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SOBRE O CONCEITO DE NÚMERO RACIONAL E A REPRESENTAÇÃO FRACIONÁRIA Maria Manuela Martins Soares David* Maria da Conceição Ferreira Reis Fonseca ** Os números racionais estão relacionados a algumas das idéias mais importantes e complexas dentre aquelas com as quais as crianças lidam no ensino fundamental (BEHR et al., 1983). Essa importância se atribui, principalmente, a variedade de perspectivas envolvidas na abordagem desses números. Em primeiro lugar, deve-se salientar seu aspecto prático: os números racionais, em suas diferentes representações, surgem com freqüência nas diversas situações relacionadas à expressão de medidas e de índices comparativos. Do ponto de vista psicológico, o trahalho com os números racionais surge como uma oportunidade privilegiada para se promover o desenvolvimento e a expansão de estruturas mentais necessárias ao desenvolvimento intelectual. Na perspectiva da própria Matemática, serão justamente esses primeiros estudos com os números racionais, particularmente em sua forma fracionária, que fundamentarão o trahalho com as operações algébricas elementares a serem desenvolvidas ao longo do ensino fundamental. A essas três perspectivas acrescentamos ainda uma outra, a que chamaríamos didático- epistemológica: o trahalho com os números racionais pode se constituir numa oportunidade de experimentar uma situação de produção de conhecimento matemático, em resposta a conflitos ou dificuldades surgidas no campo mais restrito dos números naturais. Essas dificuldades requerem a criação de um novo campo numérico que abrange e amplia as possibilidades do campo anterior. Mais tarde, novos conflitos vão sugerir, mais uma vez, a limitação desse novo campo e a necessidade de ultrapassá-lo (CARAÇA, 1984). Uma abordagem dos números racionais que contemple esse processo de gênese dos conceitos, em vez de ver o conteúdo matemático apenas como um produto, não só proverá o educador de elementos para compreender melhor o processo pelo qual o aluno assimila esse conteúdo, como também permitirá ao aluno uma percepção da intencionalidade e da dimâmica da produção do conhecimento matemático. As idéias envolvidas no conceito de número racional e as interpretações associadas a representação fracionária A ênfase exagerada nos procedimentos e algoritmos, para operar com os números racionais, tem sido apontada como um dos principais motivos das dificuldades das crianças em aprenderem e aplicarem os conceitos de números racionais (BEHR et al., 1983). Na intenção de ultrapassar essas dificuldades, muitas propostas já sugerem um tratamento mais moderado das operações e um investimento maior, e mais cuidadoso, no aspecto conceitual, especialmente quando estamos adotando a representação fracionária (FREUDENTHAL, 1973, LELLIS & IMENES, 1994, Ministério da Educação e do Desporto, 1996). Optando por um tratamento conceitual, entretanto, vamo-nos deparar com a necessidade de refletir sobre as diversas idéias associadas à representação fracionária do número racional e de selecionar modelos apropriados e oportunos que confiram sentido à sua abordagem. Diversos trabalhos têm sido desenvolvidos, com o propósito de identificar e organizar as interpretações que se podem conferir aos números racionais. A partir da análise de alguns desses tralhalhos, BEHR et al. (1983), no capítulo "Rational-Number Concepts", propõem uma classificação para essas idéias que consideramos adequada. Na abordagem que apresentaremos a seguir, nessa classificação. 1. A fração como medida A criança, já na 1a série, são apresentadas algumas frações de uso mais comum, como a metade e a quarta parte. Naquele momento, ela pode aprender a ler e escrever "1/2" e "1/4", o que não quer dizer que ela aprendeu a representar e interpretar as frações, do mesmo modo como na pré- escola ela aprende a ler e escrever seu próprio nome, sem saber ler nem escrever. Em ambos os casos, a representação simbólica e concebida como um "bloco único" ("1/2", "1/4"), sem muita preocupação com a função dos termos numerador e denominador, e, claro, sem se pretender que os alunos estendam essa forma de representação a outros tipos de pedaços. No entanto, apesar de a atenção ainda não estar sendo dirigida para o sistema de representação, o tratamento dado a essas frações já se reporta, de uma maneira geral, a idéia de comparação da parte com o todo. Mais tarde, no 2o ciclo, o conceito de fração e sua representação são tratados de forma mais sistemática. Nesta oportunidade, explicita-se essa idéia de comparação parte-todo, apoiada nos tradicionais diagramas em que se destaca a parte do disco ou da barra retangular, ou nas situações de pedaço de um bolo, de uma pizza, ou de uma barra de chocolate, tomadas como exemplos preferenciais. A assimilação desses exemplos depende do entendimento que se tem da ação de repartir (em partes iguais) regiões geométricas, o que envolve uma compreensão da noção de área. Ainda no 2o ciclo alguns programas e livros didáticos contemplam outros modelos de comparação parte-todo, que não mais expressam a relação entre a parte e um todo contínuo, mas se referem à comparação entre um subconjunto e um conjunto discreto do qual ele é parte ("de um total de 20 balas, 3/4 são de hortelã"). A "Representação da Fração na Reta Numérica" é também um modelo de comparação parte-todo. Este modelo apresenta dificuldades especiais para os alunos, particularmente quando no segmento da reta, representado no papel, figuram duas ou mais unidades. Neste caso, muitos deles tendem a considerar como unidade a totalidade do segmento desenhado e não o segmento unitário. Eles não compreendem que o ponto que, na reta numérica, representa 2/3 é justamente o ponto que está a 2/3 de unidade de distância do ponto zero. Essa dificuldade sugere que os alunos, não conseguem perceber que a idéia na qual este último modelo se apóia é uma idéia de medida. De fato, todos esses modelos de comparação parte-todo (numa região geométrica, num conjunto discreto ou na reta numérica) estão associados a uma operação de medição. O que é medir CARAÇA (1984, p.29) apresenta, de uma forma muito clara, em que consiste a operação de medição. Ele chama a atenção para o fato de que esta operação passa necessariamente por comparar duas grandezas da mesma espécie dois comprimentos, dois pesos, dois volumes etc., mas não se resume nisso (veja exemplo abaixo). Contudo, na maioria dos casos, não nos contentamos com uma simples comparação. Em geral, queremos responder a pergunta: quantas vezes cabe um comprimento no outro (ou um peso no outro, ou um volume no outro...)? E, para isso, precisamos de um termo de comparação único para todas as grandezas de uma mesma espécie envolvidas na situaçao; caso contrário, tornar- se-iam, se não impossíveis, pelo menos extremamente complicadas as operações de troca que a vida social de hoje exige. (CARAÇA, 1984: p.30) Há, portanto, no problema da medida, três fases e tês aspectos distintos - escolha da unidade; comparação com a unidade; expressão do resultado dessa comparação por um número. (CARAÇA, 1984: p.30) Exemplo Se quisermos comparar os comprimentos de dois segmentos AB e CD, a simples observação da figura leva-nos a dizer que o comprimento AB é maior que o de CD, ou que o comprimento de CD é menor que o de AB. Com a expressão do resultado dessa comparação por um número, temos, então, a resposta à pergunta: Quantas vezes uma grandeza cabe na outra, tomada como unidade? É justamente o número assim obtido que se chama medida da grandeza em relação àquela unidade. Por exemplo No rótulo de uma garrafa "superlitro" de refrigerante, encontraremos escrito 1250ml em letras grandes e 1,25L em letras menores. Isto significa que a medida de sua capacidade é 1,25 se a unidade utilizada for o litro, ou 1250, se a unidade usada for mililitro. A "escolha da unidade" estará intimamente relacionada com a expressão do resultado da medição por um número (A escolha da medida faz-se sempre em obediência a considerações de caráter prático, de comodidade,de economia) (CARAÇA, 1984, p.30). De fato, se tomássemos, por exemplo, a unidde milímetro para medir a distância de Belo Horizonte ao Rio de Janeiro, ou a unidade tonelada para medir o conteúdo de um pote de café solúvel, iríamos obter expressões numéricas tão desconfortáveis para a escrita ou para a leitura que poderiam comprometer a clareza da informação nelas contida. Pela nossa intimidade com os números naturais, em geral, é mais cômodo que a expressão numérica da medida seja dada por um número inteiro. Assim, quando não acontece de a unidade escolhida "caber" um número inteiro de vezes naquilo que se está medindo, a tendência é optar pelo uso de subunidades. No caso do RÓTULO DO CAFÉ SOLÚVEL, para que a comunicação da informação sobre o conteúdo seja mais clara para o consumidor, o fabricante, naturalmente, não usará a unidade ton (0,0001 ton) e nem tampouco o Kg (0,1 Kg), mas registrará: 100g, optando, portanto, por uma unidade tal que a expressão do "peso líquido" do produto seja dada por um número inteiro. As frações como medidas feitas com "subunidades dos inteiros" Dissemos que, ao eleger uma certa unidade para expressar uma medida, nossa tendência é optar por aquela que, sendo razoavelmente conhecida daqueles com quem nos queremos comunicar, nos permita, ainda, escrever tal medida utilizando números inteiros e, de preferência, pequenos. Há, entretanto, situações em que precisamos expressar o tamanho de algo menor do que uma unidade que já foi pre-estabelecida. É justamente em resposta a esse tipo de situação que aparecem as frações: dividimos esta unidade em partes iguais (que receberão nomes especiais conforme o número de partes em que a unidade foi dividida) e verificamos quantas dessas partes - que passam a funcionar como subunidades caberão naquilo que se quer medir. Neste sentido, ficará assiim definida a função dos termos da fração: o denominador indicará qual a subunidade do inteiro que se estará usando, e o numerador expressará a medida nessa subunidade (quantas vezes a subunidade cabe naquilo que se está medindo). Veja os exemplos a seguir. EXEMPLO 1 Os herdeiros de uma fazenda resolveram transformar suas terras em um grande loteamento. Para comercialização dos terrenos, a incorporadora estabelece um "lote padrão", que tem área definida. O interessado em adquirir terras nesse loteamento poderá comprar 1, 2, 3, lotes, conforme seus objetivos ou sua disponibilidade de recursos. O "lote" é, assim, uma unidade de medida de área, que expressa (de forma inequívoca para quem conhece o que seja "um lote") o tamanho dos terrenos negociados. Entretanto, pode haver situações em que se queira falar de terrenos menores do que um lote. Digamos que um pequeno sitiante, que adquiriu apenas 2 lotes, esteja fazendo planos para sua propriedade: - "Um lote vai ficar para a casa, os jardins, essas coisas... Mas, o outro, vou dividi-lo em quatro partes iguais: uma delas fica para a horta e, no resto, vou plantar milho..." Se o vitiante quiser contar a seu vizinho qual é a área que destinará ao plantio de milho, poderá dizer: - "Vai ser só 3 quartos de um lote, mas você vai ver a fartura que vai dar..." Percebe-se aí, claramente, a idéia da medida associada a fração 3/4: O lote não cabe uma vez inteira no terreno que será destinado ao plantio de milho. Mas a subunidade "quarto (de lote)" cabe 3 vezes, e, dizer 3 quartos de lote, para quem sabe qual o tamanho de um lote, é suficiente para comunicar o tamanho da área que será destinada ao plantio do milho. EXEMPLO 2 Podemos também perceber a idéia de quando lançamos mão de uma fração para expressar uma parte de um conjunto discreto, desde que a quantidade associada ao conjunto considerado como o inteiro seja conhecida. Desta forma, ao nos referirmos a um subgrupo por meio de uma fração do inteiro conhecido, o "tamanho" deste subgrupo será também conhecido. Por exemplo: Ao final de um evento, os organizadores querem ter uma idéia de quantos certificados de participação terão que emitir. Os responsáveis pelas inscrições informam que "apenas 2/3 das vagas foram preenchidas". Os organizadores, que conhecem o total de vagas abertas, digamos 300, saberão, a partir desta informação, que deverão emitir 200 certiticados. A informação "2/3 das vagas foram preenchidas", expressa uma comparação entre o número de vagas efetivamente preenchidas e o total de vagas oferecidas. Para quem conhece este último número (vagas oferecidas), esta informação é uma medida da parcela de vagas preenchidas, tomando como unidade o total de vagas oferecidas. Este total, entretanto, não cabe um número inteiro de vezes na parcela a ser medida. Por isso, tomamos uma "subunidade" deste total (1/3, que corresponde a 100 vagas) e verificamos que esta subunidade cabe 2 vezes na parcela que estamos "medindo". EXEMPLO 3 Vejamos, agora, o seguinte exemplo: Oito pessoas entraram numa pizzaria e encomendaram três pizzas grandes. Porém, para as pizzas não esfriarem, eles pediram ao garçom que trouxesse uma pizza de cada vez, e servisse sempre um pedaço para cada um. a) Quanto de pizza cada uma das oito pessoas comeu? b) Se uma pizza custa R$16,OO, quanto deverá pagar cada pessoa? Neste caso, podemos responder a pergunta (a) dizendo que "cada um comeu 3/8 de uma pizza". Esta informação não esclarece que cada pessoa comeu 1/8 de uma pizza, 1/8 de outra, e 1/8 de uma terceira pizza, mas é suficiente para que o ouvinte, que sabe o tamanho de uma pizza grande, avalie qual foi a quantidade de pizza comida por cada uma das 8 pessoas. Compara-se assim a quantidade comida por uma pessoa com o tamanho da pizza grande, que será aqui tomada como unidade (e cada um dos pedaços - oitavos - como subunidade). Isso fica evidente, quando, ao calcularmos a despesa de cada um, podemos raciocinar calculando 3/8 x R$16,OO, ou seja, cada um deverá pagar o valor correspondente a 3/8 do preço de 1 (uma) pizza. EXEMPLO 4 Um barril pode canter 7 litros de cachaça. Quantas canecas de 2 litros são necessárias para encher o barril? Em geral, a resposta que se dá a este problema é "três e meia". Neste caso, a subunidade "meia- caneca" está sendo usada para medir "aquela parte do barril em que não caberia uma caneca inteira". Se utilizarmos a expressão fracionária, a resposta será 7/2, ou seja, "sete meias- canecas". EXEMPLO 5 Por fim, a representação de frações na reta numérica também pode ser tomada como uma situação em que se evidencia a idéia de medida. Para marcar o número 5, por exemplo, na linha numérica, determinamos o ponto que está a 5 unidades de distância do ponto 0; do mesmo modo, para marcar a fração 2/3, determinamos o ponto que está a 2/3 de unidade de distância do ponto 0; e o modo mais natural de se fazer isso é encontrar o segmento cuja medida é 1/3 do segmento unitário, e marcá-lo 2 vezes a partir do zero. 2. A fração como quociente ou como divisão indicada Se há situações em que nos parece bastante evidente a idéia de medida associada à representação fracionária, há casos, entretanto, em que as frações aparecem muito mais como a expressão de um quociente ou como uma divisão indicada. Os exemplos em que mais facilmente associaremos a fração com o quociente serão aqueles em que essa divisão surge como uma estratégia para se resolver um problema com a idéia de partilha. POR EXEMPLO Quatro pessoas receberam uma cesta com 20 laranjas, 8 barras de chocolates e 3 queijos Quanto de laranja cada um recebeu? Quanto de chocolate cada um recebeu? Quanto de queijo cada um recebeu? As três perguntas deste problema têm exatamente a mesma natureza: trata-se de uma situação de partilha em que temos a quantidade total, o número de pessoas, e queremos saber quanto cada pessoa deverá ganhar. Não há dúvida de que é a divisão a operação que responde aos ítens a e b. Portanto, deveria também responder ao item c, ou seja, 3 4 = 3/4. Entretanto, quando expostos a esse problema, os alunos em geral respondem de duas maneiras: apresentam a resposta 3/4, mas nãose utilizam da operação de divisão 3 4 para encontrá- la. utilizam o mesmo procedimento dos ítens a e b, ou seja fazem a divisão, e apresentam como resposta 0,75. Ambas as respostas sugerem uma mesma dificuldade: os alusnos não conseguem perceber 3/4 como um número, e portanto não podem aceitá-lo como resposta a uma operação. No primeiro caso, a intervenção do professor será no sentido de evidenciar a semelhança das três perguntas sugerindo a mesma operação para respondê-las: assim como o número 5 é a resposta para a operação 20 4, e o número 2 é a resposta para a operação 8 4, também o número 3/4 é a resposta para a operação 3 4. No segundo caso, os alunos já fazem uso da operação de divisão, mas sentem a necessidade de efetuar o algoritmo para obter o resultado (que assim será expresso em sua forma decimal). De fato, embora admitam que 3/4 seja a resposta do problema, não conseguem aceitar que 3/4 possa ser a resposta da operação. Caberá, portanto, ao professor trabalhar no sentido de que o aluno possa perceber a inadequação da expressão decimal nesse contexto (queijos) e compreender que tanto 0,75 como 3/4 são expressões de um mesmo número. Se há situações (como no exemplo da cesta) em que, diante da operação 3 4, queremos identificar 3/4 como o quociente desta operação, há situações em que, ao contrário, deparamo nos com o 3/4, e queremos reconhecê-lo como uma outra forma de se escrever 3 4, como uma divisão indicada. Desta interpretação das frações como uma divisão indicada resulta imediatamente a equivalência entre 3/4 , 6/8 , 0,75 , .. É desta equivalência que se lança mão quando se quer fazer a transposição da representação fracionária para a representação decimal (3/4 = 3 4= 0,75). Neste caso, queremos ver o número racional como um processo, como uma ação a ser executada: dividir 3 por 4. Mas a ação aí sugerida é uma ação diferente da ação envolvida na interpretação do número racional como medida, pois dividir uma unidade em 4 partes e tomar 3 é diferente de dividir 3 unidades por 4, embora o resultado de ambos os processos seja o mesmo. 3. A fração como razão Uma razão é uma expressão da relação entre os elementos de um par ordenado de números, quantidades ou grandezas. Portanto, a fração, quando associada a uma razão, expressa um índice comparativo. Comparando grandezas de mesma natureza Há situações em que o índice se refere a comparação de grandezas de mesma natureza. As comparações nesses casos poderão se dar entre uma parte e o todo, entre partes disjuntas e complementares, ou entre partes, que não sejam nem disjuntas e nem complementares. Já apresentamos aqui várias situações de comparação como estas nos exemplos em que toávamos as frações como idéia de medida (item a). No entanto, ali, as comparações nos interessavam enquanto uma forma de expressar o tamanho das partes através da comparação com um inteiro de tamanho conhecido. Aqui, não nos interessa o tamanho da parte e nem do todo ou da outra parte, mas somente a relação que existe entre elas. POR EXEMPLO Um dos ítens que definem a classificação no ranking (e os vultosos salários) dos jogadores de basquete do NBA é sua capacidade de converter arremessos livres em jogos oficiais. Como a oportunidade de fazer os arremessos não é a mesma para todos, torna-se necessário computar os índices de cada um para que se proceda a uma comparação da performance dos jogadores. Assim, não podemos afirmar que certo jogador está pior em arremessos livres do que outro só porque, em jogos oficiais, ele converteu 28 arremessos enquanto o outro converteu 30, na mesma temporada. Se o primeiro teve 35 lances livres e o segundo 40, o primeiro estará melhor classificado no ranking pois seu índice de conversão é 4/5 (4 conversões a cada 5 arremessos), enquanto o outro é 3/4. Neste caso, estamos supondo que a manterem-se esses índices, se ambos tivessem a mesma oportunidade de arremessos (digitamos 60 arremessos) 0 primeiro converteria mais do que o segundo (no caso, 48 conversões para o primeiro e 45 para o segundo). Podemos, entretanto, expressar tais índices através de porcentagens, mantendo a mesma idéia de comparação parte-todo. A notação "40%", por exemplo, pode ser compreendida como uma forma de expressar 40/100, ou 0,40, ou 2/5. A vantagem da utilização da porcentagem para a expressão de índices é a facilidade da comparação entre eles, uma vez que o total considerado é sempre o mesmo número (100). No exemplo anterior, para comparar os índices de conversão de arremesso dos jogadores, ao em vez de compararmos 4/5 com 3/4 (o que nos exigiu uma simulação de um total único: "se ambos tivessem a mesma oportunidade .. ,"), passamos a comparar 80% (4/5) com 75% (3/4), o que se faz de maneira imediata. lncluem-se, ainda como situações de comparação parte todo, os índices que expressam escalas, onde se vai comparar a magnitude da distância utilizada no mapa, ou na planta, com a magnitude da distância real que se quer ali representar. Escala 1:100000 significa que cada 1cm no mapa representa 100000cm (1km) na realidade, ou, ainda um comprimento representado no mapa é 1/100000 do comprimento real. Uma outra possibilidade de comparação de grandezas de mesma natureza se refere a situações que chamaremos de comparação parte-parte. Neste caso, estaremos comparando dois conjuntos cujos elementos são de mesma natureza, mas não estão totalmente incluídos um no outro. POR EXEMPLO As firmas especializadas em recepções sabem que, normalmente, a relação entre o consumo de refrigerante Diet e o consumo de refrigerante comum é de 2/3 (lê-se: 2 para 3), ou seja, para cada 2L de refrigerante Diet consumidos, são consumidos 3L de refrigerante comum. Assim, ao programarmos uma festa, a previsão para compra dos refrigerantes deve considerar esta relação, seja qual for a quantidade total de refrigerantes que se vá comprar 30L de refrigerante comum; se forem 100L de Diet, serão 150L de comum etc. Neste caso, os conjuntos comparados são disjuntos e complementares, ou seja, o refrigerante é Diet ou é comum. Isso nos permite, a partir da relação entre as partes, saber a relação das partes com o todo: se são 2 partes de refrigerante Diet e 3 partes de refrigerante comum, o consumo de Diet representa 2/5 do total de refrigerante consumido. Mas há casos em que estabeleceremos uma relação entre conjuntos que se interceptam e que, unidos, não completam o todo (são, portanto, não disjuntos e não complementares). POR EXEMPLO: Pode-se dizer que é expressiva a preponderância da cultura americana sobre a cultura francesa, hoje no Brasil, já que, entre os brasileiros falantes de língua estrangeira, a relação entre o número dos que falam inglês e o número dos que falam francês é 7/2 (7 para 2). É claro que os brasileiros que falam inglês e francês estarão incluídos nos dois conjumos, e que há também brasileiros que não falam nem inglês nem francês, mas que falam espanhol, alemão etc., e que, portanto, se incluem entre os brasileiros falantes de língua estrangeira. Assim, a relação 7/2 nada nos informa sobre a relação entre brasileiros que falam inglês e o total de brasileiros que falam língua estrangeira. De qualquer maneira, tanto no exemplo dos refrigerantes quanta neste último, não interessa muito a relação entre cada parte e o todo, mas sim a relação entre as partes; por isso estamos distinguindo tais situações daquelas em que se faz comparação parte- todo. Comparando grandezas de naturezas diferentes A interpretação da fração como razão surge, também, quando comparamos grandezas de naturezas diferentes. Vejamos alguns exemplos no quadro abaixo. EXEMPLOS A relação adulto criança no berçário de uma creche não deve exceder a 2/9 (lê-se "dois por nove", ou seja, 2 adultos para cada grupo de 9 crianças). Na proposta da Escola Plural (PBH), no 1o ciclo, cada grupo de 3 professores se responsabiliza por 2 turmas; assim a relação entre o número de professores regentes de uma escola e o número de turmas deverá ser 3/2 (lê-se "três para dois"). Um dosíndices considerados para avaliar a qualidade de vida de uma cidade é aquele que expressa a relação entre o número de leitos em hospitais e o número de habitantes. Em Belo Horizonte , esse índice é de 36/10000, se considerarmos apenas os leitos cadastrados no SUS. Também a velocidade ou a densidade poderiam ser consideradas como exemplos de comparações de grandezas de naturezas diferentes (comparação entre distância e tempo, ou entre massa e volume), porém, nesses casos a expressão numérica da comparação não costuma ser dada por um par de números, mas por um único número, uma vez que se supõe que o segundo termo do par seja 1 (um) (80km/h significa 80km percorridos a cada 1 hora). A idéia de razão, associada as frações, parece mais elaborada do ponto de vista cognitivo do que as idéias de medida ou de quociente ou divisão indicada, por remeter à idéia de proporcionalidade. Com efeito, lidar com magnitudes relativas, que é a essência do conceito de razão, é algo muito mais complexo do que lidar com magnitudes absolutas. Estudos citados por BEHR et al. (1983) identificam vários níveis de atuação cognitiva sobre a idéia de razão, desde adivinhação aleatória, até um raciocínio aditivo (em vez de multiplicativo), para chegar no nível mais elevado em que os dados são utilizados num nível formal de pensamento de razões multiplicativas. Apesar de reconhecermos que a noção de razão seja um tanto sofisticada, o fato de sua utilização ser bastante freqüente (vivemos num mundo de taxas e índices!) sugere diversas oportunidades para que o professor explore o contato que os alunos já têm com ela, possibilitando que eles a compreendam em determinados contextos que lhes sejam mais familiares. 4. A fração como operador lnterpretar o número racional como operador consiste em atribuir-lhe um papel de transformação: ele representaria uma ação que se deve imprimir sobre um número ou uma quantidade, tranformando seu valor neste processo. Segundo BEHR et al. (1983), quando se associa ao número racional na forma fracionária p/q a idéia de um operador, passa-se a ver esse número como uma função que ora transforma uma figura geométrica em outra, cujo tamanho é p/q vezes o tamanho inicial, ora transforma um conjunto em outro conjunto com uma quantidade de elementos que é p/q vezes sua quantidade inicial de elememos. Quando aplicamos p/q a um objeto contínuo (por exemplo, um comprimento), podemos pensar em p/q como uma combinação de ampliação-redução. Assim, se p/q age sobre um segmento de reta de comprimento L, este segmento tem seu comprimento ampliado de p vezes e depois reduzido par um fator q. Quando p/q opera sobre um conjunto discreto, adora-se uma interpretação de multiplicador- divisor. O número racional p/q transforma um conjunto de n elementos inicialmente num conjunto com np elementos, e depois esse número é reduzido a np/q. Assim para BEHR et al., a fração, nesta interpretação, assume a forma de uma "máquina-função", ou seja, p/q será concebido como uma máquina em que para uma entrada de q temos uma saída de p. A percepção de uma fração como um operador apresenta uma outra forma de interpretação de situações que envolvem as frações. POR EXEMPLO Quando dizemos que, pelos últimos levantamentos, 2/3 dos formandos em Pedagogia ingressarão na carreira do magistério, podemos considerar a fração 2/3 como uma medida: a unidade desta medida é o total de formandos em Pedagogia; ela será dividida em subunidades (terços) que cabem 2 vezes no total de formandos que ingressam na carreira do magistério. Seguindo este raciocínio, se tivermos 96 formandos na Pedagogia, para sabermos quantos ingressarão na carreira de magistério dividiremos 96 por 3 (para achar 1/3) e depois multiplicaremos o resultado por 2. Podemos, entretanto, tamando esta mesma situação, conferir à fração 2/3 a interpretação de um operador: ao aplicarmos o operador 2/3 ao número de formandos em Pedagogia, obteremos o número de formandos que ingressarão na carreira do magistério. Para o caso de 96 formandos, o cálculo seria 96x2:3. Trata-se, portanto de uma mesma situação, mas são interpretações diferentes e geram procedimentos diferentes. Operadores racionais e operadores inteiros Esta interpretação de aperador (multiplicativo), que estamos conferindo as frações, também poderia ser atribuída aos números inteiros. Neste caso conceberíamos o 2, por exemplo, como uma máquina-função que associa um número a seu dobro. Esta associação, embora não explicitamente trabalhada na escola, acaba sendo facilmente incorparada pelos alunos. No entanto, na transposição da idéia dessa associação do caso dos inteiros para o caso dos racionais, algumas distinções precisam ser consideradas. A primeira delas se refere a interpretação da comutatividade. A multiplicação envolvendo inteiros, ou racionais, é uma operação comutativa: 2x5=5x2 e 5x1/6= 1/6x5. Entretanto, enquanto que 2x5 e 5x2 envolvem a mesma aperação psicológica (formar 2 grupos de elementos, ou 5 grupos de 2 elementos), 5x1/6 e 1/6x5, embora expressem o mesmo número, podem envolver operações psicológicas diferentes ("5 sextos de uma pizza" e "um sexto de 5 pizzas"). Em segundo lugar vem a associação da idéia de multiplicação à idéia de aumento. Essa associação, válida para o caso dos inteiros, precisará sofrer uma adaptação para o caso dos operadores racionais. Se interpretamos a operação 3 x 80 como a ação de tomar 80 três vezes, também podemos interpretar 3/4 x 80 como a ação de tomar o 80, não uma vez inteira, mas apenas 3/4 desse total. Neste caso, a idéia que está associada a fração 3/4 e a idéia de medida. Contudo, também é possível interpretar a operação 3/4 x 80 como a ação de aplicar a 80 uma combinação dos efeitos produzidos pelo numerador (multiplicar por 3) e pelo denominador (dividir por 4). Como se trata de uma fração própria, a redução causada pela divisão será maior que o aumento provocado pela multiplicação. Assim, o resultado final será menor do que 80. É neste sentido que BEHR (I983, p.96) ressalta que a interpretação dos números racianais como operadores se torna particularmente útil no estudo da operação de multiplicação, inclusive quando a operação envolve dois fatores fracionários. Neste caso, a ação poderá ser interpretada como a passagem por duas "máquinas-funções" em seguida. O ensino de frações e as várias idéias Quando discute o ensino dos números naturais, FREUDENTHAL (1973) questiona a ênfase exagerada, dada a um dos aspectos desses números (a cardinalidade), em detrimento dos outros aspectos (ordinal, de medição, e de cálculo), que ele considera igualmente importantes para a construção psicológica do conceito de número natural, e aos quais atribui, inclusive, maior relevância social. Neste trahalho, temos procurado chamar a atenção para o fato de que, do mesmo modo, existem várias interpretações para a representação fracionária, e que todas elas devem estar presentes no ensino, sob pena de se restringir excessivamente o significado desta representação para nossos alunos. Reconhecemos que a idéia de medida pode ser considerada a mais "simples", tanto do ponto de vista cognitivo, quanto do ponto de vista da associação idéia- modelo-símbolo. Entretanto, a freqüência com que as outras idéias aparecem socialmente (notadamente a idéia de razão) e/ou dentro do próprio desenvolvimento matemático (conforme tentamos ressaltar quando discutimos as idéias de quociente indicado e de operador), recomenda que a abordagem dada aos números racionais, desde as séries iniciais, já contemple todas elas. Pode parecer precoce, do ponto de vista cognitivo, apresentar todas as idéias simultaneamente. Contudo, a discussão sobre a capacidade de construção ou assimilação de um conceito deve considerar, para além dos aspectos cognitivos individuais a influência que a convivência com esses conceitos e o papel social que se lhes atribui podem exercer sobre esse processo de construção. Referências bibliográficas/Sugestões de Leitura BEHR, M., LESH, R., POST. T and SILVER E. (1983). RationalNumber Concepts. In: LESH, R. and LANDAU, M. (ed) Acquisition of Mathematical Consepts and Processes. Orlando-Florida: Academic Press INC., p. 91-126. CARAÇA, B. J. Conceitos Fundamentais da Matemática. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1984. FREUDENTHAL, H. Mathematics as na educational task. Dordrecht-Holland: D. Reidel Publishing Company. LELLIS, M., IMENES, L. O currículo tradicional e a educação matemática. A Educação Matemática em Revista. Ano 1, n. 2, 1994, p.5- 12. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO - SECRETARIA DO ENSINO FUNDAMENTAL (1996). Parâmetros Curriculares Nacionais: Matemática. Mec-SEF (Versão Agosto 1996). *Professora Adjunta da Faculdade de Educação da UFMG. (voltar) **Professora Assistente da Faculdade de Educação da UFMG. (voltar)
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