prévio de quando seria liberado. Cada um foi notificado que teria que sair por seus próprios meios, essencialmente convencendo à equipe de que era são. Os estresses psicológicos associados com a hospitalização eram consideráveis e quase todos, exceto um dos pseudopacientes, queriam ser liberados quase imediatamente após a admissão. Eles estavam então motivados não só a se comportarem de forma saudável, mas a serem modelos de cooperação. Os relatórios das respectivas enfermarias, obtidos para a maioria dos pacientes, confirmaram que seus comportamentos não eram de nenhuma maneira disfuncionais. Estes relatórios indicam uniformemente que os pacientes foram “amigáveis” e “cooperativos”, e não exibiam nenhuma indicação de “anormalidade”. Os Normais Não São Detectados como Sãos Apesar das manifestações públicas de sanidade, os pseudopacientes nunca foram descobertos. Admitidos, exceto em um caso, com o diagnóstico de esquizofrenia, cada um foi liberado com um diagnóstico de esquizofrenia “em remissão”. O termo “em remissão” não deve ser interpretado como uma formalidade, já que em nenhum momento da hospitalização foi levantada a questão sobre a simulação de qualquer dos pacientes. Tampouco existe qualquer indicação nos relatórios hospitalares de que o status do pseudopaciente era suspeito. Ao contrario, há forte evidência de que, uma vez denominado esquizofrênico, o pseudopaciente ficou marcado com este “rótulo”. Se o pseudopaciente 5 seria liberado, ele deveria naturalmente estar “em remissão”; entretanto, aos olhos da instituição, ele não estava são nem nunca o havia sido. A inabilidade uniforme para reconhecer a sanidade não pode ser atribuída à qualidade dos hospitais, já que, apesar de haver algumas variações entre eles, alguns eram considerados excelentes. Nem se pode alegar que houve pouco tempo para observar os pseudopacientes. O tempo de duração da hospitalização foi de 7 à 52 dias, com uma média de 19 dias. Os pseudopacientes não foram, de fato, observados cuidadosamente, mas este erro fala claramente mais das tradições de hospitais psiquiátricos do que de falta de oportunidade. Finalmente, não se pode dizer que a inabilidade em reconhecer a sanidade dos pseudopacientes tenha se derivado do fato de que eles não estavam se comportando de forma saudável. Enquanto havia claramente alguma tensão presente em todos eles, seus visitantes diários não detectaram nenhuma conseqüência séria de comportamento – da mesma forma, outros pacientes também não percebiam qualquer alteração. Era muito comum outros pacientes “detectarem” a sanidade dos pseudopacientes. Durante as primeiras três hospitalizações, quando registros exatos foram mantidas, 35 de 118 pacientes na área de admissões declararam suas suspeitas, alguns vigorosamente. “Você não é louco. Você é um jornalista, ou um professor” [referindo-se à anotação contínua]. “Você está espionando o hospital.” Embora a maioria dos pacientes foi insistentemente assegurada pelo pseudopaciente de que ele já estava doente antes de entrar no hospital mas que agora ele estava bem, alguns continuaram a acreditar que o pseudopaciente estava são por toda a sua hospitalização. O fato de que os pacientes reconheciam normalidade com freqüência enquanto a equipe não a reconhecia levanta questões importantes. A inabilidade em detectar a sanidade durante o curso da hospitalização talvez se deva ao fato de que os médicos operam com uma tendência forte ao que os estatísticos chamam de erro tipo 2. Isto quer dizer que os médicos estão mais inclinados à chamar uma pessoa saudável de doente (uma positiva falsa, tipo dois) do que uma pessoa doente de saudável (uma negativa falsa, tipo 1). As razões para isso não são difíceis de entender: é claramente mais perigoso diagnosticar doenças erradas do que errar no diagnóstico da saúde. É melhor errar no campo da precaução. Porém o que faz sentido para a medicina geral não faz igual sentido para a psiquiatria. Doenças médicas, ainda que infelizes, não são pejorativas. Os diagnósticos psiquiátricos, ao contrário, carregam estigmas pessoais, legais, e sociais. Portanto, tentou-se verificar se a tendência em diagnosticar os sãos como insanos poderia ser revertida. O experimento seguinte foi arranjado em um hospital de pesquisa e ensino no qual a equipe fora advertida destas conclusões mas tinham dúvidas de que tal erro pudesse ocorrer em seu hospital. A equipe foi informada que em algum tempo durante os próximos três meses, 6 um ou mais pseudopacientes tentariam ser admitidos no hospital psiquiátrico. Cada membro da equipe deveria avaliar cada paciente que se apresentasse na admissão ou no hospital de acordo com a possibilidade de que se tratasse de um pseudopaciente. Uma escala de 1 a 10 foi usada, com um 1 e um 2 refletindo alto nível de certeza de que o paciente era um pseudopaciente. Obtivemos julgamentos para 193 pacientes que foram admitidos na instituição. Todos os membros da equipe que haviam mantido contato ou responsabilidade primária pelo paciente – atendentes, enfermeiras, psiquiatras, médicos, e psicólogos – tiveram que emitir julgamentos. Quarenta e um pacientes foram apontados, com alto índices de certeza, como pseudopacientes por pelo menos um membro da equipe. Vinte e três foram considerados suspeitos por pelo menos um psiquiatra. Dezenove foram suspeitos por pelo menos um psiquiatra e um outro membro da equipe. Na verdade, nenhum pseudopaciente (ao menos não do meugrupo) se apresentou durante este período. O experimento é instrutivo. Ele indica que a tendência a designar pessoas sãs como insanas pode ser revertida quando as conseqüências (nesse caso, prestígio e sagacidade no diagnóstico) são altas. Mas o que pode ser dito das 19 pessoas suspeitas de serem “sãs” por um psiquiatra e um outro membro da equipe? Essas pessoas eram realmente “sãs”, ou a equipe que, para evitar o erro tipo 2, estava mais propensa a cometer o erro do primeiro tipo – chamando os loucos de “sãos”? Não existe nenhuma maneira de saber. Mas uma coisa é certa: qualquer processo de diagnóstico que se rende tão facilmente a erros deste tipo não deve ser um meio estritamente confiável. A Viscosidade das Denominações Psicodiagnósticas Além de denunciar a tendência de tomar os saudáveis como doentes – uma tendência que se refere mais ao comportamento do paciente na admissão do que depois de um longo período de exposição – os dados adquiridos se referem também ao papel da denominação na avaliação psicológica. Tendo uma vez sido chamado de esquizofrênico, não há nada que o pseudopaciente possa fazer para superar este rótulo, o qual colore profundamente a as percepções dos outros sobre ele e sobre seu comportamento. De um ponto de vista estes dados não são surpreendentes, porque há tempos se sabe que atribui- se significados aos elementos de acordo com o contexto em que ocorrem. A psicologia da Gestalt enfatizou este ponto vigorosamente, e Asch demonstrou que existem traços “centrais” da personalidade (como “afetuoso” versus “frio”) tão poderosos que eles influenciam o significado de outras informações, formando a impressão de uma personalidade específica. “Insano”, “esquizofrênico”, “maníaco-depressivo”, e “louco” estão provavelmente entre os mais poderosos de tais traços centrais. 7 Uma vez que uma pessoa é diagnosticada como anormal, todos seus outros comportamentos e características são coloridos por essa denominação. De fato, essa denominação é tão poderosa que muitos comportamentos normais dos pseudopacientes foram ignorados inteiramente ou profundamente mal interpretados. Alguns exemplos podem esclarecer este assunto. Indiquei anteriormente que não havia sido feita nenhuma mudança na história pessoal dos pseudopacientes além de nome, emprego, e, quando necessário, vocação. Ao contrário: uma descrição verídica da história pessoal e circunstâncias foi oferecida. Essas circunstâncias não eram psicóticas. Como foram elas acomodadas em diagnósticos de psicose? Ou foram os diagnósticos modificados de forma a ficarem de acordo com as circunstâncias da vida do pseudopaciente, conforme descritas por eles? Até onde posso determinar, os diagnósticos não foram afetados pela relativa saúde das circunstâncias da vida de um pseudopaciente. Na verdade, o oposto ocorreu: a percepção de suas circunstâncias foi moldada inteiramente pelo diagnóstico. Um exemplo claro de tal contaminação da percepção está no caso do pseudopaciente que tinha tido uma relação muito próxima com sua mãe mas era um pouco afastado de seu pai durante sua infância. Durante a adolescência e depois, no entanto, seu pai se tornou um amigo íntimo, enquanto seu relacionamento com sua mãe tornou-se mais distante. Sua relação atual com sua esposa era caracteristicamente íntima e calorosa. Apesar de alguma brigas ocasionais, a fricção era mínima. As crianças quase nunca tinham apanhado. Certamente não há nada de especialmente patológico em tal história. Na verdade, muitos leitores devem ver um padrão similar em suas próprias experiências, sem nenhuma conseqüência prejudicial. Observem, no entanto, como tal história foi traduzida no contexto psicopatológico, neste resumo de caso preparado após a liberação do paciente. Este homem branco de 39 anos ... manifesta uma longa história de ambivalência considerável em relações próximas, que teve início na infância. Uma relação calorosa com sua mãe esfria durante sua adolescência. Uma relação distante com seu pai é descrita como tornando-se muito intensa. Estabilidade afetiva está ausente. Suas tentativas de controlar emoções com sua esposa e filhos são pontuadas por explosões de raiva e, no caso das crianças, espancamentos. E enquanto ele diz possuir vários bons amigos, se pode sentir uma ambivalência considerável embutida nesses relacionamentos também... Os fatos do caso foram distorcidos pela equipe de forma não intencional para conseguir uma coerência com a teoria popular da dinâmica de uma reação esquizofrênica. Nada de natureza ambivalente havia sido descrito sobre relações com pais, esposa, ou amigos. Por mais que essa ambivalência pudesse ser inferida, ela provavelmente não era maior do que a encontrada em relações humanas comuns. É verdade que a relação do pseudopaciente com seus pais mudou ao longo do tempo, mas no contexto ordinário isso pouco seria surpreendente – na verdade, poderia até ser algo 8 esperado. Fica claro que o significado atribuído à suas verbalizações (isto é, ambivalência, instabilidade afetiva) foi determinado pelo diagnóstico: esquizofrenia. Um significado totalmente diferente teria sido atribuído se soubessem que o homem era “normal”. Todos os pseudopacientes fizeram anotações extensivas em público. Em circunstâncias ordinárias, tal comportamento teria levantando questões nas mentes dos observadores, como de fato ocorreu entre os outros pacientes. Na verdade, parecia tão certo que as anotações iriam levantar suspeitas que precauções elaboradas eram tomadas para removê-las do hospital a cada dia. Porém, estas precauções se fizeram desnecessárias. O mais perto que qualquer membro da equipe chegou de questionar estas anotações ocorreu quando um pseudopaciente perguntou ao seu médico que tipo de medicação ele estava recebendo e começou a escrever a resposta. “Você não precisa anotar”, o doutor disse gentilmente. “Se você tiver problemas para lembrar, pode me perguntar de novo”. Se nenhuma pergunta foi feita aos pseudopacientes, como foram interpretadas as suas anotações? Relatórios sobre três pacientes indicam que a anotação era vista como um aspecto do seu comportamento psicológico. “Paciente se empenha em comportamento de fazer anotações” era o comentário diário sobre um dos pseudopacientes que nunca foi questionado sobre seus registros. Já que o paciente está no hospital, ele deve ter perturbações psicológicas. E se ele apresenta perturbações, anotações contínuas devem ser uma manifestação comportamental de tal distúrbio, talvez um derivado dos comportamentos compulsivos, às vezes relacionados à esquizofrenia. Uma característica tácita do diagnóstico psiquiátrico é que ele localiza as fontes de aberrações dentro do indivíduo e somente raramente no complexo de estímulos que o cerca. Como Conseqüência, comportamentos que são estimulados pelo ambiente são normalmente atribuídos à desordem do paciente. Por exemplo, uma enfermeira gentil achou um pseudopaciente andando pelos corredores do hospital. “Nervoso, Sr. X?” ela perguntou. “Não, entediado,” ele disse. As anotações feitas pelos pseudopacientes são repletas de exemplos de comportamentos dos pacientes os quais eram mal interpretados pela bem intencionada equipe. Freqüentemente, um paciente teria uma ataque de indignação por ter sido mal tratado por um atendente. Uma enfermeira chegando à cena raramente perguntaria sobre o que causou tal indignação. Ao contrário, ela assumia que seu incômodo era derivado de sua patologia, e não das suas interações com outros membros da equipe. Ocasionalmente, a equipe assumia que a família do paciente (especialmente quando ela havia visitado) ou outros pacientes haviam estimulado a explosão. Mas a equipenunca achou que um dos seus membros ou a estrutura do hospital poderia ter influenciado o comportamento do paciente. Um psiquiatra apontou para um grupo de pacientes que estava sentado fora da entrada do 9 refeitório meia hora antes da hora do almoço. Para um grupo de residentes jovens ele indicou que tal comportamento era característico da natureza oral da síndrome. Não lhe ocorreu que havia poucas coisas que agradassem aos pacientes do hospital psiquiátrico além de comer. Um rótulo psiquiátrico possui vida e influência próprias. Uma vez formulada a impressão de que o paciente é esquizofrênico, a expectativa é de que ele continue a ser esquizofrênico. Quando uma quantidade suficiente de tempo se passa e o paciente não faz nada de estranho, ele é considerado um paciente em remissão e apto a ser liberado. Mas a rotulação permanece além da liberação, pontuando a expectativa não confirmada de que ele se comportará como um esquizofrênico novamente. Tais denominações conferidas por profissionais de saúde mental influenciam profundamente não só o paciente, mas também seus pais e amigos, e não deve ser surpresa para ninguém que o diagnóstico atue em todos eles como uma profecia auto-realizadora. Eventualmente, o próprio paciente aceita o diagnóstico, com todos os seus significados exagerados e expectativas, e se comporta de acordo. As inferências a serem feitas sobre estes assuntos são simples. Tal como Zigler e Phillips demonstraram, há uma enorme sobreposição dos sintomas apresentados por pacientes que foram diagnosticados de formas variadas, o que significa que comportamentos saudáveis e anormais também se sobrepõem. Os sãos não são “sãos” o tempo todo. Nós perdemos o controle de nosso temperamento “sem nenhuma boa razão”. Ficamos ocasionalmente deprimidos ou ansiosos, novamente sem razão aparente. E talvez nós achemos difícil conviver com uma ou outra pessoa – novamente sem uma razão que possamos especificar. Similarmente, os insanos não estão sempre insanos. Na verdade, a impressão dos pseudopacientes na convivência com doentes mentais era a de que eles permaneciam sãos por longos períodos de tempo – que os comportamentos estranhos que seus diagnósticos acusavam constituíam somente uma fração pequena de todo o seu comportamento. Se faz sentido denominar a nós mesmos como depressivos permanentes baseado numa depressão ocasional, então é preciso ter melhor evidência do que existe no momento para denominar todos os pacientes sãos, insanos ou esquizofrênicos baseado em comportamentos estranhos ou cognições. Parece mais útil, como Mischel apontou, limitar nossas discussões a comportamentos, aos estímulos que os provocam, e suas correlações. Não se sabe porque impressões poderosas de traços de personalidade, como “louco”, ou “insano” surgem. Naturalmente, quando as origens e os estímulos que causam um comportamento são remotos ou desconhecidos, ou quando um comportamento nos marca como imutável, surgem denominações de traços da pessoa que se comporta. Por outro lado, quando as origens e estímulos 10 são conhecidos e disponíveis, o discurso é limitado ao comportamento em si. Desta forma, posso alucinar por estar dormindo, ou por ter ingerido uma droga diferente. Estas são chamadas de alucinações induzidas pelo sono, ou sonhos, e alucinações induzidas por substâncias, respectivamente. Mas quando os estímulos das alucinações são desconhecidos, chama-se de loucura, ou esquizofrenia – como se essa inferência fosse tão clara quanto as outras. A Experiência da Hospitalização Psiquiátrica O termo “doença mental” é de origem recente. Ele foi criado humanistas cuja intenção era elevar a percepção social dos psicologicamente perturbados, vistos como “pirados” ou bruxos, para uma percepção que fosse semelhante à dos doentes fisiológicos. Eles foram parcialmente bem sucedidos, pois o tratamento dos doentes mentais melhorou consideravelmente com os anos. Entretanto, embora o tratamento tenha melhorado, é duvidoso que as pessoas realmente percebam os doentes mentais da mesma forma como vêm os doentes fisiológicos. Uma perna quebrada é algo que pode ser curado, mas doenças mentais (aos olhos leigos) duram para sempre. Uma perna quebrada não ameaça ao observador, mas e um esquizofrênico louco? Existe agora um conjunto de evidências de que as atitudes para com os doentes mentais são caracterizadas por medo, hostilidade, distância, suspeitas, e receio. Os doentes mentais são os leprosos da sociedade. Não é surpreendente mas aborrecedor o fato de que tais atitudes infectam a população geral. Entretanto, o fato de afetarem também profissionais de saúde – atendentes, enfermeiras, médicos, psicólogos, e assistentes sociais – que tratam e lidam com doentes mentais é muito mais desconcertante, já que tais atitudes são evidentemente perniciosas e limitantes. A maioria dos profissionais de saúde mental insiste em declarar-se delicada com os doentes mentais, e não ausentes ou hostis. Mas é mais provável que uma ambivalência marcante caracterize suas relações com pacientes psiquiátricos, tanto que seus impulsos declarados são somente parte de sua atitude total. As atitudes negativas também estão lá e podem ser facilmente detectadas. Tais atitudes não devem nos surpreender. Elas são derivadas naturais das denominações que os pacientes carregam e dos lugares em que são encontrados. Considere a estrutura de um hospital psiquiátrico típico norte-americano. Equipe e pacientes estão estritamente segregados. A equipe tem seu próprio espaço para viver, incluindo seu próprio refeitório, banheiros, e lugares de assembléia. As redomas de vidro onde fica a equipe profissional, as quais os pseudopacientes chamaram de “a gaiola”, se encontram em todos os saguões. A equipe sai basicamente com o propósito de cuidar – dar remédios, conduzir terapia ou encontros de grupo, 11 instruir ou reprimir um paciente. De outra forma, a equipe se mantém afastada, como se a doença que aflige aos pacientes fosse contagiosa. O tempo médio passado pelos atendentes fora da gaiola foi de 11.3 % (de 3 a 52 %). Este dado não representa somente o tempo de interação com pacientes, mas também inclui tempo gasto com afazeres como dobrar roupa suja, supervisionar pacientes enquanto se barbeiam, dirigir a faxina da área, e mandar pacientes para atividades externas. Era muito raro um atendente que passasse tempo falando com os pacientes ou jogando com eles. Provou-se impossível obter uma porcentagem de “tempo de interação” para enfermeiras, já que o tempo que passavam fora da gaiola era muito breve. Então, contamos as vezes em que saíam das gaiola. Na média, enfermeiras diurnas saíam da gaiola 11.5 vezes por turno, incluindo momentos em que saíam da área inteiramente (de 4 a 39 vezes). Enfermeiras da tarde e noturnas eram ainda menos acessíveis, saindo uma média de 9.4 vezes por turno. Dados sobre as enfermeiras da madrugada, que chegavam pouco depois da meia- noite e partiam às 8 a.m. não existem porque os pacientes estavam dormindo neste período. Médicos, especialmente psiquiatras, eram ainda mais inacessíveis: raramente eram vistos nas áreas de pacientes. Muito comumente, eles eram vistos somente nos momentos em que chegavam e que partiam, passando o tempo restante dentro de seus escritórios ou na gaiola. Na média, médicos saíam para a área dos pacientes 6.7 vezes ao dia (de 1 a 17 vezes). Provou-se difícil fazer uma estimativa realista neste caso, já que médicos freqüentemente mantinham horários que os permitissem ir e vir em momentos diferentes. A organização hierárquica do hospital psiquiátrico já foi citada anteriormente, mas o significado latente dessetipo de organização merece ser notado novamente. Aqueles com mais poder têm pouca interação com os pacientes, e aqueles com menos poder intervêm menos com eles. Lembre-se, no entanto, que a aquisição de comportamentos apropriados para posições ocorre principalmente através da observação dos outros, com os mais poderosos tendo a maior influência. Conseqüentemente, é compreensível que os atendentes não somente passem mais tempo com pacientes que qualquer outro membro da equipe – o que é requerido por sua posição na hierarquia – mas apesar disso, conforme aprenderam com seus superiores, passam o mínimo de tempo possível com os pacientes. Atendentes são vistos principalmente dentro da gaiola, local onde os modelos, a ação e o poder estão. Viro-me agora para um grupo diferente de estudos: aqueles que lidam com a reação da equipe ao contato iniciado pelos pacientes. Há muito se sabe que a quantidade de tempo que uma pessoa passa com você pode ser indicadora do seu significando para ela. Se ele inicia e mantém 12 contato visual, existe razão para acreditar que ele se importa com seus pedidos e necessidades. Se ele pára para conversar, existe ainda mais razão para inferir que ele esta lhe individualizando. Em quatro hospitais, o pseudopaciente se aproximou de um membro da equipe com um pedido no seguinte formato: “Com licença, Sr. [ou Dr. ou Sra.] X, poderia me dizer quando eu serei elegível para privilégios da ala?” (ou “... quando serei apresentado numa reunião de equipe?” ou “... quando poderei ser liberado?”). Enquanto o conteúdo da pergunta variava de acordo com a adequação do alvo e das necessidades atuais do pseudopaciente, o formato era sempre um pedido de informação cortês e relevante. Foi tomado cuidado para nunca se aproximar de um certo membro da equipe mais de uma vez por dia, para que o membro da equipe não ficasse com suspeitas ou irritado. Quando examinar os dados, lembre-se que o comportamento dos pseudopacientes não foi nem bizarro nem perturbador. Seria fácil se engajar em uma boa conversa com eles. Os dados para este experimentos são mostrados na Tabela 1, separadamente para médicos (coluna 1) e para enfermeiras e atendentes (coluna 2). Diferenças pequenas entre estas quatro instituições foram minimizadas pelo alto nível de contínua evitação da equipe a qualquer contato iniciado pelos pacientes. Em geral, sua reação mais comum consistiu em uma resposta breve à questão, oferecida enquanto estavam “passando”, e a cabeça virada, ou nenhuma resposta. Tabela 1. Iniciada pelos pseudopacientes com psiquiatras, enfermeiras e atendentes, comparado a contatos com outros grupos. Hospitais psiquiátricos Campus universitári o Centro Médico Universitário Médicos Contato (1) Psiquiatr as (2) Enfermeiras e atendentes (3) Faculdade (4) “Procurando um psiquiatra” (5) “Procurando por um interno” (6) Nenhum comentário Reações Continua andando, sem olhar (%) 71 88 0 0 0 0 Faz contato visual (%) 23 10 0 11 0 0 Pára e fala (%) 2 2 0 11 0 10 Pára e conversa (%) 4 0.5 100 78 100 90 Numero médio de questões respondidas (de 6) * * 6 3.8 4.8 4.5 Reações (no.) 13 47 14 18 15 10 Tentativas (no.) 185 1283 14 18 15 10 * Não aplicável. O encontro freqüentemente tomava uma forma bizarra: (pseudopaciente) “Com licença, Dr. X. você poderia me dizer quando serei elegível para os privilégios da razão?” (médico) “Bom dia, Dave, como está hoje?” (continua a andar sem resposta.) 13 É instrutivo comparar estes dados com dados obtidos recentemente na Universidade de Stanford. Já foi alegado que as grandes universidades são caracterizadas por professores que são ocupados e que não têm tempo para os alunos. Em função desta comparação, uma jovem mulher se aproximava de indivíduos do corpo docente que pareciam estar andando para alguma reunião ou classe e fazia as seguintes perguntas. 1) “Com licença, poderia me encaminhar ao Encina Hall?” (Na escola de medicina: “... ao Centro de Pesquisa Clínica?”). 2) “Você sabe onde fica o anexo Fish? (não há nenhum anexo Fish na Stanford). 3) “Você leciona aqui?” 4) “Como se inscrever para admissão para a universidade?” (na escola de medicina: “... para a escola de medicina?”). 5) “É difícil entrar?” 6) “Existe ajuda financeira?” Sem exceções, como se pode ver na Tabela 1 (coluna 3), todas as perguntas foram respondidas. Não importa o quanto apressadas eles foram, todos os questionados não só mantiveram contato visual, mas também param para conversar. De fato, muitos dos questionados saíram dos seus caminhos para encaminhar, levar a moça para o lugar procurado, tentar localizar o “anexo Fish”, ou discutir com ela as possibilidades de ser aceita na universidade. Dados semelhantes, também mostrados na Tabela 1 (colunas 4, 5 e 6), foram obtidos no hospital. Aqui, também, a jovem mulher veio preparada com seis perguntas. Depois da primeira pergunta, no entanto, ela falava para 18 dos questionados “Estou procurando por um psiquiatra”, e para outros 15, “Estou procurando um interno”. Outros 10 questionados não receberam nenhum comentário adicional (coluna 6). O grau geral das reações cooperantes é consideravelmente mais alto para esses grupos universitários do que foi para os pseudopacientes nos hospitais psiquiátricos. Mesmo assim, as diferenças são aparentes dentro do cenário da escola de medicina. Uma vez tendo indicado que ela estava procurando um psiquiatra, o grau de cooperação foi menor do que quando ela procurava um interno. Impotência e Despersonalização Contato visual e contato verbal refletem a preocupação e a individuação; sua ausência, reflete a evitação e a despersonalização. Os dados que apresentei não fazem justiça aos encontros ricos e diários que cresceram em torno da despersonalização e da evitação. Possuo arquivos de 14 pacientes que apanharam de membros da equipe pelo pecado de terem iniciado contato verbal. Durante a minha própria experiência, por exemplo, um paciente apanhou na presença de outros pacientes por ter se aproximado de um atendente e dito “Eu gosto de você”. Ocasionalmente, punições dadas ao pacientes por mau comportamento pareciam tão excessivas que não podiam ser justificadas pelas mais radicais interpretações do campo psiquiátrico. Mesmo assim, elas pareciam passar desapercebidas. Os temperamentos eram freqüentemente tempestuosos. Um paciente que não ouvia a chamada para medicamentos seria redondamente escoriado, e os atendentes da manhã freqüentemente acordariam os pacientes com, “vamos, seus f-----d-p---, fora da cama!” Nem dados anedóticos nem realistas podem transmitir o sentido inundador de impotência que invade o indivíduo enquanto ele é continuamente exposto à despersonalização do hospital psiquiátrico. Quase não importa qual o hospital psiquiátrico – os excelentes hospitais públicos e os pomposos hospitais privados eram melhores que os rurais, mas as características comuns destes hospitais ofuscaram suas aparentes diferenças. A impotência era evidente em todos os lugares. O paciente é privado de muitos de seus direitos legais por meio de seu compromisso psiquiátrico. Ele é despido de credibilidade por causa de seu rótulo diagnóstico. Sua liberdade de movimento é limitada. Ele não pode iniciar contato com a equipe, mas somente pode responder às poucas aberturas que ela faz. A privacidade pessoal é mínima. A área do paciente pode ser invadida e seus pertences examinados por qualquer membro da equipe, por qualquer razão. Sua história pessoal e aflição está disponível para qualquer membro da equipe que escolhe ler seu arquivo, não importando sua relação terapêutica com ele. Sua higiene pessoal e evacuações são freqüentemente monitoradas. As cabines de toaletes muitas vezes não tem portas. Às vezes, a despersonalização chegou a taisproporções que os pseudopacientes tinham a sensação de serem invisíveis, ou pelo menos não merecedores de atenção. Quando fomos admitidos, eu e outros pseudopacientes fizemos os primeiros exames físicos em um quarto semi público, onde membros da equipe fizeram suas tarefas como se nós não estivéssemos ali. No pátio, os atendentes abusavam seriamente os pacientes, tanto verbal quanto fisicamente na presença de outros pacientes observadores, alguns dos quais (pseudopacientes), estavam anotando tudo o que se fazia em seus blocos de papel. Comportamentos abusivos, por outro lado, terminavam abruptamente quando outros membros da equipe apareciam. Os funcionários do hospital são testemunhas com credibilidade. Os pacientes não são. Uma enfermeira desabotoou sua camisa para ajeitar o sutiã em frente à um pátio cheio de 15 homens. Não se podia concluir que ela estava tentando ser sedutora. Na verdade, ela não nos percebia. Um grupo de funcionários poderia apontar para um paciente no saguão e discutir sobre ele animadamente, como se ele não estivesse lá. Um instante iluminador de despersonalização e invisibilidade ocorreu em relação aos medicamentos. Foram ministradas para os pseudopacientes cerca de 2100 pílulas, incluindo Elavil, Stelazine, Compazine, e Thorazine, entre outras. (Vale atentar para o fato de que tal variedade de medicamentos teria sido administrada para pacientes apresentando os mesmos sintomas) Somente duas foram engolidas. O resto foi embolsado ou depositado no toalete. Os pseudopacientes não estavam sós nisso. Mesmo não tendo dados precisos sobre quantos pacientes rejeitavam seus remédios, os pseudopacientes freqüentemente achavam os remédios de outros pacientes no toalete antes de jogarem os seus próprios. Contanto que cooperassem, seu comportamento, assim como o dos pseudopacientes, nessa como em outras finalidades, também era totalmente ignorado. Reações à despersonalização entre pseudopacientes eram intensas. Apesar de terem vindo ao hospital como observadores participantes e de estarem inteiramente à par de que eles não “pertenciam” àquele ambiente, ainda assim eles se encontraram lutando contra o processo de despersonalização. Alguns exemplos: um estudante de pós-graduação em psicologia pediu à sua esposa para lhe trazer livros ao hospital para que ele pudesse “fazer o dever de casa” – isto, mesmo tendo tido o cuidado de omitir sua profissão. O mesmo estudante, que tinha treinado por bastante tempo para entrar no hospital, e que tinha tido muitas expectativas sobre a experiência, lembrou-se de um campeonato que queria ver no fim-de-semana e insistiu que fosse liberado naquele dia. Um outro pseudopaciente tentou ter um romance com uma enfermeira. Subseqüentemente, ele informou à equipe que estava se inscrevendo para admissão em uma escola de pós-graduação em psicologia e que muito provavelmente seria admitido, já que um professor da escola era um dos seus visitantes regulares. A mesma pessoa começou a se engajar em psicoterapia com outros pacientes – tudo isso como uma forma de se tornar uma pessoa em um ambiente impessoal. As Fontes da Despersonalização Quais são as origens da despersonalização? Já mencionei duas. Em primeiro estão as atitudes que todos nós temos para com os doentes mentais – incluindo aqueles que os tratam – atitudes caracterizadas por medo, desconfiança, expectativas ruins por um lado, e intenções benevolentes por outro. Nossa ambivalência leva à evitação destas pessoas. Em segundo lugar, e não inteiramente separada, a estrutura hierárquica do hospital 16 psiquiátrico facilita a despersonalização. Os profissionais do topo desta hierarquia pouco interagem com os pacientes, e seu comportamento inspira o restante da equipe. O contato médio diário com psicólogos, residentes, e médicos juntos foi de 3.9 à 25.1 minutos, com uma média geral de 6.8 (seis pseudopacientes sobre um total de 129 hospitalizados). Incluídos nesta média está o tempo passado na entrevista de admissão, encontros no pátio com a supervisão de um membro superior da equipe, contatos de psicoterapia em grupo ou individuais, conferências de apresentação do caso, e reuniões de liberação. Claramente, os pacientes não passam muito tempo em contato interpessoal com a equipe médica, que serve como modelo para as enfermeiras e atendentes. Existem provavelmente outras fontes. Instalações psiquiátricas estão atualmente em situações financeiras precárias. As equipes estão menores, e o seu tempo está mais caro. O contato com pacientes é diminuído. No entanto, embora o estresse financeiro seja realidade, muito pode ser feito com ele. Eu tenho a impressão de que as forças psicológicas que resultam na despersonalização são muito mais fortes que as fiscais e que a contratação de mais funcionários não melhoraria o cuidado com o paciente neste caso. A incidência de reuniões da equipe e a enorme quantidade de relatórios sobre pacientes, por exemplo, não diminuíram como o contato com pacientes. As prioridades existem, mesmo durante tempos difíceis. O contato com os pacientes não é uma prioridade significativa no hospital psiquiátrico tradicional, e pressões fiscais não respondem por isso. Evitação e despersonalização são as respostas. A confiança pesada na psicofarmacologia contribui tacitamente para a despersonalização por convencer a equipe de que o tratamento está de fato sendo conduzido, tornando qualquer contato extra com o paciente desnecessário. Mesmo assim, no entanto, a precaução precisa ser exercida na compreensão do papel das drogas psicotrópicas. Se os pacientes fossem poderosos ao invés de fracos, se eles fossem vistos como indivíduos interessantes ao invés de entidades diagnósticas, se fossem socialmente significantes ao invés de leprosos sociais, se suas aflições realmente comovessem nossas simpatias e preocupações, não procuraríamos contato com eles, apesar da disponibilidade dos medicamentos? Eles nos seriam agradáveis? As Conseqüências da Rotulação e da Despersonalização Sempre que a relação entre o que se sabe com o que se precisa saber se aproxima de zero, nós tendemos a inventar “sabedoria” e assumimos que entendemos mais do que realmente entendemos. Nós parecemos incapazes de assumir que simplesmente não sabemos. A necessidade do diagnóstico e do remédio para os problemas comportamentais e emocionais é enorme. Mas ao 17 invés de reconhecermos que estamos somente embarcando na compreensão, nós continuamos a denominar pacientes “esquizofrênicos”, “maníaco-depressivos”, e “insanos”, como se nessas palavras tivéssemos capturado a essência da compreensão. A base do problema é que já sabemos há muito tempo que diagnósticos são freqüentemente não são úteis ou confiáveis, mas mesmo assim continuamos a usá-los. Nós agora aprendemos que não podemos distinguir a insanidade da sanidade. É deprimente considerar como essa informação será usada. Não somente deprimente, mas assustador. Como muitas pessoas, me pergunto, mesmo sendo sãs, não são reconhecidas como tal em nossas instituições psiquiátricas? Quantos já foram desnecessariamente privados de seus privilégios de cidadania, de seu direito de votar e de dirigir e de lidar com seus próprios problemas? Quantos já fingiram insanidade para evitar as conseqüências criminais de seu comportamento, e inversamente, quantos não prefeririam passar por um julgamento à viver em um hospital psiquiátrico – mas são erradamente considerados doentes mentais? Quantos já foram estigmatizados por diagnósticos bem-intencionados mas, ainda assim, errados? Lembre-se novamente de que um “erro do tipo 2” em diagnósticos psiquiátricos não tem as mesmas conseqüências que teria emdiagnósticos médicos. Um diagnóstico de câncer que se prova errado é uma causa para comemoração. Mas diagnósticos psiquiátricos raramente se provam errados. A denominação fica como uma marca de inadequação para sempre. Finalmente, quantos pacientes podem ser “sãos” fora do hospital psiquiátrico mas parecem insanos dentro dele – não porque a loucura vive neles, mas porque estão reagindo à um cenário bizarro, que parece ser exclusivo de instituições que abrigam pessoas consideradas inferiores? Goffman chama o processo de socialização de tais instituições de “mortificação” – uma metáfora apta que inclui os processos de despersonalização incluídos aqui. E enquanto é impossível saber se as reações dos pseudopacientes a estes processos são características a todos os pacientes – eles, apesar de tudo, não eram pacientes reais – é difícil acreditar que estes processos de socialização em um hospital psiquiátrico estimulem atitudes úteis ou reações adaptativas para se viver no “mundo real”. Sumário e Conclusões Ficou claro que não podemos distinguir os sãos dos insanos em hospitais psiquiátricos. O próprio hospital impõe um ambiente especial em que os significados dos comportamentos podem facilmente ser mal interpretados. As conseqüências para os pacientes hospitalizados em tal ambiente – impotência, despersonalização, segregação, mortificação, e autodenominação – parecem 18 sem dúvida anti-terapêuticas. Mesmo agora, não compreendo este problema bem o suficiente para perceber soluções. Mas duas questões parecem vir a se desenvolver. A primeira se trata da proliferação de instituições de saúde mental na comunidade, de centros de intervenção em crise, do movimento do potencial humano, e das terapias comportamentais que, mesmo com todos seus problemas, tendem a evitar as denominações psiquiátricas, focalizando problemas e comportamentos específicos, mantendo o indivíduo em um ambiente relativamente não-pejorativo. Fica claro que, se pudermos evitar mandar os afligidos para lugares insanos, nossas impressões deles terão menos probabilidade de serem distorcidas. (O risco de percepções distorcidas, me parece, está sempre presente, já que nós somos muito mais sensíveis ao comportamento e verbalização de um indivíduo do que aos estímulos contextuais sutis que freqüentemente os promovem. Em questão aqui está um problema de magnitude. E, como mostrei, a magnitude da distorção é excessivamente alta no contexto extremo que é um hospital psiquiátrico.) A segunda questão que pode que pode se provar promissora fala da necessidade de aumentar a sensibilidade dos trabalhadores de saúde mental à posição humilhante dos pacientes psiquiátricos. Simplesmente ler material neste tema pode ser uma ajuda para alguns desses trabalhadores e pesquisadores. Para outros, experimentar diretamente o impacto da hospitalização psiquiátrica poderá ser de uma utilidade enorme. Claramente, pesquisa futura na psicologia social de tais instituições psiquiátricas duplamente facilitaria o tratamento e aprofundaria a compreensão geral. Eu e outros pseudopacientes no cenário psiquiátrico tivemos reações distintamente negativas. Nós não pretendemos descrever as experiências subjetivas dos pacientes reais. As deles podem ser diferentes das nossas, particularmente com a passagem do tempo e o processo necessário de adaptação ao seu ambiente. Mas podemos e falamos dos índices relativamente mais objetivos de tratamento dentro do hospital. Poderia ser um erro muito infeliz considerar que o que aconteceu conosco se derivou da malícia e estupidez da equipe. Ao contrário, nossa impressão deles foi de que realmente se importavam, sendo dedicadas e bastante inteligentes. Suas falhas, que às vezes foram muito dolorosas, seriam melhor atribuídas ao ambiente em que eles também se encontravam do que a defeitos pessoais. Suas percepções e comportamento eram controlados pela situação, ao invés de serem motivados por uma disposição maliciosa. Em um ambiente mais benigno, alguém que fosse menos ligado aos diagnósticos globais, poderia ter emitido comportamentos e julgamentos mais benignos e efetivos. 19 (Extraído da revista Science, vol. 179, p. 250-258, 1973. Notas e referências não incluídas. Traduzido por Renata F. Brasileiro) Sobre Ser São em Lugares Insanos Pseudopacientes e Seus Cenários Os Normais Não São Detectados como Sãos A Viscosidade das Denominações Psicodiagnósticas