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NUTRIÇÃO CLÍNICA Paula Gabriela Loss Neto Pâncreas exócrino (pancreatite aguda, crônica e cirurgia pancreática) Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Reconhecer aspectos básicos da � siologia do pâncreas exócrino, assim como a epidemiologia e possíveis causas das pancreatites aguda e crônica. Descrever as manifestações clínicas e os métodos diagnósticos, além do tratamento clínico e cirúrgico na pancreatite. De� nir a terapia nutricional nas pancreatites e na cirurgia pancreática. Introdução A inflamação pancreática, com suas diversas etiologias, possui altas ta- xas de mortalidade em suas formas mais graves. A terapia nutricional desempenha um papel crucial no tratamento das pancreatites e no pré e pós-operatório da cirurgia pancreática, seja pela questão metabólica relacionada aos processos inflamatórios e cirúrgicos, seja pelo envolvi- mento de um órgão crucial na digestão de macronutrientes. Neste capítulo, você vai conhecer os aspectos fisiológicos básicos da fisiologia pancreática, a fim de identificar as etiologias possíveis das pancreatites aguda e crônica e sua epidemiologia. Você ainda vai estudar sobre as manifestações clínicas, os métodos de diagnóstico e o trata- mento das pancreatites aguda e crônica, assim como sobre as indicações da cirurgia pancreática. Além disso, estudará também como se dá a prescrição da terapia nutricional nas pancreatites e na cirurgia pancreática. Fisiologia do pâncreas exócrino e aspectos básicos das pancreatites aguda e crônica O pâncreas é um órgão com porções histológica e fi siologicamente distintas: compondo o sistema endócrino, é responsável pela produção de hormônios que são chave para o metabolismo, como a somatostatina, o glucagon e a insulina. Já suas funções exócrinas, que serão o tema deste capítulo, incluem a produção de enzimas que atuarão na digestão de macronutrientes. A porção exócrina libera, de seus ácidos pancreáticos diretamente no duodeno, via ducto pancreático, enzimas e bicarbonato. Este último tem por objetivo equilibrar o pH, uma vez que o quimo chega ao duodeno após exposição ácida estomacal. Para atingir esse objetivo, o pH da secreção pancreática fica em torno de 8 a 8,3. Você pode conferir na Tabela 1 as enzimas digestivas produzidas pelo pâncreas, categorizadas por função. Carboidratos Proteínas Lipídios Outros Amilase pancreática: hidrolisa amidos, glicogênios e demais carboidratos. Exceção: celulose. Produto final: dissacarídeos e trissacarídeos Tripsina, qui- motripsina e carboxipolipep- tidade: são pro- duzidas em suas formas inativas Lipase pancreática: hidrolisa gordura neutra em ácidos graxos e monoglicerídeos. Colesterol esterase: cliva os ésteres de colesterol. Fosfolipase: responsável pela clivagem dos ácidos graxos de fosfolipídeos. Nucleases: clivagem de ácidos nucleicos. Bicarbonato: produzido para regular o pH. Tabela 1. Enzimas digestivas produzidas pelo pâncreas. A secreção pancreática é regulada via acetilcolina, cuja liberação estimula a secreção enzimática; colecistocinina, cuja secreção na mucosa do duodeno também estimula a secreção enzimática; e secretina, cuja produção ocorre na mucosa duodenal e jejunal, quando há presença de quimo ácido, estimulando a secreção de bicarbonato pelo pâncreas. Pâncreas exócrino (pancreatite aguda, crônica e cirurgia pancreática) 268 Epidemiologia e etiologia das pancreatites A pancreatite crônica se caracteriza pela fi brose crescente do parênquima glandular. O início do dano é bem localizado em determinada região; porém, com a progressão do processo infl amatório, observa-se fi brose difusa. Já a infl amação repentina pancreática caracteriza a pancreatite aguda, que pode ou não cronifi car, dependendo de sua etiologia e seu tratamento. A epidemiologia da pancreatite crônica é de difícil desenho, uma vez que estudos de base populacional sobre essa patologia são escassos no Brasil – a maior parte dos dados de prevalência e incidência são provenientes do Japão, dos Estados Unidos e da Europa. Cabe salientar que as diferentes etiologias e suas diferentes prevalências em cada região brasileira, bem como critérios diagnósticos variados e atual maior sensibilidade dos métodos diagnósticos são fatores de confusão para a detecção de um aumento de prevalência dos casos de pancreatite crônica no Brasil. Quanto à variação nas etiologias, é importante perceber que, no Brasil (e no Ocidente como um todo), a principal causa da pancreatite crônica é o álcool. O álcool atua como forte cofator de desencadeamento em indivíduos que podem ser – por fatores genéticos ou ambientais – suscetíveis à pan- creatite. Estudos epidemiológicos conduzidos em Belo Horizonte e em São Paulo apontaram o álcool como responsável por cerca de 90% dos casos de pancreatite crônica. Além disso, o tabagismo também aparece como fator de risco para desenvolvimento da pancreatite crônica – e também está associado com uma maior velocidade de progressão da pancreatite crônica. O risco de desenvolver pancreatite crônica é de 7 a 27 vezes maior para tabagistas, comparando-os a não fumantes. O álcool também é um fator importante na etiologia da pancreatite aguda, sendo o segundo maior responsável pela sua incidência, o que representa uma parcela em torno de 30% do total. Admite-se que um único episódio de consumo de álcool pode desencadear um episódio de pancreatite aguda, embora seja importante destacar a baixa probabilidade. Ainda é controverso se episódios recorrentes de pancreatite associada ao consumo de álcool não seriam uma exacerbação de uma condição crônica. O envelhecimento e os índices crescentes de sobrepeso e de obesidade relacionam-se ao aumento da incidência de pancreatites de etiologia biliar. Os cálculos biliares ainda são a principal causa dos casos de pancreatite aguda, res- pondendo por 30 a 60% dos casos. A litíase biliar culmina em desenvolvimento de pancreatite em cerca de 3 a 7% do total dos casos de litíase. Cabe ressaltar ainda que a maior acurácia diagnóstica permitiu maior número de diagnósticos 269Pâncreas exócrino (pancreatite aguda, crônica e cirurgia pancreática) finais de pancreatites agudas, não refletindo necessariamente um aumento de incidência por algum fator etiológico em ascensão. Outros fatores etiológicos associados à pancreatite aguda são a hipercalcemia e a hipertrigliceridemia, a que ocorre posteriormente à colangiografia endoscópica retrógrada, aquela associada a medicamentos e traumas, a hereditária e a autoimune. Dados obtidos nos Estados Unidos revelam que a taxa de mortalidade da pancreatite aguda fica em torno de 5%, podendo chegar até 30% em casos agravamento e necrose infectada do pâncreas – é a décima quarta causa mais comum de óbito e gera gastos que excedem 2 bilhões de dólares/ano. A inci- dência da pancreatite aguda é de 18 a cada 100.000 habitantes, naquele país. Manifestações clínicas, diagnóstico e tratamento clínico e cirúrgico da pancreatite Manifestações clínicas da pancreatite crônica A manifestação clínica da pancreatite crônica possui pouca variabilidade entre pacientes. Deve-se considerar que isso está relacionado com o fato de a população atingida pela pancreatite crônica ser bastante homogênea: indivíduos do sexo masculino, com ingestão de álcool alta e prolongada. Geralmente, o primeiro sinal clínico da pancreatite crônica é a dor abdominal. Ela é um sintoma central, que ocorre em cerca de 90% dos casos. Ela está relacionada com à hipertensão ductal que ocorre pela presença de cálculos e da fi brose; o processo infl amatório também está envolvido com a presença da dor. A dor encontra-se associada com a insuficiência endócrina e exócrina do pâncreas. Episódios de exacerbação não são raros, e estão associados principalmente à ingestão dietética e ao consumo de álcool. Porém, grande parte dos portadores de pancreatite crônica apresentamdor visceral crônica contínua, com localização no abdômen superior e irradiação para o dorso. Uma pesquisa realizada na Universidade Federal da Bahia evidenciou que 81% dos pacientes apresentaram essa forma de dor. O dado que mais chama atenção é a sua intensidade: 32% dos avaliados apresentaram intensidade álgica suficiente para tornar-se incapacitante. Cabe ressaltar o impacto da dor na qualidade de vida e no estado nutri- cional, com consequente perda da capacidade laborativa. Considerando que a pancreatite crônica não possui tratamento curativo, o controle da dor torna-se um dos principais objetivos terapêuticos. Pâncreas exócrino (pancreatite aguda, crônica e cirurgia pancreática) 270 A progressão da fibrose pancreática leva ao surgimento de esteatorreia e do diabetes – complicações tardias da pancreatite crônica. Outras complicações clínicas podem ocorrer, sendo mais frequentes no início da evolução da doença, quando há parênquima pancreático funcionante em algum nível. A icterícia, com evidência clínica ou laboratorial, ocorre em cerca de 25% dos pacientes. A presença de pseudocistos, que ocorre em aproximadamente 1/3 dos pacientes, pode gerar complicações como compressão de estruturas vizinhas, infecção por abscessos, hemorragia, fistulização para vísceras ocas ou para o peritônio. A resolução dessas complicações é espontânea em quase 70% dos casos. Durante o curso da doença, também pode ocorrer hematêmese ou melena, geralmente devido à ruptura de varizes esofagogástricas que são secundárias à compressão, ou a trombose por um pseudocisto ou pelo aumento do volume do pâncreas. A necrose pancreática é possível, subdividindo-se entre estéril e infectada; mais raramente, abscessos e fístulas podem estar presentes. É importante observar que outras patologias podem ocorrer durante a progressão da pancreatite crônica e em função dela, como a maior incidência de úlcera péptica – pode-se atribuir esse fato à deficiência da produção de bicarbonato pelo pâncreas. A litíase biliar também é mais prevalente, assim como a osteoporose e neoplasias relacionadas ao consumo de álcool e tabaco. Diagnóstico da pancreatite crônica Em termos laboratoriais, o diagnóstico da pancreatite crônica se baseia na constatação da insufi ciência pancreática exócrina. Porém, é importante con- siderar que a maiorias desses testes são sensíveis apenas em casos avançados de pancreatite crônica – aqueles capazes de detectar a insufi ciência no início da doença são invasivos e não estão disponíveis na rotina clínica. Além disso, a insufi ciência poder estar relacionada a outra causa, como obstruções do ducto, fi brose cística do pâncreas e anomalias congênitas. Contudo, em casos de suspeita de pancreatite autoimune, os marcadores laboratoriais como a hiperglobulinemia, o fator antinuclear e a IgG4 podem contribuir para o diagnóstico. Entre os exames de imagem, a radiografia panorâmica do abdômen tem sensibilidade maior que a ultrassonografia para detectar calcificações pan- creáticas; nessa situação, deve-se considerar o diagnóstico diferencial de hematoma/infarto pancreáticos, metástases, pseudocistos e neoplasias. Porém, é a tomografia computadorizada o método de imagem mais utilizado na avaliação inicial da suspeita de pancreatite crônica. 271Pâncreas exócrino (pancreatite aguda, crônica e cirurgia pancreática) Em muitos casos, é necessária a complementação histológica para confirmar o diag- nóstico de pancreatite crônica e excluir a possibilidade de carcinoma pancreático. Considerando que a pancreatite crônica não tem cura, os tratamentos estabelecidos têm por objetivo tratar os sintomas, bem como evitar e tratar as complicações mais frequentes dessa patologia. A seguir, você pode conferir as condutas para os sintomas e as complicações mais comuns. Dor A falta de correlação entre o dano estrutural do pâncreas, as alterações na função pancreática e sintomas como a dor difi culta o estabelecimento de parâmetros para o tratamento da dor. Um ponto fundamental é a abstinência do álcool e do tabaco, que interferem no tratamento para dor, uma vez que o álcool lesiona diretamente o pâncreas, aumentando o estresse oxidativo e a infl amação, ao passo que a nicotina é um fator direto de ativação neuropática. A possibilidade de tratamento com suplementação enzimática alterou os para- digmas relacionados à dor e à supressão severa de lipídios. Quanto ao uso de analgésicos, os opioides podem ser utilizados nos casos de dores moderadas ou intensas. Em caso de dor resistente aos opioides, medicações de efeito central podem ser utilizadas. Tratamentos intervencionistas como a drenagem e a ablação pancreática são utilizados em casos refratários ao tratamento clínico. A neuroablação é um processo paliativo e consiste na destruição ou no bloqueio do plexo celíaco, necessitando de repetição, geralmente semestral – essa deve ser a última escolha no tratamento da dor. Insuficiência exócrina Ocorre devido à secreção insufi ciente das enzimas acinares (lipase, amilase e protease) e da produção de bicarbonato. A reposição enzimática melhora a esteatorreia, reduzindo a excreção de gordura fecal. O tratamento ainda diminui distúrbios de motilidade que ocorrem na insufi ciência exócrina pan- creática, resultantes, por exemplo, da liberação anormal de colecistocinina, Pâncreas exócrino (pancreatite aguda, crônica e cirurgia pancreática) 272 que implica em maior tempo de esvaziamento gástrico, alteração da motilidade antroduodenal e dismotilidade da vesícula biliar. A reposição enzimática facilita o ganho de peso e auxilia na absorção de micro e macronutrientes. especialmente em relação às vitaminas lipossolúveis. As enzimas devem ter revestimento acidorresistente, e a primeira opção é a enzima de origem suína. A de origem bovina é utilizada quando – por motivos alérgicos ou religiosos – a suína não puder ser empregada. Recomenda-se o uso durante a refeição. Diabetes O diabetes melito tipo III – ou secundário – pode surgir durante a evolução de diversas doenças pancreáticas, podendo inclusive preceder a descoberta da etiologia das alterações funcionais pancreáticas. Estudos epidemiológi- cos evidenciaram uma associação entre a presença de cálculos pancreáticos detectados em exames de imagem e a piora da função endócrina, com o surgimento do diabetes. Os mecanismos de fi brose e de destruição acinar e centro-acinar pancreáticos provavelmente estão relacionados com o surgi- mento de diabetes nessa população, havendo correlação entre níveis baixos de produção de insulina e a secreção exócrina. Quanto ao tratamento do diabetes no paciente com pancreatite crônica, não há diferenças em relação à terapêutica do diabetes tipo II. Necrose de pâncreas A presença de parênquima não viável detectável por exames de imagem defi ne a necrose pancreática. É uma complicação grave, que atinge em torno de 10% dos casos, ocorrendo em qualquer estágio da doença – porém, sempre durante episódio de agudização. É importante saber que esse tecido inviável pode infectar-se; de toda forma, a necrose exige drenagem – preferencialmente via endoscopia, drenagem radiológica e, quando for necessário, cirúrgica. Manifestações clínicas da pancreatite aguda A dor é o principal sintoma da pancreatite aguda, estando presente em mais de 95% dos casos. Ocorre de forma aguda e súbita, na porção superior abdo- minal. É relatada também a piora da dor com a alimentação ou ingestão de bebidas alcoólicas. Quando a etiologia é biliar, a dor pode ser mais localizada no hipocôndrio direito, além de o início não se dar de forma súbita, devido à presença de cólica biliar. 273Pâncreas exócrino (pancreatite aguda, crônica e cirurgia pancreática) Náusea e vômitos – que podem ser incoercíveis – também são frequentes, atingindo 90% dos pacientes com pancreatite aguda. O quadro de gravidade da pancreatite é compatível, proporcionalmente, com os achados do exame físico, podendo ocorrer quadro deíleo adinâmico implicado pelo processo inflamatório pancreático, resultando em distensão abdominal e redução da peristalse. Se o sequestro de líquido resultar em hipovolemia secundária, podem ocorrer taquicardia e hipotensão. Outros achados são presentes apenas em casos mais graves, como o derrame pleural e a presença de equimose no flanco esquerdo ou na região periumbilical, indicando hemorragia retroperitoneal. Diagnóstico da pancreatite aguda Entre os achados laboratoriais, a hiperamilasemia é um marcador clássico, apresentando alta sensibilidade. Porém, é necessário considerar que ela está alterada em outras situações, como na insufi ciência renal, na perfuração esofágica e até durante a gravidez. A hiperamilasemia é discreta – não supe- rando em três vezes os valores de referência e podendo ainda estar em níveis aceitáveis em alguns casos, como no diagnóstico tardio e na presença de hipertrigliceridemia. A dosagem da lipase sérica é um exame primário para o diagnóstico da pancreatite, devido à sua sensibilidade e especificidade, mantendo-se esta elevada durante vários dias. Quanto aos exames de imagem, a tomografia com- putadorizada helicoidal é de extrema importância na avaliação da pancreatite aguda, sendo indicada sobretudo nos casos de maior gravidade ou naqueles que não apresentem melhora com o tratamento clínico, permitindo confirmar o diagnóstico e localizar complicações como a necrose. Cabe ressaltar que determinar a gravidade da pancreatite é um ponto essencial do tratamento, identificando aqueles que precisarão de medidas intensivas de suporte à vida. Tratamento da pancreatite aguda Não havendo tratamento específi co para a pancreatite, a terapêutica baseia-se no tratamento da etiologia, quando possível, e em medidas de suporte à vida e tratamento de possíveis complicações. O suporte clínico demanda manutenção da perfusão, com adequada reposição volêmica e atenção para a saturação de oxigênio, analgesia e suporte nutricional. Os pacientes devem ser monitorados via oximetria de pulso, buscando saturação de oxigênio acima de 95%. Em caso de vômitos incoercíveis ou de distensão abdominal signifi cativa secun- Pâncreas exócrino (pancreatite aguda, crônica e cirurgia pancreática) 274 dária ao íleo adinâmico, a descompressão gástrica via cateter nasogástrico pode ser utilizada. Boa parte dos pacientes apresenta um agudo leve, com boa resposta ao tratamento clínico, demonstrada pela melhora dos sintomas e normalização dos níveis de amilase e lipase. Cabe ressaltar que, quando a etiologia é biliar, o paciente deve ser submetido assim que possível à colecistectomia. A pancreatite aguda grave deve ser tratada em unidade de terapia intensiva, com as medidas de suporte à vida necessárias para a estabilização do quadro. Cirurgia de pâncreas A cirurgia pancreática é um assunto vasto, que pode envolver outras pato- logias de base, como o câncer. De forma geral, procedimentos cirúrgicos e laparoscópicos são utilizados como tratamento para a neoplasia do pâncreas; remoção de lesões sólidas, císticas e focais benignas; para as complicações da pancreatite aguda, como a necrose infectada e pseudocistos sintomáticos; e nas complicações da pancreatite crônica relativas à intratabilidade da dor. A diferença nas causas do procedimento cirúrgico e do procedimento em si – principalmente se envolverá ou não pancreatectomia – também repercutem nas condições clínicas pós-operatórias. Hemorragia e fístulas são complicações comuns e potencialmente fatais desses procedimentos. Terapia nutricional nas pancreatites e na cirurgia pancreática Terapia nutricional na pancreatite aguda A meta primária na terapia nutricional do paciente hospitalizado com pancre- atite aguda não se difere muito dos objetivos primários referentes a boa parte dos pacientes que se encontram internados: ofertar quantidades adequadas de energia e evitar a perda de massa magra. A dor, fatores emocionais e fatores institucionais, como o jejum frequente para exames, podem comprometer o estado nutricional, dependendo do estado catabólico relacionado à infl amação. Analisando especificamente a pancreatite aguda, pode-se citar a imu- nomodulação como meta com a finalidade de minimizar uma resposta pró- -inflamatória e permitir uma resposta anti-inflamatória compensatória, visando o equilíbrio em termos imunológicos e inflamatórios. Esse equilíbrio repercute 275Pâncreas exócrino (pancreatite aguda, crônica e cirurgia pancreática) na diminuição da morbidade e da mortalidade, e na aceleração do tempo de recuperação do paciente. Cabe ressaltar que a terapia nutricional precoce na pancreatite aguda grave foi associada com uma melhor resposta ao estresse e uma solução mais rápida do quadro. Vale lembrar que a pancreatite demanda maior resposta metabó- lica, levando ao catabolismo. Esse fato, associado a uma terapia nutricional insuficiente e aos outros fatores já citados, relativos à internação hospitalar de forma geral, culmina na piora do estado nutricional, especialmente no que se refere a um grande consumo da massa magra. A escolha da via mais adequada O alto catabolismo, associado a períodos de jejum, dor e inapetência, pode levar a crer que a terapia nutricional parenteral pode ser uma boa auxiliar nesses casos. Porém, pesquisas evidenciaram que a terapia nutricional parenteral precoce, em casos de pancreatite não grave, associou-se com maior tempo de hospitalização, apesar das taxas similares de mortalidade e de infecções. Dessa forma, não há indicação de terapia nutricional parenteral para os casos de pancreatite aguda leve, quando o paciente está apto ao consumo de alimentos por via oral em até cinco a sete dias após o início do episódio. Durante o tratamento da pancreatite, o raciocínio fisiológico aponta que seria benéfico evitar a alimentação via trato gastrintestinal, com o objetivo de minimizar a produção de secreção pancreática. Dessa forma, apenas a nutrição parenteral era cogitada; porém, vale considerar que estudos sobre a fisiologia da digestão em indivíduos saudáveis demonstraram que, quando o alimento é oferecido em posição posterior ao ângulo de Treitz, a secreção pancreática exócrina praticamente não se altera. Logo, a nutrição parenteral fica indicada apenas para aqueles pacientes incapazes de atingir as necessi- dades energéticas via SNE, seja por falência intestinal, má absorção ou pela presença de fístula pancreática. Quando a pancreatite aguda é grave e a via enteral não pode ser utilizada, a TNP prevalece, em termos de benefícios, apenas sobre a hidratação. Um estudo que comparou três grupos de pacientes com pancreatite aguda grave – o primeiro recebeu apenas TNP; o segundo, TNP associada a glutamina; e o terceiro, apenas hidratação – evidenciou que os grupos que receberam a terapia nutricional parenteral apresentaram menores taxas de hospitalização, de morbidade e de mortalidade, quando comparados ao grupo que recebeu apenas hidratação. Pâncreas exócrino (pancreatite aguda, crônica e cirurgia pancreática) 276 De forma geral, pode-se considerar que, quando há possibilidade da via enteral, esta deve ser preferida, em relação à via parenteral, mesmo em casos de pancreatite grave. Um estudo com esses pacientes submetidos ou à terapia nutricional enteral, ou parenteral demonstrou que essa última se associou ao dobro de casos de complicações infecciosas, em relação à terapia enteral. Além disso, o grupo TNE mostrou melhores resultados em relação a magnitude da resposta inflamatória, ocorrência de sepse, tempo em unidade de terapia in- tensiva e ocorrência de falência de órgãos. Outros estudos ainda evidenciaram, na pancreatite aguda grave, que a terapia enteral foi bem tolerada e diminuiu os riscos de translocação bacteriana, infecção, mortalidade e sepse. Outro fator importante a se considerar sobre os benefícios da terapia enteral, em relação à parenteral, é o melhor controle glicêmico – parâmetro crucial para o pacientecom pancreatite aguda, que não raro pode evoluir com hiperglicemia e resistência insulínica. Em resumo, quanto à escolha da via em casos de pancreatite leve, mantém-se a via oral, com uma dieta rica em carboidratos e proteínas e baixa em gordu- ras – ou seja, uma proporção menor do que de 30% da ingestão energética. Quando isso não for possível, a via escolhida é a enteral. Quando necessária para fechar o valor energético, não é descartada a associação com a terapia nutricional parenteral; da mesma forma, se não houver condições clínicas e fisiológicas para o estabelecimento da TNE, a TNP é recomendada. Uso de TNE: a escolha da posição da sonda O posicionamento jejunal após o ângulo de Treitz foi estudado, em função de estimular menos a produção exócrina pancreática. Porém, alguns estudos que compararam a terapia parenteral com a enteral utilizaram em seus métodos a sonda na posição nasogástrica. Há que se considerar a facilidade de execução da sondagem nasogástrica. Esta não necessita procedimento endoscópico; portanto, não é necessária a pre- sença do endoscopista, como frequentemente ocorre com o posicionamento da sonda nasojejunal – o que pode levar a atrasos consideráveis na implementação da terapia nutricional. A sonda nasogástrica é tida por muitos autores como uma alternativa segura e viável; não se observam alterações em parâmetros clínicos e nutricionais, quando comparada à posição jejunal. Pela observação fisiológica e pela insuficiência de dados sobre a posição nasogástrica na pancreatite aguda grave, o posicionamento mais recomendado é o jejunal. Todavia, o posicionamento gástrico também é considerado seguro. 277Pâncreas exócrino (pancreatite aguda, crônica e cirurgia pancreática) Uso de TNE: a escolha da fórmula Estudos com o objetivo de comparar a terapia enteral com a parenteral usaram diferentes tipos de fórmulas em suas metodologias – a maioria dos traba- lhos utilizou a fórmula oligomérica. No âmbito fi siológico, realmente faz mais sentido o uso de uma fórmula oligomérica, uma vez que esta pode ser absorvida sem a necessidade das enzimas pancreáticas e estimula menos a sua secreção. Um menor tempo de hospitalização e uma menor perda de peso foram associados ao uso da fórmula oligomérica, em comparação com a polimérica, nos casos de pancreatite aguda. Dessa forma, a fórmula com peptídeos (oligomérica) é uma opção bastante segura para o início da terapia nutricional; a fórmula com sua proteína íntegra pode ser tentada, mas deve-se observar de perto sua tolerância. Quanto à composição e ao teor de lipídeos na fórmula enteral, é necessário considerar a ausência de estudos randomizados comparando fórmulas normo ou hipolipídicas no manejo da pancreatite aguda. Além disso, a maioria dos trabalhos que testaram fórmulas enterais utilizaram as industrializadas, com teor padrão de lipídios variando entre 33 a 36%. Logo, a fórmula administrada via sonda jejunal pode ser normolipídica. Cabe ressaltar, porém, que, pela facilidade absortiva e associação com melhores desfechos em diversos estudos, devem ser escolhidas fórmulas com maior teor de triglicerídeos de cadeia média em sua composição. Ácidos graxos ômega 3 podem ser recomendados nos casos de pancreatite aguda grave. Estudos evidenciaram que, nesses casos, os mediadores inflamatórios com menor potência – quando comparados aos produzidos com ômega 6 – tiveram impacto positivo no tempo de internação e nos dias em uso de terapia nutricional. Componentes que podem ser adicionados às fórmulas enterais são os lactobacilos, mas cabe destacar que não há consenso sobre seu uso. Foram realizados estudos com uma diversidade de cepas e de concentrações diversas destas, obtendo resultados variados, incluindo desfechos de maior mortalidade com isquemia intestinal. Por isso, o uso de probióticos não é indicado no tratamento de pancreatite aguda. Terapia nutricional na pancreatite crônica Quando o quadro de pancreatite é crônico, o estado nutricional é comprometido por fatores que vão muito além dos relacionados a uma possível internação hospitalar: o processo infl amatório cronifi cado é hipercatabólico. A dor, que também é um sintoma comum, é outro fator que compromete a alimentação Pâncreas exócrino (pancreatite aguda, crônica e cirurgia pancreática) 278 via oral. É importante lembrar que o alcoolismo é a maior causa de pancreatite crônica. Nesses casos, se o consumo de álcool persistir, esse por si só já é um fator de risco independente para a desnutrição. O estado hipercatabólico é percebido pelo aumento do gasto energético em repouso, que ocorre em 30% a 50% dos pacientes. A pancreatite crônica, sendo uma doença progressiva, compromete, com o passar do tempo, a secreção pancreática das enzimas digestivas – o que pode levar à má digestão e à má absorção. Isso, por sua vez, leva à esteatorreia, a episódios de diarreia volumosa e à deficiência de vitaminas lipossolúveis e azotorreia. Não é só a parcela exócrina pancreática que fica comprometida com o processo degenerativo pancreático: em 90% dos casos, há comprometimento da função endócrina. Esse fato pode implicar o aparecimento de diabetes melito, o que também agrava o estado nutricional. Deficiências de minerais, tiamina e de ácido fólico têm sido positivamente associadas com a pancreatite crônica, evidenciando que essa patologia exige avaliação e acompanhamento nutricional detalhados e atentos. A escolha da via mais adequada A via oral é a mais utilizada no tratamento da pancreatite crônica, não havendo contraindicação específi ca relativa a ela. Cabe ressaltar que tanto a via oral quanto a enteral estão contraindicadas quando há a ocorrência de estenose duodenal grave, que não permite a passagem da sonda nasoentérica. Nesse caso, a nutrição parenteral é a alternativa viável – bem como nos casos de fístula pancreática, em que é de extrema importância não estimular a produção de secreção pancreática. A via enteral deve ser recomendada nos casos de maior gravidade, que evoluem com persistente ingestão inadequada, perda de peso progressiva em pacientes pré-operatórios e na estenose piloro-duodenal, em que é possível a passagem da sonda. Cerca 5% dos pacientes com pancreatite crônica evoluirão com as complicações citadas e necessitarão de terapia nutricional enteral. A prescrição da dieta Para o estabelecimento de uma dieta via oral adequada, é preciso ter em mente quais os objetivos da terapia nutricional na pancreatite aguda: 279Pâncreas exócrino (pancreatite aguda, crônica e cirurgia pancreática) ofertar meios para melhor ingestão energética, a fim de evitar a perda de peso e comprometer o estado nutricional; controlar a má absorção, a fim de evitar a evolução da desnutrição proteico-calórica; auxiliar no controle da dor. Também é importante considerar o contexto de tratamento desse paciente: para uma ingestão adequada, o esquema de controle da dor deverá estar oti- mizado, por exemplo, com a oferta de analgésicos no período pré-prandial. A abstinência total do consumo do álcool também deve ser observada. Quanto à composição da dieta, cabe considerar que em torno de 80% dos pacientes estão aptos a consumir uma dieta via oral normal, com associação ou não ao tratamento com enzimas hepáticas. Alterações dietéticas indivi- dualizadas, analisadas conforme a sintomatologia, podem levar à redução da dor e ao aumento da ingestão. De forma geral, recomenda-se o fracionamento das refeições em porções menores. A composição dietética mais recomendada para pancreatite crônica pode ser conferida na Tabela 2. Energia Proteína Carboidrato Gordura Hipercalórica 35 kcal/kg/dia Hiperproteica 1,0 a 1,5 g/kg/dia Rica Pobre 0,7 a 1,0 g/kg/dia Preferência por gordura vegetal (maior tolerância) Tabela 2. Composição dietética recomendada para pancreatite crônica. Suplementos nutricionais com proteína hidrolisada, triglicerídeos de cadeia média, vitaminas lipossolúveis e minerais sãoindicados quando houver per- sistência da baixa ingestão e da perda de peso, mesmo com aconselhamento nutricional adequado. Deve-se corrigir as hipovitaminoses, com atenção para aquelas relativas às vitaminas hidrossolúveis. A suplementação pode ser associada ao uso de enzimas pancreáticas. O triglicerídeo de cadeia média também está indicado nos casos de esteatorreia persistente, devido à sua melhor absorção. Pâncreas exócrino (pancreatite aguda, crônica e cirurgia pancreática) 280 Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual da Instituição, você encontra a obra na íntegra. Conteúdo: