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Posfácio Notas do subterrâneo Por Eduardo Sterzi ;. «o que buscas agora sob a pele das coisas?» Ricardo Rizzo Hlcardo Rizzo abre seu primeiro livro, Cavalo marinho e outros 11I1t'1n s, de 2002, com uma epígrafe de Orides Fontela: Quebrar o brinquedo é mais divertido. 111, implícita nesta epígrafe, toda uma teoria das relações entre 1'111"11e vida que, a meu ver, só é compreendida em todo seu al- I 1Ii( se retornamos às suas formulações pioneiras na estética bau- li !.!lri na e a conectamos com uma série de considerações filo- ,di<" e poéticas também dela, direta ou indiretamente, derivadas. 11,ludelaire, em seu magistral ensaio sobre a «Moral do brinque- 1,11) (<<Morale du joujou»), localizava no convívio da criança com 11/inquedos - na ação da criança sobre os brinquedos tanto 111'1111 na recíproca ação dos brinquedos sobre as crianças - os 111111\l'll"oSsinais de uma «predestinação literária ou artística». 11 11/lnque do », frisava, «é a primeira iniciação da criança à arte, 1\,111115, é para ela a primeira realização, e, quando vem a idade 111ItI,,, 11, as realizações aperfeiçoadas não darão ao seu espírito , 1111"11os ardores, nem os mesmos entusiasmos, nem a mesma 1111I,tI,)) rara-se. aí, de ressaltar, antes de tudo, a alegria (gaietéL Iflll'll i de e a complexidade da «vida em miniatura» contida \., 11111'lU dos - com suas «formas bizarras» e suas «cores dis- Ildeltl!» - ontr I pc llrl ,/, d «vida real». «As crianças dão testemunho, através de suas brinc d ir s lpar I urs J ux1, du 1,11 t grande faculdade de abstração e de sua alta potência im ellldll va.» Daí que «todas as crianças fal[e]m com seus brinqu d!ll daí que «os brinquedos [se] torn[e]m atores no grande dram.t ti I vida, reduzido pela câmera escura do seu pequeno cérebro». 1>011 também, que as crianças brinquem até mesmo sem brinqur-d« transformando as coisas ao seu redor em personagens e ObJI'i11 de cena de um teatro imaginário que, em sua «simplicidad », d, veria «fazer enrubescer, por sua impotente imaginação, ess I 1'11 blico bárbaro que exige dos teatros uma perfeição física e m I( ,1,11 ca e não concebe que as peças de Shakespeare possam fi I I lI! com um aparelho de uma simplicidade bárbara». Temo, 1111 x mplo, «o eterno drama da diligência encenado com cadoh , d.ltgê ncia-cadeira, os cavalos-cadeiras, os viajantes-cad '11" seres compósitos, a meio caminho entre a vida e a morte, dI' mas também «devor[ar] [ ... ] espaços fictícios». Mas temos te 111111 111 a «criança solitária» que brinca de guerra com aquilo que 111 111 tra à mão: «Os soldados podem ser rolhas, dominós, piÕ(II" 1I sinhos; as fortificações serão tábuas, livros etc., os projéteis, 11111 de gude ou qualquer outra coisa; haverá mortos, tratados d,' IJ I reféns, prisioneiros, tributos». * Não por acaso, Baudelaire dá especial atenção ao «br luqu bárbaro», ao «brinquedo primitivo», cujo desafio para 01.111111 " te consistiu em «construir uma imagem tão aproximativa qll 111 possível com elementos tão simples, tão pouco cu t !1()', tlll I to possível». O que interessa aí é a capacidade qu I1 I gens simples» têm de criar uma «r alid d no plrlto 11., til 11 ça » não m nor do qu qu le pr p I I 1), cJ, I 'I IJllllqll1 I 111 is caros. A «po I Int ntll» parece estar antes no «brinquedo cio pobre», que pode ser até mesmo um «brinquedo vivo» - «algo cI mais simples ainda» do que qualquer improvisação, alg<;> de «mais triste» também: digamos, um rato numa gaiola. Pode estar mbém no «brinquedo científico»: basicamente, máquinas de ver, ( mo o estereoscópio ou o fenaquistiscópio (cujo «principal de- ito», para Baudelaire, «está em serem caros»). Mas se acha so- br tudo no uso que se dá aos brinquedos, resgatando-os da sua I nversão, por alguns pais e mesmo por algumas crianças (<<cri- unças-homens», frisa o poeta), em «objetos de adoração muda», que devem permanecer guardados, interditados até mesmo ao Ic que, como se fossem peças de museu ou objetos sagrados. Usar li', brinquedos em plenitude e profundidade - explorar até o limi- I!' sua condição de «meios poéticos de passar o tempo» - resulta multas vezes na sua destruição, na mesma quebra a que alude Oi ldes Fontela no poema citado por Ricardo Rizzo. No ensaio de Il.ludelaire, fica claro que, implicada na diversão de que nos fala I li Ides Fontela, há uma séria operação que pode ser interpreta- dll, primeira vista, como «metafísica»: A maior parte dos meninos querem sobretudo ver a a/ma, al- guns ao cabo de algum tempo de exercício, os outros agora mes- mo [tout de suíte). É a invasão mais ou menos rápida desse dese- jo que faz a maior ou menor longevidade do brinquedo. Não tenho oragem de censurar essa mania infantil: é uma primeira tendên- ia metafísica. Quando este desejo se fixa na medula cerebral da criança, ele enche seus dedos e suas unhas de uma agilidade e ri uma força singulares. A criança vira, revira seu brinquedo, ela o raspa, o sacode, o bate contra as paredes, o joga no chão [/e J 'u par terre). D (Imp m t mpo, ela o faz recomeçar seus movimentos mecânicos, à v z ravilhosa se detém [s'arrête]. rn ntido onu I i . A vlda 111 I No entanto, a comparação escolhida por Baudelaire para IIlI trar seu argumento deixa evidente que o que parecia ser uma pl ração metafísica pode ser, na verdade, uma operação política, '1111 passa pela decepção - e pela melancolia do gesto levado à li11I mas consequências: A criança, como o povo que sitia as Tulherias [referência 1(1 nada revolucionária de 10 de agosto de 1792, a mais de I', v I depois de 14 de julho de 1789], faz um supremo esforço; enfim I I, o entreabre, ela é a mais forte. Mas onde está a alma? É aqui ljlll com çam o embrutecimento [/'hébétement] e a tristeza. Contudo, frisa o poeta, há aquelas crianças que parecem re'( \1 sar, de início e até o fim, essa «tristeza», em nome de um «'d'll timento misterioso» até mesmo para o poeta: Há outros que quebram imediatamente [cassent tout de /111 I o brinquedo tão logo ele Ihes chegue às mãos, tão logo o x,II,,1 nem; e quanto a estes, confesso que ignoro o sentimento ml 1I rioso que os faz agir. Estão tomados por uma cólera superstit 11 I contra esses objetos miúdos que imitam a humanidade, ou, 11111 os fazem passar por uma espécie de prova maçônica antes til 111 troduzi-Ios na vida infantil? - Puzzling question! Estamos aqui diante de' uma alegria da destruição, de Ulli" di versão da quebra, que faz pensar no «caráter destrutivo» d(· 1111 fala Walter Benjamin em seu ensaio de 1931. Não por 01 (I, 11 mesmo Benjamin - que construiu grande parte de sua obra «11111 uma reflexão contínua sobr Baud I ir - f i t mb I lll(lll1 fil' deu uma d c i iv Ir ti, c!. cI I m 1/1 (1 1 () //1 I I montagem dos brlnqu dos: «Uma vez extraviada, quebrada e con- 'i rtada, mesmo a boneca mais principesca transforma-se numa ficiente camarada proletária na comuna lúdica das crianças». Não por acaso também, foi Benjamin igualmente quem assinalou que os brinquedos «não dão testemunho de uma vida autônoma segregada» - a infância na sua separação do mundo adulto -, «mas são um mudo diálogo de sinais entre a criança e o povo». Acrescento: talvez sobretudo os brinquedos quebrados, justamen- t na sua quebra, levem a cabo esse diálogo. * Georges Didi-Huberman - o grande teórico do «conhecim nto I or montagem» - vê com razão, no trecho de Baudelaire há pouc itado, «uma teoria do conhecimento e da "alma dos objetos"» (teoria deixada em suspenso pela expressão «Puzzling question!») que influenciaria crucialmente a «dialética das imagens» benja- minian a - isto é, tanto sua epistemologia quanto sua teoria d história: Como não ver, nessa situação exemplar, que duas temporali- dades heterogêneas trabalham aqui em conjunto? Que a inflexão turbilhonante [tourbillonaire] da destruição (sacudir o brinquedo, batê-lo contra as paredes, jogá-lo no chão etc.) não se dá sem uma inflexão estrutural de um autêntico desejo de conhecimento (experimentaro mecanismo, fazer recomeçar o movimento em sentido contrário etc.)? Como não admitir que, para saber o que é o tempo, é preciso ir ver como funciona o relógio de mamãe? E que é preciso, para isso, aceitar o risco - ou se entregar ao pra- zer - de desmontá-to mais ou menos ansiosamente, sistematica- mente ou viol n rn nt ,i to ,de quebrá-Ia? Daí, propõe Didi-Huberman, in i t ncl d ud I ir c rn I ' lação ao que ele chama de brinquedos científicos, isto qu lI' brinquedos que estiveram na origem da fotografia e do cin 11101 Brinquedos nos quais podemos ver a ação do tempo, mas talv ,. sobretudo o tempo mesmo em ação, isto é, em alguma m li da, a história in fieri como experiência, também, das imagens. rlll Benjamin, como nota Didi-Huberman, será decisivo o «mod til optico» do caleidoscópio, ou seja, de um brinquedo feito ele m \l, mo, em alguma medida, da própria destruição das coisas: [ ... ] nas configurações visuais sempre "repentinas" [saccad IH, I do caleidoscópio, se reencontram uma vez mais o duplo regim c/li imagem, a polirritmia do tempo, a fecundidade dialética. O I1IIi ri I visual do caleidoscópio - isto é, o que se dispõe no tuhu ntre o vidro despolido e o vidro interior - é da ordem do r flll'!l e da disseminação: pontas de tecidos esfiapados, conchinha 1111 núsculas, miçangas trituradas, mas também farrapos de pen h 111/ poeiras de todos os gêneros ... O material dessa imagem dial tll.1 é portanto a matéria como dispersão, uma desmontagem 1/11/1 ca da estrutura das coisas. Como não lembrar, diante das considerações de Didi-Hub nn.ui, que, conforme Estela Canto conta em Borges a contraluz, o 1\II'pll do conto célebre - o ponto situado no porão de uma c d d, Buenos Aires através do qual se podia observar de uma. (l v, todos os pontos do universos - era, na realidade, antes dtl 111, ratura, um mero caleidoscópio? O que, por outro lado, n VI'/Ii recordar que talvez nenhum caleidoscópio seja mero: que' IllillI caleidoscópio, por mais singelo, é também - tanto qual t lllll I lescópio ou um microscópio, tanto qu nto um ârn /, foltlH/ I fica ou cin mato r fi e - LI t 111, quina ri c' v I mundo (I/ 1"1/ lolntO, uma possív I f li r m nta de conhecimento. De resto, como n: o lembrar também que, no conto de Jorge Luis Borges, o Aleph I' descrito, em sua origem, como um improvisado brinquedo in- fl1ntil do malfadado Carlos Argentino Daneri, essa versão paró- llca do autor da Comédia hoje conhecida como Divina (seu so- bl nome, como assinalou Emir Rodríguez Monegal, é uma con- tr ção dos dois nomes do poeta italiano: Dante Alighieri), que II cessita do instrumento para concluir seu próprio poema pre- t nsa e pretensiosamente total,' La Tierra? Um brinquedo, signi- ficativamente, descoberto num aposento subterrâneo, num «po- /. »(sótano): Está no porão da sala de jantar - explicou, aligeirada sua dicção pela angústia. É meu, é meu: eu o descobri na infância, antes da idade escolar. A escada do porão é íngreme, meus tios me tinham proibido de descer, mas alguém disse que havia um mundo no porão. Referia-se, soube-o depois, a um baú, mas eu entendi que havia um mundo. Desci secreta mente, rolei pela escada proibida, caí. Ao abrir os olhos, vi o Aleph. « Havia um mundo no porão» (había un mundo en el sótano) - 1111: o mundo, algum mundo, alguma versão do mundo, talvez só 'di I sse a ver a quem estivesse disposto a descer até as profun- di'l s da casa, até as profundezas do mundo. E sobretudo a quem 1I1'llasse o risco de cair na «escada proibida», a quem se arriscas- i ,I sofrer a experiência fundamental - corpórea mas também 11'111 ica, física mas também metafísica - da queda, de uma queda '111(' omeço da visão, experiência secreta e subterrânea (Bajé iotomente, rodé por Ia escalera vedada, caí). Não surpreende' 11111' 01 imples recordação deste fato cause «angústia» naquele '111" 'I! pr t nd pr I ri t, I i ri AI ph (<<É meu, é meu») e altere sua «dicção», isto é, sua linguagem. O qu po si n' o til/I I alteração na linguagem? Com Carlos Argentino Daneri, po t lllll tanto ridículo na desproporção entre suas ambições e seu li' cursos, personagem no qual a máscara de um Dante portenho t.rl vez mal recubra o Neruda de Canto general, Borges talvez I, gorize uma atitude mais ampla, que também lhe diz resp itn enquanto escritor. * o Aleph coloca o poeta - seja este Daneri ou o próprio Borg li, também ele personagem do conto - diante de um «problema» que é «irresolúvel»: como dar conta da «enumeração, mesmo pcll cial, de um conjunto infinito». Borges enuncia assim atar '1.1 paradoxal envolvida naquele procedimento característico da pOI' sia moderna que Leo Spitzer nomeou enumeração caótico, num ensaio publicado pela primeira vez, em espanhol, pelo Instituto de Filologia da Faculdade de Filosofia e Letras da Universid. cI • de Buenos Aires, precisamente no mesmo 1945 em que E! AI 1)/1 saiu na revista Sur (de que, aliás, o tradutor argentino do en 1 I1 de Spitzer, Raimundo Lida, era colaborador frequente). Em «Argll mentum ornithologicum», de Et hacedor, singular microtratudn de ontologia como ornitologia, é justamente a possibilidad di' se imaginar o inumerável que leva à conclusão da exist ê nt 01 de Deus. Em «El Aleph», a possibilidade da enumeração do illl nito talvez leve à conclusão contrária, talvez conduza à ídela doi mais radical contingência: na visão total proporcionada pelo 111 I trumento do porão, Deus ou os deuses não aparecem jamai , 11101 sim, reiteradamente, a terra. O caleidoscópio, no conto - i to I I naquele recinto subterrâneo de uma casa da rua aray -, Pt lI'! I como «uma p quena sf ra furt - or», itu: d n r> rt 11f('!II" d c: da, dir ilc: A prindpio, r dit i que fosse giratória; logo compreendi que esse movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos es- petáculos que encerrava. O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava aí, sem diminui- ção de tamanho. Cada coisa (o vidro do espelho, digamos) era in- finitas coisas, porque eu claramente a via a partir de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto quebrado (era Londres), vi intermináveis olhos imediatos escrutando-se em mim como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi num quintal da rua Soler as mesmas lajotas que há trinta anos vi no saguão de uma casa em Fray Bentos, vi cachos de uva, neve, tabaco, veios de metal, vapor de água, vi convexos desertos equa- toriais e cada um dos seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, o altivo corpo, vi um câncer no peito, vi um círculo de terra seca numa calçada, onde antes houve uma árvore, vi uma quinta em Adrogué, um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de Philemon Holland, vi de uma só vez cada letra de cada página (quando cri- ança, eu costumava maravilhar-me com que as letras de um vo- lume fechado não se misturassem e se perdessem no decurso da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um poente em Querétaro que parecia refletir a cor de uma rosa em Bengala, vi meu quarto sem ninguém, vi num gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicam sem fim, vi cava- los de crina redemoinhada, numa praia do Mar Cáspio na aurora, vi a delicada ossatura de uma mão, vi os sobreviventes de uma b talha, enviando cartões postais, vi numa vitrine de Mirzapur um, I), r lho p: 111101, vi ." mbr oblíquas de umas samambaias no chão de uma estufa, vi tigr s. m Ias, I I ~ ,r S C 5 X I citas, vi todas as formigas que há na terra, vi um astrolábio P I sa, vi numa gaveta da escrivaninha (e a letra me fez trem I) cartas obscenas, inacreditáveis, precisas, que Beatriz havla dirigido a Carlos Argentino, vi um adorado monumento no ceml tério de La Chacarita, vi a relíquia atroz do que deliciosament havia sido BeatrizViterbo, vi a circulação do meu obscuro san gue, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi Aleph, a partir de todos os pontos, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph e no Aleph a terra, vi minha cara e minhas vi ceras, vi tua cara, e senti vertigem e chorei, porque meus olho haviam visto esse objeto secreto e conjetural, cujo nome USUI pam os homens, mas que nenhum homem olhou: o inconcebf vel universo. Em suma: temos aí uma espécie de teatro ou cinema em ml niatura, com seus «vertiginosos espetáculos» (relembre-se o qUI' diz Baudelaire sobre o teatro improvisado das crianças). Uma m quina visionária - sublinhe-se a reiteração do verbo ver (cvl», «via», «haviam visto») - que instala uma implacável ambiguid dt' dimensional, entre o muito pequeno e o infinitamente grand " entre o minúsculo e o cósmico. Um caleidoscópio (ou um «astr lábio») onde se dá a ver sobretudo a multiplicidade, isto é, a r Iz da vida política plena (povoações, multidões, cidades, mas tam bém exércitos e batalhas). Onde se dá a ver o universo inteiro 11 quanto «objeto secreto e conjetural». Todos os espelhos - qUI' não devolvem, porém, identidade alguma. Um livro onde I I ti , disseminação possível, a abertura mesma do significante. Um (I, tela onde ver a morte vindoura e onipresente, assim como, 1,0 bretudo, a sobrevivência. Sylvia Molloy I r" r> ' lar, a propósito de passagens como esta, de «enumeração heteróclita» (ou de «abarrotamento»): «As enumerações e combinações de Borges se baseiam no princípio de que "não há classificação do universo que não seja arbitrária ou conjetural". Insinuam, ademais, que: "não há universo no sen- tido orgânico, unificador, que tem essa ambiciosa palavra. Se há, falta conjeturar seu propósito; falta conjeturar as palavras, as definições, as etimologias, as sinonímias, do secreto dicionário de Deus"». Em Borges, como nota Molloy a partir dos termos da crítica borgiana à descrição de Herodíade por Gabriel Miró, os «disjecta membro» jamais se integram «numa única imagem coe- rente». Tratase de preservar o aspecto monstruoso do que se mostra, num «vaivém entre o fixo e o móvel, entre o inteiro e o fragmentário, entre a ameaça [ ... ) e a atração». Não por acaso, as enumerações ou «séries» mais interessantes são, segundo Molloy, aquelas «onde o ponto de partida ou a meta desaparecem, onde os nexos não são evidentes, onde se expõem e se sucedem - e talvez se conjuguem, e talvez se odeiem - os distintos elementos como, literalmente, despropósitos». Obliteração das origens e dos fins; busca do «infundado», do «estranho»; substituição do «cor- po "original"» pelo «adventício». Em suma, fabricação de algo co- mo intervalos habitáveis, embora, por certo, não facilmente~abi- táveis. Escreve Sylvia Molloy: «Uma frase de Proust, com suas possíveis ramificações e reversos, poderia resumir o exercício enu- meratório praticado por Borges: "Nossa atenção coloca objetos num aposento [en una habitación); o hábito as retira dela, abrindo spaço para nós [haciéndonos un lugar)" ». * alvez o jogo da enumeração reencene continuamente essa.- 1('1 ção dialética entre nós e os objetos que proliferam ao nosso redor, resolvendo-se apena lrid qu t mpor ric m 1111' quando conseguimos abrir, em meio a eles, espaços ond I 0'.',,1 mos viver (mesmo que este espaço, às vezes, seja apen qu I le que se abre entre um verso e outro, mínimo abrigo feito m '11I de palavras do que do vazio entre elas). Não por acaso, a qUI: /111 do lugar é decisiva na poesia de Ricardo Rizzo. Em Cavalo mortntui, retornava com frequência a uma figuração mitificadora, e 111 mistificadora, do seu estado natal, cujo nome se apresenta ap lIo! em sua formulação abreviada, «Minas». «Minas» aparece ar, plicitamente, como o lugar da «alma», aquela mesma alma '1\11 a criança, segundo a reflexão baudelairiana, talvez buscas d(1 quebrar o brinquedo: «Perguntado de Minas, respondi: / ch('1111 de tudo - inclusive alma». «Minas» é, naquele livro ini l,tI, mitologia ou, conforme sugere o próprio poeta, «sonho». POI('111 - e é isto que mina qualquer tendência ufanista p orventurn til subjacente -, o poeta sabe que, por mais que busque separ I ti «sonho» de Minas dos «objetos reais» (isto é, traumáticos), (I I é uma distância impossível: Minas é, antes de tudo, «alguma 01 sa [que] queda / entre os braços cortados». É impossível, aí t 111 bém, a plena reintegração dos disjecto membro do real. Estamus, aqui diante de uma consciência algo trágica, mas nunca comi 1(. tamente trágica - mais exatamente, uma consciência sonâmuu Ia -, que consegue, por isso mesmo, brincar com o próp r io ( 1I quilamento, prosseguindo a caminhada na iminência perman 1111' do próprio despedaçar-se: Evita-te, sonâmbulo. Dribla com eficiência' o que te n iq ui I ma d i n- p~ r . [ ...] Aspiras? que sucesso mitigado te espera? que fragmento precioso de tesouro; que restos de animais extintos? o próprio «corpo de Cristo», nessas Minas evocadas à distân- cia, «se espalha nas pedras» - como se fosse Orfeu estraçalhado pelas mênades. E, de fato, na poesia de Ricardo Rizzo, estamos diante de um orfismo radical em que catá base e anábase - desci- da aos ínferos e ascensão à superfície - tornam-se como que os polos, não mais sucessivos mas simultâneos, de uma espécie de dialética em suspensão, de uma dialética sem síntese. É da expe- riência dos limites entre superfície e profundezas (é da perda que essa experiência sempre reencena: perda de Eurídice, perda da fonte originária do canto) que nasce o poema. «Minas», diz repetidamente o poeta, nomeando o território que é objeto de sua difícil, complexa nostalgia. «Minas»: não um nome qualquer, mas nome que nos diz do que se oculta debaixo da terra e do que é extraído dela. Esta pregnância poética do nome do estado já fora explorada por Carlos Drummond de Andrade em vários de seus poemas. E, não por acaso, em Cavalo marinho, Ricardo Rizzo, por diversas vezes, parece retomar «A máquina do mundo» de Drummond, cujo cenário, registrado já no segundo verso do poema, é precisamente «uma estrada de Minas, pedregosa», que o sujeito lírico «palmilh[a] vagamente» enquanto a tarde se tor- na noite. É nessa estrada pedregosa de Minas (onde a pedra não stá mais «no meio do caminho»: é o caminho, é a estrada, é o t do) que se dá o encontro entre o poeta e a máquina do mun- do, esta utr me quina v r 'lu • AI ph b 11',101 no enquanto possibilidade d vis o lmult n d tot lid d dI! real. Porém, enquanto o Aleph nos abandona ao caos da lmul taneidade das imagens, desafiando a técnica literária (ccom 'ç 01, aqui, meu desespero de escritor») e, antes, a linearidade m Illol da linguagem (<<Qque viram meus olhos foi simultâneo: o quI' transcreverei, sucessivo, porque a linguagem o é. Algo, no ent.in to, apreenderei»), a máquina - que é um aparelho teológico, cio qual, não por acaso, o poeta destaca a «majest[ade]» e a « I1 cunspec[ção]» - parece nos dar, antes de tudo, a visão do mundo como ordem (<<opasto inédito / da natureza mítica das coisa .», «essa ciência / sublime e formidável, mas hermética, / essa t01,tI explicação da vida, / esse nexo primeiro e singular»). E que, pOI isso mesmo - porque a ordenação cósmico-teológica, no atual ", tado das coisas, só pode ser uma falsidade -, é recusada p '10 poeta. Num poema como «Primeira apreensão de Minas», Ricar 10 Rizzo recupera precisamente o convite da máquina, embora d " de o início em chave deceptiva, e, se não propriamente a recu-.n do poeta, seu constrangimento, seu temor, e a constatação da p: I da - da visão do mundo, mas também de si: Q tempo tolheu a robustez de Minas vedou-lhe a máscara e propiciou que desvendássemos (nós, escoteiros ungidos da exclusiva armadura) a selva por baixo das estradas sem vida; a doçura da terra que os minérios amansava. Um vi I n d nt ali rangidos (espanto, clareza) nos saudava. Nascia lato e confidente meu importante temor por Minas. Uma ressequida esperança avançavaUm sem-número de dores constrangia Como no céu de Minas pairasse que eu agora a possuía e me assustava e me perdia. É menos por concessão divina do que por escavação nas ruí- nas (investigação: exploração dos vestígios) que o poeta «desven- d[a] / a selva por baixo / das estradas sem vida», mas também «a doçura da terra / que os minérios amansava». Se a máquina do mundo aparecia ao homem drummondiano como uma possibi- lidade de uitrapassagem da «inspeção / contínua e dolorosa do deserto», e por isso é recusada - porque há um vínculo ético entre o po ta c os d mais h bit I t • d d , qui !lI" «pair[a]» no «céu de Minas» não s dix f 11m nt de Ifl 11 a «ressequida esperança»? «Minas» mesmo como proj pectral? O «eu» desdobrando-se em figuras inapreensív is d I '.lI I própria estranheza, esgarçando-se entre a posse de si p I li 11' (No poema de Drummond, são as «aves» que «paira[m] / n (I Ii de chumbo» pouco antes de a máquina «se entreabri[r]» c m ''''1 promessa de claridade.) Não basta, para Ricardo Rizzo, «rep 111/1 (atitude madura) a máquina do mundo. É preciso, por as lm til zer, quebrar a máquina do mundo (atitude infantil), como I' I I fosse um brinquedo - ou, melhor dito, revelando assim o .11011I de brinquedo daquilo que se apresentava inicialmente como «11101 jest[ade] e circunspec[ção]»: outro Aleph, não subterrân o, II1 I aéreo; outro caleidoscópio, apenas mais metido a besta; ouu máquina de ver que, no entanto, simula uma maior gravids I" dll insistir numa «voz» paradoxalmente inaudível contra o d 1111111' terreno da «imagem» (mas, não por acaso, é à «vista humnu I que se pede «contempla[ção]»). É justamente ao ser quebr doi '1" a máquina do mundo, de que todo traço infantil parece sente (o que não acontecia no Aleph, que tinha algo d 11111111 livro ilustrado, para crianças, com imagens de lugares pitoi c ,( lI' I revela sua menoridade; o que Drummond, no seu poem , '111" guma medida já prenunciara, ao observar a máquina, d 'pul' " repelida, «miudamente» se «recomp[ondo]» (desmont , I1I " I montagem do objeto), num movimento paralelo ao d li/I I1I que, deixando para trás, como diria em outro texto, «, ."'" 111 terceptante », «segu[e] vagaroso, de mãos pensas», «cVt,IIo1IIt111I' que perdera» (desmontagem e remontagem do uj it ). OIIt'III \I a máquina do mundo como s st fos um b il li xlo: ('111 1111 ca, ainda, da alm, n ntr I I n I rn, I)' ('llt(' 01 r,illd, fi III I' m-fundo. «Mo ond stó o alma?», pergunta-se Baudelaire t través de sua criança. Quebrar a máquina do mundo: porque o mundo, na verdade, desde sempre está quebrado, e somente «imagens quebradas» - as broken images de que Eliot nos fala m The Waste Land talvez deem conta dessa fratura universal, desse universo fraturado. Quebrar a máquina do mundo: não acre- ditar numa única «imagem do mundo» para cada época, mui- 10 menos numa única imagem para todas as épocas. (Era já pre- isamente a renúncia a uma imagem única ou unificadora que I rummond dramatizava em seu poema, preferindo persistir na «inspeção / contínua e dolorosa do deserto».) * No poema de Orides Fontela citado por Ricardo Rizzo na epígra- de seu primeiro livro, fica claro que a diversão proporcionada p 10 brinquedo quebrado é coisa séria. Trata-se, no seu voca- bulário, de uma questão de lucidez: Em seguimento à teoria bau- d .lairiana do brinquedo, que aí se retoma e se reelabora, não há ( ntradição simples entre o «lúcido» e o lúdico (o poema intitula- I, precisamente «Ludisrno »), mas tensão dialética: As peças são outros jogos: onstruiremos outro segredo. s cacos são outros reais ( ntes ocultos pela forma , o jogo estraçalhado " multiplica ao infinito mais real que a int gridade: mais lúcido. ". Mundos frágeis adquiridos no despedaçamento de um só. E o saber do real múltiplo e o sabor dos reais possíveis e o livre jogo instituído contra a limitação das coisas contra a forma anterior do espelho. Trata-se, aí, de ver como «a vertigem das novas formas» - f r mas nascidas da destruição das formas antigas - «multiplicajm] a consciência». Trata-se de «esgota[r] os níveis do ser» (lI meio da contínua «cria[ção]» da consciência através de «jo (l', múltiplos e lúcidos / até gerar-se totalmente». Geração total mo esgotamento; a seriedade, ao fim, revela-se diversão mai «Quebrar o brinquedo ainda / é mais brincar». Baudelaire perguntava-se, a partir do mistério da destrui dO imediata do brinquedo pela criança que o recebe, se esta ati u I" podia se explicar como um gesto supersticioso contra a imitaç /li da humanidade. Para Orides Fontela, tratase de um gesto lib r'l.', rio «contra a limitação das coisas». O poeta das Flores do 11/1// também aventa a possibilidade de algo como um rito iniciat rio por meio do qual se buscaria cancelar os traços remanesc nll" do mundo adulto - os traços remanescentes da realidade c 111 meira - antes do ingresso do brinquedo no mundo das cri n .I'" Para Orides Fontela, trata-se da produção de novos «reais» p.u tir do estraçalhamento da realidade: trata-se da aquisição d no vos «mundos», por mais «frágeis» que s jam, a p rtir d «ell' pedaçamento» daquele que nt m un 1'1111 I) Contra unid d ur i i l( clt I llln,1 vir runlm: r lI' Irllll1)I'tolvl'l divisão (quebr r, r çalhar, despedaçar) que é também uma multiplicação. Contra a identidade e o reconhecimento (<<contra a forma anterior do espelho»), «o livre jogo», a variação, a aber- tura, o desconhecimento, o não-saber que é o ponto de partida de um novo saber. Em suma, mais uma vez, a «vertigem». Em Cavalo marinho, de fato, esse aspecto vertiginoso predo- minava muito claramente, por exemplo nos poemas que dialo- gam com certa imagética surrealista ou surrealizante de Murilo Mendes, a serviço de um também muriliano profetismo, entre re- ligioso e político, cuja compressão da experiência temporal faz com que a denúncia do presente iníquo e a projeção do futuro utópico se combinem num agora instável, instabilizado. A influên- cia muriliana é tão marcada naquele primeiro livro de Ricardo Rizzo que podemos compreendê-Io como uma espécie de fuga de Murilo através de Drummond - como Pedra do sono, de João Cabral de Meio Neto, era uma tentativa de escapar de Drummond (a quem o livro é dedicado) através de Murilo. Cavalo marinho compartilha com Pedra do sono certo clima de ensaio, de prepa- rativo - de leitura, seleção e concatenação de poéticas alheias sem que se chegue a configuração realmente nova depois disso. E não se trata aqui de cair na armadilha crítica e teórica da busca - por certo, fadada ao fracasso - de uma voz totalmente própria em qualquer poeta que seja; trata-se talvez, pelo contrário, de perceber no poeta iniciante uma confiança demasiada na proprie- dade dos demais poetas sobre suas vozes. Mas confiança nun- a absoluta; ou Rizzo não proporia, já no título de um poema do mesmo livro, «Murilocídio». E, se Murilo é um poeta cristão, Rizzo, quando escreve «Deus» em Cavalo marinho, parece fazê- ..- sem maiores convicções, deixando claro que se trata de um termo tomado de empr stimo Murilo, pr. s ndo pelo filtro do «meu Deus» já meramente retórico do « Po ma de sete fa- ces» drummondiano. que jamais con eguin libertar-se do peso do mundo, a não ser pela morte (atropelada: sentindo, literalmente, a máquina do mun- do - o mundo como máquina - espatifar-se contra ela). Não por acaso, a reivindicação do «direito ao grito» aparece, na enume- ração (caótica? heteróclita?) de títulos alternativos de A hora da estrela, juntamente com a constatação de que «ela não sabe gri- tar». Experiência tenebrosa de quem nunca teve brinquedo al- gum para brincar, muito menos para quebrar, e a quem só resta ser quebrado pelo mundo [« No fundo ela não passara de uma caixinha de música meio desafinada»): * Em País em branco, segundo livro de Ricardo Rizzo, há um poe- ma intitulado, significativamente, «Bonecas russas», no qual a ex- periência sensível, antes de tudo tátil (toque, contato),do mundo se revela uma exploração dolorosa do sem-fundo por aqueles que nele estão afundados As mãos presas sob o mundo gritam, é preciso tirá-Ias, e elas dizem, pausadas, "sob o mundo, o peso das mãos não é nada" é preciso tirá-Ias ali do fundo Às vezes lembrava-se de uma assustadora canção desafinada de meninas brincando de roda de mãos dadas - ela só ouvia sem participar porque a tia a queria para varrer o chão. As meninas de cabelos ondulados com laços de fita cor-de-rosa. "Quero uma de vossas filhas de marré-marré-deci". "Escolhei a qual quiser marré". A música era um fantasma pálido como uma rosa que é louca de beleza mas mortal: pálida e mortal a moça era hoje o fantasma suave e terrificante de uma infância sem bola nem bo- neca. Então costumava fingir que corria pelos corredores de boneca na mão atrás de uma bola e rindo muito a gargalhada era aterrorizadora porque acontecia no passado e só a imagina- ção maléfica a trazia para o presente, saudade do que poderia ter sido e não foi. os braços estão afundados "sob a pedra do mundo", dizem, e é preciso soltá-Ias, pois a pedra do mundo os prende ao fundo de onde não se pode cortá-Ias os lábios estão sós no aquário do mundo, nuvem sem nós, embora finos, os lábios estão sós e gritam - é preciso guardá-Ios no fundo das mãos - onde o mundo não possa encontrá-Ios. Tudo se passa - diz uma intérprete do romance - «como se, boneca animada, Macabéa estimulasse as forças negativas do mundo». Em suma, temos aí uma reivindicação do «dir ito ao grito» di que fala Clarice Lisp tor propó ito d M (I (, r r (r1d~'.I'11l A imagem das bonecas russas - que aparece no título do poe- ,- ma de País em branco, mas somente em marca d'água nos pró- pri v rsos - nos' diz precisamente de um mundo concebido como concatenação de figur s b ir de II nlm (qu t d' anima, alma, sempre; questão sem r spost, mpr, p 10 11 no' na rnodernidade nomeada por Baudelaire: «Mas onde está a 01 ma?»), de figuras aprisionadas umas nas outras, sempre na Iml nência da quebra, mas apenas na medida em que, pelo grito qUI' Ihes é negado, aspiram a outra condição. «Quanto ao futur » I «Saída discreta pela porta dos fundos», responderá a rnesm.i Clarice Lispector. Ou ainda, conforme já visto: «Saudade do qu ' poderia ter sido e não foi». * fiz mo um filha de pano e trapos mal ajuntados com um rosto de Picasso, em quina, e braços quebradiços amarrados em espátulas para nos ajudar a ler os livros nas prateleiras, a filmar os filmes que em horas de descanso concebíamos; e para essas e outras tarefas acoplamos membros de madeira a seu corpo de pano e lentes de aumento para que pudéssemos vê-Ia dançar entre os livros, dirigir os personagens vivos de seus filmes; uma boca de radiofone para falar com espíritos maus e conchas do mar para ouvir os espíritos livres. Essa «saudade» do que está morto desde o principio - s li dade de todos os futuros natimortos, de todas as possibilidadcu canceladas, mas que é também saudade do inorgânico, corno aquela de que nos fala Freud em suas considerações sobre a pul são de morte - exprime-se com grande pungência no livro li' Ricardo Rizzo que agora se publica, Estado de despejo. Pen o , sobretudo, no magistral poema «Estudo para uma represália » Trata-se, em larga proporção, de uma reescrita de «O elefant », de Drummond, em chave, digamos, doméstica ou familiar; o qu " de resto, só acentua a estranheza - a Unheimlichkeit - e tamb' 111 a fragilidade da criatura construída, não mais, como no poeta di' A rosa do povo, um animal «frágil» embora «imponente», pOI que «fabric[ado]» a partir dos «poucos recursos» do poeta (<<LJlll tanto de madeira I tirado a velhos móveis I talvez lhe dê apoi »), mas «u ma fi Iha I de pano e t rapos m aI aj unt ados», em qUI ,,() há imponência alguma; antes, pelo contrário, alguma impot n 11 Não por acaso, trata-se de uma construção, em certa rne did: , 'd' ereta, restrita ao âmbito da casa, e sobretudo da casa em m '10 " noite e ao inverno, isto é, da casa quando, mais do que (PI,1I quer outro momento, deveria s r prot ão: Numa n it d inv I n Estamos aqui, mais uma vez, como na «Moral do brinquedo» baudelairiana, diante da transformação da casa em teatro: eco- nômico, rigoroso, inventivo teatro. Porém, aqui, o que se encena não é nenhum faroeste, nenhum «eterno drama da diligência en- cenado com cadeiras», mas o drama da invenção artística repre- sentado como criação de vida humana a partir. de restos inor- ânicos (a filha inv ntada é, segundo os termos de Baudelaire, d l Idil110 UI1 di pôr um pouco de calmante. Um extrato de camomila, para que ao menos por um instante cessasse de falar com sua arritmia de metais e fios sobre os planos e tomadas e leituras de biografias. / um «brinquedo vivo »). «Dançar ntr \ llvi os» ilv 7 • J verso decisivo, na medida em que atu liz d sd br os v rs anteriores, logo do início do poema, segundo os quais caberia' filha ficta (feita, fictícia) «ajudar a ler os livros / nas prateleiras»: leitura (e ler, aqui, é também escrever) como dança, mise en scén da imaginação, transformação do real, convívio e diálogo com os «espíritos» (<<Acasa fala pelos mortos», já se lia num poema de Paí em branco). Nessa «encenação», a vida infantil- isto é, a «comun lúdica» que, segundo Walter Benjamin, reúne as crianças e os seu brinquedos, especialmente aqueles quebrados e remontados revela-se reimaginação crítica (<<alocução infinita / de orientaçõ e reparos») da «vida dos adultos». Não deve surpreender a rea- ção violenta, embora perversamente madura (cum pouco / d \ calmante»), dos adultos ao perceberem a subversão implícita em cada gesto da filha-boneca: Na casa tudo transcorria como uma encenação da verdade da vida dos adultos de uma cidade e os membrinhos de madeira giravam em sua alocução infinita de orientações e reparos. A severa filha de pano dirigia outros bonecos atrapalhados e lia nos livros amontoados com seus olhos de azeite roteiros hipernaturalistas que repetiam nas palavras de personagens sem interesse entonações iguais à maioria. Em seu café de ól o lubrific nt Não acordou por semanas enquanto os figurantes - bonecos e demais objetos - discretamente fugiam. Os livros quietos no entanto se afligiam sem garantia de que seriam lidos. Os olhos de azeite secavam, a palha do corpo pareceu envelhecer. Contrário ao esperado, a boca de radiofone emitia palavras nos intervalos da programação regular, que ainda captava como pedidos de socorro numa cidade-fantasma. O esquecimento daquele corpo inventado numa noite de inverno durou o tempo de seu sono. Nos acordou depois de alguns anos em nossa cama, com os restos de seu pano e de sua voz com falhas no lugar dos olhos com a desarticulação ruidosa do conjunto No entanto, a «cornuna lúdica», tr nsform d m «cidad - -fantasma» pela fuga forçada dos «figurantes» do teatro da ima- ginação, não se desfaz de todo - e etorna, ao final de uma noite, dessa noite que dura «alguns anos», na forma de conjunto de- sarticulado, corpo instável constituído de membro disjecta que insistem em falar e falar e falar, ainda que sua «voz» seja agora quase só ruído. A casa, isto é, o mundo, pouco a pouco, se des- monta - ou, antes, tem exposta sua radical desarticulação - sob o impacto desse testemunho (e sua voz / com falhas no lugar dos olhos»l). Desmancha-se no choque com essa poesia feita de «arritmia» e «pedidos de socorro»: D u 1 P 'qu rn v gina, fenda que havíamos inscrito no pano para dar ao corpo coerência e equilíbrio, escorriam pequenas formas negras, fios do que dentro havia. Desciam de alguma víscera inicialmente não prevista mas que se desenvolvera, autônoma, estrutura seca no interior dos trapos, sem pulsação detectável, e aparentemente sem função real alguma, mas que se desgastara e morrera antes do resto, e desfazia-se, fígado supérfluo, num expurgo que pouco a pouco enchia a casa de uma linha negra que tinha a consistênciade uma língua. Na casa cresceram as prateleiras, suas raízes atingindo a televisão, o parapeito, a conversa cotidiana. Tornaram-se vigas de madeira atravessando o espaço que antes ocupávamos sem precauções. Também os objetos de vidro envelheceram e se liquefizeram, tornando escorregadio o chão de carvão incendiado. Os velhos espíritos tremiam de frio em seus casacos enquanto nossa filha os admirava, formas de poeira resistentes à dissolução do leque e seu vestido. Se modernidade, em literatura, significa também, entre outras tantas coisas, excesso de autoconsciência (o que permitiu, não sem aparente paradoxo, inclusive a exploração artística do in- consciente), é quase inevitável, não apenas para os poetas pro- priamente modernos, mas também para aqueles que, ainda hoje, trabalham com as ruínas das utopias modernistas, elaborar, poema * após poema, metáforas d própri crit. E o qu cont 11 I poesia de Ricardo Rizzo, e, não por acaso, na pas agem acim , ,1 filha-boneca, em alguma medida figura do próprio poema que está escrevendo, «admir[aJ» os «velhos espíritos», espíritos com que ela desde o início dialoga, espíritos que são «formas de poeir / resistentes à dissolução» do mundo, a começar pela dissolução do que a toca diretamente, do que a envolve. Temos aí algo como uma lição de poética, que é também uma lição de política: só as formas instáveis, as formas vagas, as formas informes, que são também, em certa proporção, formas sujas (cpoelra», por exem- plo), resistem. Daí que, aqui também, não se ache «alma» alguma ao final da construção-destruição do brinquedo; e a filha-bonec nos repropõe precisamente o aprendizado moderno - pensemos em Kurt Schwitters, por exemplo - da coincidência de construção e destruição, montagem e desmontagem. Nenhuma alma se acha, mas, outra forma do nada, como já eram os espíritos de poeira, forma de um nada nunca absoluto, de um nada que ainda é ma- téria, que é resto, que são restos: «uma linha negra / que tinha a consistência de uma língua». Em suma, uma língua negra, uma língua-linha, uma língua que tende ao inorgânico, a língua mes- ma da poesia: a língua (idioma) que a língua (órgão) articula desarticula em forma de linhas (versos), experimentando inces- santemente, antes de tudo, a própria substância trevosa e, mai que trevosa, vacante. Note-se, contudo, que este corpo originariamente inorgâni - corpo de boneca, corpo de brinquedo - só cumpre sua tar fI (<<ajudar a ler os livros / nas prateleiras, a filmar os filmes / qu m horas de descanso / concebíamos»: em sum , ajud r cr v r u poema como desdobr m nto d p m m pr í · da dos próprios sonhos) à medida que trai essa origem e passa a desenvolver os órgãos precários de sua vida mínima: «alguma víscera / inicialmente não prevista», «estrutura seca» e «autô- noma», «aparentemente / sem função real alguma», de que es- correm, como testemunhos, «pequenas formas / negras, fios do que dentro havia», para emergir através da «pequena vagina» desenhada pelos pais «para dar ao corpo coerência / e equilíbrio». «Fígado supérfluo», órgão que só é percebido ao morrer e se desfazer. Que melhor figuração do fracasso, no confronto com o real, do desejo moderno de simetria, base de todas as poéticas e estéticas simplesmente construtivistas, mas antes do desejo de harmonia subjacente a toda a poesia? O poema aqui em questão intitula-se, não esqueçamos, «Estudo para uma represália». Re- presália de quem? Dos pais-poetas contra a filha-poema? Ou da filha-poema contra os pais-poetas? A estrofe final nos parece sugerir que a segunda opção é a correta. Mas trata-se de uma represália sem vitória, sem nem mesmo ilusão de heroísmo. Drummond, no seu elefante, salienta exatamente a «mínima vida», que o animal «mostra com elegância», oferecendo-a a uma «cidade» sem «alma? que se disponha / a recolher em si / desse corpo sensível / a fugitiva imagem». Destruído pelo confronto com a indiferença, desmanchando-se «qual mito desmontado», o ele- fante porém, porque, apesar de tudo, ainda elegante, outra vez se remonta em sua eterno-moderna combinação de imponência e fragilidade. «Amanhã recomeço», anunciam poeta, elefante e poema no derradeiro verso. Da época de Drummond à época de Ricardo Rizzo, que é a nossa, o que muda talvez seja, sobretudo, 1 «Alma», aqui, v I prlrn lrarn nt por "pessoa» - mBSa escolha vocabular, em poesia, sobretudo u.u.mdo Se' d UIIl POI'I,II,IO cI()~ dC' li r cursos e procedim ntos, não cid ntal. * (enquanto Ricardo Rizzo é um brasileiro que vive há cinco anosno exterior), anota: «Jogue apenas jogos / que não impli- quem / a morte ou a melancolia ». Ricardo Rizzo sabe que, no atual estado de coisas - estado de despejo, estado de exceção, terra devastada ... =. não há como escolher jogar apenas esses jogos; e suspeito que Matilde Campilho também o saiba, ou não encerraria seu livro, todo ele uma busca constante do «bri- lho» e do «verão» possíveis, com a passagem «do frio / brilhante para o frio escuro» e a advertência: «E se puder não esqueça / o rosto calmo do tigre / que está parado na porta / esperando pa- ra entrar / e para depois nos atravessar». Afinal, todo jogo, por mais jocoso, é um exercício com a morte e com a perda. Joga-se - brinca-se - sempre, em alguma medida, dentro de uma estrutura semelhante àquela que Sigmund Freud nomeou, com empréstimo da linguagem infantil, jort-da. Recordemos os acontecimentos: espantado com a recorrência dos sonhos que acompanham as neuroses traumáticas, os quais levam o paciente sempre de novo ao momento do trauma, Freud recorda-se ter visto seu neto Ernst, aos dezoito meses, atirando longe um cilindro de madeira preso a um barbante, dizendo ao mesmo tempo um o prolongado (in- terpretado pelo avô psicanalista como fort, literalmente «ausen- te», mas que poderíamos traduzir livremente como «sumiu»), e em seguida puxar o cilindro de volta, saudando-o com um satis- feito da (<<aí», ou, também em tradução livre, "apareceu"}, repro- duzindo assim, ludicamente, o ciclo de ausência e retorno da mãe, vingando-se dela, em certa medida, por abandoná-Io. Inventar a filha como brinquedo quebrado - isto é: quebrar a máquina do mundo na sua esfera mais íntima - é levar a fundo o fort-da: é admitir que o brinquedo está desde sempre quebrado, o mundo está, desde o início, fora dos eixos. a presente inviabilidade dessa eleg ncla ,portanto, daquela Im- ponência sempre recomeçada (ctoujours recommencée», diz Vai 'ry do mar, no verso de «Le cimetiêre marin» que suponho ter sido a fonte da linha final de «o elefante»). No lugar daquela elegância, temos a hiância, a grande abertura, o escancaramento - no limite, como sugerido no poema acima, o desventramento. Abertura cujo sentido político fica mais evidente se relemos «Estudo para uma represália» à luz de «Filmografia (e studo}», de País em branco: «a manhã do país é uma chaga / que se abre a quem souber torturá- -Ia», escreve Rizzo, numa espécie de antecipação de Cálcio, livro de 2012 em que Pádua Fernandes - além de poeta, jurista e his- toriador do autoritarismo - transforma em poesia a abertura dos arquivos da ditadura. Poesia: perceber o inorgânico a que tende todo organismo sob a pulsão geral de morte, mas também estar atento às reinvenções da vida que pulsam (porém, «sem / pulsação detectável») no inorgânico, vida inapreensível porque desde sempre já apreendi- da - porquanto feita, fictícia - e, no entanto, para sempre ir- redutivelmente livre: da natureza, da identidade, do governo, até da morte ... Não por acaso, a maioria dos poemas de Estado de despejo intitulam-se «Estudos », com exceção do primeiro, «Teo- ria ... », e o último, «Discurso » (que, porém, dentro deste qua- dro, talvez sejam outras maneiras de dizer, ainda, «Estudos ... »}. Trata-se, aí, de explorar um espaço de iminência e precariedade; trata-se de ensaiar o poema como exercício de conhecimento do mundo e a poiesis como antevisão e diferimento da práxi, Num poema de seu primeiro livro, publicado no mesmo 20)4 em que Estado de despejo foi publi do m f rm to di ite I, Matild Campilho, po t p rtugu ( (pl(' vlvr II IIC,' dI) I) 13,. li Numa resenha de um livro sobre a,.história dos brinquedos, Benjamin retoma a «compulsão à repetição» teorizada por Freud: toda experiência profunda de '1, III I I(;IV 1m nt , at o Ilm de todas as coisas, repetição e r torno, r stauração de uma i- tuação original, que foi seu ponto de partida. «Tudo seria per feito, se pudéssemos fazer duas vezes as coisas»: a criança ag segundo essas palavras de Goethe. Somente, ela não quer fazer a mesma coisa apenas duas vezes, mas sempre de novo, cem mil vezes. Não se trata apenas de assenhorear-se de experiências terríveis e primordiais pelo amortecimento gradual, pela invoca- ção maliciosa, pela paródia; trata-se também de saborear repe- tidamente, do modo mais intenso, as mesmas vitórias e triunfos. O adulto alivia seu coração do medo e goza duplamente sua felicidade quando narra sua experiência. A criança recria essa ex- periência, começa sempre tudo de novo, desde o início. Talvez essa seja a raiz mais profunda do duplo sentido da palavra ale- mã Spiefen [brincar e representar]: repetir o mesmo seria seu elemento comum. A essência da representação, como da brin- cadeira, não é «fazer como se», mas «fazer sempre de novo», é a transformação em hábito de uma experiência devastadora. * Transformar em hábito uma experiência devastadora: como sa- bemos, no pensamento de Benjamin, um tal preceito não valia apenas no plano individual, mas também, sobretudo, no plano coletivo, especialmente nesse tempo - que, em alguma medida, ainda é o nosso - que se revelaria sempre mais catastrófico. A «nova forma de miséria», nascida do aviltamento geral da «ex- periência» ao longo da Primeira Grande Guerra e nos anos se- guintes, gerou uma arte à altura do que o mesmo filósofo designou «um conceito novo e positivo de barbárie». S undo B nj min, é precisamente a «pobrez d xp riên la» (li' Impc'l tuti ((1 bárbaro - por exemplo, um pintor como Klee ou um poeta como Brecht - «a partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda». Trata-se de exercitar, ao mesmo tempo, «uma desilusão radical com o século» e «uma total fidelidade a esse século». Trata-se de explorar «a dimensão arbitrária e cons- trutiva» da linguagem, «em contraste com a dimensão orgânica». Trata-se de recusar, com essa linguagem, «qualquer semelhança com o humano», sendo esta semelhança o «princípio fundamen- tal do humanismo» (rejeita-se, portanto, também o humanismo). Trata-se de renunciar a «novas experiências», aspirando à «Iib er- ta[ção] de toda experiência». Trata-se de «apag[ar] os rastros», segundo as instruções encontradas p,or Benjamin no Guia para o habitante das cidades de Brecht. Trata-se sobretudo de se pre- parar para «sobreviver à cultura». Em suma, a questão é: como sobreviver? Nos termos da tópica poética decisiva da moderni- dade, que também passa por uma leitura atenta de Baudelaire (desta vez, por Eliot): como viver na terra devastada? A saída tal- vez passe, sugere Benjamin, por converter a pobreza de experiên- cia em experiência da pobreza, recuperando-se, assim, a própria noção de experiência. E a pobreza é, de fato, algo decisivo para a configuração da subjetividade em vários poemas de Ricardo Rizzo, já a partir de País em branco: «Estou pobre / feito o lixo das clínicas, o baço / que não usaram no transplante». Uma pobreza radical, que reduz o sujeito lírico a algo semelhante a lixo hospi- talar, e, mais exatamente, a um órgão descartado. Já se articu- lava aí a figuração de um corpo inorgânico em permanente mon- tagem-desmontagem, que, como vimos, ganharia sua formulação mais consistente no «Estudo para uma •...represália», do livro ago- ra publicado. Poema, poeta e personagem tornam-se como que indistinguív is qu ndo p nhad \111 /l1'1 .I que produz organismos como coi s \ oi como or ani 111 )" Oswald de Andrade resumiu a miséria racterística do po t 1101 modernidade ao fazer sua Beatriz - que, como a de Mallar IllI', também era Destruição - dizer: «Tu, poeta, não passas de um vivo». Em suma: ser vivo entre seres vivos, criatura entre cri tu ras, morituro entre morituros, coisa entre coisas. ficar 62 hor p rdido n r de pluvial de Florianópolis}, o poe- ma adquire uma consistência quase mítica ao figurar a descida ao esgoto como uma exploração dos subterrâneos da terra devas- tada - que, como em Eliot, é antes de tudo a vida na superfície, ou, em outras palavras, a vida superficial, caracterizada talvez so- bretudo (e continuo, aqui, seguindo o diagnóstico benjaminiano) pela impossibilidade de constituir, a partir dos dados da sensibi- lidade, uma experiência no sentido forte da palavra, uma expe- riência que mereça assim ser chamada. Não por acaso, a propósito das razões da crise figurada em The Waste Land, Antonio Candido fala de uma «perda de fervor nos atos praticados». Os subter- râneos - os ínferos, as regiões infernais - guardam o perigo, mas também são, nesse quadro, uma espécie de saída. A «Teoria da noite fria» é uma experiência dos avessos da cidade, daquilo que não está à vista, mas a qualquer momento pode irromp er, apa- recer. No entanto, o próprio sujeito que faz essa experrencia só conhece a desaparição, e, não por acaso, sua situação é repre- sentada por meio de uma estrutura que faz pensar, em alguma medida, nas «Bonecas russas» de País em branco: * Estado de despejo - nome desse estado de coisas conforme vê Ricardo Rizzo e também o contrário de um estado natal tal mo o estado de «Minas» era evocado em Cavalo marinho - c abre com uma «Teoria da noite fria» que é um novo e impor, tante capítulo da fenomenologia poético-política da vida perrn nentemente ameaçada dos brasileiros destituídos de casa. Ess tradição - embora tenha precedentes, sobretudo românticos - encontra seu ponto de partida crucial no «Bicho», de Manuel Ban- deira (<<Obicho, meu Deus, era um homem»), e tem pontos alto em poemas de Sebastião Uchoa Leite, Fabio Weintraub e Tarso de Meio. No livro de Rizzo, o «morador de rua» - designação oxi- rnórica, com que se naturaliza o mundo às avessas do capitalismo - não se limita a vagar pela cidade, sob os olhares piedosos ou repugnados dos demais habitantes, tampouco se abriga em qual- quer canto, à espera da caridade ou das agressões de estranho. Movido por uma «sede» que não parece ser só de água (sede d ' conhecimento? sede de justiça? Lê-se algumas estrofes adiant : «Era tanta a sede, e tão alto o canto»}, o personagem desc ~I rede de esgotos, não encontrando porém, depoi , o caminho d volta. Embora se baseie num episódio noti do p 10 jorn (111 janeiro de 2009, um hom m foi r " tilcl( I h mb ir ,'pc '. Sob o peso do escuro, sob o peso de si mesmo, de bruços e sob o próprio esqueleto, sob dobras de pele acima do outro corpo e sob o leito de um rio de ar corrente, indigente inominado no claro sol que expectorava luz, no subsolo dos acontecimentos, ',01> () pl",O ti" Il iloIVloI, d()', guinei l',t ' 11','1 J uíam (dll1p " e sob f Ix d 11 'S acima dos ator s d t tro, sob o fígado e sob a servidão de passagem em terreno baldio apenas afinal sob a luz láctea dos próprios olhos e dos grilos rastejou, cotovelos dobrados entre vespas e sapos, no seu túnel de três dias, no seu desespero, como uma larva em seu próprio crescimento. Trata-se aí, nessa investigação poética dos subterrâneos d: terra devastada, de pensar o «heroísmo da vida moderna» do qu: I falava Baudelaire, que é sempre um heroísmo decaído, a partir d impossibilidade mesma de qualquer idealização, a partir do cn frentamento da miséria mais concreta. Walter Benjamin, em s u primeiro ensaio sobre o poeta das Flores do mal, observa qu , «para viver a modernidade, é preciso uma constituição heroi- ca », ressalvando,no entanto, que «o herói moderno não é herói apenas representa o papel do herói». O heroísmo possível d um tempo impossível tem sempre algo de farsesco. Na «Teorl d: noite fria», essa farsa fica evidente desde os primeiros versos: Do registro de moradores de rua não constava o nom d H nrlqu 1\1 x: ndro II 1;111 O her I I ) IHll'llltl 1('111 um n m I omposto a partir de uma montagem d 110m d personagens históricos. Ricardo Rizzo, porém, logo assinala a distância do seu herói com relação àqueles, pondo em dúvida, ainda, sua identificação: Henrique VIII? Alexan- dre Magno? Floriano Peixoto? Dos registros de moradores de rua seu nome não constava nenhum henrique junto a nenhum pequeno herói republicano nenhum mesopotâmio a invadir vilarejos [ ...] De registro nenhum consta o rei deposto o conquistador de fossos o marechal esfaqueado como um cuspe seu nome parecia ter evaporado do vidro ou escorrido e depois caído sobre o assoa lho, onde virara lodo [ ...] O rei deitou-se, dormiu. O grande conquistador bebeu, respirou. O presidente republicano repreendeu um subalterno. [ ...] O nome, registrado pelo poeta, « não const] a]» no «registro de morador s de rua» - o u u r qu s u personagem é uma Agamb li, n «vld.: 11l1d»L qu , omo bem viu Oswald de Andrade, concentra num «dupllcidade antagônica» - ao mesmo tempo «benéfica» e «maléfica» - «o seu caráter conflitual com o mun- do». Em ninguém essa «mínima vida» é mais aparente do que nos miseráveis: naqueles que foram reduzidos a ela. No entanto, é precisamente esse «pouco de vida» - e não a participação em qualquer plenitude mais ou menos ilusória - que constitui a re- gião ontológica comum a elefantes e filhas inventadas, sem-teto e brinquedos quebrados, Macabéa e o corpo despedaçado de Cristo, o «bicho» que procura comida no lixo do pátio e os «ve- lhos espíritos» que são «formas de poeira» resistentes à histó- ria e sua destruição, «o baço / que não usaram no transplante» e «alguma víscera / inicialmente não prevista». sp i d «11) r ad r I \ r lI,1» t '1111 1.11 ), Cjulç,) I v nt d pIO pria. Se o person g m do r otl i·'ri quiz fr ni, '. ta talvez explicasse seu desnorteio (qu talv z foss também II riosidade), o personagem do poema deixa-se guiar por sua ind '. finida «sede»; é ela que o impulsiona terra adentro, lodo ad I tro: «apenas o lodo de seu nome / longo, formado por pedaço / de vime, porque tinha família / fugiu dos registros / espalhou- pelos túneis / sob o sol invertido das imundícies». Tem nome, m s é o «indigente inominado». Nos «três dias» de sua provação, aquele que «tinha família» foi, no entanto, sem-teto e sem-nome. Trata-se, aí, de reconhecer no sem-teto a forma mais verda- deira daquilo que um dia, com pompa indevida, chamamos d «condição humana». Somos todos sem-teto, assim como somo todos sem-terra (e talvez, em breve, sem-Terra). No atual estági do capitalismo, o ato de habitar, no sentido pleno da palavra, mais e mais se revela inviável. E não há, porém, como ser poeta, hoje, sem se defrontar com o que Ruy Belo, ainda em diálogo com os resíduos teológicos de sua formação juvenil, designou, no título de um de seus livros, «o problema da habitação». Ness mundo, apenas a transformação do objeto em mercadoria - «rit odiado» pelo qual o «velho coração de objeto / gasto de existir / desde a pedra lascada» é exposto «a uma plateia calada» - faz- -se interpretar como conquista de «uma vida / maior [ ... ] e m i livre». Compreende-se que seja, por contra posição, precisam nto a «mínima vida» que interesse ao poeta: «vida mínima» ou «vi da menor», diria ainda Drummond; «um pouco de vida, um mivida», dirá agora Ricardo Rizzo. Trata-se, aqui, de dar aten ( ) àquela «parcela mínima de vida», comum a homens víru (bi • logicamente, o gene; filosoficamente, diríamos com nj n ln (' Um tecido mais espesso crescerá a partir das dobras das pálpebras, pesando sobre a pele, feito dos resíduos de poeira de pele que estão no ar, em suspensão, e acabam ali, nas dobrinhas das pálpebras (sobretudo das pessoas mais idosas), vão se depositando, e gânhando um pouco d vid ,um mivid * A ideia de pró tese - de um órgão substitutivo, de um órgão paradoxalmente inorgânico - é, à luz disso, fundamental, e não por acaso Estado de despejo inclui um poema intitulado «Estudo sobre a produção de próteses», justamente o poema em que as expressões «um pouco de vida» e «uma semivida» aparecem: que P I I I11Il I III I m 10-li un na, m ío-rnln r I, IJ I do t I n ndo diff ll o simples olhar, razão p I qual p ssoa fecha os olhos, ponto a partir do qual não voltará a abri-Ios. perceba- r c rr ncia da preposiçao sob e do prefixo sub- ao longo da «Teoria da noite fria», especialmente na segunda estrofe já aqui citada, até chegar ao ilustrativo «subalterno» re- preendido quase ao final do poema, na penúltima estrofe. Trata --se de aprender a viver menos no fim do mundo do que «no fundo do mundo». * Quando o herói da «Teoria da noite fria» desce à red di' esgotos, é como se estivéssemos, leitores e poeta, com ele, mnts uma vez no porão da rua Garay, numa versão, todavia, bem rn: I suja, e agora pública, daquele ínfero privado, mas por isso m n (1 mais apta a dar a ver o que é e o que há, mesmo à «pessoa» qu \ «fecha os olhos» diante da dificuldade do olhar. E é ainda um" espécie de Aleph ou de máquina (quebrada) do mundo (tamb 111 quebrado) que se oferece a ele: não apenas à sua visão, m " toda uma completa experiência corporal. Essa existência sub terrânea, ainda que restrita, no caso de «Henrique Alexandi (I Floriano», a três dias, é a própria revelação do mundo como c sa quebrada, comointegridade ou integração faltante. Vagar p I " profundezas da cidade é perscrutar de perto - de dentro - ( I, fundações sem fundo da terra devastada, o abismo sobre o qu I ela precariamente se sustenta. É palmilhar os desvãos usu I mente inacessíveis da sociedade, aquilo que dela não deve (I visto, em alguma medida o seu inconsciente, tão mais cbscur quanto mais injusta for sua organização. A pergunta que o p I sonagem desnorteado lança tacitamente ao mundo com qu depara, a esse grande brinquedo quebrado que é o mundo - sa pergunta é ainda: «Mas onde está a alrna?», Descer, d sempre: porque tudo aí - aqui - é queda. Viv r - obr ViV'/, ' e s p e c ia Im e n t s u b v iv r - « no u b o I d n t i 11) 111 " » : Talvez seja sempre, em alguma medida, da perda do nome que trate a poesia. Somos todos sem-nome. Mas também somos levados a recordar que essa perda, nos poetas atentos às com- plexas pulsações rítmicas da história (e das histórias que corro- boram ou questionam a história}, só se deixa conceber de modo dialético, conjugando-se, desde o início, às suas possibilidades de reconquista ou reconstrução, que nunca serão definitivas (é pre- ciso, afinal, preservá-Ias como possibilidades). Porque não só o poema, mas também o homem, permanece - até o fim, até depois do fim, até o fim da própria ideia de fim, isto é, no fundo (sem fundo) do mundo - «em preparativos» (como disse um poeta L «provisório» ou «inacabado» (como disse outro). Porque, como sugere a oscilação entre o nome ironicamente construído a partir de partes de nomes de heróis mais ou menos fajutos e a ausên- cia daquele nome no registro de moradores de rua, ninguém tem nome próprio. Mais: não existem nomes próprios, todo nome é tomado de empréstimo (ou imposto, de fora, a quem com ele se nomeia), todo nome é, também, a seu modo, montagem. Monta-se o nome como se monta o corpo nomeado: diz-se do personagem da «T oria da noit fria» que «tinha sacos / de lixo ;' sob o calo / t inh, I unld 'I\) / v p no int rior / do olhos (' J' li I / q ur I '11' IcI di \ " '11 I I () 11,() II / (' I " V 'I ri (' ( 11 mo Ii P ('I ( ,/ p Ix( subt rr no». /\ V 'i ti m d mund - 111 fc 1111, qui, ll' llllll1 infiltração de lixo animais - con titui hum n lrn ••!" 'li (embora talvez não à sua semelhança). Não há, aí, int rio id.lCl psicológica,mas algo como um dentro infinitamente d sd 1101 do - ou, antes, folheado - no qual o trânsito incessante enu orgaruco e o inorgânico se propõe outra vez como sobrepo i 010 violenta, como impossibilidade de uma síntese. Se há, aí, PSYc/1I I esta não é uma entidade incorpórea, pairando imaculada sol» (I a baixa matéria: é, antes, a própria material idade conflituos ; (I não esqueçamos que o inconsciente - descoberto pela psicanáli I, não por acaso, antes nos textos literários que nos seus paci nt " - não se reduz à subjetividade no sentido convencional, send , pelo contrário, justamente aquilo que, em nós, põe em questão, " noções clássicas de subjetividade, individualidade, interioridad I' «Por dentro as coisas são frias / destituídas de pele, de fios. Ce l', / dentro de si mesmas, carregam consigo / vespas internas». de pôr a m. d ntar à rnesa»), mas continuamos a viver, certa- mente uns mais que outros, em estado de despejo: em busca ou à espera de abrigo, mas também liberados para explorar os des- vãos mais obscuros da sociedade, para vagar, por exemplo, pelos subterrâneos. Etimologicamente, o despejo é também uma forma de liberdade: «soltura de espírito, de maneiras; desembaraço, de- senvoltura, vivacidade», «ausência de temor; ousadia, intrepidez, audácia». O verbo pejar, de que provém, significa «impedir», «embaraçar», assim como «encher» (o que pode ter sentido metafórico, com pejo significando embaraço ético, não físico). Peia era «corda ou laço para atar o pé de animais, assim como, metaforicamente, «embargo, embaraço, impedimento, empeci- lho»; vem do termo do latim vulgar pedea, derivado, por sua vez, do latino pes, oedis- isto é, pé. A isto se junta a constatação de que se chama despejo também «o que não presta e se joga fora; lixo, imundície, sujeira». Resultado de montagem é também o título do livro. Estado de despejo evoca, a um só tempo, expressões como estado de síti ou estado de exceção, de um lado, e ordem de despejo ou quarto de despejo, de outro. Soa como uma espécie de paródia de um terminus technicus do direito, ou como a predição de um term por ora ausente dos vocabulários, mas, infelizmente, sempre m i necessário para dar conta dos movimentos do real. Fala-nos de algo que é um acontecimento (despejo) transformado, porém, nl condição (estado). Não somente se é despejado, mas se viv - sobrevive, se subvive - em despejo. Podemos nos iludir quanto, segurança de nossa posição de classe (e Rizzo dramatiza Ilu são: «Nós temos direito a férias / a pensão a macacos dom ti CJ e / tirolesas suspensas / entre árvores frutíf ras n 150t m I Estado de despejo significa, portanto, aprender a viver na im- propriedade dos corpos, aprender a viver na impropriedade das formas, aprender a viver na impropriedade dos nomes. É neste ponto que a «Teoria da noite fria», sem deixar de ser um docu- mento poético da experiência da pobreza, revela-se, também, uma teoria da poesia. Eduardo Sterzi é escritor, crítico e professor de teoria literária na UNICAMP. Publicou, entre outros, os livros Proso (1003) e Aleijõo (2009), de poemas, Cavalo sopa martelo (2011), d t atro, (>01 auo It'I DOI1(( ( 0(8) (' A piovt: dos nove: alguma poesia moderna a (01 ,/0 elo (llt (li 10 ()OOR). til' I" Illdo' IItl I, 1111'
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