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1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Especialização em Direito Civil da PUC Minas Virtual Franciely Ruhoff Estudo de Caso em Direito Civil – Caso 3 Belo Horizonte 2020 2 Franciely Ruhoff A USUCAPIÃO DE BEM PÚBLICO E A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE Trabalho de Conclusão de Curso de Especiali- zação em Direito Civil como requisito parcial à obtenção do título de especialista. Belo Horizonte 2020 3 Sumário Introdução .................................................................................................................. 4 1. Os Bens Públicos .................................................................................................. 5 2. Considerações acerca da Aquisição de Bem Público por Usucapião ............. 6 3. Direito à Moradia ................................................................................................... 9 4. Função Social ...................................................................................................... 13 5. Conclusão ............................................................................................................ 17 6. Referências .......................................................................................................... 18 4 Introdução O presente trabalho tem por objetivo, através do estudo de um caso, analisar a possibilidade de usucapião do bem público pertencente a um município de Minas Ge- rais devido ao não cumprimento da sua função social. O caso a ser analisado é o seguinte: Uma grande área pertencente a um Mu- nicípio de Minas Gerais foi invadida por aproximadamente 3.000 famílias. Elas se es- tabeleceram e lá ficaram por vários anos, até que um novo Prefeito fez menção de retirá-las. Em sua defesa, as famílias alegaram que aquela área nunca cumprira a sua função social e que, mesmo sendo pública, a área poderia ser usucapida. Busca-se através do presente trabalho desmistificar a impossibilidade total e irrestrita de usucapir bem imóvel público apontando fundamentos teóricos pertinentes ao tema, mencionando a legislação pátria e posições doutrinárias. Mostrar-se-á teori- camente a possibilidade de relativizar o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, com ênfase na importância de o Poder Público obedecer a função social da propriedade pública e efetivar o direito à moradia. 5 1. Os Bens Públicos Conforme o Código Civil dispõe de maneira direta e didática: São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.1 Adiante, no artigo 99 do Código Civil de 2002, os bens públicos são classifica- dos. São bens públicos: I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças; II - os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias; III - os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades. Parágrafo único. Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estru- tura de direito privado. No presente estudo, trataremos com mais ênfase nos bens dominicais, também conhecidos como bens de domínio privado do estado. O autor Celso Antonio Bandeira de Mello, define os referidos bens como: os próprios do Estado como objeto de direito real, não aplicados nem ao uso comum, nem ao uso especial, tais os terrenos ou terras em geral, sobre os quais tem senhoria, à moda de qualquer proprietário, ou que, do mesmo modo, lhe assistam em conta de direito pessoal. Assim, bens dominicais são aqueles que não se encontram classificados como bens públicos de uso especial ou comum e também não são bens particulares. De acordo com Mello, os bens públicos dominicais poderiam ser submetidos às regras da função social da propriedade, visto que não estão subordinados a um interesse pú- blico específico, entendendo possível o instituto da usucapião sobre estes bens. 1 Código Civil, 2002 6 2. Considerações acerca da Aquisição de Bem Público por Usucapião A palavra Usucapião tem origem do latim “usucapio” que advém de “capere” (tomar) e de “usus” (uso), portanto, “tomar pelo uso”, a propriedade de um bem caso decorra determinado lapso temporal. Assim, “A posse prolongada da coisa pode con- duzir à aquisição da propriedade, se presentes determinados requisitos (...)” (VE- NOSA, 2014, p.206). Ainda na Doutrina, Paulo Nader (2016), conceitua o instituto da usucapião es- sencialmente como uma modalidade de aquisição originária da propriedade, vejamos: Embora haja várias espécies de usucapião é possível a formulação de seu conceito unitário, capaz de revelar o conteúdo básico que lhe é inerente. Usucapião, ou prescrição aquisitiva, é modalidade de aquisi- ção originária da propriedade, móvel ou imóvel, e de outros direitos reais. Donde se infere que a usucapião possui duplo caráter: ao mesmo tempo em que o possuidor adquire o domínio da coisa, o pro- prietário a perde. Por aquisição originária entende-se que inexiste relação jurídica anterior, sendo ela autônoma, surgindo de um novo direito e não dependendo da participação direta do antigo proprietário, sendo essa a posição majoritária da doutrina e da jurisprudên- cia. No que concerne a usucapião sobre bens públicos, a Constituição Federal Bra- sileira2 traz expresso no parágrafo único do art. 191 a sua vedação: “Os imóveis pú- blicos não serão adquiridos por usucapião”. O Código Civil3 em seu art. 102 também traz a proibição da usucapião para bens públicos. Apesar dessa proibição, na doutrina o tema é aberto a discussões e posiciona- mentos diversos. Na posição contrária a possibilidade da usucapião de bens públicos, e em con- sonância com os dispositivos legislativos citados acima, militam autores como Hely 2 BRASIL. Constituição (1988). Portal da Legislação - Planalto Presidência da República. Disponível em http://www2.planalto.gov.br/acervo/legislacao (acesso em 10/10/2020). 3 BRASIL. Lei nº 10.406/2002 - Código Civil (2002). Portal da Legislação - Planalto Presidência da República Disponível em http://www2.planalto.gov.br/acervo/legislacao (acesso em 10/10/2020). http://www2.planalto.gov.br/acervo/legislacao 7 Lopes Meirelles o qual argumenta que predomina o domínio público, que em sentido amplo é: O poder de dominação ou de regulamentação que o Estado exerce sobre os bens do seu patrimônio (bens públicos), ou sobre os bens do patrimônio privado (bens particulares de interesse público), ou sobre as coisas inapropriáveis individualmente, mas de fruição geral da co- letividade res nullius (2009, p. 522). Utilizando-se do disposto no art. 2º do Decreto nº 22.785/33, Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 181) também defende que “os bens públicos, seja qual for sua natureza, não são sujeitos à prescrição”. Uma segunda corrente, minoritária, porém com razões inovadoras e atuais, a qual a autora do presente trabalho filia-se e defende, contrapõe-se aos entendimentos acima dispostos com argumentos vigorosos que serão esboçados a seguir. Dentre essa corrente os professores Farias e Rosenvald se destacam e afirmam ter apoio de Tartuce e Simão (apud FARIAS E ROSENVALD, 2009, p. 279). Os autores trabalham na defesa da efetivação do princípio da funçãosocial da propriedade e a aplicação do princípio da proporcionalidade, vejamos: Detecta-se, ademais, em análise civil-constitucional que a absoluta im- possibilidade de usucapião sobre bens públicos é equivocada, por ofensa ao valor (constitucionalmente contemplado) da função social da posse e, em última instância, ao próprio princípio da proporcionali- dade. Os bens públicos poderiam ser divididos em materialmente e formalmente públicos. Estes seriam aqueles registrados em nome da pessoa jurídica de Direito Público, porém excluídos de qualquer forma de ocupação, seja para moradia ou exercício de atividade produtiva. Já os bens materialmente públicos seriam aqueles aptos a preencher critérios de legitimidade e merecimento, posto dotados de alguma fun- ção social. (FARIAS E ROSENVALD, 2009, p. 279) Observa-se um tom contraditório da legislação que por um lado atribui ao prin- cípio da função social posição de direito e dever individual e, portanto, clausula pétrea, e que busca garantir a proteção dos direitos fundamentais, por outro, vedou a 8 usucapião do bem público, ainda que este não esteja cumprindo a função social, con- forme expõe Maria Sylvia Zanella de Pietro: A Constituição de 1988, lamentavelmente, proibiu qualquer tipo de usucapião de imóvel público, quer na zona urbana (art. 1 83, § 3º) , quer na área rural (art. 191, parágrafo único), com o que revogou a Lei nº 6.969/ 81, na parte relativa aos bens públicos. Essa proibição cons- titui um retrocesso por retirar do particular que cultiva a terra um dos instrumentos de acesso à propriedade pública, precisamente no mo- mento em que se prestigia a função social da propriedade. (DE PIE- TRO, 2014. p.966) Isto posto, o estudo do presente caso traz a tona a necessidade de um olhar sistêmico para a usucapião de bens públicos, considerando que sua flexibilização tra- ria benefícios sociais imensos como o acesso à moradia por parte da população que encontra-se desamparada habitacionalmente e o cumprimento da função social do bem, conforme será argumentado a seguir. 9 3. Direito à Moradia O direito à moradia passou a ser considerado um direito fundamental pela De- claração Universal dos Direitos Humanos4 em 1948 e, portanto, um direito humano universal, ou seja, todas as pessoas dos países integrantes da ONU devem ter acesso. Além de adepto a declaração da ONU, o Brasil também integra o Pacto Inter- nacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que foi promulgado em 1996. O Pacto diz que os Estados que o assinaram “reconhecem o direito de toda pessoa a nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vesti- menta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria contínua de suas condições de vida.”5 Apenas a partir da edição da Emenda Constitucional nº 26, em 2000, a moradia consagrou-se como direito fundamental social na Constituição Federal de 1988. A emenda conferiu uma nova redação ao caput do artigo 6º da Constituição Federal incluindo o direito à moradia, atualmente previsto no capítulo “Dos Direitos Sociais” na Constituição Federal de 19886. Conforme esboçado acima, não falta legislação em defesa do direito à moradia e a legislação existente demonstra por si a grandiosa importância do acesso à mora- dia. A moradia garante ao homem o suprimento de necessidades básicas como a sobrevivência e a segurança, porém, não se restringe apenas a um abrigo e proteção contra a natureza como nos primórdios da civilização, de acordo com Elaine Adelina Pagani: Desde os primórdios das civilizações o homem sempre procurou cons- truir um abrigo para habitar a fim de se proteger das intempéries e dos 4 Artigo XXV Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle. A maternidade e a infância tem direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora de matrimônio, gozarão da mesmo proteção social. 5 Artigo 11 Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. 6 Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. 10 predadores. E, com o passar do tempo a moradia vem tornando-se uma necessidade para o homem ter a garantia de sua sobrevivência com dignidade. Por consequência, ter uma moradia não se restringe a ter um teto para morar, mais do que isto, é necessário que a moradia seja provida de um mínimo de conforto e salubridade para viver, sig- nifica que esse lugar deve ser dotado de condições seguras e confor- táveis capazes de proporcionarem uma vida digna e com qualidade. (PAGANI, 2009. p.94) Desse modo, a moradia constitui-se como um direito que assegura o acesso a outros direitos e necessidades humanas, como a vida própria e a liberdade. Estes direitos e a própria dignidade da pessoa humana na estrutura social atual dependem muitas vezes da possibilidade de acesso à emprego, educação, saúde, higiene etc. Torna-se inviável o acesso e exercício desses direitos sem uma moradia digna como base, conforme leciona Sergio Iglesias Nunes Souza: Logo, o direito à moradia é concebido como inerente ao ser humano, que faz jus à sua morada, ao seu local, à sua pousada, enfim, ao seu habitat. A moradia constitui-se como essência do indivíduo, de modo que sem ela a existência digna de outros direitos, como o direito à vida e à própria liberdade, não é exercido de forma satisfatória e plena. (SOUZA, 2013. p. 130.) De acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), é possível identificar que falta cerca de 7,7 milhões de residências para que a população encontre condições decentes de vida e tenha acesso ao que é considerado como uma moradia digna. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) no Brasil, em 2019, havia mais de 101 mil pessoas vivendo nas ruas. Ainda de acordo com a FGV com a Abrainc e Instituto Trata Brasil: • 8 milhões de famílias 24 milhões de pessoas (12% da população) não têm casa adequada • 35 milhões de pessoas 16% da população não têm abastecimento regular de água • 100 milhões de pessoas 11 47% da população não têm coleta de esgoto Comparando as pesquisas com a legislação acima mencionada, infere-se que os investimentos realizados em programas habitacionais ou outros mecanismos utili- zados para regularização habitacional não têm sido suficientes ou efetivos para apla- car a miséria que permeia a questão habitacional no Brasil. Nesse mesmo sentido é o entendimento de Edésio Fernandes: O Estatuto da Cidade reconheceu que a crise generalizada de moradia e a proliferação de formas de ilegalidade urbana, no que diz respeito aos processos de acesso ao solo e à moradia – produzidas pela com- binação entre a falta de políticas habitacionais adequadas e a ausên- cia de opções suficientes e acessíveis oferecidas pelo mercado imo- biliário – são ao mesmo tempo resultados e causas de vários dos pro- blemas urbanos enfrentados pelos municípios. Além de regulamentar os institutos já existentes do usucapião especial urbano e da conces- são de direito real de uso, que devem ser usados pelos municípios para a regularização das ocupações respectivamente em áreas priva- das e em áreas públicas, a nova lei avançou no sentido de admitir a utilização de tais instrumentos de forma coletiva” (FERNANDES, 2002, p.48). Nessesentido, o direito à moradia digna abrange não apenas o direito a um abrigo, mas vai além e busca abastecer dignidade e progresso financeiro à população. Uma das grandes vantagens da usucapião sobre as demais formas de regularização habitacional é a segurança financeira que se obtém por meio do acesso facilitado a programas de crédito em instituições financeiras que não seriam possíveis sem uma propriedade própria, conforme defende Hernando de Soto: (...) casas construídas em terra cujos direitos de propriedade não es- tão adequadamente registrados, empresas sem constituição legal e sem obrigações definidas, indústrias localizadas onde financistas e in- vestidores não as podem ver. Porque os direitos de propriedade não são adequadamente documentados, esses ativos não podem ser tro- cados fora dos estreitos círculos locais onde as pessoas se conhecem 12 e confiam umas nas outras, nem servir como garantia a empréstimos e participação em investimentos. Em acórdão exemplar do Tribunal de Justiça de Minas Gerais observa-se a relevância que a usucapião tem para a garantia do cumprimento do direito à mora- dia, dentre outros: EMENTA: USUCAPIÃO ESPECIAL URBANO - MODALIDADE DE AQUISIÇÃO DO DOMÍNIO - ARTIGO 183 DA CF/88 - DISPOSITIVO AUTO- APLICÁVEL - REQUISITOS - PROVA - DEFERIMENTO. Com o advento da Carta Magna de 1988, surgiu, em seu artigo 183, o usucapião especial, instituto este que constitui um instrumento al- tamente eficaz de regularização fundiária, uma vez que objetiva con- ferir legitimidade às situações de uso, ocupação e desenvolvimento da terra nas cidades, excluindo as conseqüências do monopólio da propriedade e especulação imobiliária, de modo a concretizar os princípios enunciados nos artigos 5º, XXIII; 170, III e 182 da Carta Magna. Tendo em vista a auto-aplicabilidade do artigo 183 da CF/88, mesmo em se considerando a ausência, no plano municipal, dos di- plomas legais previstos no artigo 182, lícito é ao interessado buscar a tutela jurisdicional para obter o reconhecimento do domínio da área de até 250 metros quadrados de que tenha posse por mais de 05 anos, mansa, ininterrupta e pacificamente, desde que a utilize para sua moradia ou de sua família e que não seja proprietário de qual- quer outro imóvel, sendo desimportante o modo como se adquiriu a posse do questionado bem. (TJ/MG, 16ª Câm. Cível, Ap. nº 1.0702.03.042658-0/001 1, Rel. Des. Otávio Portes, j. 12/07, 2006). Por conseguinte, resguardar o direito à moradia e todos os direitos atrelados a este às 3.000 famílias do caso exposto por meio da usucapião da área que já vem sendo utilizada por elas durante anos representa um dos caminhos mais eficazes para fazer cumprir a função social da propriedade e atender ao interesse social, conforme continuará sendo esboçado no próximo tópico. 13 4. Função Social Com a consagração da segunda geração dos direitos fundamentais na passa- gem do estado liberal para o estado social, buscou-se garantir real igualdade entre todos e para este fim a atuação do poder público voltada ao cumprimento de presta- ções positivas foi essencial. Assim, as liberdades individuais até então defendidas acima dos interesses coletivos passaram a ser relativizadas e o direito de propriedade passou a sofrer condicionamentos de interesses coletivos e de não proprietários. Até então a propriedade não era vinculada ao princípio da função social, e dessa forma, o proprietário a detinha de forma plena e absoluta não podendo perdê-la nem em caso de desrespeito a função social. Nesse contexto surgiu o atual conceito de função so- cial da propriedade, através da Constituição Alemã de Weimar, de 1919 que afirma em seu artigo 14, § 2º que a “propriedade obriga” (FARIAS; ROSENVALD, 2017). A expressão “função social” origina do latim functio. A palavra functio é derivada do verbo fungor o qual significa exercer uma função, cumprir uma missão, desempe- nhar um dever ou tarefa, tornar algo funcional. Apesar de o princípio da função social consolidado no artigo 5º, XXIII da Cons- tituição ser amplamente conhecido apenas como “função social da propriedade”, é importante ressaltar que a função social também advém do princípio da dignidade da pessoa humana e norteia outros princípios de direito e normas jurídicas. A função social se insere na própria estrutura de qualquer direito subjetivo a fim de justificar a razão pela qual ele serve e qual papel desempenha (FARIAS; ROSENVALD, 2017), conforme concluem os juristas Cristiano Chaves Farias e Nelson Rosenvald: Portanto, ao cogitarmos da função social, introduzimos no conceito de direito subjetivo a noção que o ordenamento jurídico apenas conce- derá merecimento à persecução de um interesse individual, se este for compatível com os anseios sociais que com ele se relacionam. Caso contrário, o ato de autonomia privada será censurado em sua legitimi- dade. Todo poder na ordem privada é concedido pelo sistema com a condição de que sejam satisfeitos determinados deveres perante o corpo social. 14 O princípio da função social encontra-se atualmente positivado em patamar de direito fundamental na Constituição Federal de 1988, pelos artigos 5º, inciso XXIII; 170, inciso III, 182 e 186. Também o Código Civil de 2002 trouxe o compromisso de lutar pela efetivação da função social da propriedade por meio do artigo 1228, pará- grafos 1º a 5º, afastando o individualismo e coibindo o uso abusivo da propriedade, que deve ser utilizada para o bem comum. Nesse sentido, a função social visa a utilização do bem para fins que tanto não traga danos à coletividade, como, também, beneficie a sociedade através da realiza- ção de obras e serviços de interesse social e econômico relevante. Assim ensina Ma- ria Helena Diniz: A Constituição Federal, no art.5º XXII, garante o direito de propriedade, mas requer, como vimos, que ele seja exercido atendendo a sua função social. Com isso, a função social da propriedade a vincula não só à produtividade do bem, como também aos reclamos da justiça social, visto que deve ser exercida em prol da coletividade. [...]. O princípio da função so- cial da propriedade está atrelado, portanto, ao exercício e não ao direito de propriedade (DINIZ, 2010, p.107, grifo meu) Este entendimento encontra grande defesa no mundo doutrinário. A visão traz modernidade ao mundo jurídico e é calcada no estado democrático de direito, estrita- mente ligado aos interesses sociais e a busca da concretização do bem comum. Nota-se totalmente ultrapassada a visão de que as propriedades servem majo- ritariamente ao interesse particular, com ideias de absolutismo e exclusividade, como bem ensina Flávio Tartuce: Pode-se afirmar que essa alteração conceitual demonstra, pelo menos em parte, o rompimento do caráter individualista da propriedade, que prevalecia na visão anterior, pois a supressão da expressão direi- tos faz alusão a substituição de algo que foi, supostamente, absoluto no passado, o que não mais ocorre atualmente. (TARTUCE, 2012, p. 835) 15 No que tange especificamente aos bens públicos, ainda que em essência sua finalidade seja garantir o interesse público, é claro que eles também devem ser utili- zados para efetivar interesses constitucionalmente consagrados, dentre os quais po- demos citar o direito à moradia anteriormente defendido. Na doutrina e jurisprudência há o entendimento de que o bem público é função social em si mesmo. Levando em consideração o entendimento doutrinário que entende que os bens públicos se dividem em bens materialmente públicos e bens formalmente públicos, em um caso que os bens formalmente públicos efetivamente não cumprem função social alguma, com base em que poderíamos supor que estes são função social por si só? Muitos doutrinadores defendem que a resposta a esta questão é que a classifi- cação comobem público já basta para que seja presumida seu cumprimento da fun- ção social. Neste ponto encontra-se a maior discordância, visto que efetivamente bens públicos desafetados encontram-se sem uso algum e consequentemente não ser- vindo à nenhum interesse social, pelo contrário, deixando de beneficiar a sociedade como um todo. Assim, além do entendimento acima explicitado, não houve isenção por parte da Constituição Federal aos bens públicos de cumprirem sua função social, sendo de fácil constatação que os bens públicos ainda mais do que os bens privados devam servir aos interesses sociais, conforme Cristina Fortini in verbis: A constituição da República não isenta os bens públicos do dever de cumprir função social. Portanto, qualquer interpretação que se distan- cie do proposito da norma constitucional não encontra guarida. Não bastasse a clareza do texto constitucional, seria insuscetível conceber que apenas os bens privados devam se dedicar ao interesse social, desonerando-se os bens públicos de tal mister. Aos bens públicos, com maior razão de ser, impõe-se o dever inexorável de atender à função social (2004, p.112). No caso do presente caso em estudo em que 3.000 famílias utilizaram área pública para fins de moradia e subsistência por anos com a justificativa de que a área não cumpria sua função social, vemos claramente a importância do cumprimento da função social da propriedade pública. Caso essas famílias não estivessem desfru- tando do bem público em questão, muito provavelmente este estaria apenas onerando 16 o coletivo e deixando de gerar grandes benefícios a população. Além disso, em caso de despejo das 3.000 famílias não se apresenta nenhum cenário positivo à coletivi- dade, pelo contrário, verifica-se que 3.000 famílias ficarão desamparadas, sofrendo todas as consequências advindas dessa situação e o bem público voltará a ser one- roso e sem cumprir função alguma. 17 5. Conclusão Buscou-se através do presente trabalho um questionamento em relação a ve- dação total e irrestrita da usucapião de bens públicos. Para isso foi exposto um pano- rama da situação fática habitacional no Brasil, a qual mostra-se debilitada e gerando muita miséria em total desrespeito ao direito humano de moradia. Além disso, foi es- boçada a importância da aplicação do princípio da função social da propriedade aos bens públicos de forma geral e especialmente ao bem público dominical, mostrando- se justo e eficaz que haja cumprimento da função social por parte dos bens públicos a fim de contribuir positivamente com os interesses sociais. A vedação da Usucapião de bem público prevista na Constituição Federal de- riva da perspectiva de que o interesse coletivo se sobrepõe ao interesse individual. Ocorre que, em se tratando de bens públicos que não estejam cumprindo sua função social por desídia do poder público, e ao invés disso famílias necessitadas estão cum- prindo a função social da propriedade e tendo resguardado seu direito humano à mo- radia, conclui-se que permitir a usucapião desses bens à essas famílias atenderia de forma mais concreta o interesse coletivo e serviria a sociedade de maneira mais eficaz e real. 18 6. Referências 1. BRASIL. Planalto. Lei nº 10.406, de 10 de Janeiro de 2002 2. DE SOTO, Hernando. O mistério do capital: por que o capitalismo dá certo nos países desenvolvidos e fracassa no resto do mundo. Trad. De Zaida Mal- donado. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 20. 3. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 25.ed – São Paulo: Saraiva, 2010; 4. FARIAS, Cristiano Chaves de, ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais, 6ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2010. 5. FERNANDES, Edésio. “Do Código Civil de 1916 ao Estatuto da Cidade: algumas notas sobre a trajetória do direito urbanístico no Brasil” in Liana Portilho Mattos (org.), Estatuto da Cidade Comentado. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. 6. FORTINI, Cristiana. A função social dos bens públicos e o mito da impres- critibilidade. Revista Brasileira de Direito Municipal, Belo Horizonte, v.5, n.12, p. 117, abr./jun 2004. 7. GONÇALVES, Carlos Roberto. Curso de direito civil brasileiro. 7ª Ed. São Paulo: Saraiva 2012. 8. MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro. 35 ed. São Paulo: Malheiros, 2009. 9. NADER, Natal, “Usucapião de imóveis: Usucapião ordinário, usucapião extraordinário, usucapião especial rural e urbano”, 5ª Ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995. 10. PAGANI, Elaine Adelina. O direito de propriedade e o direito à moradia: um diálogo comparativo entre o direito de propriedade urbana imóvel e o direito à moradia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009; 11. SOUZA, Sergio Iglesias Nunes de. Direito à moradia e de habitação: análise comparativa e seu aspecto teórico prático com os direitos da personalidade. 3 ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: RT, 2013. 12. TEPEDINO, Gustavo. Multipropriedade imobiliária. São Paulo: Saraiva, 1993; 13. VENOSA, Silvio de Sálvio. Direito Civil, Direito Reais. 14º. Ed. São Paulo: Atlas, 2014.
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