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1 INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO CEARÁ CAMPUS DE BATURITÉ GRADUAÇÃO EM TECNOLOGIA EM GASTRONOMIA ALEXANDRE MAGNO DE SOUSA ALIMENTOS TRADICIONAIS DE CAÇA DOS ÍNDIOS KANINDÉ DE ARATUBA- CE: ALDEIA FERNANDES BATURITÉ 2015 2 ALEXANDRE MAGNO DE SOUSA ALIMENTOS TRADICIONAIS DE CAÇA DOS ÍNDIOS KANINDÉ DE ARATUBA- CE: ALDEIA FERNANDES Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial à obtenção do título de Tecnólogo em Gastronomia. Orientadora: Prof. Drª. Anna Erika Ferreira Lima. BATURITÉ 2015 3 ALEXANDRE MAGNO DE SOUSA ALIMENTOS TRADICIONAIS DE CAÇA DOS ÍNDIOS KANINDÉ DE ARATUBA- CE: ALDEIA FERNANDES Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial à obtenção do título de Tecnólogo em Gastronomia. Aprovada em: ___/___/___. BANCA EXAMINADORA ________________________________________ Prof. Drª. Anna Erika Ferreira Lima (Orientador) Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) _________________________________________ Prof. Drª. Marcia Maria Leal de Medeiros Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) _________________________________________ Prof. Esp. Roberto José de Araújo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) 4 Às minhas mães, Silvanete de Sousa e Maria Goreth Costa de Jesus, aos meus pais Luís Rocha de Souza (in memoriam) e Aluísio Rocha de Souza. E a toda minha família, pelo apoio. 5 AGRADECIMENTOS A Deus, pela vida, a Òsàgiyán, por me proporcionar força para continuar, a Òsóòsì, por me proteger e ofertar tantas caças no meu caminho, e a todos os orixás. Ao Seu Cicero Pereira dos Santos e Dona Azenilda, que me hospedaram em sua residência em todas as visitas que fiz na Aldeia, oferecendo-me casa e comida. Às minhas amigas, e por que não chama-las de mães, Dona Lucia Brito, Dona Jucilene e Dona Tereza que me receberam de braços abertos em suas residências e que foram de primordial importância na construção do nosso trabalho. Aos caçadores, Seu José Maciel, Seu João Maciel, Seu Zé Brito e Cleilson, os quais sempre tiveram paciência comigo e que também foram de imensurável importância na construção do nosso trabalho. Ao Cacique Sotero que também foi de fundamental ajuda na construção do trabalho. À minha amiga Rildelene dos Santos Silva que me deu apoio e que sempre me recebeu tão bem em sua casa. Aos índios Kanindé de Aratuba por todo apoio recebido e cujo presente trabalho se configura para eles e é deles. Aos meus pais, Luís Rocha de Souza (in memoriam) e Silvanete de Sousa pela educação, pelo amor, por acreditar em mim e investir de todas as maneiras para minha formação. Ao meu irmão, Vinícios Rocha de Souza, e minha cunhada, Renata Abreu Silvério de Souza, por todo o investimento, apoio, orientação na minha vida acadêmica, paciência e companheirismo em todas as horas que precisei. À minha família, por todo amor, apoio e incentivo. Ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE, Campus Baturité, por ter sido minha segunda casa durante o curso. À Profª Drª. Anna Erika Ferreira Lima, pela confiança depositada em mim ao me oferecer as bolsas de pesquisa e extensão que deram origem ao presente trabalho e tanto contribuíram na minha vida acadêmica e, além disso, que oportunizaram meu encontro com a comunidade indígena Kanindé de Aratuba. Ademais, sou grato pela orientação e pela apresentação do tema deste trabalho - o qual me apaixonou e levo para minha vida com tanto carinho - e pela ligação criada entre mim, a professora e a comunidade, intermediada pelo NEABI. 6 Aos professores e servidores do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará, Campus Baturité, em especial ao Prof. Roberto José Araújo e à Prof. Drª. Marcia Maria Leal de Medeiros, que aceitaram o convite para compor a banca de avaliação deste trabalho. Ao Prof. Amiltom César de Sousa Marques pela correção do resumé. À Pró-reitoria de extensão e ao CNPQ, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, pelo projeto. Às amigas de faculdade, Camila Catunda Maciel, Gabriela Nogueira, Graziela Souza Baltazar e Gysseli Franco que sempre me apoiaram e deram-me forças. Às amigas de batalha, Fernanda Maria Lobo Josino, minha alma gêmea, e Isabelle Costa Valentim. À minha amiga Aline Holanda Casciano, a qual sempre me ajudou nos momentos que precisei. A todas as amizades que fiz durante o meu ciclo de estudos no IFCE e em Baturité, que sempre estiveram comigo quando eu precisava, tanto para motivos acadêmicos como nos momentos de descontração. Aos meus amigos da época de colégio, por me apoiarem, por entenderem minha ausência, pela cumplicidade e união depois de tanto tempo. À turma de gastronomia 2013.1, pelos anos que passamos juntos, pelos trabalhos construídos, pela união. Aos terceirizados que trabalham no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE, Campus Baturité, que sempre me trataram bem, em especial Amanda Brasil. Ao colega de trabalho Ezequiel Andrew Ângelo Barroso Vieira pelas fotografias tiradas com tanto esmero e precisão. 7 “rapaz, vai depender... da sorte e do local que a gente arma.” (José Maciel) 8 RESUMO No final da década de 1970, a questão indígena passou a ser tema de relevância no âmbito da sociedade civil. No Ceará, em 1980, inicia-se o processo de mobilização política indígena. Nos últimos anos, a questão da preocupação com a segurança alimentar e nutricional em sociedades indígenas e os estudos voltados para a antropologia da alimentação em sociedades indígenas vêm se destacando como um importante fator de preservação da cultura indígena e está diretamente ligado à luta e às resistências por seu território. Buscar interação social com povos indígenas e comunidades tradicionais foi o foco de umas das pesquisas do primeiro Núcleo de Estudos Afro Brasileiros e Indígenas (NEABI) do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia, do Ceará - Campus Baturité. Nesse contexto, o presente trabalho teve como objetivo geral levantar os alimentos tradicionais de caça da Aldeia indígena Kanindé de Aratuba e como objetivo especifico, a pesquisa descreve o exercício da caça Kanindé, o ontem e o hoje; o exercício de construção das armadilhas artesanais; a maneira entre o passado e o presente do consumo das caças e desenvolve uma descrição densa de tais alimentos. A metodologia utilizada contou com uma revisão bibliográfica como forma de obtenção de conhecimento prévio e aprofundamento sobre a temática em questão e teve como principal fonte as conversas com os habitantes locais que fazem o preparo dos alimentos tradicionais e caçam, destacando principalmente as mulheres da comunidade e os principais caçadores, em que foram realizadas entrevistas semiestruturadas com os mesmos. Nesse contexto, foram identificados vinte alimentos, desde sua caça ao seu modo de pré-preparo e preparo. Tendo em vista transmitir os conhecimentos e práticas tradicionais, a fim de preservar a cultura culinária tradicional de um povo. Palavras-chave: Alimento tradicional, Caça, Kanindé de Aratuba. 9 RÉSUMÉ À la fin des années 1970, la question autochtone est devenu un sujet pertinent au sein de la société civile. Au Ceará, en 1980 a eu lieu le processus de mobilisation politique indigène. Au cours des dernières années, lesujet de préoccupation pour la sécurité alimentaire et la nutrition dans les sociétés indigènes et des études axées sur l'anthropologie de l'alimentation dans les communautés autochtones sont apparues comme un facteur important de conservation de la culture indigène et celle-là est directement reliée à la lutte et la résistance pour leur territoire. Cherchez l'interaction sociale avec les peuples indigènes et les communautés traditionnelles a été l'objet d'une recherche du premier Centre d’Études Afro Brésiliens et des études indigènes (NEABI) de l'Institut Fédéral de l'Éducation Sciences et Technologie – Campus de Baturité. Dans ce contexte, cette étude a comme but principal présenter les aliments traditionnels de la chasse du village indien Kanindé de Aratuba et comme objectif précis, la recherche décrit l'exercice de la chasse Kanindé, hier et d'aujourd'hui; l'exercice de construction de pièges artisanaux; la façon de consommation de la chasse au passé et au présent et on développe une description dense de ces aliments. La méthodologie utilisée comprenait un examen de la littérature afin d'obtenir les connaissances antérieures et l'approfondissement sur le thème en question. On a eu comme principales sources de cette étude les conversations avec les habitants locaux qui font la préparation des aliments traditionnels et qui chassent, en soulignant en particulier les femmes de la communauté et les Chasseurs de tête, où on a eu les entrevues semi-structurées avec eux . En ce contexte on a identifié vingt types d’aliments dès leur chasse à leur méthode de préparation. Afin de transmettre les connaissances et les pratiques traditionnelles et de préserver la culture culinaire traditionnelle d'un peuple. Mots-clés: aliments traditionnels, la chasse, Kanindé de Aratuba. 10 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 - Mapa das etnias do Ceará.........................................................................................21 Figura 2 - Aldeia Kanindé de Aratuba Sitio Fernandes ...........................................................31 Figura 3 - Terra indígena Kanindé no período da seca.............................................................35 Figura 4 - Terra Indígena Kanindé de Aratuba no período chuvoso .......................................36 Figura 5 - Artigos de caça (peles, partes de animais e animais inteiros) em exposição do museu .......................................................................................................................38 Figura 6 - Rajado (localidade da Aldeia Fernandes) ................................................................40 Figura 7 - Tocaia de caça .........................................................................................................41 Figura 8 - Taiados de pedra ......................................................................................................42 Figura 9 - Pedra do Gavião (Localidade da Aldeia Fernandes) ...............................................43 Figura 10 - João Maciel na Terra da Gia com um Mocó na mão ............................................45 Figura 11- Srª Lucia Brito com um Bornó ...............................................................................46 Figura 12 - Garrafa de água para a caçada................................................................................46 Figura 13 - Estrutura do Quixó (fêmea, macho e vaqueta da isca)...........................................48 Figura 14 - Exemplo de Quixó .................................................................................................48 Figura 15 - Gaiola de caçar Tatu (Dasypus novemcinctus) ou Tatu Peba (Euphractus sexcintus) .................................................................................................................49 Figura 16 - Forjo para pegar Preá (Galea Spixii) .....................................................................50 Figura 17 - Sr. José Sousa Brito retirando o Galão do saco .....................................................51 Figura 18 - Espingarda de caça ................................................................................................53 Figura 19 - Carne de Preá (Galea Spixii) assada na brasa........................................................58 Figura 20 - Mocó (Kerodon Rupestris).....................................................................................59 Figura 21 - Carne de Mocó (Kerodon Rupestris) torrada ........................................................60 Figura 22 - Carne de Mocó (Kerodon Rupestris) tratada .........................................................61 Figura 23 - Carne de Mocó (Kerodon Rupestris) escaldada ....................................................62 Figura 24 - Carne de Mocó (Kerodon Rupestris) temperada....................................................62 Figura 25 - Preá (Galea Spixii).................................................................................................63 Figura 26 - Carne de Preá (Galea Spixii) cozida (artesanato não pertencente à cultura Kanindé)................................................................................................................65 Figura 27 - Carnes de caça. Em cima, carrne de Gato Maracajá (Leopardus pardalis mitis). Em baixo, carne de Preá (Galea Spixii)...............................................................66 Figura 28 – Carne de Preá (Galea Spixii) temperada e já cozida .............................................66 11 Figura 29 - Punaré (Thrichomys apereoides)............................................................................67 Figura 30 - Tatu Peba (Euphractus sexcintus)..........................................................................69 Figura 31 - Carne de Tatu Peba (Euphractus sexcintus), (artesanato não pertencente à cultura Kanindé).................................................................................................................70 Figura 32 - Carne de Tatu Peba (Euphractus sexcintus)...........................................................71 Figura 33 - Avoante (Zenaida auriculata)................................................................................72 Figura 34 - Peixe Bodó (Liposarcus pardalis)..........................................................................74 Figura 35 - Carne de Bodó (Liposarcus pardalis) cozida, (artesanato não pertencente à cultura Kanindé).................................................................................................................76 Figura 36 - Carne de Bodó (Liposarcus pardalis) retirada do sol ...........................................76 Figura 37 - Carne de Bodó (Liposarcus pardalis) temperada..................................................77 Figura 38 - Galinha D’água (Gallinula chloropus) .................................................................78 Figura 39 - Carne de Galinha D’água (Gallinula chloropus), (artesanato não pertencente à cultura Kanindé).....................................................................................................79 Figura 40 - Carne de Galinha D’água (Gallinula chloropus) tratada.......................................79 Figura 41 - Carne de Galinha D’água (Gallinula chloropus) temperada.................................80 Figura 42 - Carne de Galinha D’água (Gallinula chloropus) torrada.......................................80 Figura 43 - Gambá de Orelha Branca (Didelphis albiventris)..................................................81 Figura 44 - Carne de Cassaco (Didelphis albiventris) torrada com Baião de dois ..................82 Figura 45 - Carne de Cassaco (Didelphis albiventris) tratada .................................................83 Figura 46 - Carne de Cassaco (Didelphis albiventris) temperada............................................83 Figura 47 - Carne de Cassaco(Didelphis albiventris) torrada.................................................84 Figura 48 - Jacucaca (Penelope jacucaca)...............................................................................84 Figura 49 - Jacupemba (Penelope superciliaris)......................................................................85 Figura 50 - Juriti (Leptotila verreauxi).....................................................................................87 Figura 51 - Carne de Juriti (Leptotila verreauxi) cozida, (artesanato não pertencente a cultura Kanindé) ................................................................................................................88 Figura 52 - Carne de Juriti (Leptotila verreauxi) temperada e cozida .....................................88 Figura 53 - Quandú (Coendou baturitensis- nova espécie) .....................................................89 Figura 54 - Teiú (Tupinambis merianae)..................................................................................91 Figura 55 - Tatu Galinha (Dasypus novemcinctus)...................................................................93 Figura 56 - Iguana verde (Iguana iguana) ...............................................................................95 Figura 57 - Gato Maracajá (Leopardus pardalis mitis)............................................................96 12 Figura 58 - Carne de Gato Maracajá (Leopardus pardalis mitis) cozida, (artesanato não pertencente à cultura Kanindé)...............................................................................98 Figura 59 - Carnes de caça. Em cima, carde de Gato Maracajá (Leopardus pardalis mitis). Em baixo, carne de Preá (Galea Spixii)........................................................................98 Figura 60 - Carne de Gato Maracajá (Leopardus pardalis mitis) temperada e já cozida ........99 Figura 61 - Pixuna (Lasiurus Necromys)..................................................................................99 Figura 62 - Tamanduá-Mirim ou Tamanduá-de-Colete (Tamandua tetradactyla).................101 Figura 63 - Veado Catingueiro (Mazama gouazoubira).........................................................103 Figura 64 - Jirita (Conepatus semistriatus).............................................................................104 13 LISTA DE MAPAS Mapa 1 - Localização da Aldeia Kanindé de Aratuba-CE. ......................................................17 Mapa 2 - Localização da Aldeia Kanindé de Aratuba-CE. ......................................................28 Quadro 1 - Artigo 231 da Constituição Federal de 1988..........................................................32 14 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AIKA Associação Indígena Kanindé de Aratuba CE Ceará FISHBASE Catalogo de peixes FUNAI Fundação Nacional do Índio GM Glutamato Monossódico IFCE Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará IUCN União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais LABOCART Laboratório de Cartografia da UFC NEABI Núcleo de estudos afro-brasileiro e indígena REPTILE DB Base de Dados de Repteis SAN Segurança Alimentar e Nutricional UFC Universidade Federal do Ceará UNILAB Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira. 15 SUMÁRIO 1 PROBLEMATIZAÇÃO ..........................................................................................17 2 A CONSTRUÇÃO DE UMA CAMINHADA – PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ...............................................................................................20 3 ALIMENTOS TRADICIONAIS.............................................................................23 3.1 Entre conceitos e diferenciações: Alimentos como pauta, entre cultura e tradição .....................................................................................................................24 3.2 A contribuição dos alimentos tradicionais para a garantia da segurança alimentar e nutricional ............................................................................................26 4 O POVO INDÍGENA KANINDÉ DE ARATUBA, ALDEIA FERNANDES – CEARÁ .....................................................................................................................29 4.1 Sua História e Histórias ...........................................................................................30 4.2 “Agente nasce, agente vive, agente morre, mas nosso povo sempre viverá nessa terra”. (Povo Kanindé): Situação da terra ............................................................33 4.3 Potencialidades da Terra Kanindé: A fauna em foco ...........................................35 5 A CAÇA NA ALDEIA: PARA ALÉM DA PRÁTICA A RELAÇÃO COM A NATUREZA .............................................................................................................38 5.1 Para as práticas e o respeito à natureza: O exercício da caça Kanindé ..............39 5.2 Caçadores e Engenheiros: O exercício de construção das armadilhas ...............47 6 ALIMENTOS TRADICIONAIS DE CAÇA DA COMUNIDADE ÍNDIGENA KANINDÉ DE ARATUBA, ALDEIA FERNANDES ..........................................54 6.1 O ontem e o hoje: Do que foi consumido ao que hoje se perpetua entre caças e elaborações ................................................................................................................55 6.2 A Caça e a elaboração: Passo a Passo e segredos revelados da Caça Kanindé .....................................................................................................................................57 6.2.1 Alimentos que continuam sendo frequentemente consumidos na Aldeia .....................................................................................................................................58 6.2.1.1 Mocó (Kerodon Rupestris) ........................................................................................59 6.2.1.2 Preá (Galea Spixii) ....................................................................................................63 6.2.1.3 Punaré (Thrichomys apereoides) .............................................................................67 6.2.1.4 Tatu Peba (Euphractus sexcintus) ..........................................................................69 6.2.2 Alimentos não frequentemente consumidos ..........................................................72 6.2.2.1 Avoante (Zenaida auriculata) ..................................................................................72 16 6.2.2.2 Bodó (Liposarcus pardalis) ......................................................................................74 6.2.2.3 Galinha D’água (Gallinula chloropus) ...................................................................77 6.2.2.4 Gambá de orelha branca (Didelphis albiventris) ...................................................81 6.2.2.5 Jacucaca (Penelope jacucaca) ..................................................................................84 6.2.2.6 Jacupemba (Penelope superciliaris) ........................................................................85 6.2.2.7 Juriti (Leptotila verreauxi) .......................................................................................86 6.2.2.8 Quandú (Coendou baturitensis- nova espécie) .......................................................89 6.2.2.9 Teju (Tupinambis merianae) ...................................................................................91 6.2.2.10 Tatu Galinha (Dasypus novemcinctus) ...................................................................936.2.3 Alimentos não mais consumidos .............................................................................94 6.2.3.1 Camaleão (Iguana) ...................................................................................................95 6.2.3.2 Gato Maracajá (Leopardus pardalis mitis) .............................................................96 6.2.3.3 Pixuna (Lasiurus Necromys).....................................................................................99 6.2.3.4 Tamanduá-de-Colete(Tamandua tetradactyla) ....................................................100 6.2.3.5 Veado Catingueiro (Mazama gouazoubira) ..........................................................102 6.2.3.6 Jirita (Conepatus semistriatus) ..............................................................................104 7 CONSIDERAÇOES FINAIS ................................................................................107 REFERENCIAS ...................................................................................................................111 APÊNDICE A – INSTRUMENTO DE COLETA DE DADOS APÊNDICE B – INSTRUMENTO DE COLETA DE DADOS APÊNDICE C – ENTREVISTAS COM OS INDIOS KANINDÉ DE ARATUBA ANEXO A – MODELO DE AUTORIZAÇÃO UTILIZADO NA PESQUISA DE CAMPO 17 1 PROBLEMATIZAÇÃO A presente pesquisa surgiu com o intuito de identificar os alimentos tradicionais da Aldeia Indígena Kanindé de Aratuba, e catalogar aqueles provenientes da caça, considerando, assim, suas técnicas. Nós nos deparamos com o quanto o alimento representa para um povo, no qual não vem apenas para manter a vida, mas – sim - representando sua identidade, surgindo nessa perspectiva uma forma de resistência, a qual para os povos indígenas e demais comunidades tradicionais tem um significado relevante, já que sua terra representa a permanência de suas culturas, tradições e conhecimentos. Por fim, os alimentos também estão ligados às nossas memorias mais ingênuas, que retratam os bons momentos da vida. “No Brasil são escassas as pesquisas sobre o conhecimento e utilização que grupos indígenas e comunidades tradicionais (ribeirinhos, pescadores artesanais, extrativistas, quilombolas, etc), fazem da biodiversidade local” (DIEGUES, 1999, p. 35). Considerando a Região do Maciço de Baturité, cuja composição perpassa pelo quantitativo de quatorze municípios, pode-se identificar uma expressiva sociobiodiversidade, uma vez que tal área, além dos elementos faunísticos e florísticos que lhe classificam como uma área de exceção no Estado do Ceará, possui, também, uma série de grupos sociais que se utilizam da natureza como forma de sobrevivência e complementação de renda. Assim, dentre esses grupos, o Campus Baturité têm a dois anos e meio iniciado atividades de pesquisa e extensão na Aldeia Kanindé de Aratuba – Ceará e visou efetivar uma identificação dos alimentos tradicionais. Entretanto, como toda pesquisa, o olhar do pesquisador permite enveredar para outros caminhos, quando são descobertos fatos novos. Dessa forma, ao passo que se desenvolvia a pesquisa inicial, observou-se que a alimentação com base proteica ainda resistia às mudanças da cultura alimentar dos índios Kanindé, sendo que esta, principalmente, aos finais de semana e momentos comemorativos, advinha da caça, uma atividade considerada de subsistência durante décadas por esse grupo social e hoje tomada como lazer, além de ser vista e defendida pelos índios como uma de suas expressões culturais. Para se alcançar o objetivo geral da pesquisa, foi necessário estabelecer, no referencial teórico, uma discussão dialógica com autores que trabalham com conceitos como: comida, alimentos tradicionais e alimentos típicos com o intuito de responder alguns questionamentos, os quais: Até onde o alimento se torna tradicional? O que é um alimento tradicional? Um alimento tradicional estaria ligado à sua origem geográfica? Ou à sua tradição e resistência? Talvez o tipo de matéria prima utilizada? e Como esses alimentos podem contribuir para a 18 garantia da segurança alimentar e nutricional, na qual a mesma implica no respeito e na preservação da cultura alimentar de cada povo e promove o acesso regular e permanente a alimentos de qualidade que consistem na sua saúde? Nesse contexto, foi possível descrever o exercício da caça Kanindé; o ofício de construção das armadilhas e desenvolver uma descrição densa de tais alimentos; optando pelos mais significativos da Aldeia, conforme indicados pelos índios, visando, assim, constituir um registro no qual constem os saberes tradicionais que portam, técnicas e artefatos utilizados na sua produção, seus significados sociais e culturais, proporcionando um conhecimento acerca de dados histórico-culturais relacionados aos alimentos tradicionais da Aldeia dos Índios Kanindés de Aratuba – CE. Mapa 1 – localização da Aldeia Kanindé de Aratuba-CE Fonte: LABOCART (Laboratório de Cartografia da UFC) 19 A presente pesquisa propõe registrar a cultura alimentar dos Índios Kanindés, por meio de uma catalogação para que a mesma não se perca com o tempo, bem como difundir os conhecimentos relacionados aos hábitos alimentares dessa comunidade indígena, além de revelar as futuras gerações a importância da identidade cultural por meio da alimentação de seu povo, tentando fazer com que esses alimentos sejam reconhecidos como mais um importante fator de preservação dentro da cultura da Aldeia dos Índios Kanindés de Aratuba- CE, (MAPA 1), também conhecida como Aldeia Fernandes, localizada a 130 km da capital, Fortaleza, que conta com 210 famílias, totalizando 942 índios residentes na Aldeia, todos estes cadastrados na FUNAI (Fundação Nacional do Índio), residindo em terras indígenas e em processo de territorialização. Ademais a pesquisa é parte integrante do projeto intitulado, - Alimentos tradicionais: uma geografia da cultura alimentar do Maciço de Baturité - CE e do primeiro Núcleo de Estudos Afro-brasileiro e Indígenas (NEABI) , do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFCE - Campus Baturité). Para a realização da pesquisa, a metodologia utilizada contou com uma revisão bibliográfica como forma de obtenção de conhecimento prévio e aprofundamento sobre a temática em questão. Teve como principal fonte as conversas com os habitantes locais que fazem o preparo dos alimentos tradicionais e caçam, destacando principalmente as mulheres da comunidade e os principais caçadores, em que foram realizadas quatorze entrevistas semiestruturadas com os mesmos (APÊNDICE C). Os áudios coletados em entrevistas nortearam de forma significativa o presente trabalho, pois a análise dos mesmos foi para a comprovação de dados discorridos em roda de conversas. Nesse contexto, foram identificadas e acompanhadas a forma de preparação dos seguintes pratos: Avoante (Zenaida auriculata), Bodó (Liposarcus pardalis), Gambá de orelha branca (Didelphis albiventris), Galinha D’água (Gallinula chloropus), Jacucaca (Penelope jacucaca), Jacupemba (Penelope superciliaris), Jirita (Conepatus semistriatus), Juriti (Leptotila verreauxi), Mocó (Kerodon Rupestris), Preá (Galea Spixii), Punaré (Thrichomys apereoides), Tatu Peba (Euphractus sexcintus), Camaleão (Iguana), Gato Maracajá (Leopardus pardalis mitis), Pixuna (Lasiurus Necromys), Quandú (Coendou baturitensis- nova espécie), Tamanduá-de-Colete(Tamandua tetradactyla), Tatu Galinha (Dasypus novemcinctus), Teju (Tupinambis merianae) e Veado Catingueiro (Mazama gouazoubira). 20 A construção do estudo aponta para uma pesquisa relacionada diretamente com a antropologia alimentar, tendo como foco transmitir os conhecimentos e práticas tradicionais, a fim de preservar a cultura culinária tradicional de um povo. 2 METODOLOGIA Segundo Tozoni-Reis (2007), a metodologia qualitativa temsido utilizada para conceituar investigações cientificas que levam em considerações a importâncias dos aspectos qualitativos da realidade que se utilizam de instrumentos próprios que buscam revelar, compreender, analisar e interpretar; em que se busca responder não somente o questionamento “o que é isso?, mas, sim, o “porque é isso”. A pesquisa também se caracteriza etnográfica, afinal segundo Bogdan e Taylor (1975 apud FINO 2003): “definiram a observação participante como uma investigação que se caracteriza por um período de interações sociais intensas entre o investigador e os sujeitos, no meio destes, durante o qual os dados são recolhidos de forma sistemática”. Nesse contexto, a presente pesquisa se configurou como qualitativa e etnográfica, cuja base é entendida como capaz de incorporar aos atos, as relações e as estruturas sociais, a questão do significado e da intencionalidade, decorrentes de construções, humanas significativas. Estudos qualitativos possibilitam o conhecimento de hábitos alimentares, a partir de cuidadosas observações e relatos dos sujeitos sobre a significação desse objeto da cultura. Em cada contexto específico, códigos da cultura podem ser decifrados e representações sociais podem justificar condutas, hábitos e valores. (MINAYO, 2008; FREITAS; MINAYO, 2009; apud PAIVA, 2011). As pesquisas de campo foram realizadas durante doze meses, entre Junho de 2014 e Junho de 2015, período em que foi estabelecido residência na Aldeia Fernandes (pontos 09 e 10), e uma caçada realizada durante o mês de Junho de 2015 na localidade da Terra da Gia, dos índios Kanindé de Aratuba-CE, um dos quatorze povos indígenas organizados no estado do Ceará (FIGURA 1), em mobilização constante por reconhecimento étnico e delimitação territorial. A presente pesquisa foi desenvolvida a partir de etapas dentre as quais constam: 1) levantamento de dados, dos quais se seguiram a organização e análise do material (entrevistas, bibliografias, fotos, vídeos, sites e jornais); 2) a segunda etapa foi realizada com as mulheres que preparam a caça e outro para os caçadores, em que constam perguntas que tratam: da forma de preparo, a utilização de ingredientes, como se deu o aprendizado, se é repassado, 21 como se dá a elaboração das armadilhas, como é a caça de cada animal, ou seja, foram realizadas quatorze entrevistas com os moradores da região dentre os quais, líderes da Figura 1 – Mapa das Etnias do Ceará. Fonte: PALITOT, Estevão Martins (org.). Na Mata do Sabiá: contribuições sobre a presença indígena no Ceará. Fortaleza: Museu do Ceará/ Imopec,2009, p.35 comunidade, caçadores e mulheres, no qual tais sujeitos sociais possuíam vínculos diretos com esses alimentos, tendo em consideração a perspectiva da história oral. 22 (THOMPSON, 1998) e 3) Levantamento bibliográfico referente a povos indígenas, comunidades e povos tradicionais, cultura, etnográfia a exemplo de autores como Gomes (2012), Castro (1999); Diegues (1999), a Relação entre a biodiversidade e as comunidades tradicionais; Cascudo (2011), História da alimentação no Brasil; Cultura alimentar, Braga (2004) e Sagan (1998) Bilhões e Bilhões - Reflexões Sobre Vida e Morte na Virada do Milênio. Dentre os conceitos, abordaremos a discursão sobre alimentos com autores como Zuin; Zuin (2007), os quais tratam de alimentos tradicionais e da produção dos mesmos; Soeiro (2000), que indica a disponibilidade dos produtos tradicionais e os quais não eram percebidos pela sua importância nutricional; Mariot (2002), que defende a predisposição do consumidor em comprar um produto tradicional a fim de evitar os industrializados; Pollan (2008), que discute o que seria a comida de verdade e Gimenes (2011), que caracteriza o alimento típico. Nesse sentido, será debatida a compreensão entre alimento e comida, por meio dos conceitos de autores como Santos (2007), o qual fala as concepções de alimento e comida na perspectiva das ciências humanas, em que explora o aspecto nutricional; Da Matta (1997), que concebe a comida como importante “código de expressão da sociedade brasileira”; Maluf (2007), que discute Segurança alimentar e nutricional e Salgado (2007), que discute a segurança alimentar e nutricional em terras indígenas. Ainda foram utilizados autores que falam da fauna brasileira assim como: Machado et al (2008) O Livro Vermelho da Fauna Brasileira; Bonvincino et al (2008) com Guia dos roedores do Brasil; Cáceres (2012) Os Marsupiais do Brasil; Carvalho et al (2008) Pegadas e Soares (2008) que fala da fauna em lagos e Bastos (2011), que descreve as características da geografia da serra de Baturité. Ademais, foi utilizada a Constituição da República Federativa do Brasil (1988), Lei 6001 do Estatuto do Índio. Os áudios coletados em entrevistas foram transcritos na íntegra em programa de software: Microsoft Word 2010 e nortearam de forma significativa o presente trabalho, pois a análise dos mesmos foi de expressiva importância para a comprovação de dados discorridos em rodas de conversas. Respeitando os conceitos éticos, foi firmado, com todos os entrevistados, um acordo de forma a receberem e assinarem uma declaração de uso de imagem, nomes citações e falas (ANEXO A). O registro aconteceu na forma escrita, em diário de campo, através de imagens obtidas com filmagens e fotografias dos pratos tradicionais, das armadilhas artesanais, da 23 arma de fogo e dos locais da caça na Aldeia. Esse acervo possibilitou que os objetos de estudo fossem recuperados e recriados por intermédio da memória dos informantes, com vistas a constituir um quadro configurativo de referência para o desencadeamento da etapa etnográfica, com suas técnicas de coletas de dados, observação participante e registros orais, visando uma descrição densa (GEERTZ, 1989), de parte dos alimentos identificados como tradicionais. Por fim, foram realizadas análises de dados secundários através de informações em revistas, jornais e sites como: o site da FUNAI, site do Museu de Zoologia João Moojen da Universidade Federal de Viçosa, site do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade e no blog da comunidade Kanindé - que auxiliaram na análise populacional e histórica da Aldeia e na Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da IUCN (International Union for Conservation of Nature). Além disso, esse percurso de investigação foi importante para a construção do conhecimento acerca da taxonomia e o nível de extinção das espécies. 3 ALIMENTOS TRADICIONAIS É uma carne sadia que não tem gordura. As caça se alimenta só com folha de mato, é semente, é batata do mato né! É uma carne mais seca também né! Não é que nem a carne de gado, de porco essa coisas que é com mais com ração. As daqui são mais gostosa elas, elas não tem tanta gordura e ela não faz mal a ninguém por que ela não tem gordura a gordura dela é toda uma gordura sadia que não faz mal a ninguém. (Entrevista com Cícero Pereira dos Santos realizada em 09 de Dezembro de 214). Conforme Zuin; Zuin (2007, p. 111), a massificação dos produtos industrializados denominados fast food– atualmente - contrapõem-se com a crescente procura pelos alimentos diferenciados. Segundo o autor, no mundo atual, as pessoas procuram alimentos de fácil acesso, elaboração e consumo, enfraquecendo a tradição de se ter o prazer de se alimentar, utilizando produtos artesanais de qualidade especial, de forma que se respeite tanto o meio ambiente, quanto as pessoas responsáveis pela produção. Ou seja, os produtores e sua cultura. Torna-se necessário ainda compreender a concepção de alimento e comida com o intuito de buscar uma precisão conceitual considera-se que as concepções desses dois alimentos, na perspectiva das ciências humanas, exploram o aspecto nutricional. De acordo com Santos (2007, p. 12), O alimento constitui uma categoriahistórica, pois os padrões de permanência e mudança dos hábitos e práticas alimentares têm referência na própria dinâmica social. Os alimentos não são somente alimentos. Alimentar-se é um ato nutricional, 24 comer é um ato social, pois constitui atitudes ligadas aos usos, costumes protocolos, condutas e situações. Nenhum alimento que entra em nossa boca é neutro. Da Matta (1997), concebe comida como um importante “código de expressão da sociedade brasileira”, tanto quanto a política, a economia, a família, o espaço e o tempo. Diferencia comida de alimento, acentuando que o alimento é uma categoria mais ampla, que abrange o universo daquilo que pode ser ingerido para manter a vida biológica. E comida está relacionada às escolhas feitas dentro desse universo, guiados pelo prazer e por normas de comunhão e comensalidade. Nesse contexto expressa-se a necessidade de pensar outro paradigma para a alimentação com o intuito de buscar uma alimentação, saudável, natural, que traga lembranças afetivas, pois também por meio dos alimentos as pessoas lembram situações, pessoas e eventos e que se saiba a origem desse alimento, essa seria a comida de verdade. Compreendendo um pouco melhor o modelo de comida de verdade, que vai de encontro ao modelo capitalista voltado para a alimentação imposto à sociedade, segundo Pollan (2008, p. 22), “quem come agora tem opções reais, e essas opções tem consequências reais para a nossa saúde, para a saúde da terra e para a saúde da nossa cultura alimentar”. A redescoberta dos produtos tradicionais deve-se, em muito, a busca do consumidor por um alimento mais saudável, natural, saboroso e de origem conhecida, identificando nos alimentos tradicionais esse tipo de atributo. Alguns estudos indicam que o consumidor se dispõe a pagar mais caro, caso seja necessário, por esse tipo de produto em relação a um similar industrializado (MARIOT, 2002, p. 114). Segundo Zuin; Zuin (2007, p. 117), “o resgate ou a redescoberta das tradições gastronômicas, da nossa região, da nossa família é, com certeza, o espaço do encontro e da partilha dos saberes entre gerações, e conservá-las, é uma forma de valorizar a cultura, o produtor, a agricultura e o turismo”. Portanto, alimento é cultura, identidade, símbolo e está ligado à história e às tradições culturais de toda uma comunidade cujo consumo remete à cultura do local, uma vez que a gastronomia de um lugar traduz toda uma herança cultural, o clima, a situação geográfica, o solo, a história, entre outros. 3.1 Entre conceitos e diferenciações: Alimentos como pauta, entre cultura, tradição e identidades. 25 Eu acho uma coisa muito alegre, é muito alegre você chegar nesse fogão a lenha ai eu tenho o meu fogão a gás mas eu uso mais é prum café, prum mingal do menino alguma coisa de rápido. Mas eu todo dia faço o meu fogo por que eu acho bom é bota a minha panela ali e aquele fogo subir ali é muito gostoso isso é muito animado pra gente. (Entrevista com Dona Lucia Brito realizada em 12 de Dezembro de 2014). Afinal, o que é tradicional? De acordo com Aurélio (1988, p. 643), “tradicional é: adj. 2 g. 1. Relativo ou pertencente à tradição. 2. Conservado na tradição”. “Tradição: S. f. 1. Ato de transmitir ou entregar. 2. Transmissão oral de idade em idade, geração em geração”. Um alimento tradicional estaria ligado à sua origem geográfica? Ou à sua tradição e permanência? Seria ao processo de manufatura? Talvez o tipo de matéria prima utilizada? Ou a tudo isso? Para Tibério (1998), falar em alimentos tradicionais não é pensar em produtos massificados, produzidos de forma intensiva ou industrial sem qualquer tipo de diferenciação. Por essa razão também estão ligados ao fazer tradicional do agricultor, isto é, a forma com a qual ele processa (saber fazer) o alimento. Os produtos tradicionais, também são denominados produtos com história, pois se constituem e fazem parte da história social de uma determinada cultura. Vindos de um longo tempo, através de gerações que os foram produzindo e recriando, esses produtos marcam um processo que reúne relações sociais e familiares, num encontro entre o saber e a experiência; portanto, a produção desses alimentos é, ainda, uma arte construída ao longo do tempo através da tradição familiar (RIBEIRO; MARTINS, 1995, p.01apud ZUIN; ZUIN, 2007, p. 111). Para Zuin; Zuin (2007, p. 111), a produção de alimentos tradicionais também propicia o trabalho em família, pois envolve os saberes e fazeres das mulheres, visto que são elas as principais produtoras desses alimentos. É uma tarefa difícil avaliar a importância socioeconômica dos alimentos tradicionais para a contribuição da sobrevivência das propriedades rurais uma vez que não se avalia o saber fazer tradicional. Isto posto, os alimentos tradicionais podem ser definidos como sendo “um produto único pelo emprego de matérias primas e pelos conhecimentos aplicados, assim como os usos de produção, de consumo e de distribuição e que atualmente recebem, entre outras, as denominações de local, artesanal ou regional” (RIBEIRO; MARTINS, 1995, p.01 apud ZUIN; ZUIN 2007, p. 113). Conforme Soeiro (2000, p. 113), os alimentos tradicionais sempre estiveram disponíveis para o consumidor final, entretanto, não era percebida a sua importância tanto nutricional como histórico-nutricional. Mesmo que fossem considerados tradicionais no sentido de que eram manufaturados em um determinado lugar, com técnicas e saberes transmitidos de geração em geração, não eram esses atributos, na maioria dos casos, percebidos e valorizados pelo mercado consumidor. 26 Nesse contexto pode-se dizer que um alimento tradicional também poderia ser chamado de típico? Uma vez que o mesmo está relacionado com a cultura, os aspectos físicos e ambientais de um determinado local, com a história entre outros. Para Gimenes (2011, p. 23), “os alimentos típicos são marcados pela manutenção de determinadas especificidades (combinação de ingredientes, técnicas de preparo ou serviço), sobrevivem ao tempo, sendo readaptadas e ressignificadas, mas ainda mantendo uma essência identitária passível de ser reconhecida”. Os pratos típicos se ligam à história e ao contexto cultural de um determinado grupo, constituindo uma tradição que se torna símbolo de sua identidade. Os pratos típicos (ou comidas típicas) são entendidos, portanto, como elementos integrantes da cozinha regional que emergem deste conjunto mais amplo por inúmeras razões (praticidade, associação com outra prática cultural, associação a determinadas celebrações) e passam a ser reproduzidos com finalidade simbólica e podem ser degustados como tal, desde que o comensal possua conteúdos capazes de permitir tal experiência. (GIMENES, 2008, p. 48). Portanto o alimento tradicional é aquele que é produzido com a matéria prima local e a mesma deve ser adquirida a partir de práticas artesanais utilizando saberes tradicionais e mantendo, na sua elaboração, os mesmos ingredientes originais, não fazendo uso de outros ingredientes. Eles estão ligados ao modo como é preparado em que se relaciona ao “saber- fazer” tradicional que é passado de geração para geração, caracterizando uma identidade cultural regional e ou local. “Por último, quanto mais globalizadas as pessoas ficam, mais regionais elas se tornam, por isso, pode se dizer que o consumo do alimento tradicional passa por uma afirmação da identidade do indivíduo” (ZUIN; ZUIN, 2007, p. 114). 3.2 A contribuição dos alimentos tradicionais para a garantia da segurança alimentar e nutricional. Tendo uma alimentação saudável, boa, ela é muito gostosa ela... depois ela vem muito assim saborosa limpa, principalmente essa que agente assa, torra, porque ela mata todos aqueles micróbios se ainda tive nas carne, e hoje o que nois tinha fé era a caça do mato não ter“hormônio” esses veneno essas coisa que pulveriza né? Já hoje a caça do mato tem porque eles pulverizam o mato, o milho, o feijão, ai os bicho come e já passa pra eles. O boi! Que era o mais difícil, hoje é só o que tem, o porco é inchado que nem a galinha da granja, e no mato era mais difícil e hoje tem! Hoje pega sem toma mesmo porque come a pastagem o pasto... (Entrevista com Cacique Sotero realizada em 14 de Dezembro de 2014). 27 O acesso à alimentação é um dos direitos fundamentais consignados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população. Segundo Salgado (2007, p. 8), as preocupações com a segurança alimentar e nutricional em sociedades indígenas são recentes. A IV Conferência Nacional de Saúde Indígena, realizada em Outubro de 2005, deliberou, como um dos principais desafios para o governo brasileiro, em parceria com as organizações indígenas e indigenistas, garantir a segurança alimentar e nutricional através de uma implementação política específica voltada para o desenvolvimento sustentável de povos indígenas. Há poucas e dispersas informações sobre a segurança alimentar e nutricional em sociedades indígenas. Nessas sociedades não só as crises de abastecimento alimentar e o uso inadequado dos alimentos disponíveis devem ser considerados, mas também outros fatores, mais profundos, que merecem uma análise criteriosa sobre suas nefastas consequências para a saúde. (SALGADO, 2007, p. 1). Para assegurar os direitos indígenas foi criada na década de 70 a Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973 que dispõe sobre o Estatuto do Índio, cujo Art. 1º fala que esta lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional e Art. 2° Cumpre à União, aos Estados e aos Municípios, bem como aos órgãos das respectivas administrações indiretas, nos limites de sua competência, para a proteção das comunidades indígenas e a preservação dos seus direitos: VI - respeitar, no processo de integração do índio à comunhão nacional, a coesão das comunidades indígenas, os seus valores culturais, tradições, usos e costumes. Esse povo de hoje que só come rechiado, chilito, sorvete, eu acho que esse povo não tem muita força nas perna não, por que eu digo isso por que eu tenho experiência, por que uma pequena caminhada com esse pessoal, uma menina que veio outro dia lá dos tapeba a gente fez uma pequena caminhada ali e antes da gente chegar no local que eu queria chegar comela foi preciso a gente voltar. (Entrevista com José Maciel realizada em 14 do Outubro de 2014) Conforme Corrêa (2009), foi a partir do final da Segunda Guerra Mundial, a questão de Segurança Alimentar e Nutricional (S.A.N) das sociedades entendida, basicamente, como uma disponibilidade de poucos alimentos e uma ameaça as nações, especialmente as europeias que se encontravam, imediatamente após esse conflito, sem estrutura de produção de alimentos em quantidade suficiente para sua população. 28 Atualmente, a segurança alimentar surge com outra definição que, de acordo com Maluf (2007, p.17) é, A realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base praticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentável. A essa definição somam-se outros aspectos, dentre esses aspectos cabe citar a soberania alimentar, a qual é definida como o direito dos países definirem suas próprias políticas e estratégias de produção, distribuição e produção de alimentos. Em âmbito internacional, a segurança alimentar fora associada à segurança nacional, ou seja, à capacidade dos países em produzir o seu próprio alimento e formação de estoques. Para Maluf (2011), a Primeira Guerra Mundial fora uma experiência traumática, em especial na Europa, tornou-se claro que um país poderia dominar o outro controlando seu fornecimento de alimentos. A alimentação seria, assim, uma arma poderosa, principalmente se aplicada por uma potência em um país que não tivesse a capacidade de produzir por conta própria e suficientemente seus alimentos. Portanto, esta questão adquiria um significado de segurança nacional para cada país, apontando para a necessidade de formação de estoques "estratégicos" de alimentos e fortalecendo a ideia de que a soberania de um país dependia de sua capacidade de auto suprimento de alimentos (MALUF et all,2011, p.01). Para Braga (2004, p. 41), entre os diversos aspectos que compõem a S.A.N., está relacionada à preocupação com o respeito e à preservação da cultura alimentar de cada povo e como cada país deve ter condições de assegurar sua alimentação, sem que lhe seja imposto um padrão alimentar estranho às suas características e tradições, levando-se em conta o atual mundo em que as práticas alimentares tradicionais estão ameaçadas pelos efeitos da globalização. No âmbito da Segurança Alimentar e Nutricional, ressalta-se a relevância dos estudos das estruturas alimentares para a compreensão dos riscos ligados à adoção de práticas alimentares novas e distintas das tradicionais. Cabe destacar a importância de estudos de antropologia da alimentação, que possibilitam a compreensão de nossos padrões alimentares, suas origens, seus valores simbólicos e vários aspectos que retratam o que somos através do que comemos. Além disso, é possível resgatar alimentos que faziam parte do cardápio dos antepassados e que, hoje, se encontram em segundo plano. Modos de preparo, 29 ingredientes e uma série de elementos tradicionais da culinária de grupos determinados podem ser recuperados a partir desses estudos. As pesquisas sobre alimentação contribuem, ainda, para a valorização da diversidade alimentar, reforçando aspectos referentes a saúde e a nutrição. (BRAGA, 2004, p. 41). Pensar em estratégias de soberania alimentar é refletir sobre a importância de serem estabelecidos mecanismos de controle social, condição necessária para se atingir, plenamente, os objetivos de uma política pública de Segurança Alimentar e Nutricional (S.A.N.). É por meio da mobilização social que se constituirá a construção de um modelo de sociedade mais equitativo, ambientalmente sustentável e que tenha a Educação e a Segurança Alimentar e Nutricional, o Direito Humano à Alimentação Adequada e a Soberania Alimentar, como eixos estratégicos de desenvolvimento social. Tal debate está diretamente vinculado a segurança alimentar e a questão da cultura alimentar, considerando ainda o fato dos pequenos produtores de alimentos tradicionais correrem o risco de abandonarem suas produções e mesmo das comunidades perderem o hábito de se alimentarem com determinados produtos. Um fator que implica literalmente nessa discursão é questão da terra, em que a mesma representa e está ligada as lutas dos indígenas pelo Brasil e relacionada a sua alimentação (caça, pesca e agricultura), histórias que são passadas de geração para geração, identidade pela importância dos mitos associados a caça, segredos que estão guardados na fauna e na flora do local, e pela religião. 4 O POVO INDÍGENA KANINDÉ DE ARATUBA, ALDEIA FERNANDES - CEARÁ. Conforme Gomes (2012, p. 14), Aratuba (abundância de pássaros, em tupi) é um pequeno município do maciço de Baturité. A zona urbana de Aratuba possui povoados que formam os sítios e distritos rurais, onde se desenvolve a maior parte da população. Uma dessas povoações é o Sítio Fernandes, onde habitam, há pelo menos 138 anos, a maior parte dosgrupos familiares que formam o povo indígena Kanindé. A comunidade Kanindé pertencente ao município de Aratuba (MAPA 2), localizada a 130 km da capital, Fortaleza, apresenta uma população de aproximadamente 641 pessoas, distribuídas em 185 famílias e 148 residências (Ministério da Justiça, 2011, p. 1 apud GOMES, 2012, p. 14). Muitas famílias vivem exclusivamente da agricultura, outras alternam esta atividade com ocupações diversas, destacando os pequenos comércios. Outra atividade significativa na comunidade diz respeito confecção de bijuterias, feita pelas mulheres que contribuem para o sustento familiar. 30 Mapa 2 – Localização da Aldeia Kanindé de Aratuba-CE. Fonte: LABOCART (Laboratório de Cartografia da UFC). A Aldeia é dividida em duas partes: os Fernandes e a Balança. Os Fernandes são divididos em dezesseis localidades: Fernandes, Quebra Faca, Régio, Jucazeiro, Chapada do Vento, Trapiá, João Murim, Arame, Rajado, Terra da Gia, Camas de Vara, Saco da Onça, Mapinguim, Catolé e Zalvos. Localidades que se localizam entre o bioma da serra de Baturité e o do Sertão de Canindé. 4.1 Sua História e Histórias De acordo com Gomes (2012, p.80), os Kanindé, Jenipapo e Paiacú são representados em relatos e estudos históricos como parentes, parte do grande tronco dos Tarairiú. No século XVII são retratados combatendo no sertão, unidos ou em lados contrários e, 31 consecutivamente, sendo aldeados em Monte-Mor (Baturité) e Pacajus. Durante esse tempo estabeleceram muitas migrações de itinerários pouco resolvidos. Figura 2 – Aldeia Kanindé de Aratuba Sitio Fernandes. Foto: Ezequiel Andrew (2014) Conforme Gomes (2012), os Kanindé (ou Canindé, como é mais comum em fontes e estudos) já se encontravam presentes nas primeiras obras sobre a história do Ceará, como um dos povos étnicos do Sertão, indicados em constante circulação, mas povoando áreas próximas à Bacia Hidrográfica dos rios Choró, Quixeramobim e Banabuiú. Segundo Gomes (2012), vieram da região do atual município de Mombaça, passando por Quixadá, pelas margens do Rio Curu, entre os rios Quixeramobim e Banabuiú, junto aos seus parentes Jenipapo, antes de alcançar os seus locais de morada atuais. Chegaram ao Sítio Fernandes vindos da serra da Gameleira. Ainda segundo Gomes (2012, p.161), até 1994, os Kanindés não se reconheciam índios, foi a partir de 1995, que o seu José Maria Pereira dos Santos, com 52 anos e o Sr. Cícero Pereira, de 44 anos, irmãos, casados, agricultores e moradores do Sítio Fernandes, na época, receberam uma carta convite da II Assembleia dos Povos Indígenas do Estado do Ceará, através da missionária Maria Amélia Leite, que já trabalhava com os Tremembé e conhecia os Kanindé de longa data. A participação na II Assembleia dos Povos Indígenas do 32 Estado do Ceará constitui uma importante referência simbólica e temporal para o início do processo de identificação como povo Kanindé. Como indicado anteriormente a etnia Kanindé está dividida entre os Kanindé da Aldeia Gameleira, localizados à quinze quilômetros da sede do município de Canindé e os Kanindé de Aratuba, localizados a cinco quilômetros do município de Aratuba. A Aldeia Kanindé de Aratuba é subdividida entre a Aldeia Fernandes, localizada na serra e a Aldeia Balança. Os dois principais núcleos familiares que formaram os Kanindé de Aratuba, segundo suas narrativas, são os Francisco e os Bernardo. Ademais, Gomes (2012, p. 14), afirma que, os Francisco são identificados como habitantes da serra de longa data, estando ali desde 1874. Os Bernados são provenientes da Gameleira, localidade próxima à Serra do Pindá (sertão de Canindé). Chegando ao Sitio Fernandes (FIGURA 2), em épocas de grandes secas, como a de 1915. Entretanto, existem vários outros núcleos familiares importantes para que compõem os Kanindé, com distintas trajetórias históricas que se incorporaram nas duas principais famílias, principalmente através de alianças matrimoniais. Os Kanindé dispõe de instrumentos que contribuem para o reconhecimento de legitimação da terra exemplo, o Museu Kanindé o segundo museu indígena do Brasil e o primeiro museu indígena do Ceará fundado em 1995, mas só aberto para visitação em 1996, constituído primeiramente pelo líder da Aldeia José Maria Pereira dos Santos mais conhecido como Cacique Sotero, 70 anos. A E.D.E.F.M. Manuel Francisco dos Santos, construída com a ajuda dos líderes e a Associação Indígena Kanindé de Aratuba (AIKA), no qual o presidente da associação se chama José Maciel (Vice-Pajé), com 48 anos. Hoje, para os Índios Kanindé de Aratuba, a escola E.D.E.F.M. Manuel Francisco dos Santos, fundada em 1999, é o seu principal instrumento de mobilização social, que promove ações de intercâmbios entre as comunidades (Fernandes e Balança), mobiliza a comunidade através dos alunos disseminando a cultura e as tradições dos índios Kanindé de Aratuba e criando parcerias a exemplo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará, Campus de Baturité; a Universidade Federal do Ceará (UFC) e a Universidade de Lusofonia Afro Brasileira (UNILAB). Como resultado dessa parceria entre a Comunidade Indígena Kanindé de Aratuba e o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará, Campus de Baturité, surgiu o “Proeja-Fic, Segurança e Soberania Alimentar para Comunidades Tradicionais do Maciço de Baturité – CE”, um curso realizado na comunidade entre os anos de 2013 e 2014. 33 O Curso-Fic era constituído por uma matriz curricular composta por módulos como: Segurança Alimentar, Higiene e Segurança de Alimentos, Soberania Alimentar, Boas Práticas de Fabricação, Agroecologia, Estrutura Física de Unidades de Alimentação, Aproveitamento Integral de Alimentos e Construção de Projetos Sociais, distribuídas em 160h/a, tendo sido aceitas principalmente pelo diretor da escola indígena. O objetivo foi capacitar os Kanindé em Segurança alimentar, beneficiando jovens e adultos entre quatorze e cinquenta e cinco anos totalizando oitenta alunos com conceitos bases e aplicações de Segurança e soberania alimentar, melhorando a qualidade de vida de jovens e adultos. 4.2 Situação da terra “A gente nasce, a gente vive, a gente morre, mas nosso povo sempre viverá nessa terra”. (POVO KANINDÉ): Em 1995 os índios Kanindé deram início a sua mobilização étnica participando da 2ª Assembleia Indígena Estadual a partir dessa, os índios começaram a se organizar como uma aldeia indígena onde o Sitio Fernandes, até então como se chamava, passa a ser conhecido com Aldeia Fernandes. Depois da assembleia, houve uma série de eventos relacionados com a questão da terra. Depois da 2ª Assembleia, os Kanindé começaram a lutar por sua terra e pelo reconhecimento de sua etnia. Muito mais marcante para a coletividade da Aldeia Fernandes que a participação de Cícero e Sotero na assembleia indígena de 1995 para o início da mobilização étnica, foi a série de eventos relacionados ao conflito com os trabalhadores da fazenda Alegre, a partir de 1996. Tratou-se de uma querela na divisão da Gia entre os moradores do projeto de assentamento Alegre, do Incra (Aratuba-Canindé) e o povo Kanindé, após a conquista da desapropriação da terra fruto de uma mobilização conjunta. De ambos os lados em conflito, foram acionadas instâncias diferentes a partir das identificações sociais e étnicas operadas pelos sujeitos em disputa. Foram envolvidos diretamente, além das duas populações, o Incra, Funai, Ibama, STR de Aratuba e Canindé, Amit e igreja católica (GOMES, 2012, p. 225). A terra se trata de um berço, no qual os indígenas obtém um extenso conhecimento sobre seu meio ambiente e, graças às suas maneiras tradicionais de manuseio dos recursos naturais, em que essas são passadas de geração para geração e garante a preservação das nascentes de rios,da flora e da fauna, que representam patrimônio inestimável. (FUNAI..., 2013) 34 Segundo Silva (1975, p. 104), os índios são constituídos a partir da vivencia da terra que é responsável por alimentar seus vínculos tradicionais com a localidade e com a terra em que o grupo indígena vive desde seus ancestrais. De acordo com o inciso XI do Artigo 20 da Constituição Federal 1988, essas terras "são bens da União" e o Artigo 231 trata de forma destacada este tema, apresentando (QUADRO 1): Quadro 1 - Artigo 231 da Constituição Federal de 1988. Fonte: Constituição da República Federativa do Brasil 35ª edição. Segundo Viveiros de Castro (1999, p. 24), “Os índios parecem ter escolhido a haste do compasso cósmico correspondente ao que chamamos ‘cultura’, sub- metendo assim a nossa ‘natureza’ a uma inflexão e variação contínuas” Outro aspecto importante a ser citado, e que está em relevância na atualidade, é o fato de que a defesa do território indígena assegura a preservação de um gigantesco patrimônio biológico e do conhecimento centenário obtido pela população Kanindé a respeito deste patrimônio. Bem como Gomes (2012, p. 25), no início de agosto de 2012 estiveram técnicos da FUNAI, dessa forma iniciando formalmente o processo de regularização das terras dos Kanindé de Aratuba-CE, chamado de “Qualificação da reivindicação de demarcação territorial” uma atividade “técnica” visando qualificar e justificar a demanda, iniciada em 1996. Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à união demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. § 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse per- manente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. § 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei. § 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. 35 De acordo com José Maria Pereira dos Santos (Cacique Sotero), atualmente a Aldeia Kanindé de Aratuba-CE já foi identificada como Aldeia indígena. Os próximos passos serão a delimitação, a demarcação e futuramente a homologação da Aldeia, no qual os habitantes que não se identificam indígenas serão retirados da terra e indenizados pelo Governo Federal. Assim a terra, além de atuar como principal fator de geração de renda, no caso dos Kanindé eles utilizam a terra para a agricultura e a pecuária, em pequena escala. A terra atua também na representação e expressão cultural, exemplo, o Museu Kanindé e o Centro de Artesanato, os quais contribuem para a construção da sua identidade física e ambiental, como, na preservação da fauna e da flora. 4.3 Potencialidades da Terra Kanindé: A fauna em foco. Figura 3 – Terra indígena Kanindé no período da seca. Fonte: arquivo pessoal do autor De acordo com Bastos (2011, p. 19), a Serra de Baturité constitui um dos mais importantes enclaves de mata úmida do Ceará. Representa um ambiente de exceção do bioma da caatinga. A sua proximidade de Fortaleza é cerca de 80 km, aliada aos atrativos culturais e naturais, clima ameno e com médias de temperatura de 20º C, paisagens serranas que alternam vales fechados e aclives do relevo, vegetação demasiada e sempre verde, águas corrente ou pequenas represas, pomares com variedade de lavouras, constitui-se em uma região serrana, 36 cujos totais pluviométricos a enquadram como uma área de clima úmido. Já as áreas que o circundam, apresentam características tipicamente semiáridas, as quais são mais castigadas pela seca que a área enfrenta (FIGURA 3). As temperaturas são amenizadas pela altitude contribuindo para um maior conforto térmico humano, principalmente na quadra chuvosa que vai de Janeiro a Junho (FIGURA 4). Figura 4 – Terra Indígena Kanindé de Aratuba no período chuvoso. Fonte: Arquivo pessoal do autor Ainda conforme Bastos (2011, p.81), o solo do Maciço de Baturité está classificado em: solo neossolos litólicos eutróficos, que são identificados em áreas de caatinga arbórea e mata seca, os quais apresentam domínio argissolo, situando-se com maior frequência em posições de encostas com ribanceiras muito acentuadas e desgastadas pela erosão, principalmente na vertente ocidental; solo argiloso vermelho amarelo eutrófico que ocorre em todo o Maciço, encontrando-se nos pontos mais altos da serra. Este tipo de solo passa a prevalecer nos níveis considerados mais inferiores em altitudes de 600 a 900 metros e o argiloso vermelho amarelo característico de mata úmida que é a maior classe de solos com maior representatividade no conjunto do Maciço de Baturité. São solos moderadamente e acentuadamente drenados, comumente profundos e até rasos variando em função da posição do relevo. 37 Ademais Bastos (2011, p.19), dentre os principais problemas ambientais encontrados no Maciço de Baturité, destacam-se: desmatamentos irregulares e sem obediência a legislação pertinente; degradação a biodiversidade; turismo predatório; erosão dos solos; degradação de nascentes fluviais com ressecamento de fontes e olhos d’água; represamentos irregulares e desvio dos corpos hídricos superficiais; poluição dos solos e recursos hídricos; degradação do patrimônio cultural; desequilíbrio ecológico e proliferação de doenças; queimadas; caças predatória dentre outros. Além disso Bastos (2011, p. 105), afirma que se encontra na Serra de Baturité anfíbios serranos que vem sendo estudados desde a década de 1980. Atualmente foram registrados 30 espécies, sendo 28 anuros (pererecas, rãs e sapos) e 2 gimnofiona (cobras cegas); os lagartos residentes na Serra totalizando 23 espécies; 33 espécies de serpentes das quais seis são serpentes venenosas, como: Coral verdadeira (Micrurus Ibiboboca) e Jararaca (Bothrops erythromelas); A Serra ainda abriga 230 espécies de aves raríssimas das quais 31, ou seja, 5% estão consideradas ameaçadas de extinção. A caça na comunidade é um símbolo de identificação étnica como indígenas Kanindé de Aratuba. Ou seja, a tradição da caça na Aldeia é passada de geração para geração. A tradição é uma símbolo da identidade uma vez que a mesma é transmitida pela oralidade através dos grupos familiares. A maneira como se caça na comunidade tradicional indígena Kanindé de Aratuba, no qual usam desde técnicas apreendidas com os antepassados, armadilhas artesanais como o Quixó, e também armas de fogo, como espingardas. Os métodos tradicionais de caça e pesca (uso de arco e flecha, lança, arpão e emprego de armadilhas) deram espaço, quase que totalmente, à utilização de métodos não-tradicionais. Na caça são empregadas armas de fogo e cães domesticados para esse fim e nas atividades de pesca têm-se a utilização de instrumentos e apetrechos industrializados em substituição àqueles manufaturados com recursos naturais (SALERA JUNIOR et al., 2002, p.87). Segundo Sr. Cicero Pereira dos Santos, 62 anos, nos menciona que “desde menino, com seis ano eu já andava no mato caçando mais o vovô né! E me criei, depois fiquei grande, depois eu fiquei ... meus irmão foi crescendoe continuei no mato mais eles” (Entrevista com Cicero Pereira dos Santos realizada em 09 de Dezembro de 2014). No Museu Indígena Kanindé de Aratuba é comum, peças de categoria zoológica. Demais Gomes (2012, p. 113), “são partes de bichos, alguns empalhados por técnica caseira do próprio Sotero. Animais que se relacionam com a prática da caça (Teju (Tupinambis 38 merianae), Tatu Peba (Euphractus sexcintus), Tatu (Dasypus novemcinctus). São couros, pelos, penas, garras, cabeças, patas, rabos etc” (FIGURA 5). Figura 5 – Artigos de caça (peles, partes de animais e animais inteiros) em exposição do museu. Fonte: Arquivo pessoal do autor [...] tradição é um produto do passado que continua a ser aceito e atuante no presente. É um conjunto de práticas e valores enraizado nos costumes de uma sociedade. Esse conceito tem profundas ligações com outro como cultura e folclore. E, em geral, é matéria de estudo das ciências sociais, sendo objeto de pensadores clássicos da Sociologia como Max Weber. (SILVA; SILVA. 2006 p. 01) Antes dos Índios Kanindé participarem da 2ª Assembleia dos Povos indígenas do Ceará eles já caçavam nas terras indígenas utilizando de armadilhas artesanais como o Quixó e o uso do cachorro, que são técnicas tradicionais de caça, e do costume de se alimentar do mato durante as caçadas. A prática da caça para os Kanindé é um dos principais atributos que faz parte da construção da representação sobre a condição de indígena. 5 A CAÇA NA ALDEIA: PARA ALÉM DA PRÁTICA A RELAÇÃO COM A NATUREZA. 39 A atividade de caça é um fator de preservação da cultura e implica na segurança alimentar e nutricional de um povo. Essa expressão cultural, cujo objetivo é se alimentar, promove a cultura alimentar local. “Pertencem ainda a uma sociedade, cujo fim último é a reprodução dessa solidariedade e não a acumulação de bens e lucro, preservando os recursos naturais dos quais dependem para sobreviver”. (BRAGA, 2004 p.19). O instinto da caça tem [uma] [...] origem remota na evolução da raça. Os instintos e caça e pesca se combinam em muitas manifestações [...]. A sede de sangue humana faz parte do nosso lado primitivo, e é justamente por isso que é tão difícil de ser erradicada, especialmente quando uma luta ou uma caçada é prometida como parte do divertimento. (WILLIAM JAMES, 1890. Apud CARL SAGAN,1998, p.14). Atualmente com o surgimento de leis que preservam o meio ambiente, as mesmas se aplicariam aos índios? Segundo o Estatuto do Índio Lei nª 6001, Art. 24 – O usufruto assegurado aos índios ou silvícolas compreende o direito à posse, uso e percepção das riquezas naturais e de todas as utilidades existentes nas terras ocupadas, bem assim ao produto da exploração econômica de tais riquezas e utilidades: § 1º – “Incluem‐se no usufruto, que se estende aos acessórios e seus acrescidos, o uso dos mananciais e das águas dos trechos das vias fluviais compreendidos nas terras ocupadas” e o § 2º – “É garantido ao índio o exclusivo exercício da caça e pesca nas áreas por ele ocupadas, devendo ser executadas por forma suasória as medidas de polícia que em relação a ele eventualmente tiverem de ser aplicadas”. É importante enfatizar que os índios Kanindé de Aratuba possuem uma consciência ambiental de preservação das espécies que caçam na Aldeia, não matando a caça quando ela está “prenha” ou quando se é observado que o animal está escasso na área. Como relata o Sr. Cicero Pereira dos Santos: “o veado também tem ainda, mas a gente não tá matando mais muito não porque é escasso e a gente tá deixando mais de perseguir ele, mas essas caças que eu tô dizendo todas elas a gente vai buscar no mato” (entrevista com Cicero Pereira dos Santos realizada em 09 de Dezembro de 2014). Aos índios está resguardado o seu direito de caça e pesca para sua própria subsistência, sem qualquer restrição ou condição à autorização do Poder Público. Mas, se destinadas à comercialização estão sujeitas ao cumprimento das exigências legais específicas, inclusive das normas ambientais aplicáveis. 5.1 Para as práticas e o respeito à natureza: o exercício da caça Kanindé de Aratuba. 40 Durante milhões e milhões de anos, nossos ancestrais masculinos andaram correndo por toda parte, atirando pedras em pombos, perseguindo filhotes de antílopes e agarrando-lhes em luta corpo a corpo, formando uma única linha da caçadores a correr e a gritar contra o vento para aterrorizar um bando de javalis perplexos. (SAGAN, 1998, p.18) Figura 6 - Rajado (localidade da Aldeia Fernandes) Fonte: Arquivo pessoal do autor A prática do exercício de caça dos Kanindé consiste na modalidade de caça voluntária (caracteriza-se por um planejamento antecedente com definição de itinerário, data e horário e pode contar com até duas pessoas). Segundo Salera Jr. (2002, p. 86), a caça voluntária pode ser dividida em dois grupos: caça de espera e caça de busca. A caça de busca consiste no encontro de animais por ocaso, que pode se dar por caminhadas ao longo de trilhas. Assim como nos relata o Sr. João Maciel, de 45 anos: “Sempre quando a gente anda atrás de outra caça agente topa com um. Ai agente mata”. Já a caça de espera se dá com a permanência do caçador em uma localidade onde se tenha detectado anteriormente a presença de animais, como por exemplo, através da observação de rastros, pegadas e fezes, isso se dá usualmente nas proximidades de árvores em frutificação na época do período de chuvas (“matar na comida”); na época da estiagem os Kanindés costumam caçar em localidades próximas aos olhos d’água (“matar na bebida”). Como nos relata o Sr. José Sousa Brito, “o sujeito vai e coloca o milho lá na Porta de Vara, aí se soca lá dentro da tucaia pra pastorar ... ai quando 41 chega o rebanho de jacus. Ai eles entram tudo de uma vez, de baixo, e o caba lá dentro da tucaia puxa a corda”. Figura 7 – Tocaia de caça. Fonte: Arquivo pessoal do autor Geralmente os Kanindés caçam na localidade da Terra da Gia, onde se concentram as espécies de roedores como o Mocó (Kerodon Rupestris) e o Punaré (Thrichomys apereoides). É na Terra da Gia que se encontram as áreas estratégicas de caça, no qual estão localizados poucos olhos d’água da Aldeia, propiciando o surgimento de aves como a Avoante (Zenaida auriculata), o Jacucaca (Penelope jacucaca), a Jacupemba (Penelope superciliaris) e mamíferos como o Gato Maracajá (Leopardus pardalis mitis), são locais estratégicos onde se se encontram as Tocaias (FIGURA 7), grandes estruturas engenhosas, que comportam até duas pessoas, feitas de galhos, varetas compondo o esqueleto da estrutura 42 e coberta com folhas para dar acabamento, possui uma pequena abertura para os caçadores entrarem, dessa forma a Tocaia surge como ponto de observação, espera e facilitando a camuflagem, para que a caça na sinta a presença do caçador Figura 8 – Taiados de pedra Fonte: Ezequiel Andrew (2014) Outros locais de caçam são o Rajado (FIGURA 6), local que se concentra a maior quantidade de áreas de plantio da Aldeia, os Taiados (FIGURA 8) e nos arredores da Pedra do Gavião (FIGURA 9). Em entrevista o caçador, Sr. Cicero Pereira dos Santos, que faz uso da caça artesanal, nos explica como se dá o processo da atividade de caça: Sempre a gente planeja o dia de caçar por que a gente nois... nois indígena a gente que vive com a natureza ninguém gosta de caçar dia de segunda nem de sexta, gosta 43 de caçar mais dia de terça, dia de quarta, dia de quinta e dia de sábado né! É os dias que a gente caça porque no mato tem os incantado. Tem a caipora que ainda existe muito aqui ainda que ela também é quem cuida das caça, ela é a dona das caça e a gente tem muita fé nela e ela a gente quando vai pro mato a gente tem um momento que a gente conversa com ela pra ela também botar as
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