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NATÁLIA GIACOMIN LIMA - MEDICINA UFES 101 1 1. INTRODUÇÃO • A febre Reumática (FR) é uma doença inflamatória multissistêmica, com sequela tardia não supurativa desencadeada pela infecção da orofaringe pelo Estreptococo Beta-Hemolítico do Grupo A (EBHGA) • É caracterizada por acometer o coração, as articulações, o SNC, tecido subcutâneo e a pele • Ocorre infecção estreptocócica da orofaringe e a RI provocada por ela é responsável por mediar lesões no tecido conjuntivo através de reação cruzada de reconhecimento antigênico • O paciente precisa ter tido contato com os antígenos bacterianos para que o organismo os reconheça e a doença possa se estabelecer – por isso a FR ocorre, em geral, após os três anos de idade • O estreptococo beta-hemolitico do grupo A (S. pyogenes) é responsável por faringotonsilites e infecções de pele. Entre suas sequelas imunes encontram-se a FR e a glomerulonefrite pós- estreptocócica 2. FISIOPATOLOGIA • Nem todas as infecções por EBHGAs causam FR, nem todas as cepas desse grupo de bactérias são reumatogênicas, e nem todos os indivíduos são susceptíveis • As cepas que causam piodermites e infecções nos tecidos moles não causam faringite nem FR, mas podem causar glomerulonefrite aguda • PATOGÊNESE: Parece ocorrer por reação cruzada – mimetismo molecular → similaridade entre sequencias antigênicas do ser humano e do EBHGA levaria a produção de anticorpos induzida pela infecção estreptocócica e seria direcionada contra antígenos bacterianos mas que agiriam contra estruturas do hospedeiro, desencadeando lesão tecidual Pacientes com FR – altos níveis de anticorpos contra a proteína M, que pode atuar como um superantígeno, induzindo RI excessiva e autoimunidade Proteína M – impede a fagocitose e a ação do complemento e ajuda a fixar a bactéria na célula epitelial da faringe 2-3% das crianças com infecção estreptocócica desenvolverão FR – predisposição genética 3. EPIDEMIOLOGIA DA FR • Afeta indivíduos de 5-15 anos • Qualquer raça e qualquer parte do mundo • Adultos – ataques iniciais acontecem na 2ª-3ª década de vida • Incidência variável – região geográfica e características socioeconômicas da população: Baixos níveis de higiene, alta densidade demográfica e difícil acesso ao sistema de saúde propiciam o seu desenvolvimento 2011 – Brasil – 0,2% prevalência de doença reumática valvar → SUBNOTIFICAÇÃO (dados epidemiológicos são gerados por grandes cidades com prevalência menor do que nas áreas mais carentes do país Responsável por ~60% de todas as doenças cardiovasculares em crianças e adultos jovens 4. MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS DA FR • Quadro clinico se inicia após 2-4 semanas de um quadro de faringite estreptocócica – entretanto 1/3 dos pacientes não se lembra da faringite • A media de idade de acometimento é de 7 anos (faixa dos 5-15 anos) • Quase sempre o surto reumático será uma síndrome febril prolongada – DD: com sd. Infecciosas • OBS: não existe exame laboratorial, sinal ou sintoma característico da FR no surto agudo. Diagnostico baseia-se no reconhecimento e na combinação de alguns achados clínicos e laboratoriais • A identificação de sinais tardios no ECO extremamente típicos confirma o diagnostico retrospectivamente • Os critérios de Jones são ferramentas de auxílio no diagnóstico da doença, pois são razoavelmente sucintos e caracterizam as manifestações clinicas mais importantes NATÁLIA GIACOMIN LIMA - MEDICINA UFES 101 2 Juntas cardite Nódulos subcutâneos Eritema marginado Syderhan (coreia) • Para diagnostico de 1º surto de FR: 2 critérios maiores ou 1 maior e 2 menores – com evidencia de infecção estreptocócica anterior • Para diagnostico de FR recorrente: 2 critérios maiores OU 1 maior e 2 menores OU 3 menores, com evidencia de infecção estreptocócica anterior • #OBS: nenhum dos critérios de Jones é especifico para FR. Contudo a presença de coreia e/ ou cardite (valvulite mitral) permite, habitualmente, maior segurança diagnostica. Por ocorrer mais tardiamente na evolução da doença, quando os outros achados já passaram, e por ser mais especifica, a coréia é o único sinal maior que isoladamente permite diagnostico de FR 4.1 MANIFESTAÇÕES ARTICULARES Ocorre em 75% dos casos de FR – sintoma mais comum Mais frequente e mais grave em adultos jovens (100%) e adolescentes (82%) portadores da doença do que em crianças (66%) O acometimento articular é precoce – costuma ser o 1º achado, embora a cardite assintomática possa precede-lo Quadro clássico: Poliartrite de grandes articulações: assimétrica / intensa / muito dolorosa / migratória e fugaz → Boa resposta a AINES → NÃO EVOLUI COM SEQUELAS NATÁLIA GIACOMIN LIMA - MEDICINA UFES 101 3 ▪ A artrite manifesta-se inicialmente em uma articulação e, quando está regredindo, outra articulação é acometida cerca de 2-3 dias depois ▪ HF de faringoamigdalite (~1 mês) ▪ O surto de artrite tem resolução espontânea – dura de 2-6 semanas # OBS: “Artrite crônica pode ser FR??” NÃO (pois na FR é autolimitada) ▪ Articulações + acometidas: joelhos e tornozelos → punhos e cotovelos – excepcionalmente:. Pequenas articulações de mãos e pés ▪ RX normais / exame físico articular normal (desproporção entre queixa e achados no exame físico → dor é o único achado de destaque, ausência dos demais sinais fogísticos ou acometimento da cartilagem) “Criança poliartrite de grandes articulações, migratória, exame físico sem sinais de acometimento articular (derrame articular, rubor, calor,...)” TT: Salicilatos ou AINES → Na FR a artrite é rapidamente responsiva a essas medicações (de forma que a falta de resposta ao uso desses agentes torna o diagnostico de FR improvável) 4.2 MANIFESTAÇÕES CARDÍACAS Incidência de doença cardíaca na FR – 50-60% dos pacientes Pode ser assintomática Frequência diminui com a idade (ao contrario do quadro articular) → 90% em crianças pequenas e 15% adultos jovens Caracteriza-se por PANCARDITE, em que o endocárdio (mais comumente), miocárdio e pericárdio (menos comumente) estão envolvidos Presença de cardite – importante no prognostico de curto e longo prazo FASE AGUDA: ▪ O envolvimento do miocárdio pode provocar cardiomegalia, taquicardia, distúrbios de condução e insuficiência cardíaca congestiva ▪ Nódulos de Aschoff (anatomia patológica da miocardite) – são patognomônicos da doença ▪ Pericardite – pode manifestar-se como desconforto ou dor torácica, derrame ou atrito pericárdico e não costuma evoluir com pericardite constrictiva ▪ Dano valvar agudo característico decorre do envolvimento do endocárdio provocando valvulite principalmente mitral e aórtica, com sopros novos de regurgitação, que podem provocar insuficiência cardíaca aguda → Anormalidades no ECG – bloqueios AV de vários graus, sendo o de 3º grau e bloqueio de ramo esquerdo raros na fase aguda ▪ RX: alteração radiográfica mais comum é a cardiomegalia ECO – sempre indicado tanto para diagnostico no momento do surto quanto para monitorização de sequelas tardias O envolvimento valvar persistente é a principal causa de morbimortalidade cardíaca associada a FR, uma vez que é a única forma sequelar da doença. Ocorre 10-20 anos após o surto inicial, sendo a principal causa de doença valvular adquirida entre jovens no Brasil A válvula MITRAL é a mais acometida – sendo na fase aguda a insuficiência mitral predominante e posteriormente, nas formas crônicas, encontramos a ESTENOSE MITRAL (achado clássico) O segundo envolvimento mais comum é o MITRO-AÓRTICO e em menor frequencia o aórtico isolado (em geral insuficiência). RARAMENTE tricúspide e pulmonar são envolvidas • Esse acometimento valvar por menor que seja por si, leva a maior susceptibilidadeà endocardite infecciosa NATÁLIA GIACOMIN LIMA - MEDICINA UFES 101 4 • Três sopros são característicos do primeiro episódio da doença e podem não representar uma disfunção valvar definitiva: Sopro sistólico de regurgitação mitral Sopro de Carey Coombs (sopro diastólico em ruflar sem estalido de abertura) Sopro diastólico de regurgitação aórtica 4.3 MANIFESTAÇÕES NEUROLÓGICAS NA FR COREIA DE SYDENHAM (“COREIA MENOR”) ▪ Manifesta-se por movimentos abruptos, involuntários, e desordenados nos membros, face e língua ▪ A coreia 2ª à FR aparece isolada (não é acompanhada por outras manifestações clínicas) em criança/ adolescente previamente hígido – DD com doenças (que acompanham outras manifestações junto a coreia): LES Encefalite viral ▪ Os movimentos geralmente são mais evidentes de um lado do corpo, e podem ser completamente unilaterais ▪ Desaparecem com o sono e pioram com o stress ▪ Ocorre em <10% dos pacientes – predomínio SF e aparece cerca de 6-8 semanas após infecção estreptocócica (pode ocorrer isoladamente e dar diagnostico de FR sem outros critérios) ▪ Tem duração de 1 semana a 2 anos ▪ Pode cursar com transtornos emocionais, choro, alterações psiquiátricas ▪ #OBS: Exame físico → exacerbação da coreia ao solicitar que a criança faça múltiplas tarefas ao mesmo tempo → OBS: Sinal de ordenha 4.4 MANIFESTAÇÕES TEGUMENTARES NA FR Nódulos subcutâneos ▪ Aparecem após as primeiras semanas da doença e associam-se a cardite ▪ São pequenos 1-2 cm, firmes, indolores ▪ Localizados mais comumente sobre proeminências ósseas, próximas a tendões, superfícies extensoras (cotovelos, joelhos, região occipital e dorso) ▪ Podem ser únicos ou múltiplos e se assemelham a nódulos reumatoides – DD → ao contrário dos nódulos reumatoides os nódulos da FR são autolimitados como todas as manifestações do surto reumático. Não costumam inflamar ou ulcerar (frequentemente descobertos pelo medico no exame físico) Eritema marginado ▪ Erupção de caráter evanescente, não pruriginoso, coloração rósea/ avermelhada → ASSINTOMÁTICO ▪ Acomete tronco e dorso, porção proximal dos membros, poupando face ▪ Estendem-se centrifugamente (região central de coloração normal, de limites bem delimitados) ▪ Lesões podem desaparecer em questões de horas – banhos quentes podem torna-las mais evidentes ▪ Usualmente é precoce e está associado à cardite 5. DIAGNÓSTICO DA FEBRE REUMÁTICA (FR) • É dado pelos critérios revisados de Jones – sendo os pacientes estratificados em grupos de acordo com considerações epidemiológicas de risco para adquirir a doença • Baixo risco: incidência de FR < 2/100.000 escolares (5-14 anos) por ano ou que tenha prevalência de cardite reumática crônica em qualquer grupo etário menor ou igual a 1/1.000 ano NATÁLIA GIACOMIN LIMA - MEDICINA UFES 101 5 • Alterações nos critérios de recidiva da doença → preenchimento de 2 criterios maiores OU 1 de maior e 2 menores (como no surto inicial), OU de 3 criterios menores 6. ACHADOS LABORATORIAIS NA FR • Não existe exame especifico para FR • Provas de atividade inflamatória/ provas de fase aguda – VHS/ PCR costumam estar aumentadas (alteração – critério menor para diagnostico) • Infecção recente por estreptococo Culturas de orofaringe (swab) – geralmente negativas quando a FR aparece mas podem ajudar a isolar o microrganismo Anticorpos ASLO e ANTI-DNAse B → mais utilizado é o ASLO facilidade de obtenção e homogenicidade dos resultados (títulos elevados em 80% pacientes em quadro inicial) • Outros exames (que podem auxiliar no diagnostico): RX tórax seriadas – curso da cardite – variações de tamanho (aumento da área cardíaca) ECG – alargamento do intervalo PR (critério menor) ou do QT // alterações no segmento ST (derrame pericárdico) *Alargamento do PR (PR > 200ms) – irritação do nodo AV (inflamação) → atraso na condução ECO – SOLICITAR SEMPRE!! – avaliar presença de cardite e se há sequela valvar → modificação da profilaxia 2ª 7. TRATAMENTO DA FEBRE REUMÁTICA 7.1 PROFILAXIA PRIMÁRIA DA FR Medida mais eficaz para o TT da FR é prevenir sua ocorrência → terapia adequada e precoce da faringotonsilite estreptocócica Uma vez que os sinais clínicos apontem para faringotonsilite estreptocócica possível → encaminhar para swab de orofaringe para identificação do agente → caso a pesquisa seja negativa mas a suspeita for alta, individuo deve ser submetido a CULTURA de orofaringe IDENTIFICADA A INFECÇÃO POR ESTREPTOCOCO → PROFILAXIA 1ª → mandatório ATB – principal garantia de que o hospedeiro não gere RI ▪ BENZILPENICILINA (penicilina G benzatina) = BENZETACIL → dose única :. # OBS: pacientes alérgicos a penicilina utilizar macrolideos ou clindamicina 7.2 ESTABELECIDO DIAGNOSTICO DE FR (PROFILAXIA SECUNDÁRIA) Estabelecido diagnostico de FR (indivíduo já tem RI consolidada contra o estreptococo) terapêutica envolve 3 fases: ERRADICAÇÃO DO FOCO / TT SINTOMÁTICO / PROFILAXIA 2ª (PREVENIR RECORRENCIA) NATÁLIA GIACOMIN LIMA - MEDICINA UFES 101 6 a) ERRADICAÇÃO DO FOCO: Retirar substratos imunogênicos da circulação → 1 dose de BENZILPENICILINA (caso alérgico utilizar alternativas propostas na prof. 1ª) Contactantes de pcte com FR devem ser submetidos a cultura de orofaringe e tratados quando + → dificuldade da realização da cultura (profilaxia 1ª a todos os contactantes domiciliares – especialmente escolares e adolescentes) b) TT SINTOMÁTICO: b.1) AINES – TT febre e artrite – desaparecimento da poliartrite migratória em 24-48h – sintomáticos não interferem no curso da FR (usados de 1-6 semanas) Quadros mal caracterizados de artrite – analgésicos, paracetamol, medidas locais (compressa gelo/calor) b.2) CARDITE – controle sintomático ✓ Diureticos, digitálicos, retenção hídrica e sódica poderão ser necessários em casos de IC ✓ Diretrizes brasileiras – terapia com corticoide para casos de cardite moderada a grave baseada em estudos observacionais ✓ Corticosteroide – PREDNISONA – inicialmente em dose alta 1-2mg/kg/d e fracionada (2 tomadas por dia) por aproximadamente 2 a 4 semanas (tempo para melhora dos sintomas e tendência de normalização das provas de atividade inflamatória) → após esse período passa-se para dose única pela manhã e inicia-se redução lenta ate retirada completa da droga em 12 semanas → #OBS:. Se o paciente fizer uso de corticosteoide o uso do AINE não é necessário → Pulsoterapia com METILPREDNISOLONA na dose de 30mg/kg, por 3 dias - TT de cardites graves → S/ recomendação de repouso como terapia da FR → retorno as atividades assim que possível b.3) COREIA ✓ Pctes devem ser mantidos em ambientes tranquilos sem muitos estímulos externos ✓ Tranquilizantes e sedativos poderão ser utilizados de forma isolada ou em associação ✓ HALOPERIDOL – melhor opção terapêutica em casos graves (melhora clinica após 5- 6 dias) – desaparecimento dos sinais em 30-40 dias – iniciar com doses baixas 0,5- 1mg/dia → cautela na administração – doses > 5mg/d (monitorização hospitalar) ✓ OBS: ÁCIDO VALPROICO OU CARBAMAZEPINA – alternativas ao haloperidol – maior tempo de resposta c) PROFILAXIA 2ª Independentemente da gravidade do surto inicial portadores de FR tem risco elevado – 20- 50% de recorrência da doença após novas infecções estreptocócicas da orofaringe Novos surtos – ou simplesmente o estado inflamatório mínimo que a exposição aos antígenos causa – poderão agravar lesões cardíacas preexistentes ou propiciar seu surgimento, por isso A PROFILAXIA 2ª É OBRIGATÓRIA PENICILINA G BENZATINA (BENZETACIL) proteção mais efetiva contra faringite estreptocócica e contra recorrências de FR Uso de 1.200.000 UI de penicilina B – IM a cada 4 semanas AMERICAN HEART ASSOCIATION - 2009 ✓ Profilaxia ate os 21 anos de idadeou ate 5 anos após ultimo surto (o que for mais longo) ✓ Profilaxia ate os 21 anos de idade ou 10 anos após o ultimo surto (o mais longo) para pacientes que tiveram cardite mas não tiveram sequela valvar ✓ Profilaxia ate os 40 anos ou 10 anos após o ultimo surto (o que for mais longo) para pacientes com sequela valvar NATÁLIA GIACOMIN LIMA - MEDICINA UFES 101 7 SOCIEDADE BRASILEIRA DE CARDIOLOGIA 8. OBSERVAÇÕES IMPORTANTES • PROFILAXIA ENDOCARDITE BACTERIANA – feita após procedimentos invasivos – sociedade brasileira recomenda profilaxia para todos os pacientes reumáticos com valvulopatia submetidos a procedimentos dentários com AMOXICILINA 2g (VO – 1 h antes do procedimento) Procedimentos via genitourinária/ gastrointestinal – profilaxia com AMPICILINA 2g IV + GENTAMICINA IV (1,5 mg/kg - 30 min antes do procedimento) • ALERGIA A PENICILINA 3,2% dos pacientes tratados com penicilina Reações anafiláticas graves – 0,04-0,2% - sendo reações potencialmente fatais 0,001% Na ausência de reações após 1ª aplicação de penicilina benzatina a presença de reações após segunda dose é extremamente baixa 1ª aplicação deve ser realizada em local com recursos para atendimento e manejo de possíveis reações alérgicas OBS: testes cutâneos de alergia são inadequados. – A utilização previa de penicilina pelo paciente e ausência de alergia em familiares são importantes na caracterização da possível alergia
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