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INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO CEARÁ - CAMPUS DE BATURITÉ CURSO DE TECNOLOGIA EM GASTRONOMIA ANTONIA IZAMARA ARAÚJO DE PAULA RAIZES DA TERRA: Hábitos e práticas alimentares tradicionais da população baturiteense BATURITÉ 2013 ANTONIA IZAMARA ARAÚJO DE PAULA RAIZES DA TERRA: Hábitos e práticas alimentares tradicionais da população baturiteense Monografia apresentada ao Curso de Tecnologia em Gastronomia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFCE) – Campus Baturité, como requisito parcial para obtenção do Titulo de Tecnólogo em Gastronomia. Profª Orientador(a): Msc. Márcia Maria Leal de Medeiros BATURITÉ 2013 ___________________________________________________________________ P324r Paula, Antônia Izamara Araújo de. Raízes da terra: hábitos e práticas alimentares tradicionais da população baturiteense / Antônia Izamara Araújo de Paula. – Baturité : [s.n.], 2013. 109f. Orientadora: Márcia Maria leal de Medeiros. Trabalho de conclusão de curso (graduação) – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará. 1.Alimentação Baturiteense. 2. Baturité–gastronomia. I. Título CDD 394 ___________________________________________________________________________ ANTONIA IZAMARA ARAÚJO DE PAULA RAIZES DA TERRA: Hábitos e práticas alimentares tradicionais da população baturiteense. Monografia apresentada ao Curso de Tecnologia em Gastronomia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFCE) – Campus Baturité, como requisito parcial para obtenção do Titulo de Tecnólogo em Gastronomia. Aprovada em: ___/___/______. BANCA EXAMINADORA _________________________________________________ Presidente: Profª. Msc. Márcia Maria Leal de Medeiros – Orientadora – IFCE - Campus de Baturité. _________________________________________________ Membro: Profª. Msc. Anna Erika Ferreira Lima – IFCE - Campus de Baturité. _________________________________________________ Membro: Profª. Msc. Rafaela Maria Temóteo Lima – IFCE - Campus de Baturité. Dedico este trabalho a todos que me ajudaram na construção do mesmo. Em especial aos meus pais Ironildo Pereira de Paula e Nazaré Araújo de Paula e meu esposo Leo Vasconcelos Pinto Castelo Branco, que tanto me incentivaram a estudar e persistir em meus objetivos, jamais desistir. AGRADECIMENTOS Primeiramente ao meu bom Deus por tudo de bom que me foi dado durante toda a minha vida. Aos meus pais Nazaré Araújo de Paula e Ironildo Pereira de Paula, por todo o carinho e amor dedicados. Aos meus irmãos Antonio Ironilso Araujo de Paula e Maria Irisnara Araújo de Paula, pela compreensão e companheirismo. Ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará – Campus Baturité pelo oportunidade dada com o ensino superior, que me possibilitou crescer intelectualmente, pessoalmente e profissionalmente. Agradeço imensamente a minha orientadora Msc. Márcia Maria Leal de Medeiros pela atenção, por ter me instigado a estudar esse tema desde o 1º semestre do curso (em minha opinião tema de grande importância), por bolsa de iniciação cientifica, pela compreensão e sabedoria dispensadas durante o período de elaboração deste trabalho. Aos órgãos IFCE e CNPq pela bolsa de iniciação científica concedida que tanto me ajudou a crescer e fortaleceu meu interesse na área cientifica. Ao professor Amilton Marques que me ajudou a realizar um de meus sonhos, que era adquirir conhecimento em língua estrangeira – francês – tão importante na atualidade. Uma pessoa muito especial que consegue conquistar todas à sua volta, com seu carisma e alegria. À Marcela Coelho essa pessoa carismática, carinhosa, que chegou as poucos e conquistou o coração de todo mundo. Obrigada por todas as lições e ensinamentos que me foram repassados. Aos professores Ana Cristina, Deuzenir Marques, Mirele Vasconcelos, Patrícia Holanda, Anna Erika, Rafaela, Ana Karine, Mariane Brunnet, Lourival, Paulo Massey, Joseilton Lima, Socorro Braun, Tatiane Aguiar, Patricia Sobreiro, Paulo Sobrinho, Profº Francisco, que tanto contribuíram com o conhecimento adquirido durante esse curso de Tecnologia em Gastronomia, que me guiará para o resto de minha vida. Ao diretor Eudes Bandeira pela confiança e dedicação dada a esta instituição, por estar sempre aberto a novidades e disposto a ajudar em tudo que for possível. Aos meus colegas Daniele Xavier, Jonas Fernandes e Elisandra Nunes, pelo companheirismo, amizade, parceria e paciência nos vários momentos que passamos juntos. À Marcela Melo por toda sabedoria e amizade concedidas, além de todo apoio e aconselhamento que me foram dados com tanto carinho. À Carla Milena por me mostrar o valor de uma verdadeira amizade, por estar sempre disposta a ajudar com aquele ombro amigo que só ela tem, principalmente quando se quer chorar. À Raiara Monte, por ser aquela amiga de todas as horas, que com o sua alegria consegue fazer tudo ficar diferente. À Janaina Lima, que com esse jeitinho meigo que só ela tem consegue nos cativar sempre mais. À Roberta Kelvia, que sempre consegue nos acalmar com sua serenidade e sabedoria. Ao Afonso Alves pelo companheirismo e amizade dedicados sempre e também por estar sempre pronto a ajudar. Ao Macedo Moraes a alegria da turma, com seu sorriso consegue ultrapassar todas as barreiras. A todos os funcionários do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia – campus Baturité, por tudo que fizeram para a realização deste curso. A todos os entrevistados que tanto me ajudaram bastante na construção deste trabalho, através de relatos riquíssimos sobre a cultura gastronômica tradicional de Baturité. À todas as pessoas que direta ou indiretamente contribuíram para a construção e realização deste trabalho. Muito obrigada a todos! Hino de Baturité Ao sopé de elegantes montanhas Uma linda cidade brotou Adornada de graças tamanhas Que o céu encantado abraçou! Monte-mor, Baturité Tua fé se fez memória O teu povo te bendiz E é feliz, por tua história! Numa “Aldeia Comum” protegidos Jenipapos e irmãos Canindés, Habitavam tranqüilos e unidos, Como as águas do rio a seus pés! Portugueses heróis na aventura Deste imenso País desbravar, Nos trouxeram com sua cultura A saudade sem fim de além-mar! Decantados em belos poemas Homens fortes, altivos, de cor Ensinaram, quebrando as algemas Que não há liberdade sem dor! Hoje, somos herdeiros da alma E das terras de nossos avós Onde Nossa Senhora da Palma Pede as bênçãos de Deus sobre nós. (Geraldo José Campos e Frei Wilson Fernandes) RESUMO A alimentação exerce função muito importante na caracterização da cultura de um povo. Com o decorrer do tempo o mundo foi passando por transformações e com elas os hábitos e práticas alimentares também foram modificados, tanto nos centros urbanos, como em área rurais. Este trabalho pretende pesquisar e registrar os hábitos e práticas alimentares tradicionais da população baturiteense. Vários fatores contribuíram para que houvessem modificaçõesna alimentação, podendo-se destacar a urbanização, industrialização, globalização e o capitalismo. Do século XIX ao século XXI a tecnologia vem desempenhando função muito importante nessa área, surgindo cada dia novos produtos e técnicas que facilitam a preparação, conservação e apreciação dos alimentos. Foi utilizada uma abordagem qualitativa na realização deste trabalho, aplicando-se questionário semi estruturado com perguntas abertas, sobre os hábitos alimentares locais, alimentação na infância, principal atividade econômica praticada pela família, tipo de alimentação em datas comemorativas, entre outros questionamentos relevantes à realização deste estudo. A entrevista foi realizada com 10 habitantes da cidade de Baturité, com idade entre 48 e 73 anos. Antigamente eram mais consumidos carnes de animais de caça, aves, peixes que não são comuns hoje em dia e algumas frutas silvestres. O modo de preparo das receitas, a conservação dos alimentos e os utensílios utilizados, assim como os divertimentos e as festividades eram bastante diferenciados. Apesar do êxodo rural, do avanço da tecnologia e das mudanças ambientais, os baturiteenses hoje ainda utilizam alguns alimentos tradicionais e hábitos da época de sua infância e juventude, guardando a maioria desses hábitos, em suas memórias com grande nostalgia. Palavras-Chave: Alimentação tradicional. Alimentação baturiteense. Hábitos alimentares. Resgate. RESUMÈ L‟alimentation joue un rôle très important dans la caractérisation de la culture d'un peuple. Avec le passage du temps, le monde subissait aux transformations et avec elles les habitudes et les pratiques alimentaires ont également été modifiées, dans le milieu urbain comme dans le milieu rural. Ce travail se propose à rechercher et enregistrer les habitudes et les pratiques alimentaires traditionnelles de la population baturiteense. Plusieurs facteurs ont contribué à l'évolution et aux changements alimentaires dont on peut mettre en évidence l'urbanisation, l'industrialisation, la mondialisation et le capitalisme. Du Dix-neuvième siècle au XXI e siècle la technologie a joué un rôle très important dans ce domaine, où il apparaît à chaque jour de nouveaux produits et techniques qui facilitent la préparation, la conservation et l‟appréciation de la nourriture. Nous avons utilisé une approche qualitative dans ce travail, en appliquant un questionnaire semi-structuré avec des questions ouvertes sur les habitudes locales d'alimentation, l'alimentation pendant l'enfance, la principale activité économique pratiquée par la famille, le type d'alimentation dans les dates commémoratives, entre autres questions pertinentes à cette étude. L'interview a été réalisée avec 10 habitants de Baturité, âgés entre 48 et 73 ans. Autrefois des fruits comme le bacupari, l‟Ingaí et le raisin étaient les plus consommés et aussi la viande de chasse, les oiseaux et les poissons qui ne sont plus très communs aujourd'hui. La méthode de préparation des recettes, la conservation des aliments et les ustensiles utilisés ainsi comme les amusements et les festivités étaient tout à fait différent. En dépit de l'exode rural, de l'inovation de la technologie, les changements environnementaux, les baturiteenses utilisent encore aujourd'hui certains aliments et les habitudes de l'époque de leur enfance et de leur jeunesse traditionnelles, sont tendrement gardés dans leurs mémoires. Mots-clés: Nourriture traditionnelle. Alimentation baturiteense.Les habitudes alimentaires. La rédemption. LISTA DE SIGLAS IBAMA: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. SUCAM: Superintendência de Campanhas de Saúde Pública. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 14 2 HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO ........................................................................ 17 2.1 Alimentação no Brasil ............................................................................................. 20 3 HÁBITOS TRADICIONAIS .................................................................................. 25 3.1 Slow Food X Confort Food: relevância na sociedade moderna .......................... 26 3.2 O saber transmitido: de pai para filhos ................................................................. 29 3.3 Mudanças nos hábitos alimentares ........................................................................ 31 4. METODOLOGIA .................................................................................................... 36 5 HÁBITOS E PRATICAS ALIMENTARES DA CIDADE DE BATURITÉ ..... 38 5.1 Composição familiar dos habitantes ...................................................................... 38 5.2 Principais atividades desenvolvidas ....................................................................... 38 5.2.1 Agricultura ................................................................................................................ 38 5.2.2 Fruticultura .............................................................................................................. 39 5.2.3 Pecuária .................................................................................................................... 40 5.2.4 Caça ........................................................................................................................... 41 5.2.5 Pesca .......................................................................................................................... 41 5.3 Conservação dos alimentos ..................................................................................... 42 5.4 Utensílios e equipamentos utilizados ..................................................................... 43 5.5 Comidas tradicionais ............................................................................................... 44 5.5.1 Alimentação do dia-a-dia ......................................................................................... 49 5.5.2 Alimentação de dias de festas e datas comemorativas ............................................ 51 5.5.3 Modo de preparo das receitas ................................................................................... 53 5.6 Repasse dos hábitos ................................................................................................. 55 5.7 Festas e datas comemorativas ................................................................................. 44 5.7.1 Semana santa ........................................................................................................... 45 5.7.2 Chegada de visitantes .............................................................................................. 45 5.7.3 Aniversário ............................................................................................................... 46 5.7.4 Natal ......................................................................................................................... 46 5.7.5 Festa junina ............................................................................................................. 46 5.7.6 Festa de São Gonçalo .............................................................................................. 47 5.7.7 Forró ........................................................................................................................ 48 5.8 Influências sofridas .................................................................................................55 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 56 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 58 APÊNDICE A – INSTRUMENTO DE COLETA DE DADOS ......................................... 61 APÊNDICE B – INSTRUMENTO DE COLETA DE DADOS ......................................... 62 APÊNDICE C – ENTREVISTAS COM HABITANTES DE BATURITÉ. ...................... 63 APÊNDICE D – ENTREVISTA COM REPRESENTANTE DA SUCAM .................... 106 ANEXO A – MODELO DE AUTORIZAÇÃO UTILIZADA NA PESQUISA DE CAMPO ................................................................................................................................. 109 14 1 INTRODUÇÃO O tema desta pesquisa foi idealizado desde o primeiro semestre do Curso de Tecnologia da Gastronomia, no qual vimos à disciplina de História da Gastronomia, que me despertou o interesse por saber quais eram as “raízes” gastronômicas da cidade de Baturité, e o porquê de muitas haverem desaparecido, nessa cidade tão rica em recursos naturais, históricos e culturais, onde nasci e vivo até hoje. No decorrer de décadas, em geral o mundo passou por diversas transformações e com elas os hábitos e práticas alimentares também foram modificados, tanto nos centros urbanos, como em área rurais, tendo como possíveis causas a urbanização e globalização, nas quais foram sendo incorporados e implementados novos produtos, técnicas e formas de consumo condizentes com o novo estilo de vida das populações. A mulher passou a desempenhar novas funções na sociedade, inserindo-se fortemente no mercado de trabalho. Por conseguinte passou a exercer às atividades do lar de forma diferenciada de outros tempos, devido a uma redução no tempo voltado ás atividades domésticas inclusive no preparo da alimentação familiar. Desta forma vários produtos e técnicas utilizadas na área de alimentação modificaram-se radicalmente, pois o preparo de pratos seguindo as receitas tradicionais, demandam um maior tempo de elaboração. A modernidade exige dos indivíduos um perfil diferenciado de outrora, onde observa-se uma padronização de “novos hábitos alimentares”, voltados ao consumo de alimentos industrializados, que em sua maioria vêm prontos ou pré-prontos, conferindo a praticidade necessária a quem está inserido no mercado de trabalho. Alguns fatores podem ser utilizados como base para essa padronização, dentre eles pode-se citar a coação publicitária, status social, prestigio, ou seja, tudo que faça o indivíduo sentir-se pertencente a essa “nova” sociedade. Os indivíduos tinham o hábito de consumir alimentos naturais e saudáveis, pois em sua maioria trabalhavam com agricultura e cultivavam seu próprio alimento, na atualidade destaca-se a alimentação industrializada, na qual as pessoas em geral alimentam-se de produtos aditivados com uma grande quantidade de substâncias químicas. Essa sociedade atual esta cada vez menos saudável, fator resultante de um estilo de vida, em que cada vez mais fica visível sua superficialidade e artificialidade, através da junção de uma vida conturbada, cheia de estresse e sedentarismo, contribuindo assim para que o organismo humano não consiga manter-se saudável, resultando em doenças, como 15 obesidade, hipertensão, diabetes, entre várias outras. Esta situação da saúde da sociedade é preocupante, pois estas doenças estão atingindo cada vez mais jovens, e a população em geral, o que poderia ser evitado de houvesse um consenso entre alimentação saudável, prática de exercícios e atividades cotidianas. Outro fator impulsionador da pesquisa consistiu em investigar, como era a alimentação do município de Baturité há cinquenta anos atrás, para assim caracterizar a cultura gastronômica tradicional desse município, tendo em vista que as raízes gastronômicas locais vêm sendo esquecidas nas últimas décadas, fazendo com que a população jovem desconheça ou não saiba ao certo quais são as tradições gastronômicas de sua cidade O Município de Baturité está localizado na região do Maciço de Baturité, possuindo forte atuação econômica como centro comercial. A cidade teve seu auge comercial com os ciclos do café, que era exportado para o exterior e transportado pela estrada de ferro que vinha até a cidade, como também o ciclo do algodão e muitos outros. Atualmente a economia encontra-se estacionada, sem grandes menções, já que a produção agrícola da cidade abastece somente algumas cidades próximas e uma parte desta produção é comercializada em Fortaleza, capital do Ceará. Com o presente trabalho almeja-se pesquisar e registrar os hábitos e práticas alimentares tradicionais da população baturiteense, bem como entender o que causa pouco interesse e até mesmo a depreciação dos hábitos alimentares tradicionais, tendo em vista que a alimentação sempre foi utilizada para suprir as necessidades físicas e biológicas do ser humano, sendo também considerada como patrimônio histórico-gastronômico de um determinado local e utilizada como fonte de informações necessárias para caracterizar uma sociedade. A alimentação desempenha função muito importante em uma sociedade pois, é em torno da mesa que são realizadas confraternizações, acordos comerciais, transmissão de valores, e repasse das tradições alimentares, reforçado laços afetivos e também familiares. As práticas alimentares utilizadas no dia-a-dia estão vinculadas a valores, crenças, religião, condição social e identidade cultural da civilização. Cada localidade ou região possui suas particularidades. Atualmente a gastronomia está presente em diversas áreas, destacando-se a produção acadêmica, onde os profissionais buscam pesquisar, retratar e registrar situações, produtos e outros recursos disponíveis, importantes para a manutenção das tradições alimentares e/ou de uma nova gastronomia. 16 Este trabalho pretende ser uma fonte de informações relevantes no âmbito do conhecimento gastronômico, servindo de base para o conhecimento da alimentação local, adicionando registros para a Historia da Gastronomia no Estado do Ceará. Os resultados obtidos nessa pesquisa entrevistando habitantes nativos de Baturité poderão ainda subsidiar futuros trabalhos de resgate de cultura alimentar mais aprofundados, uma vez que a contribuição desse resgate, é de extrema importância ao patrimônio imaterial. Para facilitar a compreensão deste trabalho, a monografia está dividida em quatro capítulos. O primeiro capítulo apresenta algumas considerações a respeito da História da alimentação no Brasil, região nordeste e mais especificamente no Ceará, discorrendo sobre as influências recebidas de nossos colonizadores, africanos e os demais estrangeiros, que permanecem na nossa alimentação até os dias atuais. No segundo capítulo aborda-se à importância dos hábitos alimentares tradicionais, discutindo alguns movimentos alimentares que resgatam muitas tradições importantes, investigando os fatores contribuintes para essas mudanças, relata-se também sobre as formas de transmissão dos saberes relacionados a esses hábitos através do registro de algumas receitas passadas de geração em geração, e de prováveis registros esquecidos no tempo. No terceiro capitulo apresenta-se a metodologia utilizada para a realização da pesquisa, retratando as técnicas, formas de registro e captação de informações utilizadas. O quarto capítulo apresenta os resultados da pesquisa de campo realizada na cidade de Baturité, onde serão abordadas as temáticas relacionadas aos hábitos alimentares tradicionais locais como: alimentos, técnicas de preparo, utensílios entre outros. Através da reprodução de trechos das entrevistas realizadas durante a pesquisa.17 2 HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO “A gastronomia é um inventário patrimonial tão importante culturalmente quanto os museus, as festas, as danças e os templos religiosos” (FREIXA; CHAVES, 2008 p.19). A alimentação exerce grande importância na vida dos seres humanos, assim nos explica Rocha (2003, p.10): A alimentação é uma necessidade básica do homem e está presente. Através dos tempos, em todos os grupos sociais. O que comemos, como elaboramos os pratos, o horário, o local e os utensílios usados durante as refeições apresentam variações de acordo com as épocas e as culturas (ROCHA, 2003 p. 10). Analisando os conceitos existentes referentes a historia da alimentação, encontramos Marques (2005) que nos define a mesma como se tratando dos hábitos cultivados durante anos, aos quais pequenas mudanças e introduções são determinantes, criando o que atualmente chamamos de hábitos alimentares. Estes hábitos também são modificados pelas diferenças demográficas, tecnológicas, sociais e econômicas entre os povos. Guta; Dolores (2008) nos informam em seu livro “Gastronomia no Brasil e no mundo” alguns fatos importantíssimos à construção da alimentação que conhecemos nos dias atuais, pois explicam que na pré-historia a alimentação era utilizada como uma forma de sobrevivência, a atividade praticada era unicamente predatória pescavam, caçavam e coletavam seus alimentos. Nesse período a necessidade de buscar alimentos e defender-se dos ataques de outros animais, fez com que o homem se aperfeiçoasse. Elaboraram armas de caça, aprimoraram as técnicas de cozinhar, dividir, armazenar e conservar a comida. E a partir disso o homem passou de nômade a sedentário. De caçadores a coletores, ergueram povoados que tinham como atividade a agricultura e a criação de animais. Desenvolveram as trocas, gerando assim o comércio e desta forma continuaram a “evoluir” e formar as primeiras civilizações até chegar à sociedade que conhecemos. No período pré-histórico o homem dominava varias técnicas voltadas à alimentação, de acordo com Carneiro (2003) foram salgar, secar e estocar, bem como as técnicas de como assar e defumar, desenvolvidas antes mesmo da agricultura, quando os homens ainda eram coletores. Já a técnica de cozimento foi relacionada ao cultivo, colheita e consumo de cereais, e, possivelmente com a fabricação de cerâmica. 18 “O sal era bastante valioso, mas não se sabe bem o porquê. Além de ser um tempero, era também um conservante. É evidente, contudo, que a comida salgada fazia parte da dieta pré-histórica” (FREEDMAN, 2009, p.59). Guta; Dolores em seu livro Gastronomia no Brasil e no mundo (2008) nos falam que com o surgimento das primeiras civilizações cada um desses povos estabeleceu uma organização hierárquica ligada ao comer e beber. Na mesopotâmia os povos desenvolveram receitas onde havia requinte no preparo das comidas reais. Há registros de um receituário em que constam caldos. Usavam temperos como cebola, vinagre, alho, cominho, coentro, alho- poró, sal e ervas como a menta. Fabricavam também pães feitos com farinha proveniente do trigo considerado à época o mais nobre entre os cereais. A gastronomia egípcia refletia alguns traços de sua riqueza cultura, de acordo com Tallet (2005) relata que os egípcios possuíam grande conhecimento com relação ao valor nutricional dos alimentos. Tinham uma dieta á base de legumes, peixes, frutos, verduras, laticínios, mel, óleo de oliva vegetal, pão, vinho e cerveja. Já para os gregos, segundo Paul Freedman (2009) sua culinária era baseada em três dadivas dos deuses, os grãos, o vinho e o óleo, sem os quais as pessoas civilizadas não poderiam viver. A base da refeição grega era o pão feito do trigo e o mingau, a refeição também poderia ser enriquecida com carnes assadas e vegetais, condimentada com ervas, especiarias ou mel. O vinho fazia parte da dieta de todos os gregos, era tão importante que tanto a paixão, quanto as técnicas de produção viajavam com os colonizadores. Os gregos tinham o habito de realizar os simpósios, que tinha por objetivo alimentar o espirito e o corpo, através de discussões intelectuais e transmissão de conhecimento, bem como consumindo os melhores quitutes e vinho diluído. Aproveitando a sabedoria e experiência dos gregos os romanos herdaram alguma ideias, como por exemplo o uso de dois temperos muito apreciados por eles, o sílfio e o infame garum. O sílfio era uma planta nativa do norte da África, parecida com o funcho. Quase todas as partes da planta eram usadas como tempero. O outro tempero bastante usado pelos cozinheiros romanos era o molho de peixe fermentado, assim como nos explica Freedman (2009) em seu livro “A História do Sabor”. “Os utensílios utilizados nas antigas cozinhas são surpreendentemente parecidos com os usados atualmente: frigideiras de cabo comprido, panelas, caçarolas [...]” (FREEDMAN, 2009, p. 93). 19 O cristianismo influenciou enormemente nos padrões alimentares, como nos explica Paul Freedman (2009, p.166): Um dos elementos determinantes mais antigos e contínuos de padrões alimentares era a relação entre dieta e virtude. A partir do século IV, o cristianismo estimulou a abstinência por seus benefícios espirituais. A privação de gordura de carne e de laticínios, consequentemente da carnalidade e seus vícios associados, como gula e luxúria, ajudariam a assegurar a salvação da alma. [...] [...] A compreensão do jejum é, portanto, essencial para identificar as possibilidades da culinária Europa medieval. Em dias de abstinência, o alimento escolhido era peixe, embora não fosse a única opção (FREEDMAN, 2009, p. 166). Os mosteiros exerceram enorme importância na preservação dos conhecimentos clássicos e gastronômicos, segundo Freixa e Chaves (2008) os monges detinham muito dos saberes gastronômicos, através dos manuscritos. Eles também supervisionavam o cultivo das hortas, pomares, criação de animais, o refinamento dos queijos e a produção de bebidas. Nos mosteiro havia uma enorme variedade de alimentos, para Echagüe (1996, p. 188): Havia também nos mosteiros e conventos da Europa muitas variedades de sopa, prato comum em todas as classes sociais da idade média. Os religiosos preparavam sopas de toucinho, peixe, beterraba, espinafre, leite, amêndoas, abóbora, favas secas, vinho e outras (ECHAGÜE, 1996, p.188). Freedman (2009) nos relata que a cozinha medieval era marcada pela paixão por especiarias e sabores fortes. As especiarias eram usadas não só por suas qualidades aromáticas e digestivas, mas também pelas cores que davam à comida. Já o renascimento, para Freixa e Chaves (2008) ficou marcado pelo refinamento italiano no mundo ocidental, fator resultante a influência dos bizantinos. O uso do garfo, os aparelhos de jantar, as peças finas e bem acabadas em metais preciosos, as toalhas ricamente bordadas em linho, porcelanas e as faianças sofisticaram o comportamento à mesa. A Itália influenciou enormemente a gastronomia francesa, “graças à florentina Catarina de Médici, que se casou, em1533,” com quem seria o futuro rei francês, Henrique II” (FEIXA; CHAVES, 2008, p. 81). Ao ir à França “Catarina de Médici levou com ela luxuosos aparelhos de mesa, como porcelanas, toalhas, objetos de ouro e prata e copos de cristal” (ECHAGÜE, 1996, p. 45). O refinamento italiano favoreceu surgimento de novos pratos, até então desconhecidos dos franceses, assim como nos expõe Freedman (2009, p. 220): “A invenção da sobremesa propiciou o surgimento de novas habilidades culinárias”. No mesmo contexto, 20 Lopes (2004) nos explica que ao final das refeições da corte eram servidas as sobremesas feitas com açúcar, desconhecidas dos franceses que tinham o habito de utilizar o mel. Da confeitaria do palácio, surgiram receitas conhecidas ate os dias atuais como os “macarrons, zabaiones, biscoitos deamêndoas, frutas em calda ou cristalizadas, pudins de ovos, geléias e até sorvetes” (LOPES, 2004, p.138). O nascimento da cozinha regional, segundo Freixa e Chaves (2008) deu-se apartir do declínio do feudalismo, no qual o poder na Europa se centralizou nas mãos de uma monarquia absolutista. Esse regime fortaleceu as atividades econômicas e os recém-formados estados modernos, como Portugal, Espanha, França e Inglaterra. Ao mesmo tempo, que valores regionais se solidificavam, surgiu uma grande necessidade de desbravar o mundo, adquirir novos conhecimentos, conquistar riquezas e poder. Em meio aos objetos de desejo estavam as especiarias, símbolo de luxo e poder na época. Portugal e Espanha, os países mais desenvolvidos nas técnicas navais, estavam preparados no século XV para navegar, desbravar mares e conquistar outras terras. As expansões marítimas exerceram papel importantíssimo na disseminação cultural, para Leal (1998, p. 37-38): A grande expansão marítima do inicio da Idade Moderna provocou um enorme intercâmbio cultural entre os europeus e aqueles com os quais mantiveram contato na Ásia, no Brasil, na América e na África. Os navegadores levaram sementes, raízes e cereais para as terras distantes, de volta, traziam as novidades lá experimentadas (LEAL, 1998, p. 37-38). 2.1 Alimentação no Brasil “Repleta de influências, a cozinha brasileira se iniciou com a mistura entre as culturas indígena, portuguesa e africana” (FREIXA; CHAVES, 2008, p.167). “No Brasil, a gastronomia é analisada por sua variedade, fruto da miscigenação cultural em que a grande riqueza está na diversidade” (MASCARENHAS, 2007, p. 65). Desta forma Hamilton (2005) relata que a culinária brasileira tem, portanto influências diversas, como dos nativos, dos colonizadores e dos escravos, além dos imigrantes, que desde o século passado aqui chegaram com seus hábitos e gostos, que hoje fazem parte deste imenso mundo que é o Brasil. Outras contribuições vieram dos holandeses, franceses e ingleses. Apesar de muitas influências, a culinária brasileira é o maravilhoso resultado da junção de hábitos alimentares de vários povos. 21 Segundo Câmara Cascudo (2011), os indígenas manejavam sabiamente a mandioca, sabia diferenciar os dois tipos existentes: a brava e a mansa. Para comer a brava os indígenas utilizam a mesma técnica da época do descobrimento, que consiste em descascar, ralar e espremer no tipiti (cesto cilíndrico de palha) em seguida e torrada para fazer farinha. Já a mansa, chamada de macaxeira ou aipim, pode ser utilizada em várias preparações como bolos, tortas, frita e doces, pois a mesma não necessita passar por nenhum tratamento especifico. Já em seu livro “Historia da alimentação no Brasil” (2004), Câmara Cascudo nos expõe que a alimentação dos indígenas era baseada em alimentos fornecidos pela natureza e não tinha um horário especifico para ocorrer. Costumavam comer farinha de mandioca, mingaus ralos de milho, pescados de rio como piranha, pirarucu, tucunaré e corvina. Dos vegetais que eram mais consumiram encontram-se batata-doce, abóbora, palmito (consumido cozido), feijão e mais uma infinidade de vegetais. Entre os animais de caça consumiam mamíferos, como porco-do-mato, capivara, paca e veado. Apesar de tanta variedade os índios ainda consumiam insetos e larvas das matas, complementando a alimentação com frutas silvestres, abundantes no Brasil antes da chega de Cabral. A chegada dos portugueses influenciou consideravelmente a alimentação nativa, para Freixa; Chaves (2008) os portugueses nos trouxeram inúmeros produtos e técnicas que foram incorporadas a alimentação nativa. Instalaram-se no Brasil com seus bovinos, ovinos, caprinos, suíno, galinhas, pombos e gansos. Aqui cultivavam cana-de-açúcar, coentro, manjericão, cenoura e pepino. Também trouxeram frutas (figo, romã, laranja. Lima, melão, cidra e limão). Técnicas muitos utilizadas na atualidade, como refogar e fritar. Para Cláudia 1999, a mulher portuguesa adequou alguns pratos indígenas a seu paladar lusitano, incorporando, por exemplo, o mel e o açúcar ao mingau de carimã. Com a farinha de carimã surgiram os primeiros bolos brasileiros, com leite de vaca e ovo de galinha. Outra influencia forte na culinária brasileira foi à africana. De acordo com Câmara Cascudo (2004), da África vieram espécies alimentares como sementes, raízes e bulbos. A mandioca, milho, batata e amendoim tiveram uma incrível disseminação em solo brasileiro. Os africanos trouxeram o angu, a papa, o pirão, a espiga de milho assada, e o óleo de dendê, iguaria africana apreciada no Brasil por proporcionar ao alimento sabor, cor e aroma peculiar. Para Freixa; Chaves (2008), os africanos contribuíram bastante para a formação da gastronomia brasileira, iniciando pelo azeite-de-dendê, coqueiro, quiabo, inhame, galinha- d‟angola e uma variedade de bananas, como a nanica, maçã, a prata e a ouro. Os africanos consumiam mistura de melaço com farinha de mandioca, cozido de farinha de mandioca com 22 pedaços de carne curada, abobora, feijão preto com toucinho, mungunzá e angu. Também saboreavam banana com melaço de cana, caldo de cana e a famosa cachaça. De acordo com a região do Brasil os hábitos alimentares vão modificando-se. Assim nos explica o Ministério da Saúde apud Lima Santos et al. (2009). Os padrões alimentares variam entre as diferentes regiões do Brasil, dependendo do clima, das condições de produção de alimentos, das condições socioeconômicas da população e suas características culturais. A alimentação brasileira, de maneira geral, foi influenciada pelos povos que constituíram a nação na sua origem e o padrão alimentar nas diferentes regiões varia de acordo com a extensão da influência de um ou mais dos grupos étnicos. Apesar disso, algumas características comuns na alimentação dos brasileiros permanecem consolidadas a partir do sistema de produção alimentar nacional, apesar das especificidades regionais ou culturais (BRASIL, 2006 apud LIMA SANTOS et al, 2009). A região nordeste teve sua culinária influenciada por diversos povos, como nos expõe a Cartilha do Ministério da Educação, sobre a alimentação e nutrição no Brasil I (2007, p. 53): Em todos os estados da Região Nordeste, desde o Maranhão até a Bahia, influências de diversos países, somadas as práticas dos índios de comer farinha de mandioca, milho, carnes, peixes e frutas silvestres, resultaram em uma cozinha rica e variada, que, com o passar do tempo, caracterizou a comida do Nordeste. Na maioria dos estados, as influências estrangeiras foram preservadas. Podemos citar a galinha ao molho pardo, feita com o sangue da galinha dissolvido em vinagre, como sendo uma adaptação da “galinha-de-cabidela” de Portugal. Já a carne-de-sol, alimento indispensável no Nordeste, teve origem, possivelmente, no hábito dos índios de assar a caca ao moquém para conservá-la por algumas semanas (Brasil, 2007, p. 53). A região nordeste é rica em frutas tropicais, segundo o Ministério da saúde (2002), tais como acerola, cacau, siriguela, coco, fruta pão, gergelim, juá, graviola, pinha, pitomba, sapotá, saputi, tamarindo e umbu. Entre as hortaliças destacam-se o caruru ou bredo, jerimum, jurubeba, maxixe, palma, taioba e vinagreira. Dentre as leguminosas podemos citar a algaroba, feijão-de-corda e sorgo. A batata-doce, o cará, o inhame, a mandioca estão entre os tubérculos mais utilizados. Na região nordeste há uma enorme variedade de pratos, para o Ministério da Educação (2007, p. 53): [...] os pratos a base de feijões, inhame, macaxeira, leite de coco, azeite de dendê, doces, peixes, crustáceos e frutas nativas são os mais encontrados, destacando-se na região a culinária baiana, com uma grande influência africana, e a de Pernambuco, com pratos como buchada de bode e alfenins, um doce de açúcar branco de cana-de-açúcar (BRASIL, 2007, p.53). 23 Os hábitos alimentares da região nordeste são determinados por vários fatores, entre eles o fato de todos os seus estados serem banhados pelo mar estimulando o consumo de peixes, camarões, lagostas, lulas e mariscos na região litorânea. Cidades próximas a mangues, rios e lagoas desfrutam da fartura de caranguejos, pitus e sururus. Já no interior nordestino, tradicionalmente, há o costume de se consumir carne de bode, de carneiro e de boi, sendo esta última, em especial, sob a forma de carne-de-sol ou carne-seca, se diferenciando de acordo com o teor de sal que apresentam. Da agricultura, de modo geral, obtém-se em abundância: coco de dendê, jerimum, macaxeira, milho e frutas, como abacaxi, acerola, cajá, caju, carambola, siriguela, coco, goiaba, graviola, jaca, manga, mangaba, maracujá, pitanga, sapoti (CAMPOS et al, 2008). Para Rocha (2003), a culinária cearense pode ser caracterizada entre as regiões, sertaneja, serrana e litorânea. Cada região tem as suas receitas com características próprias, embora as diversas preparações possam ser vistas em todas as regiões, como o baião-de-dois, a paçoca, a carne do sol com jerimum, a peixada cearense e a salada de feijão verde. Este autor nos traz em seu livro “Sabores e sabres do Ceará”, alguns pratos típicos do sertão, dentre eles pode-se citar a paçoca, a carne-de-sol assada ou cozida com jerimum. A paçoca se destaca como um dos pratos mais comuns da cozinha cearense. Para preparar esta iguaria usa- se carne-de-sol, farinha, cebola e óleo. A carne é assada e depois misturada com farinha. Essa mistura é triturada no pilão até que a carne fique rasgada e agregada à farinha. Dentre as receitas da serra estão o baião-de-dois e a galinha à cabidela. O baião-de-dois é feito de arroz e feijão, podendo ser acrescentado queijo, cheiro verde, alho, pimenta, manteiga-da-terra e maxixe. Este prato é de origem portuguesa, comum no Norte de Portugal. Para a preparação pode ser utilizado o feijão verde, o feijão-de-corda ou o feijão mulatinho. Segundo Oliveira et al. (2004) a fava ou feijão-fava é considerada uma alternativa de renda e fonte alimentar para os nordestinos, já que tem-se o habito de comer os grãos maduros, secos e verdes. “A salada de feijão verde é uma mistura de feijão verde, batata, cenoura, vagens, tomate, pimentão, azeite, creme de leite e alface” (LIMA, 1957 apud LIMA SANTOS et al., 2009, p.5). Rocha (2003) relata mais algumas preparações tipicamente cearenses. O peixe é preparado com o leite de coco, batata, repolho, pimenta, cheiro-verde, pimentão e alho. Além do peixe o caranguejo é muito apreciado pelos cearenses. A caranguejada é feita com caranguejo inteiro e cozido. Tem o sabor arquetípico da cozinha cearense, compondo o elenco gustativo da cultura gastronômica. 24 A alimentação do cearense é bem variada, segundo Lima (1957) apud LIMA SANTOS et al., há um fator determinante para a definição da quantidade e diversificação nas refeições: O cearense, dependendo de seu poder aquisitivo, costuma fazer as três refeições principais e dois lanches, um pela manhã e outro à tarde. A começar pelo café da manhã está sempre presente a mesa o café, que pode ser acompanhado ou não de leite, a tapioca, o cuscuz ou algum tipo de bolo, seja de alimento regional ou não. O bolo de batata é muito apreciado. É preparado com batata, ovo, queijo, leite e farinha de trigo (LIMA, 1957 apud LIMA SANTOS et al, 2009). A tapioca também faz parte da alimentação do cearense, segundo rocha (2003) ela é feita com fécula de mandioca, coco ralado, água e sal, e pode-se colocar manteiga enquanto estiver quente, para o recheio, pode ser utilizado o queijo de coalho, carne-de-sol, banana frita, doce de goiaba com queijo, carne de caranguejo ou outros ingredientes. 25 3 HÁBITOS TRADICIONAIS “Algumas práticas alimentares ocultam-se aos poucos, enquanto outras se enraízam nos hábitos alimentares, sendo capazes assim de se tornarem patrimônio cultural” (Maluf, 2007, apud LIMA SANTOS, 2009, p.2). “A cozinha de um povo constitui um traço marcante de sua cultura, pois resulta das características físicas do local onde vivem, de sua formação étnica e de suas crenças religiosas e politicas (LEAL, 1998. p.13).” Segundo Petrini (2009, p.57) “As culturas tradicionais criaram um patrimônio gigantesco de receitas, preparo e tratamento dos ingredientes locais.” Desta forma, caracterizando-se os hábitos de uma sociedade, que por muita vezes perpassam por gerações. A culinária representa muita para a sociedade, pela sua simbolização e importância, como nos explica Leal (1998) em seu livro A historia da gastronomia: [...] o ato de comer tem um sentido simbólico para o homem. Comer do mesmo pão, por exemplo, é alimentar-se juntos, é sinal de fraternidade, solidariedade e companheirismo. Dai a expressão com pão ter dado origem à palavra companheiro e a expressão crias com o alimento ter dado origem a palavra aluno. [..] a tradição esta no saber do povo, é ligada à terra e a exploração dos produtos da região e das estações. (LEAL, 1998. p.08) Nesse contexto, Leal (1998) relata o fato de “a cozinha ter acompanhado o homem através dos tempos, misturando ingredientes, técnicas, usos e costumes, regras morais e religiosas, aspectos geográficos, políticos e sociais” (1998, p.98). Para o livro A historia da gastronomia a culinária teve sua origem: [...] sua origem foi sempre regional, embora não ficasse restrita a esses limites. Ela acabava viajando para outras regiões, viagem essa que se tornou cada vez mais acelerada, possibilitando que diferentes cozinhas se espalhassem pelo mundo afora. Atualmente, os segredos da culinária correm rapidamente de uma região para outra [...] (LEAL, 1998, p.98). A culinária também é utilizada para expressar a relação dos seres humanos com o ambiente em que vive, utilizando todos os componentes que estiverem disponíveis na natureza, como nos relata Araújo et al. (2005). Com o passar das décadas ocorreram várias transformações na sociedade, “nos últimos cinquenta anos: um processo revolucionário originou um dualismo entre cozinha tradicional e os métodos de produção industriais (PETRINI, 2009, p.79), desta forma, ocorreram também diversas transformações com a alimentação de muitos lugares, porém 26 essas transformações não são um fator determinante para todas as culturas. Segundo Garcia (2003) os hábitos alimentares que estão solidificados conseguem resistir à padronização alimentar, pois a existência ou não de tradição, esclarece a vulnerabilidade de algumas culturas a padrões alimentares provenientes da globalização. Já para Ortiz (1994), há alteração dos hábitos alimentares quando existe uma redefinição do significado de refeição, para ele o momento da refeição é “[...] momento ritualístico de reunião dos membros da família, como um dos pilares de grupo familiar, pois a partilha da mesma mesa asseguraria uma unidade à vida doméstica” (ORTIZ, 1994, p.45). “A mesa é o centro das relações. Simboliza organização, crítica familiar, alegrias, dissabores, novidades. Extinguir refeições regulares desestrutura o contato assíduo, indisciplina apetites, induz à solidão” (ARAÚJO et al., 2005, p.10). 3.1 Slow Food X Confort Food: relevância na sociedade moderna Com o surgimento dos “alimentos parcial ou inteiramente processados, e mesmo alguns prontos para ser consumidos, grande parte do trabalho de preparações das refeições passava a ser feito fora de casa”. Teve-se o inicio de um “processo de profundas transformações na culinária, nos hábitos alimentares e na estrutura doméstica” (FRANCO, 2001, p.223). Segundo Santos (2005), uma das grandes mudanças foi à implementação, da “cozinha dos fast foods do McDonald‟s”, que está na ativa desdeo século passado e se mantém até os dias atuais. “Vivemos, hoje, a MacDonaldização do mundo, prevalecendo um gosto pasteurizado e homogêneo, sem graça” (SANTOS, 2005, p.21). “A mecanização dos trabalhos domésticos se refletiria nos hábitos alimentares e na estrutura da vida familiar e social. O próprio ritmo da vida passou a exigir refeições mais simples (FRANCO, 2001, p.240)”. O autor também nos dá uma das possíveis causas para o grande sucesso das redes de fast food, desde sua implementação: Sua proliferação se explica também pela emancipação e autonomia financeira da juventude, pela distância entre a casa e os locais de trabalho, estudo e lazer, cem como pela dessacralização da refeição em família na sociedade pós-industrial. Além disso, para o jovem comer fora é símbolo de independência (FRANCO, 2001, p.242). Segundo Franco (2001) “a McDonalnização é conceito que engloba muito mais do que o alto grau de racionalização desenvolvido pela empresa McDonald‟s, tomando-a 27 como paradigma do processo de maximização da produtividade” (FRANCO, 2001, p.243). A McDonalnização deixa marcado nos estabelecimentos de fast food seus traços, como nos explica Franco (2001, p. 243): [...] Desritualização da refeição; Simplificação e homogeneização dos processos culinários e dos alimentos servidos; Referência enfática ao tamanho e à quantidade dos produtos vendidos, quase nunca à quantidade. Donde o uso frequente de adjetivos como big e super na nomenclatura dos produtos; Atendimento da clientela com um mínimo de comunicação verbal, com fórmulas despersonalizadas e estereotipadas; Emprego de mão de obra jovem, cujo treinamento se resume em aprender gestos simplificados, repetitivos e automáticos; Alta rotatividade da mão de obra, em decorrência da insuportável monotonia do trabalho tão altamente racionalizado; Desumanização das reações entre os membro com a clientela; Esvaziamento da refeição de seus elementos de ritual de comunicação e intercâmbio humano, transformando-se esta em mera operação de reabastecimento; Generalização paulatina de refeições doméstica calcadas no modelo fast food, até mesmo em ocasiões festivas; Substituição dos utensílios de mesa por equivalentes descartáveis; Preferência pela previsibilidade de uma refeição, em vez da surpresa que ela possa oferecer (FRANCO, 2001, p.243). Com a correria do dia-a-dia, “o fast food tornou-se assim uma alternativa rápida de refeição, porém na maior parte das vezes carecendo de aporte nutritivo.” Como as pessoas não tinham mais tempo para preparar seu alimento, as comidas de fast food “passaram a satisfazer minimamente as exigências do paladar” (BLEIL, 1998, p.17). Franco (2001) retrata em seu livro De Caçador a Gourmet o poder que a indústria de fast food “exerce sobre crianças e adolescentes [...] a indústria de fast food tornará muitos deles, adultos afeito pela vida inteira, à dietas com excesso de sal, gordura e açúcar”. “A tendência em comer demais é típica das sociedades industriais” (BLEIL, 1998 apud PINHEIRO, 2005). Esse amplo consumo traz vários problemas, dentre eles Franco (2001) cita: À medida que o fast food se expande, cresce o numero de menores obesos e com outros problemas de saúde decorrentes de desequilíbrio dietético. Aumentarão, portanto, os riscos de carências, e pode-se prever que será ainda mais comum a venda de vitaminas e outros suplementos alimentares nos supermercados e estabelecimentos afins (FRANCO, 2001, p.250). Apesar destes fatores negativos relatados sobre os diversos problemas causados pela “alimentação rápida”, Franco também nos diz que “o fast food não pode ser considerado, [...] mero indicio de regressão gastronômica, pois [..] satisfaz a necessidade atual de rapidez e responde à demanda de relações impessoais decorrentes da cultura urbana e de seu ritmo (FRANCO, 2001, p.242)”. 28 Bleil (1998) deixa claro que com a implantação da indústria dos fast foods “começam a desaparecer os rituais que acompanham o ato de alimentar-se. A relação de afeto que, antes, permeava a refeição nas trocas familiares e entre amigos, hoje, cede lugar à alimentação cujo parceiro é o aparelho de televisão” (BLEIL, 1998 apud PINHEIRO, 2005). Desta forma, surgiram movimentos de resistência ao fast food. Dentre eles podemos destacar o Slow Food, “[...] movimento de defesa da cozinha regional e da tradição à mesa, [...]. “[...] se valoriza uma alimentação mais saudável e natural, menos industrializada, como a orgânica e a biodinâmica” (FREIXA; CHAVES, 2008, p.255). “Liderado pelo gastrônomo e sociólogo italiano Carlo Petrini em 1986, o movimento queria resgatar nada mais que a essência do convívio à mesa, do comer e beber devagar, e preservar as tradições de receitas e ingredientes regionais que se perderam com a globalização” (FREIXA; CHAVES, 2008, p.256). Para Freedman (2009) “a crítica politica dos anos 1970 às transformações na indústria alimentícia levou diretamente ao estabelecimento do movimento Slow Food na Itália, em 1986” apesar do movimento ter iniciado suas atividades na década de 90, só aumentou sua popularidade e: Atualmente, o Slow food contem milhares de membros em mais de quarenta países. O movimento visa opor-se à “padronização global dos alimentos do mundo” pela promoção da diversidade, autenticidade e gastronomia ecológica. A base ideológica inicial veio de jovens de esquerda, mas logo grupos maiores se envolveram. O interessante é que, ao se opor à eficiência, à internacionalização e à comercialização da moderna indústria alimentícia (simbolizada pelo McDonald), esse movimento deveria ser considerado como inovador e não conservador, estimulando o interesse em receitas, produtos, sabores e técnicas regionais. Toda via o movimento Slow Food tem sido criticado por sua invenção da tradição e autenticidade (FREEDMAN, 2009, p.348). “O slow food é, portanto, um movimento internacional pela educação do gosto e pela biodiversidade alimentar”. E reúne todos os fatores “que possam embasar a defesa da boa comida, dos produtos originais e de qualidade” (SANTOS, 2005, p.24). Para Freedman (2009), o movimento “Slow Food é apenas uma das críticas mais recentes à sociedade de consumo”, pois após a guerra, os consumidores fundaram organizações que não eram contrárias as inovações na área de alimentação, porém faziam o monitoramento e orientavam o desenvolvimento e distribuição desses produtos. (FREEDMAN, 2009, p.349). “O ato de sentar-se à mesa para apreciar uma boa refeição junto com a família e os amigos é uma fonte de prazer. Tudo isso se perde quando a pressa em se alimentar toma 29 conta de nosso dia-a-dia” (FREIXA; CHAVES, 2008, p.255). “Como reação ao ato cotidiano de comer rapidamente, que traz consequências como estresse e desequilíbrio à saúde [...]” (FREIXA; CHAVES, 2008, p.256). “O excesso de novidades, na prática e nos discursos, parece ter contribuído para sentimentos de insegurança nos anos 1980 e 1990, que por sua vez despertaram novo interesse por hábitos alimentares tradicionais” (FREEDMAN, 2009, p.357). Freedman (2009) nos diz ainda, que um dos maiores interesses do slow food é pela autenticidade do terrois¹. “Mas ao mesmo tempo em que há uma preocupação com a tradição no preparo dos vários pratos, também se observa um movimento de grande inovação na culinária” (LEAL, 1998, p.99). “Muitos pratos têm sido recriados, de acordo com as possibilidades locais, dando origem a novas interpretações” (LEAL, 1998, p.100). O slow food desempenha um papel importantíssimo na manutenção dos traços de nossa cultura gastronômica. Paralelamente a este movimento surgem tendências gastronômicas, que pode se manifestar através de diversas temáticas, podendo-se citar dentre estas o confort food, que para Marinho et al. (2012), valoriza os diversos rituais associados à alimentação, onde “ospratos típicos são servidos e tem seus sabores impregnados na memória gustativa e, sobretudo nas lembranças afetivas [...]”, trazendo à nossa mente uma idéia de “comida feita em casa” ou mesmo comida que conforta como o nome da tendência já deixa explicito (MARINHO et al., 2012, p. 4). O slow food apenas abriu as portas a movimentos como confort e a ecogastronomia, segundo Petrini (2009) nos relata sobre mais uma tendência: [...] ecogastronomia: a matéria-prima deve ser cultiva e produzida de modo sustentável, e a biodiversidade e as tradições alimentares e produtivas locais devem ser salvaguardadas a qualquer custo (PETRINI, 2009, p.18). 3.2 O saber transmitido: de pai para filhos “Os antropólogos consideram a alimentação um aspecto fundamental das culturas que estudam” (Renato Ortiz, p. 89 apud FRANCO, 2001, p.248). “Graças à antropologia, sabe-se hoje que a preparação dos alimentos e o comer são também atividades simbólicas que permitem perceber as sociedades e sua complexidade” (FRANCO, 2001, p.248). ____________________________ ¹ Termo francês que significa solo e chão. Diz-se que um vinho tem goût de terroir (gosto do solo) quando reúne certas características e nuances de gostos e sabores típicos do solo no qual foi produzido (PACHECO, 1996, p.167). 30 “O alimento constitui uma categoria histórica, pois os padrões de permanência e mudanças dos hábitos e práticas alimentares têm referências na própria dinâmica social”. “Os alimentos não são somente alimentos. Alimentar-se é um ato nutricional, comer é um ato social, pois constitui atitudes ligadas aos usos, costumes, protocolos, condutas e situações” (SANTOS, 2005, p.12). Vedana (2004) apud Oliveira et al. (2012) relata um fato importantíssimo que outrora era corriqueiro em nossa sociedade relacionado a transmissão de saberes. [...] no mundo íntimo da cozinha e de seus fazeres ordinários estão colocadas as experiências “milenares” da aquisição de saberes sobre alimentação e a produção de comida, que desdobram-se em formas diversas de imbuir-se das artes de nutrir, a partir da inscrição de uma temporalidade que transforma ou “deforma” estes atos e gestos de estar em contato com os alimentos, manipulá-los e oferecê-los a outrem (OLIVEIRA et al., 2012, p.3). “Entre o comer e o cozinhar desenrolam-se os meandros da memória e dos saberes adquiridos “à beira do fogão”, que são reinventados e restaurados por cada aprendiz” (OLIVEIRA et al., 2012, p.3). “O prato nacional é um produto do gênio coletivo: ninguém o inventou e inventaram-no todos: vem-se ao mundo chorando por ele, e quando se deixa a pátria, lá longe, antes do pai e da mãe, é a primeira coisa que lembra” (CASCUDO, 1983 apud LEAL, 1998, p.101). O conhecimento gastronômico é passado de geração para geração. Segundo Oliveira et al. (2012), a aprendizado se dá da seguinte forma: [...] o aprendizado se dá desde a infância, através de figuras familiares como a mãe e a irmã mais velha. Esse aprendizado pode se dá principalmente por uma necessidade, ou por simples convenção, “toda mulher deve aprender a cozinhar desde cedo”, existe uma tradição de transmissão oral do saber-fazer culinário pela figura feminina (OLIVEIRA et al., 2012, p.3). Segundo Neto (1986) apud Oliveira et al. (2012), “a tradição e o “tipismo” em matéria culinária vão além do cozimento dos pratos” são: São também importantes os chamados acompanhamentos, a maneira de servir e a de comer, a oportunidade indicada para preparar cada um, a decoração da mesa e até do ambiente, tudo isso construído em hábitos que compõem globalmente a tradição culinária e marcam um traço cultural específico de uma comunidade. (Neto, 1986 apud OLIVEIRA et al., 2012, p.3) 31 Para Oliveira et al. (2012), as pessoas que praticam os saberes alimentares não consultam livros ou cadernos de receitas para fazer a elaboração dos pratos. Durante muito tempo cozinhando e repetindo por vezes o mesmo prato e “o aprendizado que se deu pela observação da figura materna ou fraterna preparando os alimentos, a memória visual e gustativa, associado à necessidade de preparo rápido pode justificar a não utilização dos livros” (OLIVEIRA et al. .2012, p.3). “As técnicas culinárias desapareceram aos poucos das casas, da bagagem de conhecimentos compartilhada. Em muitos casos, os cozinheiros profissionais são os únicos depositários desse know-how formado em séculos de prática” (PETRINI, 2009, p.79). Petrini (2009), ainda nos relata a consequência da industrialização na transmissão dos saberes gastronômicos: [...] a industrialização, os saberes antigos foram transferidos para locais de produção cada vez mais centralizados, e a produção de alimentos foi delegada a quem sabe produzir em massa, com técnicas muito sofisticadas, de modo algum reproduzíveis em casa (um bom exemplo é a indústria dos aromas). Essa transferência de conhecimento nos privou da capacidade de transformar o nosso alimento. Firmou-se o predomínio de tecnologia alimentar de molde industrial sobre os métodos tradicionais, que antes eram parte da bagagem popular cultural, mas, porque considerados não dignos de atenção cientifica , foram se apagando até quase desaparecerem. Para muitos, cozinhar se tornou sobretudo o ato de querer comidas pré-cozidas e congeladas (PETRINI, 2009, p.79). 3.3 Mudanças nos hábitos alimentares O mundo sofreu uma série de transformações, e estas trouxeram uma série de consequências, como nos explica Bleil (1998, p. 186) apud Lima Santos (2009): Desde a metade do século passado, o mundo sofre uma série de transformações entre as quais, as mais perceptíveis foram os fenômenos de urbanização e globalização. As expectativas de consumo, orientando as escolhas para alimentos mais condizentes com o novo estilo de vida, são menos satisfatórios ao paladar a ao aporte nutritivo do que no padrão anterior a estes „tempos modernos‟ (BLEIL, 1998 apud LIMA SANTOS, 2009, p. 186). “O fenômeno de globalização e industrialização atua como fator determinante na modificação dos hábitos alimentares, gerando transformações no estilo de vida de, praticamente, toda a população mundial” (BLEIL, 1998 apud LIMA SANTOS, 2009, p. 186). A inserção da mulher no mercado de trabalho contribuiu para essas mudanças de hábitos alimentares. “O aumento do número de mulheres exercendo atividades profissionais 32 favorecera o processo de transferência para fora de casa, das atividades relacionadas com a alimentação” (FRANCO, 2001, p.249). Canesqui; Garcia (2005, p.196) nos afirma a participação na alteração de hábitos que a urbanização e industrialização causaram. A urbanização e a industrialização alteraram o modo de vida, as formas e os ritmos de trabalho, com reflexos nos modos de consumo e nas suas ocasiões, especialmente reduzindo o número de refeições, tornadas mais tardias do que na zona rural. Uma vez na cidade, no intervalo entre a primeira e a segunda pesquisas, três refeições eram feitas ao dia, intercaladas pelos lanches rápidos tomados durante a tarde, o que se verificou mais freqüentemente por ocasião da segunda pesquisa do que da primeira. (CANESQUI; GARCIA; 2005, p.196). As tecnologias contribuíram enormemente na inserção de novas técnicas, utensílios, produtos entre outros. “As novas tecnologias não revolucionaram apenas a cozinha, mas os hábitos alimentares dos tempos modernos: maior rapidez na cocção, a possibilidade segura de conservação dos alimentos por mais tempo e a maior diversidade de receitas que poderiam ser feitas” (FREIXA; CHAVES, 2008, p.141). Segundo Franco (2001, p.239), “os utensílios de cozinha passaram por grandes transformações. Depois de 1914, muitas empresas metalúrgicas começaram a produzi-los, substituindo o cobre por alumínio, níquel e metal inoxidável” e simultaneamente os equipamentos de cozinha:Simultaneamente, o equipamento das cozinhas evoluiu. Geladeiras para uso domestico havia sido lançadas no mercado por volta de 1865. Em 1851, na Grande Expansão de Londres, apresentou-se ao publico o primeiro modelo de fogão a gás. A inovação oferecia a importante vantagem da chama continua e facilmente regulável. O fogão elétrico só apareceu em 1891(FRANCO, 2001, p.239). “Os processos da zootecnia, da pasteurização, da técnica de conservação em lata e por refrigeração ou congelamento transformaram radicalmente o mercado de alimentos e seu sistema de distribuição” (FRANCO, 2001, p.239). “[...] a pós-modernização, embalada pela globalização, tem imposto novas formas de consumo alimentar, tem afetado o nosso paladar e os aportes nutritivos, trazendo novos padrões alimentares, novos costumes, hábitos e práticas alimentares” (SANTOS, 2005, p.22). “As preferências alimentares na sociedade moderna estão cada vez mais influenciadas pela publicidade” (Shack. p.117 apud FRANCO, 2001, p. 242 ). “Mudanças de práticas alimentares são manifestação de transformações mais profundas na vida da família e da sociedade em geral. O sucesso do fast-food deve ser 33 considerado, [...], expressão de um fenômeno amplo, [...], a McDonalnização da própria sociedade” (FRANCO, 2001, p.242). Segundo Franco (2001, p. 240), a indústria foi decisiva para o estabelecimento de um intercâmbio de padrões alimentares. A indústria de alimentos, cuja produção é objeto de intenso comércio internacional, contribuiu de maneira decisiva para maior intercâmbio de padrões de alimentação. Criou-se uma situação em que as cozinhas e os usos alimentares, sobretudo nos países industrializados, assemelham mais e mais (FRANCO, 2001, p.240). Franco (2001, p.223), afirma “que os primeiros alimentos industrializados eram insípidos, fato que dificultava a sua aceitação”. Desta forma fazia-se necessário a realização de alguma técnica para atrair a atenção do consumidor: [...] era necessário persuadir os consumidores a adotar novos padrões alimentares. A fim de criar mercado para toda uma nova gama de produtos, desenvolveram-se a publicidade e suas técnicas. A publicidade surgia também para compensar a distância entre o produtor e o consumidor, decorrente da produção em massa e do sistema de venda por atacado da sociedade industrial. Buscando ao mesmo tempo ganhar maior confiança do comprador, os rótulos e a publicidade destacavam as medalhas e os prêmios recebidos pelo produto em feiras e exposições. Os consumidores eram aconselhados a recusar as imitações e a exigir o produto “verdadeiro” (FRANCO, 2001, p.223). Franco (2001, p.223), também nos relata outro fator que “[...] constitui barreira psicológica para a aceitação mais ampla dos produtos industrializados”, sendo este fator (p.222): A adulteração dos alimentos tornou-se um problema grave, sobretudo para os que não podiam comprar os produtos da melhor qualidade. Chá podia ser podia ser misturado com folha de batata, chocolate em pó de tijolo, farinha de trigo com gesso, massa de pão com alume e leite com água e giz em pó. A adulteração decorria, em parte, de um fato novo: um número crescente de pessoas distanciadas das atividades rurais e, portanto, cada vez mais dependentes de outras para se suprirem de alimentos (FRANCO, 2001, p.222). “A adoção de mercadorias rotuladas, com marca, e a utilização de testes para garantir a integridade dos alimentos contribuíram para coibi-la” (FRANCO, 2001, p.223). “Esses fatores, somados ao transporte aéreo rápido, ocasionaram a internacionalização da culinária” (FRANCO, 2001, p.240). As modernas técnicas facilitaram o comercio e exportação de uma enorme variedade de produtos. Segundo Leal (1998, p.99) vários fatores também ajudaram a possibilitar esse feito: 34 São os meios de transporte cada vez mais aperfeiçoados que deslocam grandes quantidades de mercadorias de um local para outro, em pouquíssimo tempo. Um ingrediente de um país, ainda que raro, pode chegar rapidamente a um outro extremo do mundo, possibilitando a preparação das mais variadas receitas. São os meios de comunicação interligando as diversas partes do planeta, quase que instantaneamente, permitindo a divulgação rápida de usos e costumes, inclusive daqueles relacionados à culinária. São as viagens e as migrações dos povos que levam hábitos culinários, receitas e ingredientes de um lugar para outro, permitindo que pratos típicos de uma região sejam elaborados em outra região, mesmo que elas tenham diferenças significativas (LEAL, 1998, p.99). “Tudo isso vem aumentando o intercambio de hábitos alimentares, tornando as cozinhas dos vários países cada vez mais parecidas, em especial, nos grandes centros industrializados. É a tão falada globalização, que chega também a cozinha” (LEAL, 1998, p.99). Segundo Bleil apud Pinheiro (2005), estas mudanças nos hábitos alimentares, apresentam dois aspectos, quando relacionado à saúde: Apresenta duas facetas quando relacionado à saúde: a diminuição das necessidades calóricas da população, decorrente de mudanças no perfil ocupacional e o lazer dos indivíduos; a redução da qualidade dos alimentos, decorrente do aumento da oferta de produtos industrializados, do valor publicitário que se atribui a eles e da sua praticidade, aparentemente, tão adequada ao novo estilo de vida (BLEIL, 1998 apud PINHEIRO, 2005, p. 186). Bleil (1998, p.9), chama nossa atenção para outra consequência do novo estilo de vida: Outra questão pouco discutida é a dissolução crescente dos rituais que acompanham o ato alimentar. A vida nas cidades grandes minimizou a importância do ato alimentar. Parece não importar muito o que se come, com que se come e como se come. O típico habitante da cidade grande come no intervalo de almoço um sanduíche, ou um pedaço de pizza, e bebe um refrigerante, sozinho e de pé, no balcão de alguma lanchonete (BLEIL, 1998, p9.). Segundo Franco (2001, p.249), essa dissolução acarretaria consequências negativas ao convívio familiar “unidade social”: Assim, será acentuada a dessacralização da refeição em família. Consequentemente, a cozinha materna e os hábitos alimentares da família perderão importância na formação do gosto. Nos grandes centros urbanos, a refeição familiar símbolo da vida domestica, tenderá a ser semanal. Quando a família se reunir diariamente para comer será provavelmente ao jantar. Tais fatos serão concomitantes ao enfraquecimento da função do espaço familiar como unidade social (FRANCO, 2001, p.249). 35 Apesar de várias fontes discorrerem sobre os fatores que causaram a mudança de hábitos no mundo, segundo Fonseca et al. (2011, p.3860) “no Brasil, os estudos ainda são insuficientes para gerar uma teoria contemporânea que possa dar conta do fenômeno das mudanças no padrão alimentar”. 36 4. METODOLOGIA Segundo Tozoni-Reis (2007) a metodologia qualitativa tem sido utilizada para conceituar investigações cientificas que levam em consideração a importância dos aspectos qualitativos da realidade que utilizam-se de instrumentos próprios que buscam revelar, compreender, analisar e interpretar. Onde se responde, não somente ao questionamento “o que é isso?”, mas sim “porque é isso”. A pesquisa é do tipo qualitativa, cuja base é entendida como capaz de incorporar aos atos, às relações e às estruturas sociais a questão do significado e da intencionalidade, decorrentes de construções humanas significativas. Estudos qualitativos possibilitam a investigação de hábitos alimentares, a partir de observações cuidadosas e relatos dos sujeitos sobre a significação desse objeto da cultura. Em cada contexto específico, códigos da cultura podem ser decifrados e representações sociais podem justificarcondutas, hábitos, valores (MINAYO, 2008; FREITAS; MINAYO, 2009 apud PAIVA, 2011). Para que haja a concretização dos objetivos propostos, este trabalho foi dividido em duas etapas principais que tratam sobre: revisão bibliográfica e pesquisa de campo. A revisão bibliográfica se deu a partir da consulta em livros, artigos técnicos, trabalhos de conclusão de curso e internet, com intuito de aprimorarem-se os conhecimentos na área de estudo, focando em trabalhos anteriores que falassem de hábitos alimentares, gastronomia do Brasil, gastronomia de Baturité (quase que inexistente), mudança de hábitos alimentares, etc. Segundo Severino (2007) a pesquisa bibliográfica trata-se de um estudo realizado apartir de dados já existentes, em livros, teses, artigos, etc. Para este trabalho utilizaram-se técnicas de coleta de dados próprios de estudos etnográficos, tendo em vista que segundo Severino (2007) a pesquisa etnográfica: [...] visa compreender, na sua cotidianidade, os processos do dia-a-dia em suas diversas modalidades. Trata-se de um mergulho no microssocial, olhado com uma lente de aumento. Aplica-se métodos e técnicas compatíveis com a abordagem qualitativa. Utiliza-se do método etnográfico, descritivo por excelência. (SEVERINO, 2007, p. 119). O trabalho de campo foi realizado com observações participante e entrevistas semi estruturadas que segundo Matos e Vieira (2001) citado por Lima (2008) é: [...] modalidade de entrevista na qual, o entrevistado fala sobre tópicos relacionados a um tema específico, definido previamente pelo pesquisador. Nele, recomenda-se que seja observada uma sequência lógica de pensamento, para que o roteiro seja compreensível ao entrevistado, procurando obter respostas de maneira clara, 37 facilitando sua análise. Essa modalidade de entrevista é mais aberta que a estruturada, e possibilita maior flexibilidade nas respostas e nas falas, o que pode contribuir com o enriquecimento de dados para pesquisa. (MATOS; VIERA, 2001, p. 63 apud LIMA, 2008). A entrevista semi estruturada “combina questões pré-estabelecidas e abertas, o que possibilita ao entrevistado discorrer sobre o assunto proposto, sem se prender à indagação formulada” (MINAYO, 2008, p.64). As entrevistas individuais foram realizadas nas residências de 10 moradores em sua maioria naturais ou que vieram morar muito jovens na cidade de Baturité (meso região do norte do Ceará), com idade entre 48 e 82 anos. Os entrevistados são em sua maioria do sexo feminino, pois na maioria das vezes é a mulher em geral que escolhe e prepara os alimentos que a família vai consumir. Também foi realizada entrevista com um representante da Sucam², referente à extinção de peixes nativos de Baturité. O questionário utilizado é composto por 20 perguntas abertas, sobre os hábitos alimentares locais, alimentação na infância, principal atividade econômica praticada pela família, tipo de alimentação em datas comemorativas, como ocorreu a transmissão dos saberes gastronômicos, entre outros questionamentos relevantes à realização deste estudo. O registro destas entrevistas realizou-se através de meios fotográficos, gravações de áudio e transcrições na integra em programa de software: Microsoft office word 2010. Os critérios de seleção dos entrevistados foram: serem nativos; terem vivido a maior parte de sua vida em Baturité, principalmente na fase da infância e juventude (período caracterizado pela maior captação dos conhecimentos importantes a área de estudo), e, habitarem em várias localidades do município, de forma a haver uma maior diversificação nas respostas ou mesmo maior ênfase dos hábitos relatados em entrevistas anteriores. Respeitando os conceitos éticos, foram firmados com todos os entrevistados um acordo, de forma a receberem e assinarem uma declaração de uso de imagem, nome e citações de falas. A leitura e observação do material obtido com as entrevistas foram fundamentais a construção deste trabalho. Utilizando-se dos relatos das entrevistas na construção do capitulo de resultados. ____________________________ ² Órgão que resultou da fissão do Departamento Nacional de Endemias Rurais (DENERu), da Campanha de Erradicação da Malária (CEM) e da Campanha de Erradicação da Varíola (CEV), a fundação herdou experiência e conhecimento acumulados, ao longo de várias décadas, de atividades de combate às endemias de transmissão vetorial (BRASIL, 2011). 38 5 HÁBITOS E PRATICAS ALIMENTARES DA CIDADE DE BATURITÉ - CE A cidade de Baturité (Serra Verdadeira) localiza-se no norte do Ceará, na microrregião de Baturité, a 93 km de Fortaleza (capital do estado) (Anuário do Ceará, 2009). Possui hábitos riquíssimos, tanto na alimentação, quanto na cultura local. 5.1 Composição familiar dos habitantes Segundo os entrevistados, as famílias eram compostas por uma grande quantidade de pessoas, e era comum residirem na casa da família alguns parentes como tios e tias que ajudavam nas tarefas e atividades da família. 5.2 Principais atividades desenvolvidas O sustento de todos os familiares era provido a partir das atividades desenvolvidas no campo. As principais atividades desenvolvidas eram a agricultura, fruticultura, pecuária, pesca e caça. Através das quais as famílias obtinham recursos econômicos para comprar na cidade, alimentos que não eram produzidos no campo. 5.2.1 Agricultura Predominavam as plantações de “legumes” (cereais, tubérculos, etc.) como o milho, o feijão, a fava, o arroz, a macaxeira, a batata, a mandioca, o café, o jerimum, a cana- de-açúcar e etc. Que eram cultivados para o consumo alimentar em varias preparações e também para a alimentação animal. Como falado por D. Netinha: “Era milho, fava, arroz, feijão, mandioca... Tudo isso para a nossa alimentação e também para os animais” (Moradora do Sitio Tijuca, entrevista realizada em fevereiro de 2013). Em cada localidade cultivava-se uma cultura especifica (principal) de acordo com a estrutura e atividades da comunidade. À exemplo pode-se citar o plantio da mandioca e o seu processamento de forma artesanal em sistema de mutirão nas casas de farinha, normalmente encontradas em sítios e fazendas de médio e grande porte. Possuíam terras, de modo a plantarem nas terras de grandes fazendeiros em sistema de arrendamento. O senhor Artur Camurça nos relata em sua entrevista como funcionavam esses arrendamentos no sitio de seu pai, 39 “[...] lá a gente trabalhava com agricultura, principalmente com meeiros. Lá no sitio tinha muito meeiros. A gente tinha um caixão de farinha grande e só com a renda dos meeiros a gente fazia mais de 100 sacos de farinha” (Morador do Centro de Baturité, entrevista realizada em março de 2013). Outro plantio muito utilizado era o da cana-de-açúcar. No Sitio Brejo, esta atividade era característica das famílias que lá residiam a exemplo a Família Taveira, que ainda possuem engenhos ativos que produzem a rapadura LABIRINTO, marca registrada e bastante conhecida na região. D. Amélia nos fala do engenho de sua família ainda em funcionamento, “Ainda tem. [...] Funciona. A do meu avô não, que acabou-se. Foi o tempo que ele faleceu ai acabou, mas, mas tem um engenho do meu tio ai. [...] Ainda tem um pedacinho de cana, eles tem cana e ainda faz moage...”(Moradora do Sitio Brejo, entrevista realizada em março de 2013). Já a D. Luzia lembra com era farta a produção da rapadura LABIRINTO em sua casa: “Eu só sei que cana tinha bastante, a mesa da sala do jantar era lotada de rapadura. Rapadura doce, doce bom, que é o doce labirinto. E era maravilhoso, meu pai vendia... [...] Isaías Soares Taveira. E ele trabalhava muito, ele era banqueiro, ele que fazia a rapadura, fazia batida” (Moradora do Sitio Brejo, entrevista realizada em março de 2013). Há cinquenta anos atrás Baturité alcançou o auge de sua produção
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