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Nascimento e Saúde do Recém-Nascido Mayra Cleres de Souza, UFR VÍRUS DA IMUNODEFICIÊNCIA HUMANA (HIV) A epidemia pediátrica de aids está entrando em uma nova fase, com crianças infectadas por via vertical, passando pela adolescência e chegando à idade adulta. O sucesso na prevenção da transmissão vertical, principal via de aquisição do vírus da imunodeficiência humana (HIV) em pediatria, ocasionou a redução dos casos novos em crianças, especialmente em países desenvolvidos. Essa mudança de panorama ocorreu após o desenvolvimento de métodos para diagnóstico precoce da infecção e, principalmente, com o desenvolvimento de drogas antirretrovirais. O Programa Nacional, hoje Departamento de DST/aids e hepatites virais do Ministério da Saúde, adotou, desde 1996, a indicação da profilaxia da transmissão vertical para todas as gestantes soropositivas e recém-nascidos expostos ao HIV. Na faixa etária abaixo de 5 anos, considera-se a transmissão vertical responsável por praticamente 100% dos casos de aids. Até junho de 2014 foram notificados 757.042 casos de aids no Brasil, em todas as faixas etárias, sendo 15.564 casos em crianças menores de 5 anos e 4.897 entre 5 e 9 anos. Em relação à faixa etária pediátrica, o cuidado da gestante deve ser o ponto de partida nos esforços de controle da epidemia. Sem tratamento, as gestantes infectadas pelo HIV transmitem a infecção para seus filhos em 25 a 30% dos casos. EPIDEMIOLOGIA Desde 2002, houve um decréscimo importante dos casos de aids por transmissão vertical, mas nos últimos anos, verifica-se uma estabilização em patamares insatisfatórios, em torno de 500 casos/ano em menores de 5 anos de idade. A taxa de incidência de aids em menores de 5 anos de idade está estável no Brasil, no patamar médio de 3,5 por 100.000 habitantes, mas há uma grande variação por unidade da federação e por região do país. PROFILAXIA DA TRANSMISSÃO DO HIV VERTICAL As estratégias para profilaxia da transmissão vertical do HIV baseiam-se no fato de a transmissão do HIV na criança ocorrer, em sua maioria, no período periparto (75%), podendo acontecer também durante a gestação em 25% (sobretudo no 3º trimestre). Como parte importante das medidas profiláticas, indica-se o tratamento da gestante com terapia antirretroviral combinada durante a gestação e a utilização de zidovudina (AZT), endovenosa (EV), com início ao menos 4 horas antes do parto. Além disso, todos os recém- nascidos de mulheres infectadas pelo HIV devem receber AZT por Nascimento e Saúde do Recém-Nascido Mayra Cleres de Souza, UFR via oral, de preferência imediatamente após o nascimento (nas primeiras 4 horas de vida). Quando a criança não tiver condições de receber o medicamento por via oral ou sonda enteral, o AZT injetável pode ser utilizado. Nesse caso, não se associa a nevirapina, mesmo quando indicada, pois só está disponível em apresentação oral. No Brasil, adota-se a suspensão do aleitamento materno como medida profilática da transmissão vertical do HIV, uma vez que há um risco acrescido de 14 a 29% de ocorrer a transmissão via amamentação. QUADRO CLÍNICO Sem tratamento, o curso clínico da infecção pelo HIV é mais rápido na criança em relação ao adulto, em consequência da imaturidade imunológica. A infecção é, em geral, assintomática no período neonatal e o risco de progressão é inversamente correlacionado à idade da criança, ou seja, os mais jovens estão sob maior risco de progressão rápida. Aos 12 meses, aproximadamente 50% das crianças desenvolvem imunossupressão moderada ou grave, e 20% delas, imunossupressão grave. Infelizmente, não há, para crianças menores de 5 anos, um limite viral ou imunológico definido como “de risco”, e a progressão da doença e infecções oportunistas podem ocorrer nessas crianças mesmo quando apresentam contagens normais de células TCD+. A história natural da doença segue 3 padrões distintos de evolução em crianças, descritos antes da disponibilidade do tratamento antirretroviral combinado: Progressão rápida, normal e lenta. O padrão de progressão rápida ocorre em cerca de 20 a 30% das crianças não tratadas, que evoluem com quadros graves no 1º ano de vida e podem morrer antes dos 4 anos. Inicialmente, podem surgir sinais e sintomas inespecíficos, como dificuldade em ganhar peso, febre, adenomegalia, hepatoesplenomegalia, anormalidades neurológicas, anemia, plaquetopenia, diarreia prolongada, infecções bacterianas de repetição e candidíase oral de difícil controle. Infecções oportunistas, como pneumonia por Pneumocystis jirovecii, micobacteriose atípica, candidíase oral ou sistêmica, infecções crônicas ou recorrentes por citomegalovírus (CMV), toxoplasma, vírus varicela zóster e herpes simples, são frequentes entre as crianças com imunodeficiência grave. Nos pacientes com o padrão de progressão normal (70 a 80% dos casos), o desenvolvimento dos sintomas pode iniciar-se na idade escolar, com tempo médio de sobrevida de 9 a 10 anos (dados prévios à disponibilidade de terapia específica). O padrão de progressão lenta ocorre em uma porcentagem pequena (< 5%) das crianças infectadas no período perinatal, com progressão mínima ou nula da doença e contagem normal de LTCD4+ até o início da adolescência. TRATAMENTO Diante da evidência de redução da morbimortalidade e do risco de progressão rápida para doença, recomenda-se iniciar a terapia ARV em todas as crianças menores de 12 meses, independentemente de sintomatologia clínica, classificação imunológica ou carga viral do HIV. Dados de estudos realizados nos Estados Unidos e na Europa sugerem que as crianças que recebem tratamento precoce têm menor probabilidade de evolução para aids ou morte do que aquelas que iniciam tratamento mais tarde. Outra consideração a ser destacada é que, apesar da porcentagem de células T CD4+ ser historicamente mais indicada para menores de 5 anos, atualmente foi demonstrada equivalência em se considerar o valor absoluto de células T CD4+ para essa faixa etária. No Brasil, recomenda-se o teste de genotipagem do HIV pré-tratamento, para detecção de resistência transmitida e também porque a maioria dos expostos por via vertical tem histórico de exposição aos ARV na vida intrauterina, perinatal e/ou pós-natal (possibilidade de resistência adquirida). Não é Nascimento e Saúde do Recém-Nascido Mayra Cleres de Souza, UFR necessário aguardar o resultado para início da terapia ARV. Os regimes recomendados para o início da terapia ARV são compostos por dois inibidores da transcriptase reversa análogos de nucleosídeos (ITRN) associados a um inibidor da transcriptase reversa não análogo de nucleosídeo (ITRNN) ou a um inibidor de protease (IP). Os esquemas contendo IP/r têm como vantagem a maior barreira genética, que implica menor risco de desenvolvimento de resistência, enquanto aqueles contendo ITRNN estão menos associados a dislipidemia e lipodistrofia. A resposta terapêutica aos antirretrovirais deve ser constantemente monitorada, considerando-se que dois tipos de resposta terapêutica (sucesso ou falha) podem ocorrer em um mesmo paciente no decorrer de seu acompanhamento. Considera-se sucesso terapêutico quando há controle sustentado da replicação viral, isto é, carga viral indetectável mantida ao longo do tempo, associado à restauração e à preservação da função imunológica e à ausência ou resolução de sinais ou sintomas relacionados à infecção pelo HIV. A falha do tratamento pode ocorrer em relação ao controle virológico (falha virológica), ao sistema imune (falha imunológica) ou às manifestações clínicas (falha clínica). A falha clínica pode se apresentar como deterioração neurológica progressiva,crescimento inadequado, ocorrência de infecções graves ou recorrentes e doenças associadas à aids, quando transcorridos ao menos 6 meses de terapia ARV. Diante da falha terapêutica, deve-se avaliar a adesão e tomar as medidas necessárias para sua adequação, reavaliar a potência das drogas e pesquisar o uso incorreto de ARV. O teste de genotipagem deve servir de orientação para o médico assistente na escolha do esquema de resgate, considerando comodidade posológica, interações medicamentosas, comorbidades e condição imunológica. ZIDOVUDINA (AZT), INIBIDOR DA TRANSCRIPTASE REVERSA AZT é substrato para a TK celular, que fosforila AZT em monofosfato de AZT. O monofosfato de AZT é, então, convertido na forma de difosfato pela timidilatoquinase celular, e na forma de trifosfato pela nucleosídio difosfatoquinase celular. O trifosfato de AZT, cujo alvo é a transcriptase reversa do HIV, é inibidor consideravelmente mais potente da TR do HIV que das DNA polimerases humanas testadas até hoje. O mecanismo detalhado pelo qual AZT inibe a TR não está totalmente elucidado. Principalmente, em decorrência de seu acúmulo em quase todas as células que sofrem divisão no corpo, a toxicidade da AZT fosforilada representa um sério problema clínico. Em particular, a AZT provoca supressão da medula óssea, que se manifesta mais comumente na forma de neutropenia e anemia. A toxicidade da AZT parece ser causada não apenas pelos efeitos do trifosfato de AZT sobre as polimerases celulares, mas também pelos efeitos do monofosfato de AZT sobre a timidilatoquinase celular. NEVIRAPINA (NVP), INIBIDOR NÃO NUCLEOSÍDEO DA TRANSCRIPTASE REVERSA Os estudos de cristalografia com raios X revelaram que os INNTR se ligam proximamente ao sítio catalítico da TR e possibilitam a ligação da TR a um nucleosídio trifosfato e molde iniciador, porém, inibem a junção dos dois. São biodisponíveis VO, e, em geral, seus efeitos adversos (mais comumente, exantema) são menos graves. A principal limitação para seu uso consiste no rápido desenvolvimento de resistência, exigindo a utilização desses fármacos em associação a outros agentes anti-HIV. VACINAÇÃO Crianças infectadas pelo HIV geralmente apresentam, ao nascimento, boa capacidade de resposta imune aos antígenos vacinais. Assim, as vacinas devem ser aplicadas precocemente, favorecendo uma proteção melhor e mais prolongada, antes de qualquer possível deterioração do sistema imune. As vacinas vivas atenuadas podem representar riscos e seu uso deve ser analisado caso a caso, mas não há risco no uso de vacinas inativadas. TESTAGEM GESTACIONAL A testagem para HIV deve ser realizada no primeiro trimestre, idealmente na primeira consulta do pré- natal, e no início do terceiro trimestre de gestação, podendo ainda ser feita em qualquer outro momento em que haja exposição de risco ou violência sexual. Nascimento e Saúde do Recém-Nascido Mayra Cleres de Souza, UFR Está recomendada a realização de testagem rápida também na admissão da mulher na maternidade, hospital ou casa de parto, devendo ser ofertada, nessa ocasião, a testagem combinada para HIV, sífilis e hepatite B (caso a gestante não tenha esquema vacinal completo). A realização imediata do teste de CV-HIV está indicada após a confirmação da infecção pelo HIV por qualquer um dos fluxogramas de diagnóstico. O teste de genotipagem pré-tratamento está indicado para todas as gestantes. Esse teste deverá ser solicitado e a amostra de sangue coletada antes de iniciar a TARV. Não é necessário aguardar o resultado da genotipagem para o início da TARV. USO DE TERAPIA ANTIRRETROVIRAL COMO PROFILAXIA DA TRANSMISSÃO VERTICAL DO HIV NO PARTO INDICAÇÃO DE AZT NA PVT DO HIV NO PARTO O AZT injetável é indicado para a prevenção da transmissão vertical e deve ser administrado durante o início do trabalho de parto, ou até 3 (três) horas antes da cesariana eletiva, até o clampeamento do cordão umbilical. Para as mulheres já em TARV, os ARV devem ser mantidos nos horários habituais, VO, com um pouco de água, mesmo durante o trabalho de parto ou no dia da cesárea programada. Não é necessário uso de AZT profilático EV naquelas gestantes que apresentem CV-HIV indetectável após 34 semanas de gestação, e que estejam em TARV com boa adesão. Entretanto, independentemente da CV- HIV, o médico pode eleger ou não o uso do AZT intraparto EV, a depender do seu julgamento clínico. Apresentação comercial do AZT injetável (EV): frasco ampola de 10mg/mL. A dose de ataque na primeira hora é de 2mg/kg, seguida de manutenção com infusão contínua de 1mg/kg, diluído em 100mL de soro glicosado a 5%; A parturiente deve receber AZT EV desde o início do trabalho de parto até o clampeamento do cordão umbilical; A concentração não deve exceder 4 mg/mL. O esquema alternativo ao AZT injetável deve ser utilizado apenas em situações de indisponibilidade dessa apresentação do medicamento no momento do parto. A dose de AZT é 300mg, VO, no começo do trabalho de parto ou na admissão, seguida de 300mg a cada três horas, até o clampeamento do cordão umbilical. Esse esquema não é recomendável pela absorção errática do AZT VO, sem evidência que garanta nível sérico adequado no momento oportuno. MANEJO DA MULHER VIVENDO COM HIV NO PUERPÉRIO A puérpera deve ter alta da maternidade com consulta agendada no serviço de saúde especializado, para seu acompanhamento e o da criança. O risco de TV do HIV continua por meio da amamentação. Dessa forma, o fato de a mãe utilizar ARV não controla a eliminação do HIV pelo leite, e não garante proteção contra a TV. Recomenda-se que toda puérpera vivendo com HIV/aids seja orientada a não amamentar. Ao mesmo tempo, ela deve ser informada e orientada sobre o direito a receber fórmula láctea infantil. A prática já demonstrou que uma das intervenções mais efetivas para evitar a amamentação natural é começar a orientação para o aleitamento artificial já durante o pré-natal. A decisão e a comunicação à puérpera sobre a necessidade de suprimir a lactação apenas após o parto é considerada tardia, com resultados insatisfatórios. O aleitamento cruzado (amamentação da criança por outra nutriz), a alimentação mista (leite humano e fórmula infantil) e o uso de leite humano com pasteurização domiciliar são contraindicados. Considerando-se que o aleitamento materno contribui substancialmente para a TV do HIV, é conveniente realizar a orientação da puérpera/mãe soronegativa no momento do parto. Devem-se avaliar suas Nascimento e Saúde do Recém-Nascido Mayra Cleres de Souza, UFR vulnerabilidades e orientar a prevenção da infecção do HIV após o parto, principalmente com o uso de preservativos, reduzindo a possibilidade de infecção durante a amamentação. Se ocorrer infecção materna aguda durante a amamentação, o risco de infecção da criança é maior devido ao rápido aumento da CV-HIV e queda na contagem de LT-CD4+. A mãe deve ser orientada para a interrupção imediata da amamentação assim que o diagnóstico for realizado. MANEJO CLÍNICO DO RN EXPOSTO AO HIV CUIDADOS NA SALA DE PARTO E PÓS- PARTO IMEDIATO As crianças expostas ao HIV e não infectadas tendem a apresentar mais infecções bacterianas e quadros mais graves, se comparadas a crianças não expostas ao HIV. A diminuição dos níveis de anticorpos maternos, transferida via placentária, e o não aleitamento por mães com HIV/aids mostram ser a diferença entre esses dois grupos. QUIMIOPROFILAXIA DO RN EXPOSTO AO HIV Todas as crianças nascidas de mães vivendo com HIV deverão receber ARV como umas das medidas de profilaxia para TV. O RN deve receber AZT solução oral, preferencialmente ainda na sala de parto, logo após os cuidadosimediatos, ou nas primeiras quatro horas após o nascimento, devendo ser mantido o tratamento durante as primeiras quatro semanas de vida. Para mães com CV-HIV maior que 1.000 cópias/mL registrada no último trimestre ou com CV- HIV desconhecida, a NVP deverá ser acrescentada ao AZT e deve ser iniciada até 48 horas após o nascimento. Excepcionalmente, quando a criança não tiver condições de receber o medicamento por VO, pode ser utilizado o AZT injetável. Nos casos de impossibilidade de deglutição e se houver indicação de NVP, poderá ser avaliada administração por sonda nasoenteral, pois esse medicamento não apresenta formulação injetável. ROTINA DE ACOMPANHAMENTO CLÍNICO E LABORATORIAL DA CRIANÇA EXPOSTA AO HIV O acompanhamento deve ser mensal nos primeiros seis meses e, no mínimo, bimestral a partir do 1º ano de vida. A avaliação do crescimento e desenvolvimento é extremamente importante, visto que as crianças infectadas podem, já nos primeiros meses de vida, apresentar déficits. O reconhecimento precoce e o tratamento de possíveis coinfecções devem ser considerados prioritários no atendimento dessas crianças, sugerindo-se que tal abordagem seja incluída ainda na maternidade e nas consultas subsequentes. REFERÊNCIAS Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para a Prevenção da transmissão vertical de HIV, Sífilis e Hepatites Virais. Ministério da Saúde (MS), Brasília, DF, 2019. Nascimento e Saúde do Recém-Nascido Mayra Cleres de Souza, UFR Atenção a Saúde do Recém-Nascido, Guia para os Profissionais em Saúde, Intervenções Comuns, Icterícia e Infecções. Capítulo 16, volume 2, Brasília (DF), 2014. Tratado de Pediatria, Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), seção 14, capítulo 13, 4 edição 2017. Princípios de Farmacologia, A Base Fisiopatológica da Farmacologia, Golan, 3 edição, 2013.
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