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29 Micoses Causadas por Leveduras do Gênero Candida Valéria Maria de Souza Framil INTRODUÇÃO A infecção cutânea, mucos a ou sistêmica causada por leveduras do gênero Candida é denominada candidíase. Casos de candidíase são descritos desde a antiguidade, e a princi- pal espécie patogênica do gênero é a Candida albicans, descrita pela primeira vez por Lan- genbeck em 1839, em afta de paciente com fe- bre tifoide (Lacaz, 2002). No início do século XX acreditava-se que a única espécie patogê- nica para o homem era a Candida albicans. No entanto, a partir da década de 1950, es- tudos complementares demonstraram outras espécies também patogênicas, como Candida tropicalis, Candida glabrata, Candida krusei, Candida parapsilosis, Candida kefyr, Candi- da lusitaniae, Candida inconspicua, Condi- da rugosa, Candida dubliniensis e Candida guilliermondii (Abi-Said et al., 1997; Merz et al., 1986; Pfaller, 1995). Numerosos estudos atualmente indicam que C. albicans é mais frequente do que as espécies não albicans, respondendo por 80 a 90% dos casos (Beck- Sague & Jarvis, 1993; Lacaz, 2002). ECOLOGIA As leveduras do gênero Candida fazem par- te da microbiota normal do homem, sendo encontradas como sapróbias na boca, áreas flexurais, orofaringe, intestino, vagina e es- carro em pacientes clinicamente saudáveis. A maioria das infecções por Candida tem ori- gem endógena. Também pode ser encontrada em superfícies e objetos, tanto na comunidade como em ambientes hospitalares. Candida al- bicans é a espécie de levedura mais frequente (Cohen et al., 1969; Critchley et al., 1985). PATOGÊNESE No homem, leveduras do gênero Candida são isoladas mais frequentemente na cavidade oral e detectadas em aproximadamente 31 a 55% dos indivíduos normais (Odds, 1998). Manifestações de candidíase cutaneomucosa como candidíase orofaríngea e vulvovaginite são frequentes, autolimitadas, e ocorrem na maioria das vezes em indivíduos imunocom- 272 petentes (Kwon-Chung, 1992). Em pacientes internados, a taxa de colonização está rela- cionada ao estado imunológico e ao tempo de permanência no hospital. O aumento da in- cidência de infecções por Candida tem sido observado em pacientes imunodeprimidos, principalmente portadores de AIDS, idosos, neutropênicos, pós-cirúrgicos ou em unidades de terapia intensiva (Beck-Sague et al., 1993; Bodey, 1986; Bonacini et al., 1991; Komshian et al., 1989; Sant'ana et al., 2002). As mani- festações de virulência dos fungos oportu- nistas estão intimamente relacionadas com a presença de fatores de risco inerentes ao hospedeiro, como os fatores predisponentes intrínsecos (velhice, gravidez, prematurida- de, neoplasias, hemopatias, endocrinopatias, avitaminoses, tuberculose, AIDS) e os extrín- secos. O aumento da colonização fúngica por fatores extrínsecos pode ocorrer devido a anti- bioticoterapia prolongada, quebra da barreira normal da pele ou mucosas devido a cirurgias, uso de sondas e cateteres e diminuição ou per- da dos mecanismos imunológicos, possibili- tando a disseminação da infecção nos tecidos e órgãos internos (Blumberg et al., 2001). Em contrapartida, devem ser levados em conside- ração os fatores de virulência das leveduras destacando-se a capacidade de aderência, a formação de pseudomicélios, a variabilidade fenotípica e a produção de enzimas secretoras e toxinas. Candida spp. têm a habilidade de aderir a diversas superfícies, como epitélios, camadas endoteliais, trombos venosos, plásti- co, acrílico. A capacidade de formar biofilmes permite a persistência da levedura e facilita a colonização, invasão e disseminação da infec- ção (Baillie et al., 1998). Proteinases e fosfoli- pases espécie-específicas são proteínas secre- toras que agem comofatores de virulência na célula do hospedeiro (Ghannoum, 2002).A ca- pacidade de variabilidade fenotípica de Can- dida em resposta às condições externas tem sido amplamente estudada. O aumento de se- creção de enzimas proteolíticas e a formação de pseudo-hifas têm sido associados a esse fe- nômeno. Candida albicans isolada a partir de infecção ativa tem maior variabilidade fenotí- Micoses Causadas por Leveduras do Gênero Candida pica que aquelas associadas ao comensalismo (Lacaz, 2002; Sanglard et al., 2002). MANIFESTAÇÕES CLíNICAS Casos de candidíase ocorrem em todas as par- tes do mundo, nas mais variadas formas clíni- cas, e é impossível obter dados a esse respeito. As manifestações clínicas variam de acordo com a localização da infecção.Armstrong, em 1995, de maneira prática, classificou as can- didíases em duas categorias: a candidíase não hematogênica (superficial e profunda) e a candidíase decorrente de disseminação he- matogênica. Candidíase cutânea: Acomete preferen- cialmente áreas de dobras da pele, formando placas eritematosas e lesões satélites (Fig. 29.1). Paroníquia e onicomicose: A paroní- quia é a inflamação dos tecidos periungueais por ação de substâncias químicas, que atuam comoirritantes primários, levando aoprocesso inflamatório. Secundariamente, pode ocorrer infecção por bactérias e leveduras do gênero Candida. Esse processo tende a se cronifi- car, ocasionando distrofia da lâmina ungueal e hipertrofia das dobras ungueais laterais e proximal. No tratamento das paroníquias, é fundamental a remoção dos contactantes, Fig. 29.1 Candidíase cutânea - placa eritematosa e pre- sença de lesões satélites. Micoses Causadas por Leveduras do Gênero Candida uma vez que a terapia tópica leva a resposta parcial e temporária, com recorrência após a interrupção. Ocontrole da inflamação é obtido com corticoides tópicos, sistêmicos ou intrale- sionais, e o controle da infecção secundária, com antifúngicos e antibióticos (Fig. 29.2). Candidíase da área das fraldas: Costu- ma ocorrer quando há dermatite por irritação (contato da pele com urina e fezes) e macera- ção. O pico de incidência ocorre entre o 3º e o 42mês de vida. Eritema, macerado esbranqui- çado, pústulas e lesões papulosas e exulcera- das satélites são características (Fig. 29.3). Fig. 29.2 Paroníquia - eritema e edema periungueal. Fig. 29.3 Lesão eritematosa com presença de lesões sa- télites. 273 Candidíase oral: É frequente entre os re- cém-nascidos e adultos diabéticos, debilitados ou em uso de próteses dentárias não adapta- das. Pode se apresentar clinicamente sob a forma de candidíase aguda pseudomembra- nosa (placas esbranquiçadas na mucosa oral e bordas laterais da língua), candidíase aguda atrófica eritematosa (áreas eritematosas ge- ralmente na língua, decorrentes de antibioti- coterapia prolongada ou infecção pelo HIV), candidíase eritematosa crônica (forma mais comum, geralmente associada a aparelhos or- todônticos, próteses ou uso de chupetas, que facilitam o acúmulo de saliva e a proliferação de Candida spp., levando a eritema e edema no palato), queilite angular (Fig. 29.4) e can- didíase hiperplásica crônica (leucoplasia can- didósica, mais comum em adultos, associada ao hábito de fumar). Candidíase mucocutânea crônica: A candidíase mucocutânea crônica é frequente- mente generalizada e observada em pacientes com imunossupressão primária, adquirida, ou com deficiências nutricionais graves. As manifestações clínicas apresentam-se como: candidíase mucocutânea crônica familiar, doença autossômica recessiva com lesões em boca e unhas; candidíase mucocutânea crôni- ca difusa, mais grave, que compromete pele e mucosas, podendo ocasionar lesões granulo- matosas; síndrome endocrinopática associada Fig. 29.4 Placas esbranquiçadas com base eritematosa. 274 Fig. 29.5 Candidíase mucocutânea crônica. (Colaboração do Prof. Fausto Forin Alonso - Santa Casa de São Paulo.) à candidíase, que pode preceder ou suceder quadro de hipoparatireoidismo ou hipoadre- nocorticalismo, apresentando lesões em boca, unhas e pele (Fig. 29.5). Micoses Causadas por Leveduras do Gênero Candida Candidíase vaginal: É uma manifes- tação clínica frequente, com a presença de corrimento esbranquiçado e prurido. Ocorre particularmente em grávidas, diabéticas e pacientes que se submeterama antibioticote- rapia prolongada. As mulheres com infecção pelo HIV apresentam maior número de episó- dios de candidíase vaginal, com duração mais prolongada e quadro clínicomais grave. Candidíase sistêmica: A candidíase sis- têmica é grave e de difícil diagnóstico. Pode afetar um ou mais órgãos, evoluindo para candidíase disseminada. O termo candidía- se hematogênica é utilizado para identificar todas as infecções que envolvem a presença de Candida spp. na corrente sanguínea. Os pacientes com risco para candidemia ou can- didíase disseminada são neonatos, transplan- tados com ou sem neutropenia, portadores de neoplasias malignas, grandes queimados, pacientes com cirurgias abdominais ou em nutrição parenteral. Também são descritas lesões alérgicas, dis- tantes dos focos primários ativos, que são es- téreis e denominadas candídides. Quadro 29.1 Infecções por Candida spp. no homem - espectro da doença (Reproduzido de Eggimann et al., 2003) Candidemia Infecção hematogênica Infecção não hematogênica Endoftalmite Infecção relacionada a cateter vascular Tromboflebite séptica Endocardite Artrite Osteomielite Espondilodiscite Meningite Pielonefrite Candidíase pulmonar Candidíase hepatoesplênica Candidíase superficial Candidíase cutânea Candidíase orofaríngea Vaginite Candidíase profunda Candidíase esofagiana Candidíase uriná ria/cistite Peritonite Traqueíte/bronquite Micoses Causadas por Leveduras do Gênero Candida TRATAMENTO Várias medicações podem ser empregadas nas diferentes manifestações clínicas da can- didíase. Nas candidíases superficiais, devem ser afastados os fatores que favorecem a pa- togenicidade da levedura e utilizados fár- macos, geralmente de uso tópico, que quase sempre levam a bons resultados. Existem na atualidade agentes orais muito bem absor- vidos e que são empregados nas candidíases oral e vaginal. Já nos processos sistêmicos, utiliza-se a medicação oral ou parenteral. Na candidíase superficial, pode-se empregar solução de violeta de genciana, bicarbonato ou borato de sódio, compostos iodados, deriva- dos imidazólicos, como clotrimazol, miconazol, cetoconazol, oxiconazol, terconazol, e deriva- dos poliênicos, como a nistatina. Em casos mais extensos, podem-se empregar drogas sistêmicas como o itraconazol ou o fluconazol. Na candidíase sistêmica, a anfotericina B é um dos fármacos de eleição, sendo também empregados a 5-fluorocitosina e os derivados triazólicos como o fluconazol e o itraconazol. BIBLIOGRAFIA Abi-Said D,Anaissie E, Uzun O, Raad I, Pinzcows- ki H, Vartivarian S. The epidemiology ofhematoge- nous candidiasis by different Candida species. Clin lnfect Dis 1997; 24:1122-8. Armstrong D. Overview of invasive fungal infec- tions and clinical presentation. 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