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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE BIANCA DE SOUZA GUALBERTO SILVA ESTIGMAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS: NARUTO UZUMAKI, DE FRACASSADO A HERÓI Campos dos Goytacazes — RJ 2019 Introdução “(...) e também porque, onde não encontrei o que precisava, tive que obtê-lo à força de artifício, de falsificá-lo e criá-lo poeticamente para mim (...)” é uma das divagações do filósofo Nietzsche em seu livro Humano, demasiado humano ao refletir sobre não querer ser solitário, nem o único a perceber o mundo como ele percebia. A passagem pode ser relacionada com a trajetória do personagem Naruto quando este, excluído socialmente e carente de validação externa na infância, anseia por ela desesperadamente através de seus objetivos de vida iniciais. Ao finalmente consegui-la e se tornar bem visto aos olhos daqueles ao seu redor, no entanto, não se dá conta que a validação não é direcionada a ele, mas sim a uma imagem, à representação social dele, como Moscovici (1978) argumentaria. A seguir, uma análise de como seus objetivos se relacionam com sua trajetória, seu relacionamento com a sociedade e com seu grupo social. Análise de personagem Naruto é um mangá cuja trama se inicia após a invasão da Raposa Demônio de Nove Caudas à Aldeia da Folha, evento que acarretou na destruição de parte da aldeia e na morte de muitos shinobi . Dentre estes shinobi, está o Quarto Hokage, líder da 1 aldeia que, antes de morrer, para derrotar a Nove Caudas, selou seu espírito no corpo do recém-nascido Naruto, protagonista que dá nome à história. A destruição que a Raposa causou marca Naruto como um perigo a ser temido pelos aldeões, e, por isso, ele é rejeitado, excluído e oprimido por aqueles à sua volta. Tendo crescido sem ter o acolhimento e apoio necessários a uma criança, para fazer com que os aldeões da Folha o respeitem e reconheçam sua existência, Naruto dedica sua carreira shinobi para se tornar o mais forte de sua aldeia e, eventualmente, o próximo Hokage. Diferente do arquétipo comum de herói, Naruto é um protagonista rejeitado por todos, cujo traço que o diferencia não é o que o torna especial, mas sim o que o deixa à margem da sociedade. O sociólogo Erving Goffman (1981) conceitua estigma como a 1 Ninja; mercenário especializado em artes de guerra. característica que faz com que um indivíduo não esteja de acordo com as expectativas normativas. O estigmatizado não é completamente bem recebido pela sociedade em que vive, e precisa constantemente se adaptar para viver nela. A partir da análise das biografias de um deficiente físico, um cego e um ex-criminoso, Goffman encontra pontos em comum sobre como estes indivíduos se relacionam com os outros à sua volta (os “normais”, como ele classifica), com seus semelhantes e com os próprios estigmas. Analisando a narrativa de Naruto, é possível fazer um paralelo direto dos escritos de Goffman com a história do personagem. Por exemplo, dois aspectos da personalidade de Naruto que movem a trama do mangá são a sua previamente mencionada busca pelo reconhecimento do outro e a sua empatia — a primeira é a forma com que, através do seu estigma, ele se relaciona com a sociedade em que vive, e a segunda, a forma como ele se relaciona com seu semelhantes. Acerca dos paralelos Considerando as circunstâncias em que o personagem cresceu, as de uma criança rejeitada e menosprezada pelos aldeões, é possível concluir que, ao querer se tornar Hokage, o shinobi mais forte da aldeia, Naruto tem o único objetivo de ir contra as expectativas que aqueles à sua volta têm dele. Assim, seu sonho torna-se uma faceta para sua necessidade de uma validação externa que ele nunca recebeu, mas por que anseia. Toda a dedicação que Naruto investe em seu sonho pode ser analisado como o que Goffman classifica como um indivíduo que tenta compensar pelo seu estigma ao tentar realizar o que espera-se ser impossível dele: O indivíduo estigmatizado pode, também, tentar corrigir a sua condição de maneira indireta, dedicando um grande esforço individual ao domínio de áreas de atividades consideradas, geralmente, como fechadas, por motivos físicos e circunstanciais, a pessoas com o seu defeito (GOFFMAN, 1981, p. 12). Não obstante, Goffman também analisa que o estigmatizado pode tirar lições de vida valiosas das dificuldades por que passou, “(...) especialmente devido à crença de que o sofrimento muito pode ensinar a uma pessoa sobre a vida e sobre as outras pessoas” (1981, p. 13). Como uma forma de se consolar, o estigmatizado tenta enxergar o aspectos positivos das suas limitações: aprendizados que ele nunca teria conseguido se não fosse pelo seu estigma e percepções de mundo que uma pessoa “normal” não poderia compreender. Em justaposição, embora Naruto nunca tenha enxergado as dificuldades por que passou por um viés positivo, sua influência no modo dele de interagir com outros personagens da trama é inegável, especialmente com os antagonistas. Personagens com o mesmo histórico que o de Naruto — crianças que encontraram adversidades extremas muito cedo e, na juventude, sofrem as consequências delas — são recorrentes no mangá. Muitos desses personagens são introduzidos como antagonistas a serem enfrentados, pessoas com as quais Naruto se identifica em algum grau, mas com cujas visões de mundo com ele discorda, por considerá-las sombrias ou extremistas. Ao encarar tais personagens, Naruto tenta compreender suas circunstâncias, racionalizar com eles e fazê-los entender sua própria visão de mundo. Muitas vezes, Naruto promete que, quando se tornar Hokage, vai fazer o possível para mudar as circunstâncias para que outros não sofram da mesma forma que ele e seus semelhantes sofreram. Ele frequentemente enxerga a rejeição e solidão que seu estigma o fez passar como atributos que ele tem em comum com seus adversários — e, quando estes passam a enxergar o mesmo, começam a questionar a própria visão de mundo e a tentar entender a de Naruto, e muitas vezes deixam de ser antagonistas para se juntarem aos mocinhos da trama. No entanto, aqueles que passam a entender seu ponto de vista e desejam estar ao seu lado não se limitam aos antagonistas. Conforme Naruto segue sua jornada em busca de seu sonho e triunfa diante dos obstáculos, ele conquista a admiração dos mais diversos personagens, incluindo a dos aldeões que costumavam oprimi-lo. De fracassado a herói Segundo Moscovici (1978), representações sociais são formas de conhecimento prático que fazem com que os indivíduos de um grupo social, nas relações estabelecidas entre si, possam criar concepções acerca do desconhecido e, a partir destas, interagir com ele. Como uma forma de senso comum, as representações produzem formas de comportamentos, servem tanto para orientar as práticas existentes para com seus objetos quanto para justificá-las e se moldam conforme as relações entre os indivíduos domesmo grupo social vão se moldando. A representação que os aldeões manifestaram diante de Naruto durante seu desenvolvimento na infância foi o que o moldou. A visão estigmatizada exercida sobre ele, que atribuía a Naruto a destruição causada pela Nove Caudas, foi o que fez com que os aldeões o excluíssem, rejeitassem e menosprezassem, ao mesmo tempo que foi o que justificou tais atitudes. No entanto, o senso comum de quem Naruto representa se molda conforme os aldeões observam os efeitos das realizações do personagem. Ao passo que Naruto derrota mais antagonistas que, progressivamente, representam um mal cada vez maior à aldeia da Folha, a visão exercida sobre ele passa a ser a de um símbolo de heroísmo, liderança e progresso. É relevante ressaltar que representações sociais são interpretações do real. Sendo assim, a visão que se tem de um objeto não necessariamente corresponde à sua real essência. Isso não se aplica somente a quando a visão sobre Naruto era estigmatizada: mesmo quando a visão exercida sobre Naruto passa a ser positiva, a do herói da aldeia da Folha, ela também não necessariamente corresponde à sua verdadeira essência. Conforme Naruto se encaixa no papel de herói, seu novo desafio é, em vez de ir contra as expectativas que os aldeões têm dele, ir de acordo com elas. Paralelamente ao que Moscovici (1978) escreveu sobre representar um objeto não ser somente interpretá-lo, mas também “edificar uma doutrina que facilite a tarefa de decifrar, predizer ou antecipar os seus atos”, os aldeões têm a expectativa de que Naruto faça o que for necessário para manter a ordem da Folha. Assim, os desafios do personagem se tornam pesar seus conflitos internos e suas filosofias de vida contra as necessidades de sua aldeia e estabelecer suas prioridades. Isso é especialmente relevante quando Naruto reflete acerca de seu novo papel como herói e na magnitude deste. Ao fazê-lo, ele conclui que, apesar de ter notado a recente mudança de tratamento dos aldeões para consigo, ele ainda guarda rancor pela rejeição e falta de acolhimento que sofreu durante a infância. No entanto, ao refletir mais profundamente, decide acatar às representações sociais impostas a ele, reprimindo seus sentimentos negativos visando manter a ordem da aldeia. A compreensão da diferença Em seu ensaio, Goffman (1981) conclui que, para compreender o diferente, em vez de direcionarmos nossa atenção à diferença, precisamos fazê-lo ao comum. Uma das soluções que ele sugere acerca do problema da visão estigmatizada é dar menos relevância a expectativas normativas, para que cada os indivíduos possam conviver com suas diferenças. Uma outra solução, que o autor próprio concluiu como danosa para todos os integrantes da situação, seria que o estigmatizado se excluísse da sociedade. Apesar de já ter conquistado o reconhecimento daqueles ao seu redor, Naruto segue sonhando em se tornar Hokage algum dia — especialmente porque, agora, seu objetivo é conquistar um mundo em que todos os shinobi possam se compreender e em que seus semelhantes não tenham mais que sofrer pelos seus estigmas. O personagem é adepto à primeira solução proposta por Goffman, visando a um mundo em que estigmatizados não existam não porque serão excluídos da sociedade, mas sim porque o “normal” também não vai existir. Referências bibliográficas GOFFMAN, E. Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Rio de Janeiro: Editora LTC, 1981. MOSCOVICI, Serge. Psicanálise, sua imagem e seu público. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. KISHIMOTO, Masashi. NARUTO. Tóquio: Shueisha, n. 1, 2000. KISHIMOTO, Masashi. NARUTO. Tóquio: Shueisha, n. 53, 2010. KISHIMOTO, Masashi. NARUTO. Tóquio: Shueisha, n. 72, 2015. NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
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