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CRISTIANISMO AULA 3 Prof. Ivan Santos Rüppell Júnior 2 CONVERSA INICIAL O renascimento italiano promoveu uma mudança na cosmovisão europeia que oportunizou e influenciou diversas transformações no Ocidente nos séculos seguintes, entre as quais as reformas da Igreja cristã a partir de 1517, com a Reforma Protestante e o movimento da Contrarreforma Católica. Outro importante movimento que iremos anotar foi o surgimento do Iluminismo no século 18 e a posterior consolidação de suas ideias que vieram a consolidar os valores da cultura moderna. O cristianismo foi uma religião bastante afetada pelas transformações desse período. TEMA 1 – O RENASCIMENTO E O HUMANISMO 1.1 O renascimento O movimento da Renascença teve início no século 14 na Itália propagando a ideia de um renascimento (nascer de novo) dos valores e perspectivas da cultura clássica greco-romana na civilização europeia, os quais formataram a nova cosmovisão1 que veio a desenvolver aspectos culturais relevantes da Idade Moderna a partir do século 15. O renascimento foi um dos movimentos mais relevantes e influentes a realizar a principal mudança de paradigma que diferenciou as Idades Média e Moderna, pois se iniciou a busca de uma compreensão da existência do ser e da organização da sociedade que não teriam mais Deus como centro de suas pressuposições, mas o homem, pois as reflexões acerca da vida começariam a se originar da livre capacidade racional do ser humano, conforme ocorrera no período dos clássicos greco- romanos. Embora tenha iniciado essa reavaliação acerca do parâmetro com que a existência humana deveria ser pensada e desenvolvida, a Renascença também influenciou positivamente a religião cristã, pois valorizou a arquitetura clássica, que influiu na construção das grandes catedrais, e a pintura realista, que foi modelo para os afrescos feitos nas igrejas, conforme o exemplo maior das pinturas de Michelangelo na Capela Sistina do Vaticano. 1 Cosmovisão é a maneira mais subjetiva pela qual se enxerga o mundo, atentando para a importância das relações humanas e para o destino do mundo e da humanidade. 3 Outro movimento oriundo do renascimento foi o humanismo europeu, por meio da valorização da literatura e da escrita, que também recebeu o incentivo de intelectuais bizantinos que vieram à Europa trazendo os conteúdos da gramática e retórica, poesia e filosofia (Werner, 2017, p. 154). 1.2 O humanismo Para McGrath (2005), “o Humanismo é essencialmente um projeto cultural que recorria à Antiguidade Clássica como modelo de eloquência. O importante era o retorno ad fontes”. Ad fontes é uma expressão latina que traduz o modo como a cultura moderna buscava nos valores clássicos da Antiguidade as bases da renovação de sua cosmovisão. Segundo esse mesmo autor, o principal interesse desse movimento estava centrado no princípio cultural denominado retorno às fontes, que desejava resgatar certas práticas antigas relacionadas ao mundo das letras; pois, segundo McGrath (2005, p. 74-75), “o humanismo estava interessado em como as ideias eram adquiridas e não com a verdadeira substância dessas ideias”. O renascimento e o humanismo criaram perspectivas que valorizavam a racionalidade e os talentos do ser humano, abrindo a oportunidade para que toda a cultura e a existência pudessem se desenvolver sem o controle da Igreja e religião cristãs. Todavia, não podemos ignorar que o cristianismo igualmente reconhecia as qualidades humanas, conforme textos profundos escritos pelos teólogos dos primeiros séculos, Orígenes e Agostinho. E o próprio renascimento, como movimento cultural, alcançou projeção porque um grande número de intelectuais cristãos abraçou muitos de seus aspectos, com o objetivo de relacionar valores religiosos aos conteúdos desse período. Um exemplo dessas personalidades é Erasmo de Roterdã, um dos maiores humanistas cristãos da Europa (Chadwick; Evans, 2007, p. 91). Ele se tornou um importante escritor da Renascença, vindo a influenciar o pensamento cristão a partir de princípios desse movimento. Duas de suas obras mais impactantes foram a tradução do Novo Testamento direto da língua grega e a elaboração de um livro instrutivo para cristãos leigos, Manual do Soldado Cristão (McGrath, 2005, p. 83). As produções de Erasmo são um exemplo das influências do renascimento e humanismo na cultura europeia do século 16, já que o princípio ad fontes o fez estudar as obras patrísticas e o Novo Testamento na língua 4 grega. A valorização da literatura trouxe a oportunidade para que suas reflexões religiosas independentes fossem publicadas e lidas na sociedade (González, 2011, p. 527). Erasmo de Roterdã se tornou um pensador bastante influente nas questões que vieram a influenciar os debates teológicos e políticos que ocasionaram a Reforma Protestante da Igreja Ocidental; no entanto, não tomou posição por nenhum dos lados, orientando que a Igreja deveria seguir os princípios humanistas, em um espírito de moderação (González, 2011, p. 527). Nesse mesmo contexto, destacamos o ano de 1456 como aquele em que foi produzida a primeira bíblia impressa da história. Durante a Idade Média, as Escrituras cristãs estavam disponíveis apenas aos monges e copistas, além de existirem somente cópias na língua latina, e não na língua nativa da maioria dos povos europeus. A partir de 1440, Gutenberg iniciou a impressão de letras com tipos móveis de metal e produziu 200 cópias da Bíblia latina, Vulgata, dando início a uma revolução cultural que se tornou um elemento fundamental da propagação da Reforma Protestante. O surgimento das impressoras propiciou que Martinho Lutero e outros líderes religiosos disponibilizassem ao povo os textos da Bíblia (Curtis; Lang; Petersen, 2003, p. 102). TEMA 2 – A REFORMA PROTESTANTE E A CONTRARREFORMA CATÓLICA 2.1 A Reforma Protestante Vamos iniciar este tópico trazendo as palavras de Martinho Lutero (1517, citado por Werner, 2017, p. 161): “Comete-se injustiça contra a Palavra de Deus quando, no mesmo sermão, se consagra tanto ou mais tempo à indulgência do que à pregação da Palavra”. A Reforma Protestante pretendia que as crenças e doutrinas do cristianismo tivessem por base e fundamento somente os princípios ensinados pelas Escrituras – o Antigo e o Novo Testamentos –, em oposição ao pensamento da Igreja Católica Romana, que valorizava igualmente a tradição, segundo as composições dos teólogos e papas da Igreja. Esse aspecto relaciona esse movimento ao princípio renascentista e humanista de “retorno às fontes”. Os principais líderes da Reforma Protestante foram Martinho Lutero, na Alemanha, Ulrico Zuínglio, na Suíça, e João Calvino, na França e Genebra. O ato simbólico inicial do movimento ocorreu em 31 de outubro de 1517, na cidade 5 alemã de Wittenberg, onde o frade agostiniano Lutero publicou as 95 teses que criticavam a venda de indulgências como forma de oferecer o perdão dos pecados aos homens. Como contraponto, ensinava a tese do texto da Carta aos Romanos do Apóstolo Paulo, que indicava que o perdão e a salvação existentes na pessoa de Jesus Cristo eram um presente gratuito dado por Deus a todos os homens que tivessem fé. A Reforma Protestante foi um movimento religioso que transformou a sociedade europeia a partir do século 16, porque seus paradigmas teológicos acerca da Igreja e dos crentes desenvolviam novas atitudes religiosas que vieram modificar as áreas culturais da política e da economia, além da organização da sociedade (McGrath, 2005, p. 97). Assim como em outras áreas da existência, igualmente a religião também experimentou as mudanças de transição culturais da Idade Média para a Idade Moderna. Isso foi simbolizado no princípio “post tenebras lux” (“após a luz a escuridão”),já que a orientação para que todo cristão lesse a Bíblia na língua materna fortalecia que este viesse a se relacionar com Deus sem a mediação da Igreja (Fortino, 2014, p. 237). Observe que, ao propiciar ao cristão um relacionamento espiritual direto com a pessoa de Deus, certos princípios da Reforma acabaram influenciando o desenvolvimento da responsabilidade pessoal do fiel acerca de sua vida social. Nesse contexto, o teólogo João Calvino assumiu a tarefa de organizar as doutrinas que tinham o propósito de orientar e “enviar” o cristão protestante ao mundo e à sociedade, pois a religiosidade cristã interior deveria ser vivenciada na realidade exterior da existência humana. Para McGrath (2005, p. 250), o pensamento teológico desse reformador definia uma visão religiosa que “envolvia trazer toda a esfera da existência humana para dentro do âmbito da santificação divina e da dedicação humana”, a qual se tornou um princípio central do cristianismo protestante que influenciou transformações sociais na Europa e posteriormente nos Estados Unidos no decorrer da Idade Moderna. 2.2 A CONTRARREFORMA CATÓLICA O movimento religioso do cristianismo denominado Contrarreforma Católica começou no ano de 1945 no Concílio de Trento, que recebeu o nome da cidade em que foi organizado, e durou 18 anos, embora tenha tido interrupções nesse período. Após o crescimento da mensagem e o início da 6 institucionalização do cristianismo protestante, era necessário fortalecer a autoridade do papa e da Igreja Romana e também renovar os dogmas e o pensamento teológico católicos com vistas a esclarecer fiéis e sacerdotes acerca do pensamento oficial da instituição. Na área religiosa e missionária, o papa definiu seu apoio à Sociedade de Jesus para que esse grupo anunciasse por toda a Europa os princípios da Igreja Católica. O interesse pelas artes cristãs e pelo estilo barroco na Itália ajudou a propagar e manter a Igreja Romana como uma força cultural dominante no continente (Werner, 2017, p. 163). A Contrarreforma buscou frear o avanço do protestantismo e as ideias acerca da reforma da Igreja, proibindo que os fiéis lessem os livros de Lutero e Calvino, e a tradução em grego da Bíblia, pois somente a Vulgata (versão em latim) foi considerada oficial pelo catolicismo; as obras de Erasmo também não deveriam ser lidas. Nesse contexto, havia a reorganização da atuação da Inquisição para declarar hereges os contrários ao catolicismo (Fortino, 2014, p. 237). A Igreja Romana definiu para o clero e fiéis os pensamentos autorizados da instituição, os quais vieram a orientar a educação religiosa dos seguidores e das missões católicas no decorrer dos séculos. De forma objetiva, as decisões do Concílio definiram as diferenças de pensamento e atitude religiosas existentes entre católicos e protestantes dali para frente (Chadwick; Evans, 2007, p. 106). Uma das consequências desse momento histórico em que as lideranças católicas e protestantes assumiram suas diferenças teológicas e consolidaram sua divisão institucional foi que diversos Estados e regiões da Europa assumiram uma posição por uma ou outra tradição religiosa nas décadas seguintes. Isso também deu origem a uma época de conflitos que passou a ser denominada guerras religiosas.2 Segundo Curtis, Lang e Petersen (2003), entre as muitas mudanças e renovações que a Igreja Romana buscou realizar a partir dos embates com os 2 Batalhas entre católicos e protestantes que ocorreram em diversas regiões da Europa entre os séculos 16 e 17. Elas se iniciaram na França em 1562, e em 1566 começaram os combates da chamada Revolta Holandesa, havendo também o conflito religioso entre a nação católica da Espanha diante da Rainha Elizabeth I (protestante) da Inglaterra. Em 1618, o Imperador Fernando do Sacro Império Romano-Germânico deu início à Guerra dos Trinta Anos (1618-48), perseguindo os protestantes que residiam nas regiões do Império localizadas nas áreas da Alemanha e da Áustria. 7 protestantes, o apoio do papa aos esforços espirituais de Ignácio de Loyola ocasionou o fortalecimento da Sociedade de Jesus, os jesuítas, os quais foram bastante importantes tanto para renovar a fé de muitos que haviam se afastado do catolicismo quanto para alcançar novas almas por meio de um dedicado programa de missões. Nas palavras desses autores, “na época da morte de Loyola, em 1556, [os jesuítas] não apenas tinham alcançado praticamente todas as nações europeias, mas também já haviam se espalhado pelo Japão, Brasil, Etiópia e África Central” (Curtis; Lang; Petersen, 2003, p. 120). No contexto das reformas religiosas do século 16, destacamos a chamada Reforma Inglesa, cujo início se deu a partir de um confronto político entre o monarca inglês Henrique VIII e o Papa Clemente VII, pois este não permitia o divórcio ao rei para que se casasse com Ana Bolena, com vistas a garantir a continuidade de sua descendência ao trono inglês. A divisão da Igreja Inglesa diante de Roma foi estabelecida oficialmente em 1534, no Ato de Supremacia que declarava a autoridade do rei como sendo única e superior na “terra da igreja da Inglaterra chamada Anglicana Ecclesia” (Shelley, 2004, p. 298). TEMA 3 – AS EXPLORAÇÕES AO NOVO MUNDO E A EXPANSÃO DO CRISTIANISMO Começamos este tema com as considerações de Greco (2008, p. 56), segundo as quais “a história da conquista espanhola e portuguesa em terras americanas é também a implantação da religião católica”. O período histórico chamado era dos conquistadores se consolidou a partir da associação da Rainha Isabel, da Espanha, com o marinheiro italiano Cristovão Colombo. Logo que, em janeiro de 1492, a Rainha Isabel e o Rei Fernando de Aragão reconquistaram da posse dos mouros (muçulmanos espanhóis) a cidade de Granada para o território espanhol, foi possível aos reis voltarem os olhos para os planos de busca de novas rotas de comércio em direção às Índias. As grandes navegações dos séculos 14 e 15 foram empreendidas por espanhóis e portugueses, ingleses e holandeses que buscavam rotas diretas entre a Europa e as regiões do Oriente, desde que se percebeu que as rotas tradicionais de comércio até a Ásia eram perigosas e custosas devido à quantidade de mercadores que negociavam na região (González, 2011, p. 142). Vale ressaltar que enquanto Colombo zarpava em busca de descobrir uma nova rota para a Ásia, a Rainha Isabel assumia como 8 propósito de seu reino a realização de um empreendimento de missões cristãs a fim de que os orientais viessem a ser abençoados pelo conhecimento do cristianismo. Em vez de chegar à Ásia, o navegador alcançou a América, fazendo paradas nas regiões da Ilha das Bahamas, Caribe e Cuba, até chegar em São Domingos. Havia um elemento político-religioso unindo a religião cristã e os Estados europeus que não poderia ser desprezado nesse período das navegações rumo ao novo mundo das Américas. Isso porque era preciso garantir o domínio das terras conquistadas e dos bens ali descobertos para os monarcas que investiam nos navegadores, e tais prerrogativas estavam relacionadas às missões de evangelização da Igreja. Nesse contexto, já em 1493 o Papa Alexandre VI concedeu ao Rei Fernando os documentos oficiais (bulas papais) com os direitos sobre as terras descobertas, oferecendo à Espanha católica a condição de colonizar e evangelizar as regiões ao leste, salientando os acordos realizados anteriormente que davam a Portugal o direito sobre as regiões a oeste de Cabo Verde (González, 2011, p. 150). Observe a maneira como o cristianismo e os monarcas europeus se associavam nesses empreendimentos, o que revela a força da relação entre religião e Estado na civilização ocidental. Acerca dessa relação, destacamos dois aspectos da atuação cristã na era dos descobrimentos interligando Europae América. No lado católico, os missionários de ordens religiosas como a dos franciscanos, dominicanos e jesuítas acompanhavam os exploradores na colonização da América, desde o Haiti até Lima, da Venezuela até o Paraguai, vindo a se preocupar bastante com a dignidade dos nativos, conforme revela o conflito ocorrido com os bandeirantes na região de São Paulo, no Brasil (Greco, 2008, p. 56). Em outra vertente, o protestantismo inglês se tornou o fundador de uma colônia importante para o desenvolvimento do cristianismo nos Estados Unidos, assim que ocorreu a viagem dos “peregrinos” no navio Mayflower em 1620. Um grupo de cidadãos ingleses liderado por puritanos calvinistas navegou até a América a fim de praticar uma religiosidade mais bíblica, visando desenvolver uma sociedade com valores cristãos. Organizaram um sistema político que elegia as autoridades da comunidade, que se tornou modelo na colonização inglesa da América do Norte (Werner, 2017, p. 173). 9 TEMA 4 – O RACIONALISMO E O EMPIRISMO O início da Idade Moderna foi marcado por duas correntes de pensamento: o racionalismo, do filósofo francês René Descartes, e o empirismo, do inglês John Locke, que se propagou a partir da Inglaterra. Antes de avançar na compreensão desses conceitos, vamos recordar o entendimento de Platão e Aristóteles que diz respeito a essas reflexões. Platão desenvolveu a Teoria das Formas, segundo a qual a realidade material que conseguimos enxergar é considerada uma imagem específica relacionada às formas – estas têm o propósito de comunicar princípios do “ser” imanente de outra dimensão, ao nosso mundo. Portanto, ele entendia que o homem deveria utilizar dados oriundos da própria mente a fim de compreender a realidade, já que o verdadeiro conhecimento já se encontrava no seu interior. Aristóteles, por sua vez, desenvolveu um princípio de conhecimento que se baseava na observação da realidade, visando adquirir informações acerca da existência, vindo a se tornar o pensador mais influente de toda a cultura ocidental. Portanto, ele entendia que a maneira com que adquirimos conhecimento se origina da análise dos dados da realidade exterior em que existimos. Observe que tanto o racionalismo, que entende que o conhecimento depende somente da razão humana, como o empirismo, que orienta a busca do conhecimento a partir da observação do mundo exterior, tem fundamentos no pensamento clássico de Platão e Aristóteles. 4.1 O racionalismo A palavra racionalismo enfatiza o princípio de que a verdade da existência é um conhecimento que se adquire somente a partir do raciocínio; não há necessidade do uso dos sentidos e da experiência para se obter a real compreensão de algo. Para McGrath (2005, p. 273), a expressão autonomia do pensamento humano identifica essa teoria, pois afirma que o uso da razão é capaz de esclarecer todas as verdades da existência, valorizando as “ideias inatas” que já estão contidas naturalmente na mente humana. Esse movimento influenciou o pensamento religioso do século 17 e seguintes, pois a existência de Deus passou a ser explicada segundo argumentos racionais, conforme os textos de W. Leibniz e René Descartes – este 10 abandonou os textos bíblicos como fonte das verdades divinas, além de desprezar o conhecimento da experiência dos sentidos, que era um valor do empirismo. 4.2 O empirismo O empirismo valorizava a experiência e os sentidos do homem no momento de se adquirir o conhecimento da realidade, pois os próprios fatos desta realidade negariam a existência de ideias inatas na mente humana. O maior propagador desse movimento foi o inglês John Locke (1633-1704), que concordava com Descartes acerca do fato de que a “ordem do mundo corresponde à ordem do pensamento”, o que não significa que existam “ideias inatas” na mente humana capazes de dar compreensão da realidade das coisas. Isso porque todo conhecimento originava sempre da experiência, seja a dos sentidos, seja a própria experiência interior da mente, o que ocorria assim que o homem refletia acerca da própria natureza, o que seria uma espécie de “sentido interno” da humanidade (González, 2011, p. 323). John Locke escreveu na obra Ensaio acerca do entendimento humano, de 1690, que Deus não deu aos homens a condição de nascerem com ideias inatas, mas os capacitou para compreender e explicar a realidade da existência por meio dos sentidos. A razão era uma capacidade utilizada para compreender os dados que os sentidos do ser captavam mediante as experiências humanas diante da realidade; portanto, a razão não poderia ser considerada uma fonte originária de conhecimento (Locke, 1999). A diversidade de pensamento entre o racionalismo e o empirismo acerca da epistemologia (teoria do conhecimento) desenvolveu duas teorias acerca do modo como se adquire o conhecimento: teoria a priori, a partir do que vem antes, o que significa que a verdade é um conteúdo oriundo da mente do ser humano (racionalismo); e teoria a posteriori, a partir do que vem depois, o que equivale dizer que a verdade é um conteúdo oriundo das reflexões desenvolvidas a partir das experiências sensoriais dos homens (empirismo) (McGrath, 2005, p. 276). John Tillotson (citado por González, 2011, p. 257) fornece o contexto histórico-religioso em que se encontrava o cristianismo na era do racionalismo: Ainda que uma religião seja muito razoável em si mesma, não basta para provar que vem de Deus [...] porque poderia ser o produto da razão humana [...] se sua doutrina for absurda, indigna de Deus e 11 contrária ao que nossa natureza nos diz acerca da Divindade, por muitos milagres que produz não há de ser crida. Um dos aspectos geradores desse sentimento de desânimo diante das lideranças oficiais e do rumo dogmático da religião cristã era oriundo dos acontecimentos ocorridos após os movimentos de reforma da Igreja, entre os quais a Guerra dos Trinta Anos, que provocou graves batalhas na Europa. Foi uma situação em que o “espírito do racionalismo” se instalou na alma dos europeus, em busca de obter um conhecimento mais adequado e coerente para suas indagações acerca de Deus e do destino da humanidade (González, 2011, p. 257). TEMA 5 – A TEORIA DO CONHECIMENTO E O MOVIMENTO DO ILUMINISMO 5.1 A teoria do conhecimento A teoria do conhecimento ou epistemologia é um ramo da filosofia que desenvolve o estudo da natureza e dos limites do conhecimento. Seu objetivo é compreender a maneira como o ser humano é capaz de adquirir conhecimento. Vimos como o renascimento valorizou as capacidades humanas, especialmente a capacidade de raciocínio e reflexões que o homem poderia desenvolver a partir de si mesmo. Logo que o ser humano assumiu as práticas dessa nova cosmovisão, que se tornou um dos fundamentos da transição da Idade Média para a Moderna, igualmente ocorreu uma grande mudança no antigo paradigma que situava a Igreja no centro das vivências culturais ocidentais. Os filósofos racionalistas, como Francis Bacon, Thomas Hobbes e René Descartes, defendiam a ideia de que o raciocínio e a própria matemática seriam os melhores métodos para se alcançar o conhecimento. Por sua vez, John Locke desenvolvia na Inglaterra a visão empirista que valorava a experiência dos sentidos. Todavia, o fato é que ambos os movimentos mantinham um princípio comum: a centralidade do ser humano como o agente responsável por refletir acerca do conhecimento com base em suas faculdades intelectuais. Para González (2011, p. 319), a observação da natureza e as reflexões puramente racionais se integravam na busca e demonstração do que era possível conhecer 12 da realidade, pois a ordem da natureza se ajustava à lógica da razão humana, segundo os princípios do racionalismo. No contexto religioso, o cristianismo também desenvolveu um movimento racionalista de pensamento de suasdoutrinas, denominado deísmo. Seus representantes se dedicavam a explicar os fundamentos e princípios universais de uma religião cristã natural, com embasamentos originados dos instintos dos homens, e não mais das revelações bíblicas. Uma das consequências foi a de que os aspectos e princípios de maior valor na religião cristã deveriam ser os coincidentes com os instintos inatos dos homens. Um ponto a ser destacado é que os movimentos racionalista e empirista relacionados à teoria do conhecimento continuavam sustentando a importância da pessoa do Deus cristão em suas proposições filosóficas, embora a autoridade da Igreja e da Bíblia já estivessem sendo questionadas por seus intelectuais. O passo seguinte no desenvolvimento do racionalismo e da própria teoria do conhecimento foram as reflexões de David Hume e Immanuel Kant, que surgiram para questionar a própria “razão”, pois levantavam dúvidas em relação ao real conhecimento que o homem era capaz de adquirir com base nas argumentações filosóficas (González, 2011, p. 325). O filósofo escocês David Hume (1711-1776) afirmou que as pessoas estavam acostumadas a utilizar certas experiências oriundas do “hábito” humano para confirmar algumas de suas crenças, pressupondo que haviam alcançado esse conhecimento a partir de uma experiência dos sentidos diante da realidade. Isso não era verdade, pois Hume dizia que as pessoas estavam acostumadas a ver o sol nascer todas as manhãs, por isso adquiriam o hábito matinal de entender que o sol iria nascer na manhã seguinte. Mas esse fato não era algo já comprovado ou comprovável, baseado somente no hábito acerca do que havia ocorrido antes. Immanuel Kant (1724-1804) apresentou a teoria do idealismo, que afirmava que tanto a razão quanto a experiência eram necessárias para compreender o mundo, haja vista que o racionalismo contribuía com a “razão” que capacita o homem a compreender algo, ao passo que o empirismo fornecia o conhecimento que somente pode ser alcançado pela experiência. Essa argumentação relacionou a “sensibilidade” de John Locke com o “entendimento” de Descartes, fazendo com que Kant se tornasse o filósofo que combinou esses dois movimentos na história do conhecimento (Fortino, 2011, p. 13 171). É importante destacar que as dúvidas levantadas por Kant acerca da condição de o homem adquirir verdades absolutas pelo racionalismo fizeram surgir questões acerca da complexidade e dos limites da teoria do conhecimento. Ao mesmo tempo que não negava a realidade da pessoa de Deus, o filósofo afirmava que a razão também não era capaz de reconhecer e afirmar a existência do Ser divino, no entanto havia uma “razão prática” da vida moral que Kant relacionou a Deus. Para o filósofo, os homens deveriam praticar o ato mais correto para cada situação da vida a fim de que tal atitude se tornasse um padrão para todos; o Juiz dessa ação moral que surge na alma do homem é a pessoa de Deus. Vamos observar que até esse momento da história as reflexões filosóficas e o fortalecimento da razão humana não haviam trazido questionamentos acerca da existência de Deus, uma perspectiva acerca da religião que foi diferente a partir do movimento do Iluminismo. 5.2 O Iluminismo Começamos este tópico com as palavras de Denis Diderot (citado por Werner, 2017, p. 194): “O ceticismo é o primeiro passo em direção à verdade”. O Iluminismo foi um movimento cultural amplo da Idade Moderna ocorrido entre os anos 1720 e 1780, que defendia que a razão deveria ser utilizada para que a humanidade conseguisse superar as concepções de mundo medievais que mantinham a sociedade submissa a paradigmas do passado (McGrath, 2005, p. 125). Um marco do movimento ocorreu quando o filósofo francês Denis Diderot publicou em 1751 o primeiro dos 17 volumes da obra Enciclopédia, dividida em três grandes temas: os assuntos históricos; a razão e a filosofia; e a poesia e a imaginação. A orientação era de que todos eles deveriam utilizar a razão e a lógica a fim de compreender e expor tanto o mundo natural quanto a realidade da existência humana, sem se limitar ao pensamento oriundo da autoridade do Estado ou da Igreja. Todos esses textos deveriam se preocupar em estabelecer parâmetros com bases somente racionais para a organização da sociedade, em contraponto aos valores dogmáticos católicos que haviam definido as instituições sociais dos últimos séculos (Werner, 2017, p. 192). Nesse contexto, o Iluminismo acabou apoiando o desenvolvimento científico nas áreas da biologia e botânica e em 14 setores da tecnologia, vindo a influenciar as universidades e o meio literário da época. No contexto religioso, destacamos a seguinte declaração de Benjamim Franklin, líder político da Revolução Americana, nascido em 1706: “Quanto a Jesus de Nazaré [...], eu tenho algumas dúvidas a respeito de sua divindade [...] Mas não vejo problemas em que nela se creia, se tal crença trouxer a boa consequência [...] de fazer suas doutrinas mais respeitadas e observadas”. No pensamento de Shelley (2004, p. 347), essas palavras revelam e apregoam os princípios e valores da chamada Idade da Razão (de 1648 a 1789) na qual se insere o movimento do Iluminismo. O fato é que, conforme já anotamos anteriormente, as disputas teológicas e guerras entre povos travadas a partir da divisão da Igreja cristã do século 16 fizeram os homens avaliarem questões acerca de qual seria o valor dos dogmas e do impulso religioso no que refere a melhorar o ambiente político e social da vida das pessoas. Tal reflexão esteve sempre presente nas bases da civilização ocidental, posto que esta foi formada tanto por valores judaico-cristãos, como igualmente pelo pensamento filosófico greco-romano, que agora se desenvolvia em novas perspectivas, vindo a tratar do tema da tolerância religiosa. O Iluminismo também questionou os próprios fundamentos racionais do cristianismo, vindo a utilizar conceitos e reflexões oriundos do cartesianismo e deísmo nesse propósito. Tal fato acabou forçando a Igreja a buscar um sistema de apresentação de doutrinas embasado somente em pensamentos racionais e coerentes à razão para se fortalecer. Foi uma situação em que qualquer doutrina cristã que não fosse completamente explicitada nos limites da razão veio a ser fortemente criticada e rejeitada pelo padrão analítico iluminista (2005, p. 127). Até essa época da história, a teologia cristã integrava em seu sistema de pensamento os conceitos oriundos da revelação natural e da revelação sobrenatural (Bíblia), e havia um respeito aos limites e às funções de cada um desses tipos de conhecimento: de um lado, a revelação natural de Deus, que seria encontrada na Criação; e de outro, a revelação sobrenatural, disponível nas Escrituras. Porém, a partir do século 18, as novas lideranças intelectuais passaram a criticar gravemente os elementos bíblicos históricos e miraculosos do cristianismo, oriundos da Bíblia. Foi nesse contexto que surgiu na Europa do século 19 o movimento teológico cristão do protestantismo liberal, que buscava 15 responder às questões levantadas pelo Iluminismo, ao mesmo tempo que era bastante influenciado pelo intelectualismo racionalista. NA PRÁTICA O racionalismo e o empirismo propuseram novos paradigmas de pensamento e oportunizaram o desenvolvimento das conquistas científicas que, no século 18, promoveram os ideais de que as leis naturais relacionadas aos seres humanos deveriam se submeter igualmente aos critérios da razão. Isso também fez surgir o pensamento de que a religião deveria existir em separado ao Estado e de que a liberdade de expressão precisaria se tornar um valor social. O Iluminismo promoveu transformações sociais ao se posicionar contra os ideais da monarquia francesa e se tornou um movimento progressista mediante o qual os intelectuais entendiam que seriapossível estabelecer normas gerais de direitos civis para todos os homens (Werner, 2017, p. 194). Nesse contexto, observe a maneira como os fundamentos racionais da filosofia greco- romana vieram a influenciar e definir os movimentos da civilização ocidental desde o final da Idade Média para se consolidar na Idade Moderna. FINALIZANDO A renascença (ou renascimento) foi um movimento de renovação cultural que surgiu no século 14 na Europa e que influenciou a cosmovisão ocidental da Idade Moderna a partir de elementos clássicos greco-romanos. A maior mudança ocasionada foi colocar o ser humano como personagem central da existência. As descobertas de Cristovão Colombo estabeleceram uma relação comercial e social duradoura entre a Europa e a América, abrindo espaço para o incremento das missões cristãs, que enviavam sacerdotes juntamente com os colonizadores a fim de doutrinar os habitantes dos novos territórios descobertos. As proposições racionalistas que entendiam que uma lógica compreensão da realidade traria o conhecimento definitivo para a humanidade acerca da existência foram colocadas em dúvida pelo filósofo Immanuel Kant. Ele se dedicou a levantar dados acerca da complexidade e dos limites do alcance da teoria do conhecimento. 16 Ao mesmo tempo, enquanto os intelectuais e filósofos da modernidade envidavam esforços para explicar racionalmente a existência de Deus, o movimento cultural do Iluminismo do século 18 atuava em outra perspectiva, buscando confrontar a autoridade da Igreja e da monarquia, pois desenvolvia um projeto intelectual com vistas a superar as concepções de mundo medievais, vindo a formatar os valores do pensamento moderno da humanidade. 17 REFERÊNCIAS CURTIS, A. K.; LANG, J. S.; PETERSEN, R. Os 100 acontecimentos mais importantes da história do cristianismo. Tradução de Emirson Justino. São Paulo: Editora Vida, 2003. CHADWICK, H.; EVANS, G. R. Igreja Cristã. Barcelona: Ediciones Folio, 2007. FORTINO, C. O livro da filosofia. Tradução de Douglas Kim. São Paulo: Globo Livros, 2011. _____. (Ed.). O livro das religiões. Tradução de Bruno Alexander. São Paulo: Globo Livros, 2014. GONZÁLEZ, J. L. História ilustrada do cristianismo: a era dos mártires até a era dos sonhos frustrados. 2. ed. rev. Tradução de Itamir Neves de Souza e outros. São Paulo: Vida Nova, 2011a. _____. História ilustrada do cristianismo: a era dos reformadores até a era inconclusa. 2. ed. rev. Tradução de Itamir Neves de Souza e outros. São Paulo: Vida Nova, 2011b. GRECO, G. (Coord.). História das religiões – crenças e práticas religiosas do século XII aos nossos dias. Barcelona: Ediciones Folio, 2008a. ______. História das religiões – origem e desenvolvimento das religiões. Barcelona: Ediciones Folio, 2008b. LOCKE, J. Ensaio acerca do entendimento humano. São Paulo: Nova Cultural, 1999. MCGRATH, A. E. Teologia sistemática, histórica e filosófica. Uma introdução à teologia cristã. Tradução de Marisa K. A. Siqueira Lopes. São Paulo: Sheed Publicações, 2005. _____. Creio. Um estudo sobre as verdades essenciais da fé cristã no Credo Apostólico. Tradução de James Reis. São Paulo: Vida Nova, 2013. SHELLEY, B. L. História do cristianismo. Tradução de Vivian Nunes do Amaral. São Paulo: Shedd Publicações, 2004. WERNER, L. O livro da história. 2017. CONVERSA INICIAL O renascimento italiano promoveu uma mudança na cosmovisão europeia que oportunizou e influenciou diversas transformações no Ocidente nos séculos seguintes, entre as quais as reformas da Igreja cristã a partir de 1517, com a Reforma Protestante e o mo... Outro importante movimento que iremos anotar foi o surgimento do Iluminismo no século 18 e a posterior consolidação de suas ideias que vieram a consolidar os valores da cultura moderna. O cristianismo foi uma religião bastante afetada pelas transforma... TEMA 1 – O RENASCIMENTO E O HUMANISMO 1.1 O renascimento 1.2 O humanismo Nesse mesmo contexto, destacamos o ano de 1456 como aquele em que foi produzida a primeira bíblia impressa da história. Durante a Idade Média, as Escrituras cristãs estavam disponíveis apenas aos monges e copistas, além de existirem somente cópias na ... TEMA 2 – A REFORMA PROTESTANTE E A CONTRARREFORMA CATÓLICA 2.1 A Reforma Protestante No contexto das reformas religiosas do século 16, destacamos a chamada Reforma Inglesa, cujo início se deu a partir de um confronto político entre o monarca inglês Henrique VIII e o Papa Clemente VII, pois este não permitia o divórcio ao rei para que ... TEMA 3 – AS EXPLORAÇÕES AO NOVO MUNDO E A EXPANSÃO DO CRISTIANISMO TEMA 4 – O RACIONALISMO E O EMPIRISMO 4.2 O empirismo TEMA 5 – A TEORIA DO CONHECIMENTO E O MOVIMENTO DO ILUMINISMO 5.1 A teoria do conhecimento Ao mesmo tempo que não negava a realidade da pessoa de Deus, o filósofo afirmava que a razão também não era capaz de reconhecer e afirmar a existência do Ser divino, no entanto havia uma “razão prática” da vida moral que Kant relacionou a Deus. Para o... Vamos observar que até esse momento da história as reflexões filosóficas e o fortalecimento da razão humana não haviam trazido questionamentos acerca da existência de Deus, uma perspectiva acerca da religião que foi diferente a partir do movimento do ... 5.2 O Iluminismo NA PRÁTICA O racionalismo e o empirismo propuseram novos paradigmas de pensamento e oportunizaram o desenvolvimento das conquistas científicas que, no século 18, promoveram os ideais de que as leis naturais relacionadas aos seres humanos deveriam se submeter igu... O Iluminismo promoveu transformações sociais ao se posicionar contra os ideais da monarquia francesa e se tornou um movimento progressista mediante o qual os intelectuais entendiam que seria possível estabelecer normas gerais de direitos civis para to... FINALIZANDO Ao mesmo tempo, enquanto os intelectuais e filósofos da modernidade envidavam esforços para explicar racionalmente a existência de Deus, o movimento cultural do Iluminismo do século 18 atuava em outra perspectiva, buscando confrontar a autoridade da I... REFERÊNCIAS WERNER, L. O livro da história. 2017.
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