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Psicologia do Desenvolvimento 4a edição Rio de Janeiro UVA 2016 Penélope Duarte dos Santos Sergio Pessôa Nassar Psicologia do Desenvolvimento 4a edição Rio de Janeiro UVA 2016 Copyright © UVA 2014 Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio sem a prévia autorização desta instituição. Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. ISBN 978-85-65812-35-1 Autoria do conteúdo Penélope Duarte dos Santos Sergio Pessôa Nassar Design instrucional Wagner G. A. Destro Emanoelle Martins Guedes de Farias Projeto gráfico UVA Diagramação Cristina Lima Raphaela Saules Revisão Débora Silvestre Costa Janaina Vieira Ficha Catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UVA. Biblioteca Maria Anunciação Almeida de Carvalho. S237p Santos, Penélope Duarte dos. Psicologia do desenvolvimento [livro eletrônico] / Penélope Duarte dos Santos, Sergio Pessôa Nassar. – 4. ed. – Rio de Janeiro: UVA, 2016. 578 KB. ISBN: 978-85-65812-35-1 Disponível também impresso. 1. Psicologia do desenvolvimento. I. Nassar, Sergio Pessôa. II. Universidade Veiga de Almeida. III. Título. CDD – 155.7 SUMÁRIO Apresentação................................................................................................................7 Sobre os autores.........................................................................................................8 Capítulo 1 - O ser humano: um ser em desenvolvimento....9 Origem da Psicologia do Desenvolvimento: conceituação e ca- racterização.............................................................................................12 A família e a criança contemporâneas: as práticas educativas familiares e o desenvolvimento............................................................20 A Psicologia do Desenvolvimento e sua aplicação na prática educacional..................................................................................................31 Referências...............................................................................39 Capítulo 2 - Abordagens contemporâneas da Psicolo- gia do Desenvolvimento - Parte I.................................41 Freud e a psicanálise - Contribuições à compreensão do desenvol- vimento humano...............................................................................................43 A gravidez e as etapas do desenvolvimento pré-natal..............57 O desenvolvimento psicossexual e as implicações no processo educacional..................................................................................................66 Referências......................................................................................................90 Capítulo 3 - Abordagens contemporâneas da Psicolo- gia do Desenvolvimento - Parte II..............................91 Wallon e a Teoria das Emoções: contribuições à compreensão da complexidade do desenvolvimento humano............................93 A dinâmica do desenvolvimento infantil......................................106 As etapas do desenvolvimento e as contribuições à prática es- colar.....................................................................................................112 Referências...................................................................................................127 Capítulo 4 - Os processos de desenvolvimento do ado- lescente e sua transição para o mundo adulto......129 Adolescência: conceito e características........................................131 Gravidez, drogas e violência.................................................................148 A transição para o mundo adulto e as contribuições à dinâmica escolar.......................................................................................................157 Referências....................................................................................................163 Considerações finais.....................................................166 7 APRESENTAÇÃO Este livro trata de Psicologia do Desenvolvimento, um tema vasto e muito fascinante, por meio do qual podemos compreender melhor o homem em seu relacionamento e interação consigo mesmo, com o outro e com o ambiente que o cerca. Aqui, vamos conhecer a família e a criança na perspectiva da Psicolo- gia do Desenvolvimento; reconhecer a importância dos primeiros anos de vida no processo de desenvolvimento do ser humano; identificar as etapas biopsicossocial e afetiva do desenvolvimento infantil e sua aplicabilidade na prática educativa; analisar os processos de desenvol- vimento vivenciados pelo adolescente e sua transição para o mundo adulto. Desejamos que você aproveite ao máximo esta experiência e que a leitura desta obra promova uma oportunidade de reflexão sobre os conteúdos abordados, contribuindo efetivamente para o seu enrique- cimento cultural e acadêmico. ...................................................................................................................................................................................................................... 8 SOBRE OS AUTORES Penélope Duarte dos Santos é mestre em Psicologia da Educação pelo Instituto de Estudos Avançados em Educação da Fundação Getúlio Vargas - IESAE-RJ (1993). É especialista em Saúde do Trabalhador pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz - ENSP (2003), e é graduada em Psicologia pela Universidade Santa Úrsula - USU (1981). Professora assistente da Universidade Veiga de Almeida, leciona nos cursos de Pedagogia e Psicologia. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação Pré-Escolar e formação de pro- fessores, atuando, também, na área de Saúde do Trabalhador. Sergio Pessôa Nassar é mestre em Educação, com ênfase em Psicolo- gia da Educação, pelo Instituto de Estudos Avançados em Educação da Fundação Getúlio Vargas - FGV/IESAE. É pós-graduado em Psicologia Pedagógica pelo Instituto de Seleção e Orientação Profissional da Fun- dação Getúlio Vargas - FGV/ISOP e graduado em Psicologia e em Peda- gogia pela Universidade Gama Filho - UGF. Tem experiência de mais de 20 anos como professor de graduação em várias universidades e nos últimos 15 anos tem atuado como professor de cursos de pós-gradua- ção nas mais diversas áreas do conhecimento. ...................................................................................................................................................................................................................... 9Origem da Psicologia do Desenvolvimento: conceituação e caracterização ...................................................................................................................................................................................................................... CAPÍTULO 1 O SER HUMANO: UM SER EM DESENVOLVIMENTO Estamos iniciando a nossa leitura sobre o desenvolvimen- to humano. Esse tema tão vasto e fascinante desperta em muitos pesquisadores (e, dentre eles, vários psicólogos) o interesse pela compreensão das diversas maneiras de o homem relacionar-se e interagir com o outro e com o pró- prio meio ambiente, na busca contínua por um contexto favorável ao seu desenvolvimento. Como descobriremos ao longo da unidade, muitas con- cepções sobre o desenvolvimento foram surgindo e mo- dificando-se. A observação atenta do comportamento hu- mano proporcionou, ao longo dos séculos, a compreensão desse processo ininterrupto que é iniciado na infância e desenvolvido ao longo de toda a nossa existência. Esse caminho, que agora iniciamos, exige compromisso e interesse pelo conhecimento. Afinal, como futuros educa- dores, temos de procurar compreender e conhecer o ser humano em suas diversas possibilidades de desenvolvi- mento. Trata-se de uma tarefa que, em alguns momentos, irá exigir certadesconstrução de tudo que acreditávamos saber para descobrirmos que existem outras alternativas e que somos “peças-chave” nesse processo de transfor- mação. ...................................................................................................................................................................................................................... O ser humano: um ser em desenvolvimento10 ...................................................................................................................................................................................................................... Para iniciar, escolhemos este pequeno trecho de um ro- mance famoso, intitulado Madame de Bovary, ambienta- do na França do século XIX. Esta cena, comum à época, retrata o amor de uma mãe por sua filhinha e, ao mesmo tempo, nos informa a maneira como muitas crianças eram cuidadas e protegidas no sé- culo XIX. O autor, Gustave Flaubert, descreve com minúcias a cena em que Emma resolve ir visitar sua filhinha, que, como era costume na época, estava entregue aos cuidados de uma ama. Gustave Flaubert (1821 – 1880). Escritor francês e prosador importante, Flaubert marcou a literatura francesa pela profundidade de suas análises psicológicas, seu senso de realidade, sua lucidez sobre o comportamento social, e pela força de seu estilo em grandes romances. A Sra. Bovary disse que ia ver sua filha, mas que começara a sentir-se cansada. Para chegar à casa da ama, era preciso tomar à esquerda depois da rua, como quem vai ao cemitério, e se- guir, entre casinhas e pátios, um pequeno atalho ladeado de alfenas. Estas estavam floridas, como também as verônicas, as roseiras-bravas, as urtigas e os espinheiros miúdos que saíam das moitas. Pelos buracos das sebes percebia-se, nos casebres, algum porco sobre a estrumeira ou vacas presas pelo peitoral, esfregando os cornos nos troncos das árvores. Lado a lado, ca- minhando suavemente, ela apoiando-se nele e Léon retendo os passos, que regulava pelos dela; um enxame de moscas esvoa- çava, zumbindo no ar quente. Reconheceram a casa por uma velha nogueira que lhe dava sombra. Baixa e coberta de telhas escuras, tinha, exteriormente, suspensa sob a lucarna do sótão, uma réstia de cebola. Alguns feixes de lenha encostados na cerca de espinhos rodeavam um canteiro de alface, alguns pés de lavanda e ervilhas-de-cheiro cravadas em estacas. Via-se água suja que escorria espalhando- -se na relva e havia, ao redor, vários trapos indistintos, meias de tricô, uma blusa de chita vermelha e um grande pano de fazen- da espessa estendido ao comprido sobre uma sebe. Ao ruído da cancela, a ama apareceu, segurando nos braços uma criança 11Origem da Psicologia do Desenvolvimento: conceituação e caracterização ...................................................................................................................................................................................................................... Se fosse possível conversar com a Sra. Bovary, o que você perguntaria? Que elementos ressaltados pelo autor na cena descrita chamaram a sua atenção? Você concorda comigo quando afirmo que Emma sentia amor pela sua filha? O que se sabia na época sobre o desenvolvimento humano? Essas e muitas outras perguntas certamente lhe surgiram no momento em que você lia o texto. que mamava. Puxava com a outra mão um pobre menino raquí- tico com o rosto coberto de escrófulas, o filho de um fabricante de artigos de malha de Rouen que os pais, demasiadamente ocu- pados com seu negócio, deixavam no campo. – Entre – disse ela, – sua menina está lá, dormindo. O ser humano: um ser em desenvolvimento12 ...................................................................................................................................................................................................................... ORIGEM DA PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO: CONCEITUAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO A partir de agora esperamos que você aprenda a conceitu- ar a Psicologia do Desenvolvimento. A cena que acabamos de ler, descrita por Flaubert, envolve crianças pequenas que recebem cuidados longe de seus pais, sob a responsabilidade de uma ama, que, segundo o autor, atende a crianças em situação bastante precária. Se hoje, na contemporaneidade, estranhamos tal compor- tamento, muito disso se deve aos estudiosos que, já na época do autor, pesquisavam o desenvolvimento infantil, buscando identificar suas características e necessidades. O século de Madame Bovary foi marcado por grandes transformações sociais, políticas, científicas e culturais. Foi nesse cenário que a história registrou o “nascimento” da Psicologia como ciência. O primeiro laboratório de psi- cologia experimental surgiu em Leipzig, Alemanha, no ano de 1879, sob a direção de Wilhelm Wundt, com o objetivo de investigar experimentalmente os fenômenos mentais. Esse foi o início de uma longa trajetória na busca pela com- preensão do comportamento humano, que rapidamente se desdobrou em outras escolas do pensamento psicológico, principalmente na Europa e nos Estados Unidos. 13A família e a criança contemporâneas: as práticas educativas familiares e o desenvolvimento ...................................................................................................................................................................................................................... No nosso caso, em especial, o interesse direciona-se para o ramo da Psicologia que irá pautar-se na pesquisa dos aspectos evolutivos do ser humano. Assim, a Psicologia do Desenvolvimento propõe-se a estudar e a investigar as transformações ocorridas ao longo da vida do ser humano em todas as etapas do seu ciclo de vida — da infância à velhice. Dessa forma, a Psicologia do Desenvolvimento abrange o estudo do desenvolvimento filogenético, ontogenético e sociogenético. Você deve estar se perguntando: Afinal, o que é desenvolvimento filogenético, ontogenético e sociogenético? Não se preocupe, vamos procurar esclarecer a sua dúvida: • Desenvolvimento filogenético: a filogênese pro- cura estudar a história evolutiva da espécie. Assim, quando a Psicologia procura investigar e sistemati- zar o desenvolvimento humano, ou seja, seu pro- cesso evolutivo, ela precisa identificar as mudanças ocorridas nas estruturas e no comportamento dos organismos, dos mais simples aos mais sofistica- dos, chegando, então, ao desenvolvimento atual. • Desenvolvimento ontogenético: a ontogênese refere-se ao desenvolvimento do indivíduo. Trata-se das experiências acumuladas durante a vida e que contribuem para o seu desenvolvimento. Ela inves- Jamile Rectangle Jamile Squiggly Jamile Squiggly Jamile Squiggly Jamile Squiggly Jamile Squiggly Jamile Squiggly O ser humano: um ser em desenvolvimento14 ...................................................................................................................................................................................................................... tiga a trajetória pessoal e é muito utilizada nas pes- quisas sobre o desenvolvimento infantil. • Desenvolvimento sociogenético: refere-se ao estudo dos grupos sociais. Procura pesquisar a his- tória dos grupos sociais e sua influência no desen- volvimento do ser humano. Bem, imagino que, agora, você já deve estar percebendo a complexidade dos estudos realizados pela Psicologia do Desenvolvimento. Ela precisa preocupar-se em saber em que etapa da vida a pessoa encontra-se, saber das suas experiências e da sua subjetividade e contextualizá-las, ou seja, identificar o momento social, político e cultural no qual a pessoa está inserida. Assim, podemos perceber que é pouco provável que duas pessoas evoluam de maneira idêntica. O elemento idiossincrático sempre estará pre- sente, favorecendoa diferença. Como será que esses estudos foram realizados? É exatamente isso que vamos abordar agora. Na verdade, você vai perceber algumas informações básicas sobre as correntes filosóficas que muito influenciaram os psicólo- gos no século XIX. Nessa época, duas grandes correntes do pensamento des- tacam-se: o Empirismo inglês e o Racionalismo alemão. Essas escolas rivais ocuparam um lugar preponderante na origem da jovem ciência — a Psicologia. Jamile Squiggly Jamile Underline Jamile Arrow Jamile Arrow 15Origem da Psicologia do Desenvolvimento: conceituação e caracterização ...................................................................................................................................................................................................................... Vamos verificar algumas contribuições importantes: A filosofia empirista compara a mente humana a um espa- ço vazio. Você deve conhecer o famoso conceito de John Locke (1632-1704), filósofo inglês e ideólogo do liberalis- mo, que compara a mente humana, no momento do nas- cimento, a uma tábula rasa. Para esta escola filosófica, a fonte de informação do ser humano é a experiência e a sua percepção sensorial. Podemos entender, então, que o co- nhecimento ocorre de fora para dentro, e que o indivíduo é determinado pelo ambiente. Para os racionalistas, ao contrário, todo o conhecimento humano é reduzido à razão. O conhecimento é considera- do anterior à experiência e depende de conteúdos inatos, ou seja, que já estão presentes no homem desde a sua origem. Assim, para esta escola, o conhecimento ocorre de dentro para fora e é o indivíduo quem determina o am- biente. Nesse mesmo século, surgiu outra escola do pensamen- to, representada por um dos pensadores mais influentes da modernidade, que, talvez, você já conheça: Immanuel Kant (1724-1804), filósofo prussiano, considerado o últi- mo grande filósofo dos princípios da era moderna. Para ele, nem os racionalistas, nem os empiristas estavam cor- retos. Disse ele: “tanto a razão quanto a experiência são importantes para ocorrer o conhecimento.” Dessa disputa acirrada surgiu, na segunda metade do sé- culo XIX, uma corrente do pensamento filosófico que, na- quele momento, foi determinante para o reconhecimento John Locke (1632 — 1704). Filósofo inglês e ideólogo do liberalismo, considerado o principal representante do empirismo britânico e um dos principais teóricos do contrato social. Locke rejeitava a doutrina das ideias inatas e afirmava que todas as nossas ideias tinham origem no que era percebido pelos sentidos. Immanuel Kant (1724 — 1804). Filósofo prussiano, que é geralmente considerado o último grande filósofo dos princípios da era moderna. Operou uma síntese entre o racionalismo continental (de René Descartes e Gottfried Leibniz, onde impera a forma de raciocínio dedutivo), e a tradição empírica inglesa (de David Hume, John Locke, ou George Berkeley, que valoriza a indução). Jamile Arrow Jamile Highlight Jamile Highlight Jamile Highlight Jamile Arrow Jamile Highlight Jamile Highlight Jamile Highlight Jamile Arrow O ser humano: um ser em desenvolvimento16 ...................................................................................................................................................................................................................... da Psicologia como ciência. Estamos falando do Positivis- mo: escola de pensamento presente em todas as ciências, que estabeleceu os critérios científicos para a apropriação do conhecimento. A psicologia que ali se iniciou adotou em suas pesquisas sobre o comportamento humano uma metodologia orientada pela observação cuidadosa e siste- matizada. Nesse contexto de discussão filosófica surgiram, na Psico- logia, dois modelos para a compreensão do processo de desenvolvimento. Estamos referindo-nos ao modelo me- canicista do desenvolvimento e ao modelo organicista do desenvolvimento. O modelo mecanicista do desenvolvimento enfatiza os aspectos da experiência, da aprendizagem, enquanto o modelo organicista privilegia os processos de desenvolvi- mento que têm caráter universal, ou seja, as característi- cas inatas dos indivíduos. Então, conseguiu identificar a origem desses modelos? O modelo mecanicista do desenvolvimento dialoga com a escola empirista e preocupa-se com as experiências, as aprendizagens, que ocorrem ao longo da vida da pessoa e determinam o seu desenvolvimento. Assim, a metodologia utilizada baseia-se em métodos operacionais, medindo e quantificando as aprendizagens e/ou mudanças de com- portamento observadas na pessoa. Não há interesse em discutir os processos não observáveis, os que não podem ser verificados mediante os critérios científicos apontados pela abordagem positivista. Jamile Arrow Jamile Arrow Jamile Arrow Jamile Arrow Jamile Underline Jamile Insert Text Jamile Highlight Jamile Cloud Jamile Cloud Jamile Highlight Jamile Underline Jamile Underline Jamile Pencil Jamile Pencil Jamile Pencil 17Origem da Psicologia do Desenvolvimento: conceituação e caracterização ...................................................................................................................................................................................................................... Por sua vez, o modelo organicista do desenvolvimento preocupa-se com os conteúdos internos, mas também não deixa de valorizar os estímulos externos. Para este modelo, o desenvolvimento apresenta ordem e estrutura denominadas estágios, que estão presentes em todos os indivíduos, sendo, portanto, universais a todos os seres humanos. Esses modelos “imperaram” na Psicologia do Desenvolvi- mento até a década de 1970 do século XX, quando um grupo de pesquisadores propôs o modelo conhecido como ciclo vital, que se contrapõe, particularmente, ao mode- lo organicista e que enfatiza a importância de estudar o comportamento humano da infância até a velhice. Isso não ocorria na proposta organicista, que se debruçava, até então, sobre a infância e a adolescência, não consideran- do o processo de desenvolvimento como algo que poderia ocorrer ao longo da vida da pessoa. Outra crítica enfatiza- da por este modelo refere-se à concepção do desenvolvi- mento como um processo universal. Para esses psicólogos, a cultura tem um papel preponde- rante e pode modificar aspectos vivenciados na infância, que, até então, eram considerados determinantes na his- tória de vida do indivíduo. Assim, eles propuseram que se considerasse as duas possibilidades: a perspectiva meca- nicista e a organicista. Convido você a pensarmos juntos. Será que uma pessoa que vi- veu no início do século XX enfrentou duas grandes guerras, ha- bitou em um mundo sem o computador, a internet, o celular, o avanço da medicina, pode apresentar um desenvolvimento simi- lar ao seu? Esses fatores não irão influenciar o seu desenvolvimen- to? Qual a sua opinião? Retorne ao texto e pense a respeito. Jamile Pencil Jamile Pencil Jamile Pencil Jamile Arrow O ser humano: um ser em desenvolvimento18 ...................................................................................................................................................................................................................... Continuando... Assim, podemos entender que, para o modelo do ciclo vi- tal, o desenvolvimento humano é influenciado por vários fatores, por múltiplas determinações que não apresentam um caráter restritivo, como nos modelos anteriormente apresentados. Desse modo, na compreensão do comporta- mento humano, devemos levar em consideração os aspec- tos biológicos, sociais e culturais. Como uma ciência que ainda está aprendendo a andar, a Psicologia pergunta-se: quais são, afinal, os elementos determinantes do processo de desenvolvimento psicológicodo ser humano? As discussões envolvem, como vimos, tanto a importância do meio ambiente como aspectos internos, nossa herança filogenética. Vamos tentar agora verificar o que entendemos por Psico- logia do Desenvolvimento e talvez compreender que seria impossível conversar com Madame Bovary sobre os aspec- tos do desenvolvimento da sua filhinha, quando tão pouco se conhecia sobre este processo. Em uma concepção contemporânea de desenvolvimento, podemos, então, afirmar que a Psicologia do Desenvol- vimento refere-se “à compreensão e à pesquisa sobre os processos de mudanças psicológicas nos seres humanos, que ocorrem ao longo de toda a existência, e que são in- fluenciados pelos fatores externos e pela nossa herança filogenética”. Jamile Highlight 19Origem da Psicologia do Desenvolvimento: conceituação e caracterização ...................................................................................................................................................................................................................... Você se lembra? Estávamos saindo da casa da ama — mãe Rollet —, que tem sob sua responsabilidade crianças pequenas, deixa- das ali por seus pais para serem cuidadas e protegidas por ela. Perguntamos também: Se fosse possível conversar com a Sra. Bovary, o que você perguntaria? Na cena descrita, que elementos ressaltados pelo autor chamaram a sua atenção? Você concorda que Emma sentia amor por sua filha? Para tentar respondê-las, vamos passar para o o próximo tópico. O ser humano: um ser em desenvolvimento20 ...................................................................................................................................................................................................................... A FAMÍLIA E A CRIANÇA CONTEMPORÂNEAS: AS PRÁTICAS EDUCATIVAS FAMILIARES E O DESENVOLVIMENTO Esperamos que você aprenda a identificar as mudanças ocorridas na instituição familiar e os seus efeitos no de- senvolvimento da criança. Estudamos até aqui um pouco da história da Psicologia e verificamos a evolução da Psicologia do Desenvolvimento. Aprendemos que desenvolvimento refere-se ao conjun- to de variações que se manifestam em um indivíduo por força das disposições interiores e da ação do ambiente. Vimos também que ele pode ser entendido como a série de mudanças ocorridas no organismo como resultado da aprendizagem e das influências ambientais. Cada indivíduo tem sua própria história e ritmo de de- senvolvimento. O processo do desenvolvimento humano abrange todos os aspectos do indivíduo de uma forma intimamente inter- -relacionada. Tudo nele, o crescimento físico, a evolução afetiva e da sensibilidade, os interesses, as motivações e o desenvolvimento intelectual estão indissoluvelmente liga- dos. Entretanto, não há um paralelismo absoluto entre os desenvolvimentos físico, emocional e mental, embora seja possível apreciar com nitidez as relações de mutualidade 21A família e a criança contemporâneas: as práticas educativas familiares e o desenvolvimento ...................................................................................................................................................................................................................... entre eles. São elas que permitem identificar um indivíduo quando, em face de um processo de desenvolvimento, ele apresenta alguma limitação ou dificuldade. O ritmo de desenvolvimento é próprio de cada indivíduo, uma vez que os fatores ambientais — sobretudo, a nutri- ção e a escolaridade — podem provocar maior ou menor aceleração. Os estudos efetuados pela Psicologia do Desenvolvimento remetem a um determinado contexto de desenvolvimento. O que estamos querendo dizer é que o indivíduo estudado pela Psicologia, na contemporaneidade, apresenta caracte- rísticas sociais e culturais muito diferentes daquelas que ocorriam na modernidade. Daí, certamente, a sua surpresa com o relato de Flaubert. O que ele nos apresenta? De que criança está falando? Como se estrutura aquela família? A criança que hoje conhecemos na sociedade contemporâ- nea ainda ocupa um lugar de destaque. Ela é a figura central no contexto familiar. Seu desenvolvimento, suas necessida- des, seus interesses e seu futuro são alvos de preocupação e do investimento constante de seus pais. O mesmo ocorre no ambiente escolar. Estudiosos da Psicologia e da Educa- ção procuram compreender e acompanhar o seu desenvol- vimento e os seus processos de aprendizagem. Nas últimas décadas, percebeu-se uma mudança de foco ou de lugar. A maneira de se pensar a criança e sua família Jamile Underline O ser humano: um ser em desenvolvimento22 ...................................................................................................................................................................................................................... modificou-se vagarosamente e os reflexos dessa mudança apareceram na escola, exigindo dos educadores uma res- posta aos problemas e às demandas que surgem a cada momento. Percebe-se, com certa perplexidade, que nem a escola nem a família estão preparadas ou sabendo como lidar com essas transformações, e fica-se com a impressão de que, principalmente no que se refere à escola, ela não está pre- parada para mudanças. O conceito que construímos sobre a criança e a própria infância está tão arraigado que não nos permite olhar o processo de forma mais dinâmica; ou seja, em constante transformação. Se retrocedermos alguns séculos, verificaremos que a ma- neira como pensamos e entendemos hoje, a criança e sua infância é fruto de mudanças profundas na mentalidade. Autores como Ariès (1973) e Badinter (1985) apontam es- sas transformações que aconteceram lentamente a partir do século XVII, verificando o surgimento de uma nova concepção de infância, que provoca cuidados e atenção por parte dos adultos na educação das crianças. Esses autores (Ariès e Badinter) debruçaram-se sobre a história social da criança e da família e encontraram mui- tas histórias como a de Emma Bovary. Então, segundo Ariès (1973, p.270): “A criança tornou-se um elemento indispensável da vida cotidiana, e os adul- tos passaram a se preocupar com sua educação, carreira e futuro.” Jamile Arrow Jamile Arrow Jamile Underline 23A família e a criança contemporâneas: as práticas educativas familiares e o desenvolvimento ...................................................................................................................................................................................................................... Porém, a criança e sua infância nem sempre foram a preo- cupação central de uma família. As mudanças na mentali- dade ocorreram lentamente, e é comum, na modernidade, encontrar a criança em um lugar secundário, como mero objeto de diversão dos adultos. Badinter (1985, p. 78) destaca que: [...] a criança é considerada com muita frequência pelos pais como um brinquedo divertido do qual se gosta pelo prazer que proporciona, e não pelo seu bem. É uma espécie de pequeno ser sem persona- lidade, um jogo nas mãos dos adultos. Assim que deixa de distrair, deixa de interessar. Para Ariès, a criança ocupava esse lugar tão insignifican- te porque estava marcada pela constante possibilidade de morte prematura. Assim, pouco se sabia sobre ela. Lembre que a figura do pediatra só surgiu no final do século XIX. Havia, portan- to, falta de conhecimento sobre essa etapa da vida e sua especificidade. O autor observa que existia o sentimento de uma infância curta, ou seja, superados os cinco ou sete anos de vida, a criança era integrada ao mundo do adulto. A divisão por faixa etária que conhecemos e que, de certa forma, naturalizamos, é fruto de um longo processo. Du- rante muito tempo a própria escola foi indiferentea essa organização por idades. Crianças, jovens e adultos com- partilhavam o mesmo lugar na hora de aprender, tanto na escola como na vida cotidiana. Jamile Underline Jamile Underline O ser humano: um ser em desenvolvimento24 ...................................................................................................................................................................................................................... Aos poucos, o cenário vai modificando-se, e no século XVII é encontrado um número significativo de escolas na Fran- ça, principalmente para meninos. Segundo Ariès: […] tendia-se a considerar como o término da pri- meira infância a idade de 5-6 anos, quando o meni- no deixava sua mãe, sua ama ou suas criadas. [...] O sentimento mais comumente expresso para justifi- car a necessidade de retardar a entrada para o colé- gio era a fraqueza, a imbecilidade ou a incapacidade dos pequeninos. (1973, p. 176) Para Badinter (1985, p. 132), “a escola toma o lugar do aprendizado como meio de educação”. Essas mudanças não ocorreram gratuitamente, pois foram frutos de mu- danças profundas que chegaram até a família por meio da produção de um discurso econômico e filosófico em defesa da criança. Assim diz a autora: A verdade é que a criança, especialmente em fins do século XVIII, adquire um valor mercantil. Como o senso da previsão e da antecipação se havia de- senvolvido nos homens do fim de século, não se via mais na criança o fardo que ela representava a curto prazo, mas a força de produção que encarnava a longo prazo. Ela se transformou num investimento lucrativo para o Estado, que seria tolice e “imprevi- dência” negligenciar. Essa nova visão do ser huma- no em termos de mão-de-obra lucro e riqueza, é a expressão do capitalismo nascente. (1985, p. 160) Atrelado ao discurso econômico, temos o discurso filosó- fico. Rousseau acrescenta, em seu O Contrato Social, uma “nova família”. Ao pai, na função paterna, é atribuída a autoridade que acompanha a proteção do filho, que é uma necessidade da criança. Jamile Oval Jamile Rectangle Jamile Arrow 25A família e a criança contemporâneas: as práticas educativas familiares e o desenvolvimento ...................................................................................................................................................................................................................... Ressalta Badinter: A análise do Contrato social lança uma luz nova não só a condição do pai, mas também sobre a do filho. Afirmando, desde a primeira frase do livro, que “o homem nasceu livre”, Rousseau estabelecia a liberdade como um dado indestrutível da natureza humana. E assim ele tornava homogênea a natureza do pai e a do filho. A criança é, portanto, uma cria- tura potencialmente livre, e a verdadeira função do pai é tornar possível a atualização dessa liberdade ainda adormecida. Criar um filho é fazer de um ser momentaneamente frágil e alienado uma pessoa au- tônoma assim como os pais. (1985, p. 169) A nova família tem como responsabilidade a felicidade dos filhos que, segundo a autora, será prolongada até o século XX, quando ela “alcançará o seu apogeu graças à teoria psicanalítica”. Para Ariès (1973, p. 276) além da psicanálise, a pediatria e a psicologia consagram-se aos problemas da infância e suas desco- bertas são transmitidas aos pais através de uma vasta literatura de vulgarização. Nosso mundo é obcecado pelos problemas físicos, morais e sexuais da infância. A evolução dos costumes ocorreu lentamente e a acentu- ada preocupação com a saúde e a felicidade dos filhos le- vará, cada vez mais, a mãe a dedicar-se integralmente aos seus cuidados. Cuidar dos filhos, vigiá-los e educá-los exige sua presença efetiva no lar... Seus filhos são suas únicas ambições e ela sonha para eles um futuro mais bri- lhante e mais seguro do que o seu. A nova mãe é essa mulher que conhecemos bem, que investe todos os Jamile Arrow Jamile Arrow Jamile Arrow Jamile Rectangle Jamile Rectangle O ser humano: um ser em desenvolvimento26 ...................................................................................................................................................................................................................... seus desejos de poder na pessoa de seus filhos. Preo- cupada com o futuro deles, limitará voluntariamente a sua fecundidade. (BADINTER, 1985, p. 212) Esse modelo idealizado em função das necessidades da sociedade burguesa emergente, de educação familiar cen- trada na responsabilidade materna que investe na criança todos os seus anseios de felicidade, chega aos nossos dias fragmentado. Novas possibilidades apresentam-se para a reorganização familiar. A psicanalista Maria Rita Kehl (2003) aborda a família ten- tacular contemporânea formada por novos encontros de adultos, adolescentes e crianças vindos de outras famílias. Porém, segundo a autora, não se pode esquecer sua res- ponsabilidade de cuidar da criança, devido ao seu aban- dono moral. Diz ela: “O que é insubstituível é um olhar de adulto sobre a criança, a um só tempo amoroso e respon- sável, desejante de que esta criança exista e seja feliz na medida do possível — mas não a qualquer preço.” Às vezes, algumas certezas caem por terra e descobrimos fatos sobre a realidade que irão enriquecer e aumentar as nossas possibilidades de compreensão da mesma. Vejamos: quantas vezes consideramos que o nosso aluno não aprende porque é oriundo de uma família desestrutu- rada? Outras vezes, contudo, depositamos a responsabi- lidade na figura da família, mas sem realmente conhecer seu comprometimento ou seu papel no desenvolvimento da aprendizagem. Espero que você tenha compreendido que a infância e a fa- mília tal e qual você conhecia e admitia, até ler este texto, Jamile Rectangle Jamile Rectangle Jamile Rectangle 27A família e a criança contemporâneas: as práticas educativas familiares e o desenvolvimento ...................................................................................................................................................................................................................... são frutos de uma construção social, e portanto, estão em constante transformação. Tais fatos, no entanto, não im- pedem o seu desenvolvimento. E é este assunto que que- remos explanar agora para você. Antes, porém, perguntamos: Você consegue, depois desta leitura, responder àquelas outras questões formuladas a M. Bovary? Prosseguindo... Estudaremos as práticas educativas familiares e sua im- portância como contexto de desenvolvimento. Para nós, educadores, este é um assunto muito importante. Precisa- mos conhecer o nosso aluno, a sua história, a sua família, as experiências que compõem o seu repertório de desen- volvimento. Bola de meia, Bola de gude (Milton Nascimento e Fernando Brant) “Há um menino, há um moleque morando sempre no meu coração Toda vez que o adulto balança Ele vem pra me dar a mão.” Essa música lembra-nos das coisas boas da infância, de como elas ficam guardadas na nossa memória e como nos ajudam ao longo da nossa história, nos momentos difíceis em que, como diz a música, “balançamos”. O ser humano: um ser em desenvolvimento28 ...................................................................................................................................................................................................................... Essa criança que está dentro de todos nós tem muita his- tória para contar, e, ao longo deste capítulo, verificaremos a plasticidade e a capacidade de adaptação do ser humano a vários contextos de desenvolvimento. Ora, a criança era criada longe da família, não existia uma educação especí- fica, ela aprendia junto ao jovem, ao adulto, ao idoso, sem maiores cuidados. Sua alimentação, os cuidados comsua higiene, suas experiências infantis não se distinguiam das oferecidas e vivenciadas pelos adultos. Depois, ela foi sub- metida, na escola, a uma classificação por faixas etárias, passando a ter necessidades e interesses diferenciados e torna-se, por último, a figura central da família e — por que não dizer? — da própria sociedade. Podemos, então, perguntar: A escola é o único local, privilegiado, para proporcionar o desenvolvimento ao aluno? A família também pode proporcionar um contexto favorável de desenvolvimento? Respondendo à primeira pergunta, muitos psicólogos con- sideram que não, e enfatizam o papel do desenvolvimento sociogenético na formação e na construção de contextos saudáveis de desenvolvimento. Estamos falando de práti- cas educativas não formais e informais, as quais possibi- litam em várias culturas, por meio dos seus instrumentos mediadores e de vários grupos sociais, que a família, em suas mais variadas formas de organização, seja um con- texto privilegiado de desenvolvimento. Jamile Rectangle Jamile Rectangle Jamile Underline 29A família e a criança contemporâneas: as práticas educativas familiares e o desenvolvimento ...................................................................................................................................................................................................................... Isso não significa afirmar que qualquer contexto seja fa- vorável ao desenvolvimento, nem que o mesmo contexto seja favorável a todos. Isso porque não podemos esquecer o protagonista do processo, ou seja, o próprio indivíduo. Ele traz a sua história e as suas possibilidades e limita- ções, e nem sempre será possível responder de maneira favorável e produtiva às oportunidades oferecidas. Bronfenbrenner (1985), citado por C. Coll (1999, p. 149), destaca que são necessárias duas condições complemen- tares para favorecer o contexto de desenvolvimento: • A possibilidade de a criança observar padrões de atividade progressivamente mais complexos e in- corporá-los com a ajuda e a orientação de alguém mais especializado. • A possibilidade de a criança envolver-se nas ati- vidades das quais participou com a ajuda de outros, porém, agora, de forma independente. Essas condições são consideradas absolutamente neces- sárias para a promoção do desenvolvimento, e, segundo C.Coll (1999), viabilizam uma “diversidade de caminhos por meio dos quais as pessoas aprendem”. Assim, o autor destaca as principais funções da família: • O cuidado e a proteção. • O processo de socialização. Jamile Arrow Jamile Arrow O ser humano: um ser em desenvolvimento30 ...................................................................................................................................................................................................................... • A responsabilidade com a escolarização. • A ajuda e o suporte na construção de estruturas emocionais equilibradas. Dessa forma, constatamos a importância da dinâmica fa- miliar na viabilização de contextos saudáveis de desen- volvimento. Não esquecendo, como ressalta o autor, que a família é constituída por uma série de protagonistas: pais, irmãos, parentes próximos e, como assinala Kehl, os no- vos membros da família tentacular. Assim, nesse contexto, aprendem os filhos, os irmãos, os pais e os demais membros incluídos nas novas modalidades e possibilidades oferecidas pelo contexto familiar. Essa nova realidade, que cada vez mais se afirma, deve ser entendida pela escola e por seus educadores, muitos dos quais também vivenciam situações similares como parcei- ros e atores no processo de desenvolvimento do aluno, in- dependentemente de sua idade, história ou contexto social. E agora? Você consegue responder à segunda pergunta? Faça uma nova leitura deste tópico e pense no que conseguiu assimilar. Os conhecimentos adquiridos serão muito importan- tes nesta última etapa, quando iremos rever as contribuições da Psicologia do Desenvolvimento na prática educativa. 31A Psicologia do Desenvolvimento e sua aplicação na prática educacional ...................................................................................................................................................................................................................... A PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO E SUA APLICAÇÃO NA PRÁTICA EDUCACIONAL Neste tópico, esperamos que você aprenda a destacar as contribuições da Psicologia do Desenvolvimento para a prática educacional. Como verificamos ao longo do capítulo anterior, a escola toma para si a responsabilidade de proporcionar a crian- ças, adolescentes e adultos a educação formal, sistemati- zando o conhecimento produzido pela humanidade e orga- nizando a seriação e a estrutura curricular. A escola, como conhecemos no século XX, é fruto das mudanças ocorridas a partir do século XVIII, quando surge o novo conceito de infância e a preocupação com as faixas etárias no sistema educacional. Por outro lado, vimos que, a partir do século XIX, a Psico- logia é reconhecida como ciência e propõe-se a investigar e a compreender o comportamento humano, oferecendo aos educadores informações importantes para o trabalho pedagógico. A função socializadora da escola permite à criança a assimilação de um conhecimento produzido pela sua cultura e, dessa forma, ela desenvolve-se e aprende. Além dessa função, é no espaço da escola que se difundem Jamile Arrow Jamile Arrow Jamile Highlight O ser humano: um ser em desenvolvimento32 ...................................................................................................................................................................................................................... os discursos científicos sobre a especifividade dos estágios de desenvolvimento e as suas respectivas faixas etárias. A metodologia utilizada e seus padrões sequenciais de aprendizado determinam a organização e a classificação dos alunos por estágios ou níveis. Utilizando um sistema avaliativo que aponta os pré-requi- sitos necessários a um determinado nível de ensino, os alunos são classificados e organizados mediante uma hie- rarquização do conhecimento. Isso me lembra um dos muitos episódios da minha expe- riência profissional como professora da rede municipal de ensino. Em função desse sistema avaliativo, todo aluno, ao ser pro- movido, apresenta um certificado que valida a sua matrí- cula em determinada série. Assim, quando o aluno solicita matrícula em uma escola, ele deve apresentar um docu- mento que comprove a sua possibilidade de frequentar aquela série. Porém, na realidade educacional brasileira, nem sempre isso é possível. Crianças são, em muitas situações, transfe- ridas ou retiradas da escola devido aos graves problemas sociais que afetam o nosso país. E esta é a história que eu vou contar. Sempre que conto esta história fico pensando em quantas crianças não são promovidas não porque não saibam, mas Jamile Rectangle 33A Psicologia do Desenvolvimento e sua aplicação na prática educacional ...................................................................................................................................................................................................................... porque a pergunta pode estar mal formulada, não levando em consideração o seu estágio de desenvolvimento cognitivo. Um aluno solicitou, por intermédio de sua família, a matrícula em uma determinada série. Sua família chegara ao Rio de Janeiro, vindo do interior do nordeste. Como sua mãe não apresentava nenhum documento que comprovasse a sua promoção para tal série, o aluno foi submetido a um teste de classificação, no qual se verifica, mediante seu desempenho, os conhecimentos que vali- dam a sua inclusão numa ou noutra série. Bem, a pedagoga da escola apresentou ao alunoo teste e pediu- -me que o acompanhasse durante a sua execução. A criança sen- tou-se e iniciou a tarefa. O teste continha questões de matemática, língua portuguesa, história e ciências. Passado um determinado tempo, o aluno concluiu a tarefa, veio até a minha mesa e, muito timidamente, pediu que eu verificasse se as questões de ciências estavam corretas. Tratava-se de um texto sobre o sistema solar, e os vários planetas eram apresentados. Uma das perguntas solicitava do aluno uma resposta sobre a sua origem: qual era o seu planeta, onde ele ha- bitava? O menino sem entender a pergunta respondeu “O meu planeta é Marte”, e olhava-me aflito, esperando uma confirmação. Esta me parece uma das grandes contribuições da Psicologia do Desenvolvimento à compreensão dos processos de desen- volvimento da criança. É preciso identificar em uma sonda- gem qualitativa o conhecimento do aluno, levando em consi- deração sua história, sua cultura e seus laços sociais. A escola fundamenta a sua autoridade apropriando-se do conhecimento e acreditando que a construção cognitiva do aluno ocorre mediante uma estrutura linear pré-determi- nada, o que proporciona uma fragmentação do objeto a ser conhecido pelo aluno, reduzindo as possibilidades de Jamile Highlight O ser humano: um ser em desenvolvimento34 ...................................................................................................................................................................................................................... criação e inovação e levando o professor a seguir, passo a passo, aquilo que determinam os objetivos de longo prazo e o próprio livro didático, que nem sempre atende às ne- cessidades e aos interesses da realidade do aluno. A Psicologia do Desenvolvimento proporciona, graças à sua produção teórica, ferramentas que podem auxiliar o profes- sor na busca de novas metodologias, promovendo a discus- são sobre os conteúdos a serem ensinados ao aluno. Ela en- tende que a escola deve promover no aluno a capacidade de: • Adquirir e enriquecer os seus hábitos de leitura, favorecendo a construção de novas formas de ex- pressão do pensamento; descobrir novos conheci- mentos. • Interagir com outros alunos por meio de jogos, brincadeiras, dinâmicas pedagógicas que favoreçam o desenvolvimento cognitivo e proporcionem a so- cialização e a superação de conflitos. • Desenvolver o senso crítico e a capacidade de ob- servação, reflexão e análise. • Superar a heteronomia, alcançando a autonomia da ação e do pensar. • Estabelecer relações de sentido e significado en- tre os conteúdos apreendidos e a sua realidade só- cio-afetiva. Como você pode verificar, ainda temos um longo caminho a percorrer. Mas não desanime; assim como na história do meu aluno de Marte, você também, às vezes, vai sentir-se Jamile Rectangle 35A Psicologia do Desenvolvimento e sua aplicação na prática educacional ...................................................................................................................................................................................................................... em “outro planeta”, mas estaremos aqui para verificar a sua dúvida e auxiliar na formulação de novas perguntas, pois são elas que, certamente, irão ajudar a construir o seu conhecimento. Em 1879, em Leipzig, Alemanha, foi funda- do o primeiro laboratório de psicologia experimental, sob a direção de Wilhelm Wundt. Seu objetivo era investigar experimentalmente os fenômenos mentais. A Psicologia do Desenvolvimento propõe-se a estudar e a investigar as transformações ocorridas ao longo da vida do ser humano, da infância à velhice. A Psicologia do Desenvolvimento abrange o estudo dos de- senvolvimentos filogenético (a filogênese procura estudar a história evolutiva da espécie), ontogenético (a ontogêne- se refere-se ao desenvolvimento do indivíduo) e socioge- nético (refere-se ao estudo dos grupos sociais). • Modelo mecanicista do desenvolvimento: preo- cupa-se com as experiências, as aprendizagens, que ocorrem ao longo da vida da pessoa, determinando, então, o seu desenvolvimento. • Modelo organicista do desenvolvimento: o de- senvolvimento apresenta uma ordem e uma estrutu- ra denominadas estágios. • Ciclo vital: enfatiza a importância de estudar o comportamento humano da infância até a velhice. A Psicologia do Desenvolvimento refere-se “à compreen- são e à pesquisa sobre os processos de mudanças psicoló- gicas nos seres humanos, que ocorrem ao longo de toda a Jamile Squiggly Jamile Rectangle Jamile Rectangle O ser humano: um ser em desenvolvimento36 ...................................................................................................................................................................................................................... existência, e que são influenciados pelos fatores externos e pela nossa herança filogenética”. A criança ainda é a personagem central, tanto na família como na escola. Tanto psicólogos como educadores pro- curam compreender e acompanhar seu desenvolvimento e seus processos de aprendizagem. Porém, a criança e sua in- fância nem sempre foram a preocupação central da família. Segundo Ariès (1973) e Badinter (1985), foi somente a par- tir do século XVIII que uma nova concepção de infância passou a provocar cuidados e atenção por parte dos adul- tos à educação das crianças. A figura do pediatra só surgi- rá no final do século XIX. Rousseau apresenta uma “nova família”, sendo atribuída ao pai a função de autoridade que acompanha a proteção do filho, a qual é necessidade da criança. Essa família tem como responsabilidade a felicidade dos filhos, o que se prolonga até o século XX. Instala-se, então, a família moderna, a família que é a nu- clear, formada por marido, esposa e filhos. Nela, destaca-se a figura materna, que tem total responsabi- lidade sobre a educação e a felicidade da criança. No século XXI, surge, então, a família tentacular contem- porânea, formada por novos encontros de adultos, adoles- centes e crianças vindos de outras famílias, sem esquecer, contudo, da responsabilidade com o cuidado da criança. Jamile Rectangle 37A Psicologia do Desenvolvimento e sua aplicação na prática educacional ...................................................................................................................................................................................................................... Funções da família: o cuidado e a proteção; o processo de socialização, a responsabilidade com a escolarização e a ajuda e o suporte na construção de estruturas emocionais equilibradas. Sendo assim, a família tem decisiva impor- tância na viabilização de contextos saudáveis de desen- volvimento. Nesse contexto, aprendem os filhos, os irmãos, os pais e os demais membros incluídos nas novas modalidades e pos- sibilidades oferecidas pelo contexto familiar. A nova reali- dade deve ser entendida pela escola e por seus educadores independentemente de idade, história ou contexto social. A escola, tal como a conhecemos no século XX, é fruto das mudanças ocorridas a partir do sec XVIII, quando surge o novo conceito de infância e a preocupação com as faixas etárias no sistema educacional. A partir do seculo XIX, a Psicologia é reconhecida como ciência e propõe-se a investigar e a compreender o com- portamento humano, oferecendo aos educadores informa- ções importantes para o trabalho pedagógico. A função socializadora da escola permite à criança a assi- milação de um conhecimento produzido pela sua cultura; assim, ela desenvolve-se e aprende. É no espaço da escola que se difundem os discursos cien- tíficos sobre a especificidade dos estágios de desenvolvi- mento e as suas respectivas faixas etárias. Jamile Arrow Jamile Arrow Jamile Arrow Jamile Arrow O ser humano: um ser em desenvolvimento38 ......................................................................................................................................................................................................................Por meio de um sistema avaliativo, que aponta os pré-re- quisitos necessários a um determinado nível de ensino, os alunos são classificados e organizados em função de uma hierarquização do conhecimento. A escola fundamenta a sua autoridade apropriando-se do conhecimento e acreditando que a construção cognitiva do aluno ocorre graças a uma estrutura linear pré-deter- minada. A Psicologia do Desenvolvimento proporciona, mediante sua produção teórica, ferramentas que podem auxiliar o professor na busca de novas metodologias, promovendo a discussão sobre os conteúdos a serem ensinados ao aluno. Jamile Arrow Jamile Arrow Jamile Arrow Jamile Arrow 39 ...................................................................................................................................................................................................................... REFERÊNCIAS ÁRIES, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1973. BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito do amor ma- terno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1985. COLL, C.; PALACIOS, J.; MARCHESI, A. Desenvolvimento psicológico e educação: psicologia evolutiva. v. 1. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. COLL, C. S.; MESTRES, M.M.; GOÑI, J. O.; GALLART, I.S. Psi- cologia da Educação. Porto Alegre: ARTMED, 1999. COUTINHO, M. T. C.; MOREIRA, M. Psicologia da Educa- ção: um estudo dos processos psicológicos de desenvol- vimento e aprendizagem, voltado para a educação. Belo Horizonte: Lê, 1992. FLAUBERT, G. Madame Bovary. São Paulo: Abril, 2010. KEHL, R. Em defesa da família tentacular. In: GROENIN- GA, G. C.; PEREIRA, R. C. Direito de família e psicanálise: rumo a uma nova epistemologia. Rio de Janeiro: Imago, 2003. PAPALIA, D. E.; OLDS, S. W.; FELDMAN, R. D. et al. Desen- volvimento Humano. Porto Alegre: 2010. ...................................................................................................................................................................................................................... 40 ...................................................................................................................................................................................................................... 41Freud e a psicanálise - Contribuições à compreensão do desenvolvimento humano ...................................................................................................................................................................................................................... CAPÍTULO 2 ABORDAGENS CONTEMPORÂNEAS DA PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO - PARTE I Neste capítulo, prosseguiremos com a nossa leitura e dis- cussão sobre os aspectos relacionados ao desenvolvimento humano. A criança de hoje é um ser historicamente construído e cons- tituído simbolicamente pela sociedade. Essa criança, que é o nosso objeto de estudo, pensa, sente, compreende e intui o mundo dentro de um campo de visão bem diferente do nosso. Para que possamos compreendê-la em sua totalidade, precisamos aprender, entre outras coisas, sobre o seu desen- volvimento pessoal e, assim, traçar os paralelos referentes à educação. Muitos téoricos da Psicologia do Desenvolvimento identifi- cam a infância como a etapa primordial na vida do ser huma- no. É na infância, mediante os processos de desenvolvimento, que o ser humano constitui-se, estrutura-se. Assim, princi- palmente a partir do século XVIII, a infância será cantada e exaltada. ...................................................................................................................................................................................................................... Jamile Arrow 42 Abordagens contemporâneas da Psicologia do Desenvolvimento - Parte I ...................................................................................................................................................................................................................... E por que não cantar, também... Enquanto houver criança (Mauro Menezes) “Enquanto houver criança Enquanto houver passarinho Enquanto houver esperança Florindo nosso caminho A vida vai brincar de roda vai andar de bicicleta vai correr vai pular corda vai dançar jogar peteca.” 43Freud e a psicanálise - Contribuições à compreensão do desenvolvimento humano ...................................................................................................................................................................................................................... FREUD E A PSICANÁLISE – CONTRIBUIÇÕES À COMPREENSÃO DO DESENVOLVIMENTO HUMANO A partir deste tópico, esperamos que você aprenda a reco- nhecer a importância das contribuições freudianas à com- preensão do desenvolvimento humano. Para nos ajudar nesta caminhada, escolhemos um gran- de pensador e teórico de quem certamente você já ouviu falar. Estamos falando de Sigmund Freud (1856–1939), médico, judeu, austríaco e o fundador da Psicanálise que, como informa seu biógrafo Peter Gay (1989), acreditava que tinha vindo ao mundo para “perturbar o sono da hu- manidade”. Sem dúvida, suas descobertas provocaram à época e provocam, até os nossos dias, discussões acalora- das, não só na área da Psicologia, mas também na Literatu- ra, nas Artes, na Sociologia, na Filosofia e em outras áreas afins do conhecimento. Freud, como nos informa Gay, iniciou suas atividades profissionais como médico, em 1886, e foi em seu con- sultório, ao atender pacientes que apresentavam grande sofrimento psíquico, que ele desenvolveu sua técnica e re- velou-nos o inconsciente, retirando do homem o domínio sobre seu psiquismo. Mas, afinal do que estamos falando? Não fique tão preo- cupado, afinal, você já possui algum conhecimento sobre os movimentos teóricos do final do século XIX e início do Jamile Highlight Jamile Underline Jamile Underline 44 Abordagens contemporâneas da Psicologia do Desenvolvimento - Parte I ...................................................................................................................................................................................................................... século XX, marcados, como você já sabe, pelo pensamento positivista no qual a razão tem papel primordial. Neste cenário, surge um médico que afirma ser o inconsciente o grande responsável por nossas ações e nosso compor- tamento. Você pode imaginar a grande confusão e os dis- cursos contrários a essas novas e revolucionárias ideias. Mesmo assim, Freud não recuou e por mais de cinquenta anos enfrentou e combateu os inimigos da psicanálise. Afinal, do que falava Freud para provocar tanta animosi- dade? Além da descoberta do inconsciente, que retira do homem o domínio sobre sua vontade e razão, Freud re- vela-nos a sexualidade infantil, ressaltando a importância da infância e dos acontecimentos vivenciados nessa etapa de nossa existência como elementos determinantes nos distúrbios de personalidade apresentados quando adulto. Para a Psicanálise, a vida mental traduz-se por um jogo de forças contrárias, que se estimulam e reprimem e que se estruturam mediante os elementos conscientes e incons- cientes. Isso gera um conflito, proporcionando a variedade de comportamentos e sentimentos humanos — em última instância, a formação da nossa personalidade. Para nós, educadores, sua teoria tem uma importância vital. Seu corpo teórico é uma ferramenta mediadora na compreen- são do desenvolvimento e do comportamento do nosso aluno, ressaltando os aspectos sócio-afetivos. Jamile Underline Jamile Arrow Jamile Arrow Jamile Arrow Jamile Highlight 45Freud e a psicanálise - Contribuições à compreensão do desenvolvimento humano ......................................................................................................................................................................................................................Para melhor entendermos, vamos retornar à Viena do século XIX, onde Freud, voltando dos seus estudos em Paris com Charcot – médico psiquiatra francês conhecido pelo seu trabalho com pacientes histéricas, utilizando a técnica da hipnose – ficou ex- tremamente impressionado com os resultados obtidos e com a identificação dos processos inconscientes que subjazem aos conscientes na prática clínica observada. Em Viena, Freud conheceu J. Breuer, médico que já utilizava a hipnose com alguns de seus pacientes, e que tratava, na época, de uma paciente famosa para a história da psicanálise. Trata-se de Ana O., paciente histérica que apresentava toda uma deter- minada sintomatologia: paralisias, tosse nervosa, perturbações oculares e intenso sofrimento psíquico. Breuer e Freud iniciaram uma contínua discussão e pesquisa dos dados obtidos com a paciente, e verificaram que, por meio de hipnose, Ana O. narrava episódios extremamente dolorosos, dos quais não tinha consciência. Ao retornar da hipnose, com a consciência dos fatos narrados, verificava-se a eliminação da sintomatologia. Ou seja, os sintomas desapareciam. A parceria entre os dois médicos estendeu-se a outros pa- cientes, que também passaram a ser atendidos com a uti- lização da técnica da hipnose, porém, com a reprovação do círculo médico da época. Freud observou que algumas sugestões dadas aos pacientes durante o estado de sonam- bulismo eram cumpridas com certo constrangimento e, em outras situações, o paciente não conseguia realizá-las, como se algo o censurasse. Quando questionados, não sa- biam explicar o porquê, nem se recordavam. Freud verifi- cou que se tratava de algo que estaria além da consciência deles, um elemento dominante, porém, pertencente à or- dem do inconsciente. Jamile Highlight 46 Abordagens contemporâneas da Psicologia do Desenvolvimento - Parte I ...................................................................................................................................................................................................................... Além da formulação dos conceitos de consciente e incons- ciente, Freud e Breuer verificaram, por meio dos relatos de Ana O., a existência de um evento traumático reprimido; ou seja, por ser doloroso, encontrava-se fora da consciência. Breuer, durante a hipnose, repetia para sua paciente algu- mas palavras que ela havia pronunciado, e pedia que ela as associasse a algum outro fato ou palavra que lhe viesse à mente. A paciente, então, relatava um fato “esquecido” que vinha acompanhado de forte descarga emocional. Conclui- -se, portanto, que a recordação consciente do trauma asso- ciada à descarga das emoções, exclui o sintoma. Freud permaneceu durante algum tempo utilizando a téc- nica da hipnose. No entanto, percebeu que nem todos os pacientes submetiam-se a ela. Assim, ele abandonou a téc- nica e passou a sugerir aos seus pacientes que procurassem lembrar o evento traumático. Aos poucos, a nova técnica foi apresentando resultados, e os conteúdos inconscientes apareceram. Algumas questões foram sugeridas: “Por que este evento estava no inconsciente?”, “Por que o paciente não fora até então capaz de lembrá-lo?”, “Haveria alguma força impedindo a sua revelação à consciência?” Surgiu, então, o conceito de resistência: força capaz de proteger o indivíduo da dor e do sofrimento, mantendo a lembrança do fato traumático longe da consciência. Então, se existe uma força que impede a revelação do fato traumático, mantendo-o no inconsciente, podemos nos perguntar, assim como Freud, como o fato chegou ao in- consciente? Estamos diante de um novo conceito — a repressão: for- ça que protege o indivíduo, retirando da consciência algo Jamile Arrow Jamile Rectangle Jamile Rectangle 47Freud e a psicanálise - Contribuições à compreensão do desenvolvimento humano ...................................................................................................................................................................................................................... que ele não pode suportar. Repressão e Resistência, duas forças contrárias que protegem o indivíduo do evento do- loroso. Qualquer evento percebido pelo indivíduo como da ordem do insuportável, do ameaçador, será reprimido, per- manecendo fora do acesso da consciência. Porém, o fato de permanecer fora da consciência não elimina o evento trau- mático, pois ele permanece continuamente atuante procu- rando uma forma de retornar à consciência, sendo, contudo, impedido pela resistência. Como resultado dessa batalha, observamos a formação dos sintomas, que funcionam como denunciadores do sofrimento psíquico. Veja quantas informações interessantes! Você já percebeu que estamos diante de um campo de bata- lha, em que forças contrárias enfrentam-se em uma dinâmi- ca própria e muito particular? Muito bem, além desses conceitos, Freud vai falar de uma energia instintiva, ou seja, o instinto: elemento inato e representante psíquico dos estímulos que se originam no organismo e chegam à mente desejando a satisfação. Por sua vez, a satisfação dos instintos fun- ciona como uma mola propulsora de novas fontes de motivações, denominadas pulsões. Para melhor enten- dermos, vejamos um exemplo: Para a criança recém-nascida que está com fome, o objeto capaz de satisfazer a sua fome é, provavel- mente, o leite materno. É a ingestão do leite e não o sugar o seio que satisfaz a fome da criança. Portan- to, em termos instintivos, a sucção tem por finali- dade a obtenção do alimento, e este é que satisfaz o estado de necessidade orgânica caracterizado pela fome. Mas, ao mesmo tempo, ocorre também um Jamile Rectangle Jamile Rectangle Jamile Rectangle 48 Abordagens contemporâneas da Psicologia do Desenvolvimento - Parte I ...................................................................................................................................................................................................................... processo paralelo de natureza sexual: a excitação dos lábios e da língua pelo peito produz uma sa- tisfação que não é redutível à saciedade alimentar, apesar de encontrar nela o seu apoio. Assim o obje- to do instinto, nesse caso, é o alimento, enquanto o objeto da pulsão sexual é o seio materno, por todas as estimulações prazerosas que ele produz. (COUTI- NHO, M.T.C.; MOREIRA, M. 1982, p. 169) Assim, ainda segundo as autoras, a pulsão sexual consti- tui um desvio do instinto. Tanto o instinto como a pulsão necessitam de uma satisfação. Freud irá denominar esse mecanismo de princípio do prazer, que ocorre mediante a escolha de um objeto para a descarga de energia. Essa, originária dos instintos e denominada por ele de libido. Libido, portanto, é uma energia afetiva de natureza sexual, e, como veremos mais à frente, passa por progressivas or- ganizações ao longo do desenvolvimento psicossexual em busca da obtenção do prazer. Foi assim que Freud observou que o modelo topológico do inconsciente e consciente já não conseguia mais res- ponder a várias questões que iam surgindo a cada nova história, a cada nova descoberta. Assim, em 1923, no período pós-Guerra, Freud apresenta a sua estrutura dinâmica da personalidade: Id, Ego e Su- perego. Disse ele: O Ego se assemelha ao cavaleiro que, supostamente, refreia a maior força do cavalo, com a diferença de que o cavaleiro o faz com a sua própria força, e o ego com a força tomada de empréstimo” - tomada ao Id. Assim como muitas vezes não resta ao cava- leiro, se não quiser se separar do cavalo, senão con- duzi-lo para onde o cavalo quer ir, da mesma forma Jamile Rectangle Jamile Rectangle Jamile Rectangle Jamile Rectangle Jamile Arrow Jamile Arrow 49Freud e a psicanálise - Contribuições à compreensão do desenvolvimento humano ......................................................................................................................................................................................................................o ego também está acostumado a traduzir a vonta- de do Id em ação, como se essa vontade fosse sua. […] O cavaleiro, o Ego, não está apenas furiosamen- te empenhado em manter as rédeas de seu cavalo teimoso, o Id, como ainda é forçado, ao mesmo tem- po, a lutar com uma nuvem de abelhas bravas, o Superego. (FREUD apud GAY, 1989, p. 378) Assim, temos: O Id: fonte de toda a energia, é constituído pelos impulsos instintivos inatos que direcionam o indivíduo na sua re- lação com o mundo. Onipotente, o Id tudo quer, deseja, e funciona segundo o princípio do prazer; não admite frus- trações nem inibições. Não possui lógica, não possui ra- zão, moral ou ética; é egoísta, cego, impulsivo, irracional, desconhece o princípio da não contradição. Em quase toda a sua totalidade, o Id é inconsciente, mas busca a sua sa- tisfação que, como já verificamos no exemplo acima, dá-se por meio de um objeto que atenda às suas necessidades. Se lembrarmos do bebê “berrando”, reclamando a presen- ça de sua mãe, temos aí a clara manifestação do Id. O bebê não admite esperar, ele quer, e quer logo, imediatamente. Além de ser fonte de energia, o Id também é o responsável pelas imagens que canalizam essas energias. Assim, pode- mos tentar compreendê-lo mediante os sonhos, delírios, artes e outras expressões culturais. Segundo Rappaport (1981, p.21-22), o Id apresenta as se- guintes características: 1a - É o responsável pelo processo primário. Dian- te da manifestação do desejo, forma, no plano ima- ginário, o objeto que permitirá sua satisfação. Um exemplo ilustrativo é o sonho, no qual os desejos vão tentando uma satisfação alucinatória no nível das imagens geradas. Já vimos que um desejo cor- Jamile Arrow Jamile Underline 50 Abordagens contemporâneas da Psicologia do Desenvolvimento - Parte I ...................................................................................................................................................................................................................... responde a uma carência que, ao ser satisfeita, gera- rá prazer. Os desejos não podem satisfazer-se com objetos apenas alucinatórios, mas é necessário que uma imagem, ou seja, um objeto alucinatório seja gerado, para que o Ego, responsável pelas relações de realidade, possa satisfazê-lo na prática. 2a - Funciona pelo princípio do prazer. Busca a satisfação imediata das necessidades. O processo primário é sua tentativa alucinatória de satisfação imediata. O Id sempre manterá o modelo de querer, e de querer a qualquer preço. 3a - Inexiste o princípio da não contradição. Todas as coisas são possíveis ao nível do Id. 4a - É atemporal. A única dimensão da vivência é o presente. Não há passado ou futuro, mas existe a elaboração de uma dimensão única, vivida como presente. Reviver (recordar) é o mesmo que viver. Nos sonhos, a recapitulação de um acidente é vi- vida como o próprio acidente. Quando compramos um bilhete de loteria, surpreendemo-nos, fazendo planos para a utilização do dinheiro, como se já o tivessemos ganhado. 5a - Não é verbal. Funciona pela produção de ima- gens. Temos utilizado os sonhos para exemplificar o Id. Mas quando nos recordamos de um sonho, já efetuamos uma elaboração secundária sobre ele; ou seja, já o reduzimos ao domínio da linguagem. Em sua forma original, os sonhos são, basicamente, plásticos. As imagens são criadas, fragmentadas, deslocadas, combinadas, de forma a adequarem-se à satisfação do desejo. 6a - Funciona, basicamente, pelos processos de condensação e deslocamento, que são os pro- cessos básicos do inconsciente. Na condensação, agrupamos, dentro de uma imagem, características pertencentes a vários processos inconscientes. No deslocamento, as características de uma imagem são transferidas para outra, com a qual o sujeito estabelece relações como se fosse a primeira. 51Freud e a psicanálise - Contribuições à compreensão do desenvolvimento humano ...................................................................................................................................................................................................................... Se o Id tudo deseja, outra estrutura precisa realizar a leitu- ra da realidade, na tentativa de satisfazê-lo, como afirmou Freud; criar as condições para “ir aonde o cavalo deseja”. Se voltarmos à figura do bebê, o fato de sua mãe não con- seguir atendê-lo imediatamente irá possibilitar o estabe- lecimento de um contato com as limitações da realidade. Essas trocas possibilitam que uma parte do Id transforme- -se, constituindo-se no Ego. Vejamos como ele funciona: O Ego: orienta-se pelo princípio de realidade e procura me- diar as solicitações do Id com as da realidade, buscando o equilíbrio. Ele trabalha com as estruturas psíquicas de defesa e controle dos impulsos. Adia a realização dos de- sejos, busca novos caminhos para alcançar os seus obje- tivos, aumenta o limiar de tolerância e frustração. O Ego equilibrado possibilita a análise crítica da realidade, o pen- samento organizado, a capacidade de buscar soluções e respostas diante da adversidade. Apresenta aspectos cons- cientes e inconscientes e trabalha com os mecanismos de defesa, protegendo-nos contra a angústia e a ansiedade. É isso mesmo que você está entendendo. O Ego, como você já aprendeu, apresenta capacidade de inibir, retardar ou transformar as formas de satisfação dos nossos instintos e pulsões por meio dos nossos mecanismos de defesa. São eles que nos ajudam a tolerar a frustração, aliviando as nossas tensões. Logo após a leitura das características do Ego, estaremos estudando alguns deles. Para Rappaport (1981, p. 26-28), o Ego apresenta as se- guintes características: 1a - Dá o juízo de realidade, funcionando pelo pro- cesso secundário. O Id dá o nível do desejo, o nível do querer, independentemente das possibilidades Jamile Underline 52 Abordagens contemporâneas da Psicologia do Desenvolvimento - Parte I ...................................................................................................................................................................................................................... reais de o desejo ser satisfeito ou não. O Ego partirá do desejo, da imagem formada pelo processo primá- rio, para tentar construir na realidade caminhos que possibilitem a satisfação do desejo. 2a - Intermediário entre os processos internos (Id- -Superego) e a sua relação destes com a realidade. Diante da manifestação do desejo, duas proibições podem opor-se: as proibições morais, oriundas do Superego, e as interdições da realidade objetiva. Cabe exatamente ao Ego efetuar a conciliação entre os desejos e as proibições internas e os desejos e as proibições da realidade objetiva, de forma a possi- bilitar a atuação conciliatória mais produtiva para o sujeito. 3a - Setor mais organizado e atual da personalida- de. O Id, como matriz instintiva, é uma estrutura arcaica, filogenética. O Superego contém proibições que também são oriundas da evolução da espécie, por exemplo, os tabus contra o incesto, o parricídio, o matricídio. Os valores morais a serem internaliza- dos são do grupo ao qual o indivíduo pertence, por- tanto, também anteriores a ele. Cabe ao Ego organi- zar uma síntese atual, tornando o indivíduo único e original e permitindo-lhe uma adaptação ativa ao mundo presente em que vive. 4a - Domina a capacidade de síntese. Aqui, englo- bamos todas as funções lógicas do funcionamento mental, que para a psicanálise são atributos do Ego. A memória e o desenvolvimento do pensamento ló- gico e operatório também estão aqui contidos. 5a - Domínio da motilidade. O domínio do esque- ma corporal instrumental, ou seja, o domínio das praxias é uma função do Ego. A nossa atuação cor- poral é o nosso instrumento prático de realização do processo secundário. E é exatamente por estar o domínio da motilidade situado no
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