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A pancreatite aguda é definida como uma condição inflamatória aguda do pâncreas. Existem diferentes etiologias, no entanto, um ponto comum a elas é que o processo depende da autodigestão tecidual do pâncreas, e possivelmente tecidos vizinhos, devido a secreção das próprias enzimas pancreáticas. A pancreatite aguda deflagra um quadro de abdomen agudo inflamatório, com um processo inflamatório intenso que pode causar uma síndrome de resposta inflamatória sistêmica (em inglês, SIRS). Esse processo pode desencadear um quadro grave, levando a disfunção orgânica e apresentando morbimortalidade relevante nesses casos. EPIDEMIOLOGIA A incidência da pancreatite aguda varia em diferentes países e depende da exposição aos hábitos e comorbidades que estão associados à pancreatite (por exemplo, álcool, cálculos biliares, fatores metabólicos, drogas). A incidência anual varia de 5 a 80 casos para cada 100.000 pessoas e resulta em mais de 250.000 hospitalizações por ano nos Estados Unidos, com duração média da internação de 4 dias e custo médio de $6096. A mortalidade varia muito entre os tipos de pancreatite. Enquanto casos de pancreatite aguda edematosa apresentam mortalidade de cerca de 3%, a mortalidade passa dos 17% em casos de pancreatite necrotizante. ETIOLOGIA Existem várias causas de pancreatite aguda, mas os mecanismos pelos quais essas condições desencadeiam a inflamação pancreática não foram ainda completamente elucidados. Litíase biliar e álcool são responsáveis por 75 a 80% dos casos de pancreatite aguda, sendo a litíase bi liar ainda a maior causa (30% a 60%) dos casos de pancreatite aguda, enquanto o consumo crônico de grandes volumes de etanol é a principal causa da pancreatite crônica. RISCO DA PEDRA NA VESÍCULA O risco de pancreatite aguda em pacientes com pelo menos uma pedra na vesícula < 5 mm é quatro vezes maior do que em pacientes que apresentam apenas pedras maiores. Apesar da grande correlação entre litíase e microlitíase biliar e o desenvolvimento da pancreatite aguda, apenas cerca de 3-7% dos pacientes com cálculos biliares desenvolvem a doença. RISCO DO ALCOOLISMO O álcool é a segunda maior causa de pancreatite aguda nos Estados Unidos, sendo responsável por 15% a 30% dos casos. Entretanto a incidência da doença é surpreendentemente baixa em alcoólatras (5/100.000), indicando que além da ingesta de álcool outros fatores influenciam na susceptibilidade individual de injuria. É sugerido que o álcool potencializa a produção das enzimas digestivas e lisossomais pancreáticas, ao aumentar a sensiblidade dos ácinos do pâncreas ao efeito da colecistoquinina. RISCO APÓS COLANGIOPANCREATOGRAFIA Ocorre pancreatite aguda em 5-10% dos pacientes após a colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE). Foi demonstrado que o uso de stent em ducto pancreático e de anti-inflamatório não esteroides por via retal reduz a pancreatite após CPRE. Os fatores de risco para pancreatite pós-CPRE incluem esfincterotomia da papila menor, disfunção do esfíncter de Oddi, história pregressa de pancreatite pós-CPRE, idade <60 anos, >2 injeções de contraste no ducto pancreático e participação de estagiários em endoscopia. P A N C R E A T I T E RISCO DA HIPERTRIGLICERIDEMIA A hipertrigliceridemia é a causa de pancreatite aguda em 1,3 – 3,8% dos casos (quando > 1.000mg/dL). A lipase pancreática causa a liberação de grande quantidade de ácidos graxos livres nos capilares pancreáticos, que deflagram o processo inflamatório no pâncreas por mecanismos que ainda não foram bem elucidados. Níveis tão elevados de triglicérides normalmente são encontrados em pacientes com doenças hereditárias que predispõe à hipertrigliceridemia. Há ainda a possibilidade de pancreatite aguda medicamentosa, que é rara, mas pode ser causada por diversos medicamentos como sulfonamidas, ácido valproico, azatioprina e diversos diuréticos. PATOGÊNESE Patologicamente, a pancreatite aguda varia desde pancreatite intersticial (suprimento sanguíneo doo pâncreas mantido), a qual costuma ser auto- limitada, até pancreatite necrosante (suprimento sanguíneo do pâncreas interrompido). Na pancreatite biliar, a passagem do cálculo pela via biliar causa lesão, inflamação e edema no ducto, o que pode causar obstrução dos ductos pancreáticos, e em algumas situações o cálculo fica impactado na porção distal do ducto colédoco, também obstruindo o ducto de Wirsung. Essa obstrução da saída dos ductos pancreáticos, provocaria lesão dos ácinos por estase dos fluidos, contribuiria para a ativação das enzimas pancreáticas, dando início ao processo de autodigestão que causa a lesão e inflamação característicos da pancreatite aguda. Quando ocorre lesão dos ácinos, enzimas lisossômicas podem se fundir às vesículas que contém as pró-enzimas pancreáticas. Com a presença da tripsina na sua forma ativa no pâncreas, e ativação de outras pró-enzimas, é iniciado um processo de quebra de proteínas das próprias células pancreáticas, perpetuando o processo de lesão do órgão, o que causa intense resposta inflamatória, através da ativação do Sistema do complemento, cascata de coagulação e liberação de citocinas como IL-1, IL-6 e TNF-alfa. CLÍNICA A maioria dos pacientes com pancreatite aguda começa o quadro com uma dor persistente e intensa na região epigástrica, em alguns pacientes a dor pode estar localizada em hipocôndrio direito e, mais raramente, no hipocôndrio esquerdo. Na semiologia, o quadro mais típico de pancreatite aguda é retratado com dor constante e intensa, em faixa, abrangendo desde a região epigástrica, aos hipocôndrios e podendo irradiar para o dorso. Em pacientes com litíase biliar, a dor é bem localizada e o início da dor é rápido, atingindo o pico da dor em 10 a 20 minutos após o início dos sintomas. Ao contrário, em pacientes com pancreatite aguda causada por alguma doença metabólica ou abuso de álcool, a dor pode ser menos abrupta e mais difícil de localizar. Em aproximadamente metade dos pacientes, a dor irradia para as costas (dor em faixa). A dor pode durar desde algumas horas até alguns dias e pode aliviar quando o paciente se senta ou se inclina para frente. Aproximadamente 90% dos pacientes têm náuseas e vômitos associados, os quais podem persistir por várias horas. Uma apresentação mais rara da doença que pode ser observada em casos de pancreatite grave é de sintomas respiratórios como dispneia em decorrência da inflamação do diafragma secundária à pancreatite. Esse processo pode ter como consequência o desenvolvimento de derrames pleurais e até mesmo síndrome da angústia respiratória aguda. Existem relatos de pacientes com pancreatite aguda grave que abrem o quadro sem dor abdominal, apresentando como principal sintoma uma hipotensão sem causa aparente, principalmente em pacientes no pós-operatório, pacientes em diálise, pacientes que sofreram envenenamento por organofosforados e Legionelose. EXAME FÍSICO Os achados do exame físico podem variar dependo da gravidade da pancreatite. Em pacientes com pancreatite aguda moderada, o epigástrio pode estar minimamente sensível à palpação, mas também é possível que pacientes com pancreatite leve se apresentem com dor abdominal intensa à palpação. Em contraste, pacientes com pancreatite aguda grave podem ter uma sensibilidade muito aumentada à palpação do epigástrio e/ou difusamente em todo o abdome. Alguns pacientes podem apresentar distensão abdominal e ruídos hidroaéreos diminuídos devido à um íleo paralítico secundário à inflamação, que se correlaciona com a intolerância à dieta por via oral, sintoma comum em pesos com pancreatite. Outro sinal presente em alguns casos é o de escleras ictéricas (olhos amarelados) devidoà coledocolitíase ou edema na cabeça do pâncreas, que causa processo colestático e elevação dos níveis séricos de bilirrubina. SINAL DE CULLEN E SINAL DE GREY TURNER A presença de equimose periumbilical (sinal de Cullen) e equimose em flancos (sinal de Grey Turner), é rara, porém em pacientes com pancreatite aguda sugere a presença de hemorragia retroperitoneal, indicando provável presença da forma necrotizante da doença. Há também risco de desenvolvimento de taquipneia e hipoxemia em pacientes graves. Em casos raros, pacientes podem ter necrose nodular da gordura subcutânea ou paniculite. Essas lesões se apresentam como nódulos dolorosos, hiperemiados, que frequentemente ocorrem nas extremidades distais, mas podem ocorrer em outros locais. Eles também podem ter achados sugestivos de outras condições de base, como por exemplo hepatomegalia, que pode estar presente em pacientes com pancreatite alcóolica, ou xantoma em pacientes com pancreatite por dislipidemia, e inchaço nas parótidas em pacientes com caxumba. EXAMES LABORATORIAIS O desequilíbrio entre a síntese e a secreção das enzimas digestivas pancreáticas, responsável pela fisiopatologia da pancreatite aguda, faz com que essas enzimas extravasem o interior das células acinares e atinjam a circulação sistêmica. Esse evento possibilita a quantificação de seus níveis séricos, que auxiliam no diagnóstico da doença. Assim, são várias as enzimas que podem ter seus valores aumentados no plasma, como a tripsina, fosfolipase e peptídeo ativador de tripsinogênio, que pode até mesmo ser utilizado como um preditor de gravidade do agravo. Contudo, duas medidas podem ser consideradas cruciais para a definição da PA: a amilase e a lipase séricas. AMILASE SÉRICA A amilase aumenta rapidamente, já entre as primeiras 6 a 12 horas do início do quadro de pancreatite aguda, e pode voltar ao normal já em cerca de 3 a 5 dias. Valores considerados altamente indicativos de pancreatite aguda são elevações de 3 vezes do valor de referência da amilase sérica, alcançando uma sensibilidade entre 67% e 83% e especificidade de 85% a 98%. Você pode notar que com esse valor, a sensibilidade não é tão elevada, portanto, não exclua a pancreatite como diagnóstico apenas porque os valores da amilase não alcançaram 3 vezes do valor de referência, visto que uma porcentagem relevante dos pacientes com pancreatite aguda não preencherá esse critério. Fique Atento! Os níveis da amilase podem não apresentar a elevação esperada, principalmente naqueles pacientes que apresentam etiologia alcoólica e por hipertrigliceridemia. Os níveis da amilase também podem já se apresentar em queda nos pacientes que demoram mais de 24 horas após o início do quadro. LIPASE SÉRICA A medição mais sensível e específica para o diagnóstico de pancreatite alcoólica. Sua elevação se dá entre 4 e 8 horas do início dos sintomas, atingindo seu pico em 24 horas e retornando aos valores normais em 8 a 14 dias. É útil especialmente em casos de medida mais tardia, em que a amilase sérica já está em níveis normais, e no diagnóstico de pancreatite alcoólica de etiologia alcoólica e por hipertrigliceridemia. A lipase pode se encontrar elevada também em casos de pancreatite crônica, insuficiência renal, colecistite aguda e outras causas diversas, dessa maneira, a lipase elevada por si só não fecha o diagnóstico de pancreatite aguda. OUTRAS ENZIMAS E PRODUTOS Peptídeo de ativação do tripsinogênio, é um peptídeo de cinco cadeias que é resultado da clivagem do tripsinogênio ao produzir tripsina ativada, e está elevado na pancreatite aguda. Uma vez que a ativação da tripsina é provavelmente um evento precoce na patogênese da pancreatite aguda, esse peptídeo pode ser útil na detecção precoce da pancreatite aguda e, também, como preditor de gravidade do quadro. A leucocitose é comum, principalmente nos casos graves, podendo chegar até 30.000/mm3, refletindo grau de inflamação sistêmica. O aumento da proteína C reativa é outro marco laboratorial de gravidade, já que mede a intensidade da resposta inflamatória. A hiperglicemia é uma alteração comum, no início do quadro é devida à SIRS, e posteriormente, pode ser secundária a uma destruição maciça das ilhotas de Lahngerhans. Hipocalcemia é um achado frequente, decorre da saponificação do cálcio circulante pela gordura peripancreática necrosada, e tem relação direta com a gravidade do quadro (quanto mais necrose, mais hipocalcemia). Alargamento do TAP e TTPA também são encontrados. Também podemos encontrar aumento das aminotransferases (TGO, TGP), bi lirrubina e fosfatase alcalina. O aumento das aminotransferases, além de ter valor prognóstico, pode sugerir o diagnóstico etiológico da pancreatite. Se níveis de TGP > 150U/L, a especificidade para pancreatite biliar aumenta (96%), porém se abaixo de 150 não afasta a pancreatite biliar, pois a sensibilidade é baixa (48%). EXAMES DE IMAGEM RADIOGRAFIA DE ABDOME E TÓRAX Nos casos leves e moderados pode não ser vista nenhuma alteração, entretanto os achados podem incluir íleo paralítico em um segmento intestinal e sinal de cut-off (distensão de segmentos do cólon) em casos mais graves. ULTRASSONOGRAFIA DE ABDOME Em pacientes com pancreatite aguda, o pâncreas aparece difusamente aumentado no ultrassom abdominal. Litíase biliar pode ser visualizada no ducto biliar. Fluido peripancreático aparece como uma coleção anecoica no ultrassom abdominal. Essas coleções podem demonstrar ecos internos na vigência de necrose pancreática. Entretanto, a ultrassonografia não é um dos melhores exames para avaliar pacientes com pancreatite aguda, pois a localização retroperitoneal do pâncreas favorece para que em aproximadamente 25% dos pacientes, gases intestinais devido ao íleo paralítico dificultem ou mesmo impossibilitem a visualização do pâncreas e das vias biliares. Além disso, o ultrassom não pode delinear claramente a extensão da inflamação extrapancreática ou identificar necrose dentro do pâncreas, não sendo útil dessa forma para esclarecimento da gravidade do quadro através de exames de imagem. TOMOGRAFIA Os achados da pancreatite aguda intersticial na tomografia de abdome incluem alargamento focal ou difuso do pâncreas com realce heterogêneo com contraste intravenoso. A necrose do tecido pancreático, um importante marcado de gravidade, é reconhecida quando não há realce após a administração de contraste intravenoso, demonstrando a falta de vascularização do tecido necrótico. Quando realizada após os primeiros 3 dias do início da dor abdominal, a tomografia pode estabelecer de maneira confiável a presença de extensão da necrose pancreática, complicações locais, além de predizer a gravidade da doença. RESSONÂNCIA MAGNÉTICA Na ressonância magnética podem ser encontradas imagens de supressão de gordura, alargamento difuso ou focal da glândula pancreática e as margens do pâncreas podem estar borradas. A ressonância tem uma maior sensibilidade no diagnóstico no início da doença quando comparada com a tomografia com contraste e pode caracterizar melhor a gravidade e complicações peripancreáticas. COLANGIOPANCREATOGRAFIA POR RESSONÂNCIA MAGNÉTICA (CPRM) também é útil por ser comparável a colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) em sensibilidade e especificada para a detecção de coledocolitíase, um achado comum nos pacientes com pancreatite de etiologia biliar. A CPRM não apresenta alguns dos problemas da CPRE, como o fato de não emitir radiação, o contraste usado (gadolínio) tem menor risco de nefrotoxicidade, quando comparado com o contraste usado na colangiopancreatografia retrógrada (iodo) e principalmente por não ser um exame invasivo como a CPRE. Alémdisso, em pacientes com insuficiência renal, a colangiopancreatografia por ressonância sem contraste consegue identificar necrose pancreática. Como desvantagem, a CPRE além de ser um método diagnóstico também pode ser usado com função terapêutica, sendo indicada nos pacientes com pancreatite aguda associada a colangite, obstrução do ducto biliar comum ou com piora da função hepática associada a dilatação das vias biliares. A desvantagem é o preço, a falta de acessibilidade em muitos hospitais do país e o fato de ser operador dependente, além de ser um exame mais demorado, sendo uma desvantagem em pacientes muito graves. A ultrassonografia endoscópica (USE) também foi usada como substituída CPRE em muitos centros devido ao menor risco de complicação associada, quando comparada a CPRE. RESSONÂNCIA MAGNÉTICA COM GADOLÍNEO DE UM PACIENTE COM PA. CPRE. DIAGNÓSTICO Qualquer dor aguda intensa no abdome ou nas costas pode sugerir a possibilidade de pancreatite aguda. O diagnóstico é estabelecido pela presença de dois dos seguintes critérios: • dor abdominal típica no abdome que irradia em faixa para as costas • elevação de três vezes ou mais na lipase e/ou amilase sérica • achados compatíveis com pancreatite aguda em tomografia computadorizada. Os exames de imagem são mais importantes para a avaliação da etiologia da pancreatite (caso da USG para investigação de etiologia biliar) ou avaliação de complicações locais em pacientes que apresentam casos graves ou com piora à despeito de tratamento clínico adequado. PROGNÓSTICO CRITÉRIO DE BATHAZAR Cada vez mais tem se usado o critério tomográfico de Balthazar. Ainda se associa a pontuação obtida com o grau de necrose pancreática, da seguinte forma: • Sem necrose: 0 pontos • Até 33%: 2 pontos • 33-50%: 4 pontos • Acima de 50%: 6 pontos O escore final qualifica a doença em leve (1 a 3 pontos), moderada (4 a 6 pontos) e grave (7 a 10 pontos). CRITÉRIO DE RANSON É antigo e cada vez menos utilizado. Reflete a gravidade e extensão do processo inflamatório, baseado em 11 critérios, sendo 5 na admissão e 6 nas primeiras 48h: O prognóstico é definido da seguinte maneira: • 0 a 2 critérios: 1% de letalidade • 3 a 4 critérios: 16% de letalidade • 5 a 6 critérios: 40% de letalidade • > 6 critérios: 100% de letalidade CRITÉRIO DE APACHE II É outro escore validado para estimativa do prognóstico. Foi criado para avaliação de pacientes graves em geral e, portanto, pode ser utilizado na pancreatite. Considera-se grave a pancreatite que soma 8 ou mais pontos. A avaliação não é simples, levando em conta diversas funções orgânicas (circulatória, pulmonar, renal, cerebral, hematológica etc.). Para tonar mais prático, o cálculo pode ser feito online ou com programas de computador/smartphone. A vantagem em relação ao critério de RANSON, que só pode ser calculado depois de 48h, é que já pode ser calculado dentro das primeiras 24h de admissão. OUTROS CRITÉRIOS Além desses critérios ainda existem outros, como critério de “BISAP” e Escore de Atlanta, todos apresentando um grau de falha e por isso nenhum escore é globalmente aceito. TRATAMENTO O tratamento depende da gravidade do quadro. As medidas iniciais, independentemente da gravidade do quadro, devem ser: reposição volêmica, analgesia e dieta zero. Após isso, é feita a avaliação de risco (após 48h, utilizado o critério de RANSON). A abordagem inicial do paciente com pancreatite aguda (PA) consiste em quatro pilares básicos: • reposição volêmica • controle da dor • monitorização • suporte nutricional REPOSIÇÃO VOLÊMICA Sua necessidade se justifica pelo frequente quadro de hipovolemia apresentado por pacientes com pancreatite aguda, que ocorre por múltiplos fatores, como vômitos, aumento da permeabilidade vascular secundário ao processo inflamatório com consequente perda de líquido para o terceiro espaço, ingesta hídrica reduzida por via oral, entre outros, que podem acarretar complicações decorrentes de má perfusão tecidual. Sendo a hemoconcentração consequência dessa depleção volêmica, o hematócrito se faz um importante marcador do potencial de gravidade da doença, sendo utilizado também para acompanhamento do quadro. Deve ser realizada de maneira precoce e agressiva, visando à prevenção de complicações da doença, como a necrose pancreática e peripancreática, a partir da melhoria da perfusão tecidual. Deve ser aplicada a todos os pacientes com PA, com exceção aqueles que possuam comorbidades cardiovasculares, renais ou qualquer outra que contraindique a infusão volêmica vigorosa. Utiliza-se solução cristaloide isotônica (Ringer Lactato ou Soro Fisiológico 0,9%) na dose de 5 a 10 mL/kg/hora, por via endovenosa (EV), nas primeiras 12 a 24 h. Em pacientes com depleção volêmica grave, evidenciada clinicamente por taquicardia e hipotensão, deve-se infundir a solução cristaloide isotônica por via EV numa dose de ataque de 20 mL/kg em 30 minutos, seguida por uma manutenção com 3 mL/kg/hora, durante 8 a 12 horas. Pacientes com PA secundária a hipecalcemia devem receber hidratação com SF 0,9%, uma vez que o Ringer Lactato é contraindicado por conter 3 mEq/L de cálcio, podendo levar a piora do quadro. A taxa de fluido necessária para reposição deve ser frequentemente reavaliada nas primeiras 6 horas de admissão e nas próximas 24 a 48 horas. O ajuste deve ser feito através de parâmetros clínicos (levando-se em consideração os sinais vitais, mudança no estado físico e débito urinário >0,5mL/kg/hora) e laboratoriais, com a monitorização do hematócrito, creatinina e ureia séricas. CONTROLE DA DOR A dor geralmente é o principal sintoma apresentado pelo paciente, e seu controle inadequado pode contribuir para a ocorrência ou piora da instabilidade hemodinâmica. A reposição volêmica realizada de maneira adequada é primordial para o controle da dor, uma vez que a hipovolemia consequente ao extravasamento vascular leva a ocorrência de dor isquêmica por má perfusão tecidual e resulta em acidose lática. Os opioides são drogas seguras nesses casos, administrados por via EV. Tramadol e morfina são drogas comumente utilizadas na prática clínica para abordagem desses pacientes, cursando com bons resultados. Observa-se também um aumento na utilização do fentanil, uma vez que apresenta efeitos colaterais mais discretos, principalmente no que se refere à função renal. Porém, ainda assim, como outros opioides, pode causar depressão respiratória. Pode ser usado em bolus (20 a 50 mcg, com período de bloqueio de 10 minutos) ou em infusão contínua. MONITORIZAÇÃO Deve ser rigorosa nas primeiras 24 a 48 horas. Sinais vitais, incluindo saturação de oxigênio (StO2), devem ser observados, devendo-se manter esse parâmetro sempre superior a 95%, mediante administração de oxigênio suplementar se necessário. Gasometria arterial deve ser solicitada se StO2 < 90% ou se houver indicações clínicas. O volume urinário deve ser mensurado de hora em hora (manter débito em 0,5 a 1 mL/kg/ hora). Eletrólitos devem ser dosados frequentemente nas primeiras 48 a 72 horas, com atenção à presença de hipocalcemia e níveis baixos de magnésio, devendo ambos ser corrigidos se necessário. Glicemia deve ser mensurada também de hora em hora em pacientes com PA grave. A hiperglicemia aumenta o risco de infecções pancreáticas secundárias e deve, assim, ser tratada. Pacientes graves devem ser monitorizados em UTI, sendo avaliados também quanto ao risco de eventual síndrome compartimental abdominal. SUPORTE NUTRICIONAL O suporte nutricional oferecido ao paciente com PA, bem como sua via de administração, depende da gravidade da doença. Contudo, ao contrário do que se pensava antigamente, a reintroduçãoprecoce da dieta por via oral, quando possível, é de suma importância, se relacionando com redução nas taxas de complicações infecciosas, morbidade e mortalidade e menor tempo de hospitalização. VIA ORAL: o jejum prolongado foi associado com o aumento das taxas de infecção da necrose pancreática e falência de múltiplos órgãos. Por esse motivo, a reintrodução da dieta oral deve ser realizada o mais precoce possível (em até 24 h). Atualmente, a reintrodução da dieta oral pode ser feita com dieta hipogordurosa, sem necessidade de dieta líquida inicialmente. Deve-se avaliar dor abdominal, náuseas e vômitos, além de presença de ruídos hidroaéreos para avaliação da tolerância e, em caso de intolerância, considerar via enteral ou parenteral. Em geral, é indicada para pacientes com PA leve. Pacientes com PA moderadamente grave ou grave devem ser avaliados quanto à tolerância, porém a dieta enteral é geralmente utilizada. VIA ENTERAL: é a via de escolha quando a alimentação por via oral não se faz possível. O posicionamento preferencial da sonda é controverso. Estudos recentes mostram que a sonda posicionada no estômago tem a mesma eficácia e segurança da sonda em jejuno, com o benefício da passagem ser tecnicamente mais fácil e ser menos dispendiosa (para passagem de sonda nasojejunal é necessário auxílio radiológico ou endoscópico). Entretanto, há relatos de risco de broncoaspiração com a sonda em posição gástrica. Por isso, é recomendada infusão lenta (25 mL/h), com aumento gradual à medida da aceitação do paciente, até se atingir ao menos 30% das necessidades calóricas diárias calculadas (25 a 30 Kcal/Kg). São utilizadas fórmulas de alimentação elementares e semielementares, de fácil absorção, ricas em proteínas e com baixo teor de gordura. VIA PARENTERAL: é a via que oferece maior risco de complicações, tais como infecção de cateter e translocação bacteriana intestinal, sendo indicada apenas nos casos em que não há tolerância da nutrição enteral. Patologia caracterizada por fibrose progressiva do parênquima pancreático, decorrente de alterações inflamatórias progressivas no pâncreas, as quais evoluem para alterações estruturais, comprometimento da função exócrina e, posteriormente, endócrina do órgão. As alterações pancreáticas que surgem na pancreatite crônica (PC) são irreversíveis. Ela tende a ser assintomática por longos períodos, podendo apresentar alterações localizadas, inicialmente - diferente da pancreatite aguda que acomete grande parte do órgão – contudo, pode sofrer episódios de agudização. CLASSIFICAÇÕES É classicamente dividida em três tipos, desde 1988, a partir de critérios clínicos e patológicos. PANCREATITE CALCIFICANTE CRÔNICA • principal causa: etilismo • a mais comum – 95% os casos • presença de cálculos pancreáticos PANCREATITE OBSTRUTIVA CRÔNICA • principal causa: tumor intraductal (adenocarcinoma) • obstrução no ducto pancreático principal (Wirsung) • dilatação homogênea e generalizada da árvore pancreática PANCREATITE INFLAMATÓRIA CRÔNICA • principal causa: doença autoimune (exemplo: Síndrome de Sjogren) • tipo raro • não causa dilatação ou calcificação Em 2001, com a descoberta de mutações genéticas associadas à pancreatite e a compreensão de que o álcool por si só não desencadeia a patologia, visto que apenas 5-10% dos etilistas crônicos desenvolvem pancreatite crônica; fez-se uma nova classificação, TIGAR-O. Este sistema baseia-se no mecanismo de lesão e leva em consideração os múltiplos fatores de risco relativos à PC. TÓXICA-METABÓLICA São incluídas as PC causadas por álcool, tabaco, hipercalcemia (hiperparatireoidismo), hipertrigliceridemia, insuficiência renal crônica, medicações e toxinas. IDIOPÁTICA Pode se apresentar de forma bimodal; sendo o início precoce, por volta dos 20 anos, a qual comumente apresenta dor como principal característica, ou de início tardio, por volta dos 56 anos, com elevada frequência de calcificações e de insuficiência endócrina e exócrina, sendo pouco frequente a dor. Há, ainda, nessa categoria, a PC tropical. GENÉTICA ou HEREDITÁRIA Herança autossômica dominante, contudo, a penetrância não é total – isto é, em torno de 80% dos indivíduos que nascem com o gene mutante desenvolvem a doença. AUTOIMUNE A característica histológica predominante é a infiltração linfocitária, designadamente de Linfócitos TCD4+. PANCREATITE AGUDA RECORRENTE SEVERA Existe associação entre a hipertrigliceridemia (>500mg/dL) e a pancreatite aguda recorrente bem estabelecida. OBSTRUTIVA Pancreatite de origem calculosa que conduz à lesão da célula acinar, sendo desencadeada pela obstrução do fluxo a partir do Wirsung. CLASSIFICAÇÃO BRASILEIRA Existe ainda outras classificações para a PC. No Brasil, segundo a Diretriz brasileira de pancreatite crônica, é utilizada uma classificação própria adaptada às características das pancreatites crônicas em nosso meio, obtida a partir da classificação de Marselha-Roma e modificada por sugestões contidas em outras classificações. CALCIFICANTE • Álcool • Genética • Metabólica • Nutricional • Idiopática OBSTRUTIVA • Pâncreas divisium • Estenose do ducto pancreático principal • Estenose de papila • Tumores do pâncreas e peripancreaticos AUTOIMUNE • PC isolada • PC sindrômica NÃO CLASSIFICADA FISIOPATOLOGIA Ainda não é completamente elucidada a fisiopatogênese da doença, porém, existem hipóteses as quais explicam a inflamação e fibrose pancreática. Na etiologia alcoólica, por exemplo, acredita-se que o álcool modifica a constituição do suco pancreático tornando-o bastante proteico. As proteínas formariam plugs, obstruiriam os ductos pancreáticos e ativariam enzimas que causariam a inflamação do órgão. O cálcio tenderia a se depositar nos plugs proteicos e formaria, assim, os cálculos pancreáticos, causadores de obstrução, comuns na doença. Além desse mecanismo, sabendo que a patologia é multifatorial, temos outros mecanismos potencialmente envolvidos, tais como: isquemia tissular, estresse oxidativo, efeito tóxico metabólico e fenômenos autoimunes. MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS O sintoma predominante na pancreatite crônica é dor abdominal. Ela, em geral, se apresenta ou piora 15 a 30 minutos após a alimentação. Isso faz com que o paciente passe a sentir medo de se alimentar, visto que associa à dor. Sua intensidade pode variar de leve a muito severa e ela possui duas formas de evolução: • Episódios de dor com permanência inferior a 10 dias e períodos de remissão de meses a anos. • Períodos prolongados de dor diária com exacerbações recorrentes. A dor localiza-se frequentemente ao abdome superior e médio. Por vezes, irradiando para o dorso. É comum, o paciente apresentar a posição antálgica genupeitoral (prece maometana): Na pancreatite crônica, apesar de ser o sintoma mais frequente, cerca de 15 a 20% dos pacientes não relatam dor; manifestando a pancreatite crônica por insuficiência pancreática exócrina ou diabetes mellitus. A diabetes surge quando o parênquima pancreático endócrino é substituído por fibrose e, uma vez instalada a lesão, o paciente pode ter as mesmas complicações de qualquer outro paciente diabético. Outro sintoma frequente é o emagrecimento e desnutrição, como já citado os hábitos alimentarem mudam em decorrência da dor pós- prandial, além do quadro de esteatorreia. A insuficiência pancreática exócrina com perda de absorção de gordura e proteínas só ocorre quando a perda de função do órgão é maior que 90%. Assim, observamos esteatorreia com fezes gordurosas, volumosas e malcheirosas. A tríade clássica da PC é composta de Esteatorreia + Diabetes Mellitus + Calcificações, todavia ocorre em menos de um terço dos pacientes. Sinaise sintomas frequentes em pacientes brasileiros: • Dor abdominal – 92% • Emagrecimento – 91% • Esteatorreia – 34% • Diabetes – 46% • Icterícia – 25% • Pseudocistos – 36% • Derrames cavitários – 13% • Hemorragia digestiva – 2% DIAGNÓSTICO O diagnóstico é feito com história clínica associada a exames de imagem. Exames laboratoriais como as enzimas pancreáticas, as quais se elevam na pancreatite aguda (amilase e lipase), apenas se elevam nas fases iniciais da pancreatite crônica, durante as crises de agudização. Com a continuidade do processo inflamatório, há destruição progressiva do parênquima pancreático, assim, os níveis séricos dessas enzimas são normais ou mesmo baixos. Alguns testes podem ser realizados para diagnóstico de má absorção de gorduras: TESTE QUANTITATIVO DE GORDURA FECAL quantidade de gordura presente nas fezes acumuladas em 72 horas (tempo no qual o paciente terá ingerido uma dieta rica em gorduras). Indivíduos normais secretam menos de 7 g/dia, nessa mesma circunstância. TESTE QUALITATIVO DE GORDURA FECAL usando o corante para gorduras Sudan III. Indica a presença ou não de gordura fecal em excesso. Sudan “positivo” ou “negativo”. TESTE DA BENTIROMIDA É um peptídeo sintético ligado ao ácido PABA. Esta ligação é desfeita pela enzima pancreática quimiotripsina. O PABA é excretado na urina na forma de arilaminas. Se após o consumo de 500 mg de bentiromida a excreção de arilaminas for menor que 50%, diagnostica-se insuficiência pancreática exócrina. TESTE DA SECRETINA considerado o melhor teste para diagnóstico de insuficiência pancreática exócrina. Inicialmente é realizada uma dose teste de 2 mcg de secretina; em seguida, uma dose de 2 mcg/kg é realizada e alíquotas do suco duodenal são medidas a cada 15 minutos. Os pacientes com insuficiência pancreática apresentam pico de concentração de bicarbonato menor que 80 mEq/L na secreção duodenal em todas as taxas. EXAMES DE IMAGEM Acerca dos exames de imagem, podemos iniciar solicitando radiografa simples de abdome. RADIOGRAFIA SIMPLES DE ABDOME Apesar de baixa sensibilidade, a presença de calcificações em topografia pancreática fecha o diagnóstico de pancreatite crônica. ULTRASSONOGRAFIA ABDOMINAL sensibilidade entre 60 e 70% e especificidade de 85%. TOMOGRAFIA COMPUTADORIZADA HELICOIDAL COM CONTRASTE VENOSO é um excelente exame para pancreatite crônica. Sensibilidade de 80-90% e especificidade de 85%. O exame detecta atrofia, aumento pancreático, calcificação, dilatações ductais, cálculos pancreáticos e complicações (pseudocisto). COLANGIOPANCREATOGRAFIA ENDOSCÓPICA RETRÓGRADA (CPER) é um exame invasivo de alta sensibilidade e especificidade, a partir de 90% ambas. Só deve ser solicitado, caso exames não invasivos não fechem o diagnóstico. ULTRASSONOGRAFIA ENDOSCÓPICA tem sensibilidade e especificidade parecida à CPER. São visualizadas alterações da ecogenicidade, identificação de calcificações e alterações dos ductos pancreáticos. Ainda permite a realização de biópsia do pâncreas, na suspeita de câncer. TRATAMENTO O alicerce do tratamento de PC é a reposição das enzimas pancreáticas (lipase e protease), tratamento da diabetes mellitus, caso já instalada e cuidar da dor. Assim, podemos lançar mão de: • Fracionamento das refeições • Reduzir ingestão de gorduras • Analgesia farmacológica (escalonada) • Descompressão ductal endoscópica • Descompressão ductal cirúrgica (pancreatojejunostomia lateral) • Pancreatectomia subtotal (Whipple) • Bloqueio de plexo celíaco