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NATUREZA E SOCIEDADE Marilia Freitas de Campos Tozoni-Reis 2010 IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Todos os direitos reservados. © 2010 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais. Capa: IESDE Brasil S.A. Imagem da capa: Jupiter Images/DPI Images T757n Tozoni-Reis, Marilia Freitas de Campos. / Natureza e Sociedade. / Marilia Freitas de Campos Tozoni-Reis. — Curitiba : IESDE Brasil S.A., 2010. 264 p. ISBN: 978-85-387-1217-6 1. Psicologia. 2. Educação. I. Título. CDD 157.1 Marilia Freitas de Campos Tozoni-Reis Livre-docente pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Pedagoga pela Faculdade de Filoso- fia, Ciências e Letras de Itapetininga (FFCLI). Sumário As diferentes concepções das relações entre sociedade e natureza .................................................. 11 A degradação ambiental ....................................................................................................... 12 As representações de natureza em nossa sociedade .................................................. 13 Conclusão .................................................................................................................................... 19 O conhecimento do mundo social e natural ................. 29 Conhecimento filosófico ....................................................................................................... 29 Conhecimento científico ....................................................................................................... 30 Conhecimento tradicional .................................................................................................... 31 A diversidade como fundamento do conhecimento do mundo natural e social .................................................................................................... 32 Aprender com a natureza ...................................................................................................... 33 O papel da ciência no conhecimento do mundo natural e social .......................... 36 Conclusão .................................................................................................................................... 40 O pensamento socioambientalista ................................... 51 O ambientalismo ...................................................................................................................... 60 Sociedade e natureza no pensamento e nas ações ambientalistas ....................... 64 Conclusão .................................................................................................................................... 67 Sustentabilidade social e ecológica .................................. 79 Sustentabilidade, crescimento econômico, igualdade social e democratização das sociedades ...................................................................................... 80 Desenvolvimento sustentável e globalização da economia .................................... 83 Conclusão .................................................................................................................................... 85 Ética e ambiente ...................................................................... 99 O que é ética? ..........................................................................................................................101 A ética como fundamento da relação entre sociedade e natureza .....................107 Conclusão ..................................................................................................................................110 O mundo social e natural e o cuidado humano .........117 A importância do cuidado no desenvolvimento humano ......................................119 O cuidado na relação da sociedade com a natureza .................................................126 Conclusão ..................................................................................................................................128 Compreendendo o ambiente vivido na Educação Infantil .................................................137 Construindo propostas pedagógicas para compreensão do ambiente vivido ................................................................................................................139 Paulo Freire e a importância da leitura do ambiente ................................................140 As contribuições de Freinet com a aula passeio .........................................................142 O recurso da excursão ..........................................................................................................145 O mapeamento ambiental como proposta pedagógica .........................................152 Conclusão ..................................................................................................................................154 Compreendendo as relações sociedade e natureza na Educação Infantil .......................................161 O mundo social ........................................................................................................................163 O mundo natural ....................................................................................................................172 Conclusão ..................................................................................................................................177 Ensinando as crianças a cooperarem .............................187 A cooperação como fundamento das relações sociais ............................................188 A cooperação como fundamento da educação ..........................................................191 A cooperação na proposta pedagógica para a educação de crianças pequenas ...........................................................................................................194 Jogos cooperativos ................................................................................................................202 Interdisciplinaridade ............................................................215 Disciplinaridade, multidisciplinaridade e interdisciplinaridade ............................216 A metodologia de projetos .................................................................................................222 Conclusão ..................................................................................................................................229 Questões para aprofundamento .....................................237 Concepção histórica de natureza .....................................................................................238 O ambientalismo crítico .......................................................................................................244 A sustentabilidade ambiental ............................................................................................249 Conclusão ..................................................................................................................................256 Anotações .................................................................................263 Apresentação Alunos e alunas A proposta de estudo das relações entre sociedade e natureza que este mate- rial traz somente tem sentido se contar com a participação de vocês como sujei- tos ativos do seu próprio processo educativo. Entendo a educação, assim como a formação de educadores, como um processo intencional, dinâmico, complexo e contínuo, que exige envolvimento pleno dos participantes. Portanto, o que aqui escrevi, que reflete um poucodo que temos criado no Brasil para a formação crí- tica dos educadores ambientais, só terá atingido seus objetivos se puder instigar sua participação, discutindo, dialogando, discordando, perguntando, responden- do, problematizando, enfim, construindo juntos sua formação. Isso significa dizer que a sua participação faz a força ou a fraqueza dessa proposta. Este material foi produzido de diferentes formas: escritos inéditos produzidos especialmente para este fim, nova sistematização de alguns textos que escrevi e publiquei em diferentes momentos de minha trajetória profissional, e, também, apresentação de textos de diferentes e diversos autores que tratam dos temas em discussão na forma de “textos complementares”. Entendo este material não como uma “cartilha”, “manual” ou “livro de receitas” para a introdução do tema ambiental, pelos estudos de natureza e sociedade, na Educação Infantil e na primeira etapa do Ensino Fundamental, mas, principalmen- te, como um instrumento no processo criativo dos professores dessas crianças. Trata-se, portanto, de estudos para a produção de propostas educativas únicas e originais em sua atual ou futura prática pedagógica com essas crianças. Destaco, nesse sentido, a importância que dou à formação teórica dos professores como dimensão imprescindível na construção de suas práticas pedagógicas conscien- tes e competentes. Minha intenção é contribuir, no sentido de facilitar a reflexão entre teoria e prática, para a introdução do tema ambiental nos processos edu- cativos de crianças pequenas, para instrumentalizar sua participação, autônoma, na construção de uma sociedade socialmente mais justa e ecologicamente mais equilibrada, uma sociedade sustentável. Marilia Freitas de Campos Tozoni-Reis As diferentes concepções das relações entre sociedade e natureza As funções da Educação Infantil no Brasil estão sendo discutidas, de alguma forma, desde o início da República (1889), um período em que a marca do atendimento era a dualidade: atendimento educacional, ainda que rudimentar, para os filhos das classes mais privilegiadas e atendimen- to assistencial, de caráter fortemente filantrópico, para as crianças pobres. Já um século depois, na década de 1980, foi um período especialmente produtivo quanto à discussão das funções da Educação Infantil. Nesse mo- mento, priorizou-se a necessidade de atendimento de caráter educacional para as crianças na rede pública, destacando as propostas pedagógicas para a Educação Infantil. A partir dos anos 1990, no entanto, as discussões sobre a garantia do atendimento com caráter educacional avançaram além das propostas pedagógicas. Assim, temos hoje um entendimento de que as políticas de Educação Infantil têm que garantir educação e cuidado. Isso significa que, para superar a dicotomia entre creche e pré-escola e entre Educação Infantil e Ensino Fundamental, é preciso garantir o aten- dimento integral e integrado, sem desvalorizar o cuidado como parte da proposta educativa infantil (TOZONI-REIS, 2002). Para concretizar as propostas que articulam educação e cuidado na Educa- ção Infantil, é preciso pensar também na organização do currículo nesse nível de ensino da Educação Básica. Partindo da ideia de que no processo edu- cativo escolar, além da transmissão/apropriação crítica dos conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade, também são conteúdos curri- culares a produção de ideias, conceitos, valores, símbolos, hábitos, atitudes e habilidades, a organização curricular na Educação Infantil e na primeira etapa do Ensino Fundamental é essencialmente interdisciplinar, sendo importante destacar o papel de todos esses conteúdos de ensino como ação pedagógica concreta para o desenvolvimento infantil. Entre os diferentes temas de estudo nesse nível de ensino, trataremos aqui do estudo das relações entre a natureza e a sociedade, com a proposta pedagógica central de articular conhecimen- tos, ideias, conceitos, valores, símbolos, hábitos, atitudes e habilidades. Isso significa sistematizar, na prática educativa cotidiana com crianças pequenas, temas sobre o mundo natural e social em que elas vivem para contribuir para a ampliação de suas experiências sociais e históricas. 12 As diferentes concepções das relações entre sociedade e natureza E uma preocupação básica deve estar presente nos estudos das relações entre natureza e sociedade nesses níveis de ensino: superar a superficialidade com que o tema vem sendo tratado. Temos convivido com uma tendência que merece essa crítica: muitas propostas se resumem a fornecer às crianças informações su- perficiais, estanques e desarticuladas sobre bichos e plantas. O estudo sobre as relações da sociedade com a natureza merece um pouco mais de atenção. A degradação ambiental Para compreender a relação da sociedade com a natureza, tema central do nosso estudo, é importante identificar alguns marcos históricos da nossa preo- cupação com o ambiente, presente hoje em toda a sociedade – considerando, é claro, suas contradições. Essa preocupação sempre esteve presente, em toda a história da humanidade. Nos escritos filosóficos, pré-científicos e científicos, assim como nas obras de arte, desde a Antiguidade, podemos encontrar a na- tureza tematizada pelas reflexões acerca da natureza humana ou simplesmente pela expressão da beleza do ambiente natural. Isso nos leva a considerar que a relação da sociedade com a natureza sempre foi tema de interesse. Mas é impor- tante perceber que, a cada momento histórico, essa relação foi tratada de forma específica, contextualizada na dinâmica da vida social. Nesse sentido, apenas no século XX a preocupação com a natureza constituiu-se na forma como a co- nhecemos hoje. As modificações no mundo do trabalho trazidas pela Revolução Industrial (final do século XVIII) transformaram a vida das pessoas, as relações sociais e as relações dos sujeitos com a natureza. A revolução do modelo de produção articulado com a nova ciência, a ciência moderna, promoveu o de- senvolvimento econômico e científico em um ritmo espantosamente acelerado. A humanidade entrou na modernidade com uma nova estruturação do poder científico, político e social, e transformou sua relação com o ambiente natural. Por essas razões, as relações da natureza com a sociedade têm hoje que ser estudadas a partir da degradação ambiental. Santos (1997) identifica a degrada- ção ambiental como um dos “problemas fundamentais nos diferentes espaços- -tempo”, refletindo sobre seu caráter contraditório e internacional: Qual o impacto da degradação ambiental nas relações Norte/Sul? O fato de esse impacto ser crescentemente global parece indicar que não há face a ele a possibilidade de uns só retirarem vantagens e outros só desvantagens, pelo que será “natural” a solidariedade internacional para o enfrentar. Na verdade, nada parece mais difícil que a construção da solidariedade nesse domínio. Em primeiro lugar, a gravidade do problema ambiental reside antes de mais nada no modo como afetará as próximas gerações, pelo que a sua resolução assenta forçosamente num princípio de responsabilidade intergeracional e numa temporalidade de médio e longo As diferentes concepções das relações entre sociedade e natureza 13 prazo. Sucede, porém, que tanto os processos políticos nacionais, como os processos políticos internacionais, são hoje, talvez mais do que nunca [no século XX], dominados pelas exigências a curto prazo. Acresce que no Norte a proeminência dos mercados financeiros e de capitais atua no mesmo sentido, penalizando qualquer estratégia empresarial, assumida ou imposta, que diminua a lucratividade do presente, mesmo que em nome de uma lucratividade maior, mas necessariamente incerta, no futuro. Nos países do Sul os processos político-econômicos são ainda mais complexos. Por um lado, a industrialização de muitos países periféricos e semiperiféricos nas décadas de 1980 e 1990 ocorreu na mira de força de trabalho abundantee barata e de uma maior tolerância social e política da poluição. Nessas condições, qualquer medida pró-ambiente seria contra a lógica do investimento efetuado com as consequências previsíveis. (SANTOS, 1997, p. 297-298) O conflito de interesses que se expressa na discussão internacional sobre a degradação ambiental pode ser percebido em diferentes momentos da trajetó- ria histórica da preocupação ambiental. Isso significa dizer que, embora a preo- cupação com a degradação ambiental tenha evoluído na história da humanida- de, essa preocupação não é igual para todos os sujeitos sociais, expressando as contradições das sociedades atuais. Nesse sentido, para iniciar os estudos sobre a relação da natureza com a sociedade, é importante que pensemos sobre as diferentes concepções dessa relação, estudadas por diferentes autores que se dedicam aos estudos socioambientais. As representações de natureza em nossa sociedade Partindo do pressuposto de que o conceito de natureza é diferente para os diferentes atores sociais, assim como é diferente o conceito de sociedade, veja- mos aqui algumas representações de sociedade e de natureza. Algumas delas são ingênuas, outras são próximas da representação harmônica dessa relação, outras ainda se aproximam da representação prática, pragmática, da relação da sociedade com a natureza, e temos ainda aquelas que expressam a relação con- flituosa, de caráter mais crítico. Em primeiro lugar, pensemos que representações são formas de expressão que não se constituem em concepções mais elaboradas, mais aprofundadas, mais refletidas e pensadas sobre o mundo e as coisas. Podemos dizer que re- presentações de natureza e sociedade são formas muito imediatas e primitivas, baseadas no senso comum. Os estudos sobre representações sociais têm como importante referência o trabalho de Moscovici (1978) sobre as representações sociais da psicanálise. Nesse estudo, o autor analisa como e por que alguns conceitos da teoria psicanalítica, tão complexa, estão presentes nos diálogos 14 As diferentes concepções das relações entre sociedade e natureza cotidianos, embora nem sempre no sentido conceitual dado por seus formu- ladores. Complexo, trauma e inconsciente são exemplos de apropriação desses conceitos pela população, constituindo-se no que Moscovici chamou de repre- sentações sociais. As diferentes formas de representação da natureza e da sociedade que aqui abordaremos também se explicam por esse processo de apropriação imediata de conceitos ecológicos e sociológicos, políticos e filosóficos que compõem o campo do conhecimento socioambiental. Para que as relações entre socieda- de e natureza sejam tematizadas em um processo educativo, é importante que seus agentes – educandos e educadores – ultrapassem o senso comum dessas representações em busca de uma compreensão mais aprofundada, filosófica (SAVIANI, 1991). Reigota (1995a) nos mostra a importância dos estudos das re- presentações sociais do meio ambiente como ponto de partida para um proces- so educativo ambiental mais consciente e consequente. Nesse sentido, trata-se de superar as definições restritivas de meio ambiente (representações sociais) em busca de definições mais complexas (concepção filosófica). O conceito de am- biente é bem mais complexo do que o de natureza. Estudemos, então, algumas das representações de ambiente mais encontradas em nossa sociedade: as re- presentações naturais, utilitárias e críticas de ambiente (TOZONI-REIS, 2004). As representações de ambiente identificadas como representações “natu- � rais” da relação das sociedades com a natureza expressam-se pela ideia de que a posição dos sujeitos no ambiente é definida pela própria natureza e que os estudos sobre as relações entre natureza e sociedade no âmbito educativo têm como função reintegrar esses sujeitos à natureza e, por con- sequência, adaptá-los à sociedade. Essa representação, ingênua, tem ca- ráter fortemente imobilizador pois, ao defender a adaptação dos sujeitos ao ambiente natural, ela não potencializa o processo de conscientização exigido pelas posturas mais críticas. Lembremos que a educação como função adaptadora em relação à sociedade é o fundamento filosófico- -político da educação moderna: as instituições educativas (principalmente a família e a escola) sempre estiveram vinculadas estrategicamente às re- lações de produção. Na sociedade moderna, a escola se consolidou como principal instituição formadora para o trabalho moderno, industrial. Essa formação não diz respeito somente à dimensão técnica dos processos de trabalho mas principalmente à dimensão política: a formação cultural – ideológica – dos indivíduos para o trabalho industrial (ENGUITA, 1989). Seu fundamento está no controle do tempo, na eficiência, na ordem e na disci- plina, na subserviência etc. Então, a educação adaptadora, disciplinatória, As diferentes concepções das relações entre sociedade e natureza 15 tem origem histórica nas teorias não críticas (SAVIANI, 1983), adaptadoras, geradas no início do processo de industrialização e a seu serviço. Assim, as representações naturais e ingênuas do ambiente levam a processos educativos das relações entre natureza e sociedade baseados em formas disciplinatórias (TOZONI-REIS, 2006), objetivando a “mudança de com- portamento” dos sujeitos em busca de comportamentos considerados ambientalmente corretos, configurando-se, como nos ensina Brügguer (1994) em um adestramento ambiental. Assim, também temos que buscar a superação do caráter moralista e moralizante que podemos observar em algumas ações educativas (LOUREIRO, 2004) que se fundamentam nessas representações. Nas representações de ambiente em que os sujeitos sociais têm domínio � sobre a natureza, principalmente por meio dos conhecimentos produzi- dos pela ciência sobre seus processos, temos as representações utilitárias, nas quais encontramos a ideia de que a preocupação das sociedades com o ambiente natural tem sentido utilitário, isto é, a lógica é estritamente econômica, poupadora. A ideia-síntese aqui diz respeito ao cuidado com o ambiente natural como poupança, isto é, os recursos naturais devem ser cuidados para que continuem sendo recursos, mercadorias, para se- rem explorados por mais tempo. Fundamentados nessas representações, os processos educativos que problematizam a relação da natureza com a sociedade têm como principal tarefa a transmissão/aquisição de conheci- mentos técnico-científicos, considerados também como princípio de or- ganização da própria sociedade (TOZONI-REIS, 2006). Nas concepções críticas de ambiente, encontramos a ideia de que a relação � entre homem e natureza é construída pela história social. As teorias críticas de interpretação da realidade fundamentam a ideia de que as formações econômicas da sociedade capitalista são as condições históricas determi- nantes da vida dos sujeitos. Nesse sentido perpassam as propostas educa- tivas fundamentadas nessas teorias, as categorias de totalidade, concretu- de, historicidade e contraditoriedade em um movimento (dialético) que dá forma histórica e social à relação dos sujeitos com a natureza. A história é, então, a força construtiva das relações sociais, e as relações sociais são a força construtiva da relação dos sujeitos com o ambiente em que vivem (TOZONI-REIS, 2004). As ideias educativas que emergem dessa concepção histórica das relações sociais dizem respeito à formação humana: o desen- volvimento pleno dos sujeitos, construídos pelo processo de humanização, que é histórico, concreto e dialético, e é expresso pela prática social, faz 16 As diferentes concepções das relações entre sociedade e natureza a estrutura das ideias educativo-pedagógicas desse referencial. Os temas educativos e as ideias sobre escola tomam a centralidade do trabalho como base teórica: a escola formativa, desinteressada, é a expressão gramsciana de uma proposta educativa em que a preparação para o trabalho não é o objetivo da educação(técnica, de treinamento, profissionalizante), mas o princípio (filosófico e político, humanizador) da organização da educação e do ensino (TOZONI-REIS, 2006). Dessa forma, a concepção crítica da relação entre sociedade e natureza implica um processo educativo com a função de instrumentalizar os sujeitos para uma prática social ecológica e demo- crática, uma prática social transformadora. Assim, para que os temas natureza e sociedade sejam tratados de forma mais aprofundada na Educação Infantil, a identificação das representações de am- biente que as crianças trazem é ponto de partida para um processo de constru- ção, junto às crianças, de um conceito mais complexo de ambiente. As diferentes concepções de natureza Continuando nossas reflexões acerca da necessidade de pensarmos o am- biente e as relações da sociedade com a natureza de forma mais complexa e ampliada, vejamos “como foi e como é concebida a natureza em nossa socieda- de” (PORTO-GONÇALVES, 1990). Podemos buscar na Filosofia, na História e na Economia subsídios teóricos para a compreensão do conceito de natureza. A história da filosofia nos traz importantes contribuições para o estudo do conceito filosófico de natureza. Duarte (1986) estudou o conceito de natureza nos diferentes momentos da história da humanidade como “concepção mágica da natureza” (humanidade primitiva); como “passagem da concepção mágica à concepção científica da natureza” (pensamento clássico grego); como “concep- ção mecanicista” (revolução mecanicista); “como concepção hegeliana de natu- reza” (pensamento dialético). Na concepção mágica temos uma total antropomorfização (antro: “homem, ser humano”) da natureza. Considerada a primeira concepção de natureza da história, caracteriza-se como mágica porque o homem primitivo projetava na natureza traços humanos. Assim, a natureza é valorizada a partir das necessida- des dos seres humanos. A natureza é humanizada, antropoformizada, tem com- portamentos humanos (a árvore “sente”, “pensa” ou “quer”, por exemplo), por isso a chamamos de concepção mágica de natureza. As diferentes concepções das relações entre sociedade e natureza 17 Já no pensamento clássico grego, essa concepção sofreu uma modificação que se caracterizou pela “passagem da concepção mágica à concepção científica” de natureza (DUARTE, 1986). Nesse momento, apareceu uma certa objetividade no conhecimento da natureza, a ideia de domínio, de relação utilitarista do homem com a natureza estava se desenvolvendo. O homem estava na natureza. A ideia de que o homem transcende a natureza também esteve presente no cristianismo da Idade Média – o homem sendo o elo privilegiado entre a natureza e Deus. A relação utilitarista estava implícita na ideia de que a natureza existe para servir ao homem, que era a imagem e criatura de Deus. Assim, essa concepção de natureza ainda era de natureza orgânica, a qual se sustentava na ideia de que o mundo está organizado segundo um sistema de “relação orgânica entre as partes”, que não são autônomas ou independentes. Podemos relacionar a visão orgânica com a visão mágica de natureza, caracterizada por projetar na natureza traços humanos, a natureza sendo vista como algo humanizado e vivo: o organismo. E é importante resgatarmos na história da filosofia a concepção mecani- cista, científica, da natureza, construída pela revolução mecanicista, científica, do século XVII. As ideias produzidas e divulgadas por esse movimento históri- co trouxe a substituição da concepção orgânica pela concepção mecânica do mundo e, portanto, da natureza. Essa concepção mecânica do mundo entende o funcionamento dos processos naturais como semelhante ao de uma máquina, em especial o mecanismo do relógio. Ao descrever a analogia entre máquina e vida biológica, Channel (1991) demonstra como essa concepção se propagou a partir da revolução científica – ou revolução mecanicista – e se incorporou no pensamento moderno. A ideia principal é a de que a natureza tem um funcio- namento semelhante a uma engrenagem, dividida em partes. Essa concepção tem a marca do pensamento de Descartes, que fundamenta a ciência moderna ainda hoje, apesar de todas as discussões sobre sua superação. A lógica antropocêntrica é muito anterior a Descartes, mas a ciência moder- na, fortemente apoiada no pensamento cartesiano, resgatou e fortaleceu o an- tropocentrismo. A crítica à lógica antropocêntrica é a preocupação central de alguns daqueles que tratam do tema ambiental. No entanto, é preciso refletir sobre o conteúdo dessa crítica: é simplista a ideia de que a solução dos proble- mas ambientais ocorrerá pelo deslocamento do homem como dominador da natureza para o homem como mais um elemento da natureza. O pensamento científico (nos séculos XVI e XVII, Copérnico e Galileu contri- buíram para revolucioná-lo) foi organizado sistematicamente por Bacon, que 18 As diferentes concepções das relações entre sociedade e natureza desenvolveu o método empírico na ciência. O objetivo das ciências era dominar e controlar a natureza. Se na Antiguidade a sabedoria servia para a compreensão da ordem natural da vida, no século XVII, como afirmou Capra (1993) “ela passa da integração para a autoafirmação”. Essas ideias foram depois desenvolvidas por Descartes e Newton. A concepção cartesiana caracteriza a ruptura entre homem e natureza, pois o domínio da natureza pelo homem se dá, nessa concepção, por meio da ciência (o instrumento). Nessa lógica, a ciência permite a intervenção na natureza com objetivos práticos e econômicos, emancipando o homem de sua dependência da natureza, considerada aqui primitiva, pré-científica. Com a subordinação à lógica antropocêntrica pelo pensamento científico moderno, a concepção da natureza como selvagem e perigosa foi superada, a natureza sendo então domi- nada pelos homens. Com o desenvolvimento do pensamento dialético, havendo a superação da dialética idealista de Hegel por Marx, a relação entre homem e natureza passou a ser concebida como uma construção histórica e social. Isto é, a concepção de natureza, e da relação da sociedade com a natureza, é resultado das relações que os sujeitos produziram histórica e socialmente. Isso significa dizer que, se temos hoje muitos problemas ambientais, eles não são resultado de ações naturais dos sujeitos sobre o meio, mas de ações intencionais, decididas pelas formas de orga- nização da vida dos sujeitos em sociedade – em particular, as formas econômi- cas. Observemos que, em nossas sociedades desiguais, os sujeitos não decidem, juntos e coletivamente, as formas de se relacionar com a natureza e que os proble- mas ambientais vividos por todos são resultado da decisão daqueles que têm mais poder econômico e político na organização da sociedade. Assim, se a relação entre sociedade e natureza subjacente à lógica formal cartesiana separa o universo em objetos/partes e dá ao homem o poder de do- miná-los, a lógica dialética compreende essa relação permeada pela totalidade, pela contradição e pela intencionalidade humana. O ser humano, segundo essa concepção, é sujeito histórico da construção de sua relação com a natureza. Se a natureza é o “corpo inorgânico” do homem, a extensão de seu limitado e incom- pleto ser biológico, ele transforma-se em natureza, assim como transforma a na- tureza em homem: “o homem vive da natureza, quer dizer: a natureza é seu corpo, com o qual tem que se manter em permanente intercâmbio para não morrer” (MARX, 1993, p. 164). Essa ideia de intercâmbio parece superar a ideia utilitarista ou a ideia de superioridade que indicam ruptura entre o homem e a natureza, assim como a ideia de relação natural, idílica, do homem com a natureza. As diferentes concepções das relações entre sociedade e natureza 19 Para a ampliar nossa própria concepção acerca da relação entre a natureza e a sociedade, passamos agora a refletir sobre sua dimensão econômica. As relações econômicas estabelecidas na sociedade moderna pelo novomodelo de produ- ção – o capitalismo industrial – levaram a uma aceleração, sem precedentes, da degradação ambiental. A desenfreada transformação da natureza em mercado- ria esgotou de tal forma os recursos naturais (que não se renovam na mesma velocidade com que são retirados) que originou a busca de estratégias mundiais de controle (TOZONI-REIS, 2004). Por outro lado, é preciso perceber que, em função dos interesses econômicos internacionais, os países mais ricos tendem a cobrar dos países mais pobres a diminuição do uso dos recursos sem criar, eles próprios, estratégias para isso. Conclusão Vimos, nesta aula, a importância de aprofundarmos nossas concepções acerca de natureza e ambiente como forma de melhor compreender as relações entre natureza e sociedade. Algumas representações, mais restritas ou mais complexas, foram aqui apresentadas. Vimos como essas representações de natureza e da rela- ção sociedade e natureza são a base teórica para ações educativas cujos princípios, objetivos e estratégias não são iguais para todos aqueles que a praticam. Isso signi- fica dizer que há diferenças conceituais que resultam na construção de diferentes práticas educativas ambientais que tematizam a relação entre sociedade e natureza. Essas diferenças conceituais foram sintetizadas em alguns grandes grupos: os que pensam que o processo educativo tem como tarefa promover � mudanças de comportamentos ambientalmente inadequados (a educa- ção ambiental de fundo disciplinatório e moralista, como “adestramento ambiental”); aqueles que pensam esse processo como responsável pela transmissão � de conhecimentos técnico-científicos sobre os processos ambientais que teriam como consequência o desenvolvimento de uma relação mais ade- quada com o ambiente (a educação ambiental centrada na transmissão de conhecimentos) e aqueles que pensam a educação como um processo político de apropria- � ção crítica e reflexiva de conhecimentos, atitudes, valores e comportamen- tos que têm como objetivo a construção de uma sociedade sustentável do ponto de vista ambiental e social (a educação ambiental transformadora e emancipatória). 20 As diferentes concepções das relações entre sociedade e natureza Podemos perceber, nessas diferentes abordagens, que a educação que tema- tiza a relação entre sociedade e natureza pode ter uma perspectiva adaptadora, na medida em que parte de uma análise acrítica das relações sociais e históricas dos sujeitos com o ambiente, ou pode ter uma perspectiva transformadora, par- tindo de uma análise crítica das relações dos sujeitos com o ambiente em que vivem, as quais são determinadas pelas formas históricas da organização das sociedades e cuja marca tem sido a desigualdade. Se o pensar e o agir educativo sobre o ambiente exigem definição conceitual, também é importante que as re- presentações da relação entre sociedade e natureza sejam estudadas, analisadas e refletidas para que, mais competente e consequente, conceitual e praticamen- te, o processo educativo cumpra seu papel respondendo às expectativas que temos criado sobre sua atuação (TOZONI-REIS, 2005). A concepção histórico-social tem sido, portanto, segundo o paradigma que orienta as discussões aqui empreendidas, a mais própria para compreender, da forma mais complexa possível, essa relação. Trata-se de levar em conta as formas históricas de organização dos homens em sociedade e sua relação, também his- tórica, com a natureza. Isso significa dizer que as formas predatórias com que his- toricamente nos relacionamos com o ambiente natural, assim como o ambiente social, foram escolhas que a humanidade fez com relação à organização da socie- dade. A ideia central é que cada sociedade se relaciona com a natureza da forma como escolheu, historicamente. Essa tendência é caracterizada pela ideia de que a relação entre homem e natureza é construída pela história social e que, portanto, a educação, em particular na sua dimensão ambiental, tem como função instru- mentalizar os sujeitos para uma prática social ecológica e democrática. É o pensamento marxista o principal referencial epistemológico das concep- ções críticas de ambiente e de educação. Na teoria marxista de interpretação da realidade, as formações econômicas da sociedade capitalista são as condições his- tóricas determinantes da vida dos sujeitos. Nesse sentido, perpassam essa inter- pretação as categorias de totalidade, concretude, historicidade e contraditoriedade em um movimento (dialético) que dão forma à relação da sociedade com a nature- za. A história é, então, a força construtiva das relações sociais, e as relações sociais são a força construtiva da relação dos sujeitos com o ambiente em que vivem. As ideias educativas que emergem dessa concepção histórica das relações sociais dizem respeito à formação humana: o desenvolvimento pleno dos sujei- As diferentes concepções das relações entre sociedade e natureza 21 tos, que são construídos pelo processo de humanização (que é histórico, con- creto e dialético, sendo expresso pela prática social), faz a estrutura das ideias educativo-pedagógicas desse referencial. A contextualização histórica e social dos conhecimentos é uma outra con- tribuição dessa abordagem para o entendimento da relação entre sociedade e natureza e para o entendimento da educação crítica: a apropriação desses co- nhecimentos como instrumentos do processo de humanização modifica inten- cionalmente os sujeitos, os próprios conhecimentos, a história e a sociedade e elabora a cultura para que ela seja apropriada no processo de humanização. A formação de sujeitos social e ambientalmente responsáveis, comprometi- dos com a construção de uma relação mais responsável da sociedade para com a natureza, é uma ação política intencional e, portanto, necessita de sistemati- zação pedagógica e metodológica. A formação humana que essa abordagem requer é educação plena, é um processo de apropriação, pelos sujeitos, da hu- manidade construída histórica e coletivamente pela própria humanidade (SA- VIANI, 1994). Dessa forma, o processo educativo para a construção dessa relação diz respeito à relação entre cidadania e ambiente, às formas históricas com que a humanidade se relaciona com o ambiente assim como às formas históricas das relações entre os sujeitos e destes com o ambiente, priorizando a necessidade de participação política dos sujeitos sociais. Essa participação política é resulta- do, no campo educativo, da apropriação crítica e reflexiva dos conhecimentos sobre o ambiente, a qual poderá garantir os espaços de construção e reelabo- ração de valores éticos para uma relação responsável dos sujeitos entre si e dos sujeitos com o ambiente. A apropriação crítica de conhecimentos parte de uma concepção de ambien- te mais complexa, que considera seu caráter social, histórico e dinâmico, supe- rando a concepção biológica, reducionista, entendendo o ambiente como sínte- se de múltiplas determinações. Nesse sentido, Leff (2001) afirma que “o ambiente não é, pois, o meio que circunda as espécies e as populações biológicas, é uma categoria sociológica (e não biológica), relativa a uma racionalidade social, confi- gurada por comportamentos, valores e saberes, como também novos potenciais produtivos” (LEFF, 2001, p. 224). O ambiente é, assim, fundante do processo de construção do saber ambiental, que, problematizado, gera ações voltadas para a construção de uma nova racionalidade social e ambiental em que a sustentabili- dade, a justiça e a democracia estejam sempre presentes. 22 As diferentes concepções das relações entre sociedade e natureza Texto complementar O conceito de natureza não é natural (PORTO-GONÇALVES, 1990) É comum entre aqueles que se envolvem com a problemática ecológica citar outras sociedades como modelos de relação entre os homens e a natu- reza. As comunidades indígenas e as sociedades orientais são, via de regra, evocadas como modelos de uma relação harmônica com a natureza. Se em diferentesreligiões o paraíso é projetado no reino dos céus, para diversos eco- logistas este se localiza em outras sociedades. Há uma virtude nesse procedi- mento: ele oferece um consolo, enquanto ideia, para o mundo em que vive- mos – que concretamente não tem consolo. Isso não deixa de ser, à sua moda, uma crítica à sociedade que não é tal e qual os modelos citados, daí as utopias. Nesse sentido, as utopias têm lugar concreto num mundo onde não existem concretamente, sendo por isso sonhadas e projetadas enquanto utopias. Por outro lado, esse procedimento não deixa de ser também uma fuga dos pro- blemas concretos, muitas vezes derivada de uma incompreensão das razões pelas quais em nossa sociedade e cultura as coisas são do jeito que são. Toda sociedade, toda cultura cria, inventa, institui uma determinada ideia do que seja a natureza. Nesse sentido, o conceito de natureza não é natural, sendo na verdade criado e instituído pelos homens. Constitui um dos pilares através do qual os homens erguem as suas relações sociais, sua produção material e espiritual, enfim, a sua cultura. Dessa forma, é fundamental que reflitamos e analisemos como foi e como é concebida a natureza na nossa sociedade, o que tem servido como um dos suportes para o modo de produzirmos e vivermos, que tantos problemas nos tem causado e contra o qual constituímos o movimento ecológico. Dicas de estudo LOUREIRO, Carlos Frederico B. Trajetória e Fundamentos da Educação Am- biental. São Paulo: Cortez, 2004. As diferentes concepções das relações entre sociedade e natureza 23 Esse livro tem sido uma das principais referências sobre a educação ambien- tal na perspectiva crítica, transformadora e emancipatória. Dessa forma, é funda- mental sua leitura para que se tenha mais clareza desse tipo de abordagem na relação entre a sociedade e a natureza. REIGOTA, Marcos. Por uma filosofia da educação ambiental. In: _____. Meio Am- biente e Representação Social. São Paulo: Cortez, 1995. Nesse texto, Reigota discute diferentes representações de ambiente que im- plicam em diferentes relações entre a sociedade e a natureza. Trata-se de uma leitura obrigatória para o estudo das diferentes abordagens na relação entre na- tureza e sociedade. TOZONI-REIS, Marília Freitas de Campos. (Re)pensando a educação ambiental. 5.º Congresso Ibero-americano de Educação Ambiental. Anais... Joinville, abr. 2006. Nesse pequeno texto tento sintetizar a discussão sobre as diferentes aborda- gens da educação ambiental, que implica também em diferentes abordagens sobre as relações entre sociedade e natureza, tema de estudo deste capítulo. Vídeo: Ilha das Flores. Diretor: Jorge Furtado. Brasil: Sagres, 1988. Parte da coletânea Curta os Gaúchos. Atividades 1. Leia atentamente o texto sublinhando as ideias principais para identificar as diferentes concepções entre sociedade e natureza 2. Faça um esquema com as ideias que identifiquem as diferentes concepções das relações entre sociedade e natureza 24 As diferentes concepções das relações entre sociedade e natureza 3. Descreva a concepção histórica e social das relações entre sociedade e na- tureza. As diferentes concepções das relações entre sociedade e natureza 25 Referências BRÜGGER, Paula. Educação ou Adestramento Ambiental? Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1994. CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergen- te. 9. ed. São Paulo: Cultrix, 1993. CARVALHO, Vilson Sérgio. Educação Ambiental e Desenvolvimento Comuni- tário. Rio de Janeiro: Wak, 2002. CHANNEL, David F. The Vital Machine. Oxford: Oxford University Press, 1991. DIAS, Genebaldo Freire. Atividades Interdisciplinares de Educação Ambien- tal: manual do professor. São Paulo: Global, 1994. DUARTE, Rodrigo A. de Paiva. Marx e a Natureza em o Capital. São Paulo: Loyola, 1986. ENGUITA, Mariano Fernandes. O trabalho atual como forma histórica. In: ENGUI- TA, M.F. A Face Oculta da Escola. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. GUIMARÃES, Mauro. A Formação de Educadores Ambientais. Campinas: Papi- rus, 2004. LEFF, Enrique. Saber Ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexida- de, poder. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. LOUREIRO, Carlos Frederico B. Trajetória e Fundamentos da Educação Am- biental. São Paulo: Cortez, 2004. MARX, Karl. Manuscritos Económicos-Filosóficos. Lisboa: Edições 70. 1993. MOSCOVICI, Serge. A Representação Social da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. PARDO DÍAZ, Alberto. Educação Ambiental como Projeto. Porto Alegre: Artmed, 2002. PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Os (Des)Caminhos do Meio Ambiente. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1990. REIGOTA, Marcos. Meio ambiente e representação social. São Paulo: Cortez, 1995a. 26 As diferentes concepções das relações entre sociedade e natureza _____. Por uma filosofia da educação ambiental. In: _____. Meio Ambiente e Representação Social. São Paulo: Cortez, 1995b. SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice: o social e o político na pós- modernidade. 4. ed. São Paulo: Cortez, 1997. SAVIANI, Demerval. Escola e Democracia. São Paulo: Cortez, 1983. _____. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 10. ed. São Paulo: Cortez, 1991. _____. A Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. Campinas: Au- tores Associados, 1994. TOZONI-REIS, Marília Freitas de Campos. Infância, Escola e Pobreza: ficção e realidade. Campinas: Autores Associados, 2002. _____. Educação ambiental: natureza, razão e história. Campinas: Autores As- sociados, 2004. _____. Compartilhando saberes: pesquisa e ação educativa ambiental. In: FERRARO JÚNIOR, Luiz Antônio (Org.). Encontros e Caminhos: formação de educadoras(es) ambientais e coletivos educadores. Brasília: Ministério do Meio Ambiente. Diretoria de Educação Ambiental, 2005. _____. (Re)pensando a educação ambiental. CONGRESSO IBERO-AMERICANO DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL, 5. Anais... Joinville-SC, abril de 2006. Gabarito 2. Concepções adaptadoras ou conciliatórias: defendem propostas que conci- liam a forma de organização das sociedades atuais em suas relações com a natureza. a) Disciplinatória e moralista: os sujeitos sociais devem se submeter às leis da natureza, se adaptando a ela. b) Conteúdista: os sujeitos sociais devem conhecer as leis da natureza para se adaptar a ela. As diferentes concepções das relações entre sociedade e natureza 27 Concepções transformadoras: defendem propostas que consideram que o modelo de organização das sociedades atuais precisa ser transformado para que se estabeleça uma relação de respeito entre a sociedade e a natureza 3. A concepção histórica e social é uma concepção transformadora das rela- ções atuais entre a sociedade e a natureza porque insere na história das re- lações sociais com a natureza a responsabilidade dos problemas ambientais, pois foram nossas escolhas econômicas, políticas e sociais que, ao longo da história, determinaram os problemas que hoje vivemos. O conhecimento do mundo social e natural Para refletir sobre o papel do conhecimento na construção das rela- ções entre a sociedade e a natureza, é preciso refletir sobre o que é co- nhecimento e os diferentes tipos de conhecimento que possibilitam nos inteirarmos do mundo natural e social. Iniciemos refletindo que o objetivo do conhecimento é o desvelamento e o domínio da realidade, o seu escla- recimento, de modo que o conhecimento caracteriza-se como uma neces- sidade humana de compreender o mundo que nos cerca. Pensemos no conhecimento como um mecanismo de compreensão e transformação do mundo, mas também como uma necessidade para a ação e, ainda, como um elemento de libertação (LUCKESI, 1985). Portanto, o conhecimento é uma forma teórico-prática de compreensão do mundo, dos homens e das coisas, um instrumento para o entendimento das relações dos sujeitos entre si e deles com o ambiente em que vivem, em variadas, múltiplas e detalhadas dimensões. Para melhor compreensão do papel do conhecimento do mundo sociale natural no estudo sobre as relações entre natureza e sociedade, pode- mos refletir sobre três tipos de conhecimento: o conhecimento filosó- fico, o conhecimento tradicional e o conhecimento científico. Conhecimento filosófico Longe de ser abstrata, estéril e hermética, a Filosofia é uma forma de compreensão e transformação da realidade, uma concepção geral do mundo que resulta em uma forma de agir, uma forma de conhecimento pela qual o ser humano toma consciência de si, do sentido da sua histó- ria, do significado da vida. O conhecimento filosófico tem, portanto, como objetivo o desvelamento, o julgamento crítico, o julgamento de valores de uma sociedade: trata-se de desvelar a realidade para agir sobre ela. O conhecimento filosófico é o conhecimento que nos leva a posicionamen- tos críticos sobre a realidade e é fundamental para pensarmos as relações entre sociedade e natureza. 30 O conhecimento do mundo social e natural Se a Filosofia é um posicionamento crítico, conforme dissemos antes, cabe a pergunta: como pode, até inconscientemente, a Filosofia orientar alguma prática humana? Ocorre que se não nos dedicarmos a pensar, criticamente, a orientação para a nossa prática, alguém, em algum lugar e situação, estará pensando por nós e, ao mesmo tempo, decidindo. Nesse caso, nós estaremos agindo acriticamente, orientados por um pensamento crítico de outros. Ou seja, submissos às decisões de outros. Normalmente, estaremos sendo submissos às decisões dos poderes oficiais sobre as orientações que devem nortear a vida social. (LUCKESI, 1985, p. 66) Portanto, o conhecimento filosófico é aquele pelo qual tomamos consciência de nós mesmos, do mundo, da vida, do nosso projeto de futuro. Nesse sentido, o conhecimento filosófico é o estudo e a reflexão sobre os princípios norteadores de nossas ações no mundo e, sem ele, torna-se impossível nosso conhecimento do mundo social e natural, inviabilizando também nossos estudos sobre as rela- ções da natureza com a sociedade. Conhecimento científico O conhecimento científico, por outro lado, resulta do objetivo da ciência: es- tudar e esclarecer os fenômenos do mundo natural (físicos, biológicos, quími- cos etc.), dos objetos ideais (lógicos e matemáticos) e dos fenômenos culturais (sociológicos, históricos etc.). Vejamos o que nos diz Saviani sobre a ciência e o conhecimento: Ciência é exatamente o saber metódico, sistematizado. A esse respeito é ilustrativo o modo como os gregos consideravam essa questão. Em grego, temos três palavras referidas ao fenômeno do conhecimento: doxa (δoξα), sofia ( ) e episteme ( ). Doxa significa “opinião”, isto é, o saber próprio do senso comum, o conhecimento espontâneo ligado diretamente à experiência cotidiana, um claro-escuro, misto de verdade e de erro. Sofia é a sabedoria fundada numa longa experiência da vida. É nesse sentido que se diz que os velhos são sábios e que os jovens devem ouvir seus conselhos. Finalmente, episteme significa “ciência”, isto é, o conhecimento metódico e sistematizado. Consequentemente, se do ponto de vista da sofia um velho é sempre mais sábio do que um jovem, do ponto de vista da episteme um jovem pode ser mais sábio do que um velho. (SAVIANI, 1994, p.10) Diferentemente do conhecimento filosófico, o conhecimento científico se propõe a desvendar o mundo do ponto de vista dos acontecimentos factuais, isto é, se o conhecimento filosófico indica um modo de ser e agir, sendo assim normativo, o conhecimento científico busca a compreensão das relações entre os fenômenos, tendendo a ser, portanto, mais explicativo e descritivo. O conhecimento do mundo social e natural 31 O conhecimento científico, no geral, pretende estabelecer uma forma de conexão inteligível entre os elementos identificados, seja nas ciências da natureza, seja nas ciências matemá- ticas, seja nas ciências da cultura. Esclarecer, tornando-os inteligíveis pela descoberta ou estabelecimento de conexões lógicas entre os mesmos; é o objetivo da ciência. (LUCKESI, 1985) Conhecimento tradicional Por sua vez, o conhecimento tradicional, um terceiro tipo de conhecimento que contribui para nossos estudos das relações entre natureza e sociedade, constitui- -se de conhecimentos oriundos das práticas sociais estabelecidas pelos sujeitos dos grupos sociais ao longo dos tempos. São conhecimentos empíricos e costumes culturais transmitidos de uma geração para outra. Têm destaque nos conhecimen- tos científicos tradicionais as crenças das comunidades tradicionais que vivem em contato direto com a natureza. Os conhecimentos tradicionais são resultado de um processo cumulativo, informal e de longo tempo de formação, constituindo- -se em um patrimônio comum de determinados grupos sociais, sendo a expres- são mais perfeita do caráter social do conhecimento, pois ele não pertence a este ou aquele indivíduo, mas a toda a comunidade. Assim, toda a comunidade que produziu, histórica e coletivamente, o conhecimento que fundamenta sua prática social recebe, também coletivamente, os benefícios desse conhecimento. A valo- rização do conhecimento tradicional pela parceria com o conhecimento científico e filosófico foi discutida por Boaventura de Sousa Santos ao refletir sobre a impor- tância de promover, na universidade, a “ecologia de saberes”: Consiste [a ecologia de saberes] na promoção do diálogo entre o saber científico ou humanístico, que a universidade produz, e saberes leigos, populares, tradicionais, urbanos, camponeses, provindos de culturas não ocidentais (indígenas, de origem africana, oriental etc.) que circulam na sociedade. [...] A ecologia de saberes são conjuntos de práticas que promovem uma convivência ativa de saberes no pressuposto que todos eles, incluindo o saber científico, se podem enriquecer nesse diálogo. Implica uma vasta gama de ações de valorização, tanto do conhecimento científico, como de outros conhecimentos práticos, considerados úteis, cuja partilha por pesquisadores, estudantes e grupos de cidadãos serve de base à criação de comunidades epistêmicas mais amplas que convertem a universidade num espaço público de interconhecimento onde os cidadãos e os grupos sociais podem intervir sem ser exclusivamente na posição de aprendizes. (SANTOS, 2004, p. 76-78) Pensemos que, para melhor compreensão do mundo natural e social, os três tipos de conhecimentos são importantes e que é possível, na medida da criati- vidade e da vontade do professor da Educação Infantil e da primeira etapa do Ensino Fundamental, articular, na busca do conhecimento do mundo em que elas vivem, esses três tipos de conhecimento. 32 O conhecimento do mundo social e natural A diversidade como fundamento do conhecimento do mundo natural e social Se os conhecimentos filosófico, científico e tradicional têm papel importante no conhecimento do mundo, podemos eleger como base de nossas interpreta- ções do mundo natural e social a diversidade. O principal argumento para essa proposta é que, se no mundo natural a biodiversidade se revela como a princi- pal forma de organização das relações naturais, no mundo social a diversidade também pode se apresentar como fundamental para a compreensão das rela- ções entre os sujeitos. E o que é biodiversidade? Iniciemos pensando que a biodiversidade vem sendo valorizada há pouco tempo, quando se descobriu, por meio de estudos sobre os processos ecológicos do ambiente, que quanto mais diversidade de vida (bio: “vida”; diversidade: “diferença”) possui um ecossistema, mais rico e produtivo ele é. De acordo com o artigo 7.º da Convenção sobre a Diversidade Biológica, pactuada na Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento durante a Rio-92, biodiversidade é a variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, entre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte. Compreende, ainda, a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas. Por-tanto, podemos perceber que a biodiversidade diz respeito a todos os recursos vivos da Terra e também sua importância para o ser humano, tanto do ponto de vista da qualidade de vida no ambiente quanto do ponto de vista da explora- ção social e econômica dos recursos naturais como patrimônio natural de uma nação. Movida por interesses principalmente econômicos, a comunidade interna- cional desenvolveu conhecimentos sobre biotecnologia, que são formas tecno- lógicas de exploração científica e econômica dos recursos biológicos da natu- reza. A produção desses conhecimentos revelou a importância da diversidade no desenvolvimento dos mais variados produtos por meio da biotecnologia, principalmente os produtos farmacológicos (WILSON, 1994, 1997). Por outro lado, para além dos interesses estritamente econômicos, os estudos científicos revelaram também a importância da biodiversidade no equilíbrio ambiental. Po- demos afirmar, hoje, que a biodiversidade é o princípio da organização das rela- ções ecológicas nos ecossistemas e que ele cria as condições necessárias para o equilíbrio dinâmico que é característico de sua sobrevivência. O conhecimento do mundo social e natural 33 Texto complementar Agenda 21 Capítulo 15 Conservação da diversidade biológica (ONU, 2007) Introdução 15.1. Os objetivos e atividades deste capítulo da Agenda 21 têm o propó- sito de melhorar a conservação da diversidade biológica e o uso sustentável dos recursos biológicos, bem como apoiar a Convenção sobre Diversidade Biológica. 15.2. Os bens e serviços essenciais de nosso planeta dependem da va- riedade e variabilidade dos genes, espécies, populações e ecossistemas. Os recursos biológicos nos alimentam e nos vestem, e nos proporcionam mo- radia, remédios e alimento espiritual. Os ecossistemas naturais de florestas, savanas, pradarias e pastagens, desertos, tundras, rios, lagos e mares contêm a maior parte da diversidade biológica da Terra. Os campos agrícolas e os jardins também têm grande importância como repositórios, enquanto os bancos de genes, os jardins botânicos, os jardins zoológicos e outros reposi- tórios de germoplasma fazem uma contribuição pequena mas significativa. O atual declínio da diversidade biológica resulta em grande parte da ativida- de humana, e representa uma séria ameaça ao desenvolvimento humano. Aprender com a natureza Se a diversidade é princípio organizativo do mundo natural, expressa pela riqueza da biodiversidade nos ambientes naturais como forma de equilíbrio di- nâmico, podemos, para a compreensão do mundo social, aprender com a natu- reza, isto é, compreender a importância da diversidade no mundo social. Se a biodiversidade é a expressão da organização do mundo natural, podemos con- siderar a diversidade cultural como expressão da organização do mundo social. Nesse sentido, valorizar a diversidade significa aceitar e estimular a pluralidade 34 O conhecimento do mundo social e natural de ideias, comportamentos, valores e crenças; significa aceitar e aprender com o diferente, o diverso, o plural. A pluralidade, aqui, diz respeito à tolerância, ao reconhecimento, à parceria. No entanto, no conhecimento do mundo social também é preciso refletir sobre a relação da diversidade com a igualdade. Segundo a orientação desse estudo, igualdade e diversidade não são con- ceitos excludentes: o que significa pensar, na organização social, a igualdade na diversidade? A sociedade é uma criação da vontade política dos homens ao longo de sua história. Dessa forma, o modelo da sociedade em que vivemos, a sociedade moderna, produz indivíduos semelhantes, diversos e socialmente desiguais. Touraine (1998) e Heller e Fehér (1998) nos oferecem a ideia de diver- sidade e pluralidade como elementos novos e indispensáveis para entender as organizações sociais da atualidade: a “condição política pós-moderna se baseia na aceitação da pluralidade de culturas e de discursos” (HELLER; FEHÉR, 1998, p. 16). A complexidade dos conflitos sociais da atualidade imprime enorme im- portância aos movimentos sociais, culturais e políticos como agentes de mu- danças históricas e, portanto, vivemos um momento que exige a superação da dicotomia entre igualdade e diversidade. Nosso desafio é buscar a igualdade social respeitando e aceitando a diversidade. Essas reflexões são fundamentais para a organização da educação de crianças e somente por meio dos princípios de igualdade e diversidade podemos construir, com elas, o conhecimento do mundo social no qual elas próprias estão inseridas. Texto complementar Brasil é oitavo país em desigualdade social, diz pesquisa (ZIMMERMANN; SPITZ, 2005) O Brasil é o oitavo país em desigualdade social, na frente apenas da latino- -americana Guatemala, e dos africanos Suazilândia, República Centro-Africa- na, Serra Leoa, Botsuana, Lesoto e Namíbia, segundo o coeficiente de Gini, parâmetro internacionalmente usado para medir a concentração de renda. [...] O conhecimento do mundo social e natural 35 De acordo com o documento, no Brasil 46,9% da renda nacional con- centram-se nas mãos dos 10% mais ricos. Já os 10% mais pobres ficam com apenas 0,7% da renda. Na Guatemala, por exemplo, os 10% mais ricos ficam com 48,3% da renda nacional, enquanto na Namíbia, o país com o pior coefi- ciente de desigualdade, os 10% mais ricos ficam com 64,5% da renda. Economia O documento destaca ainda que a desigualdade social pode travar a ex- pansão econômica e tornar mais difícil que os pobres sejam beneficiados pelo crescimento. [...] Ao alertar para a gravidade das diferenças sociais no mundo, o represen- tante do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) Ri- cardo Fuentes, afirmou que em uma hora cerca de 1,2 mil crianças morrem no mundo, o que equivale a três tsunamis por mês. [...] Segundo ele, a “extrema desigualdade” limita até mesmo a legitimidade po- lítica de alguns governos, e deve ser objeto de políticas públicas específicas. Simulação Uma simulação do PNUD revela que o Brasil cairia 52 posições no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano caso o índice fosse calculado com base na renda dos 20% mais pobres e não no produto interno bruto (PIB) per capita. O país passaria, então, da 63.ª colocação para o 115.º lugar entre os 177 países avaliados. Esse resultado seria obtido mudando somente a variá- vel renda, sem alterar os indicadores de educação e longevidade. O estudo revela ainda que a transferência de 5% da renda dos 20% mais ricos do país para os mais pobres seria capaz de retirar 26 milhões de pessoas da linha da pobreza e reduzir a taxa de pobreza de 22% para 7%. Na avaliação do PNUD, segundo o relatório, para que as Metas do Milênio sejam atingidas, é preciso uma ampliação substancial da qualidade e quanti- 36 O conhecimento do mundo social e natural dade de ajuda ao desenvolvimento, além de bases mais justas para o comér- cio internacional e a redução de conflitos violentos entre os povos. Entre as chamadas Metas do Milênio está a de reduzir pela metade, entre 1990 e 2015, tanto a porcentagem de pessoas cujo rendimento é inferior a US$1 por dia quanto o percentual da população que sofre de fome. [...] O papel da ciência no conhecimento do mundo natural e social Para compreender o papel da ciência no conhecimento do mundo natural e social, busquemos algumas informações sobre a história da ciência moderna, seus pressupostos, no que ela se baseia e as mudanças que vem sofrendo nos últimos anos. A ciência que conhecemos hoje é a ciência moderna. O conhecimento e o poder, na Idade Média, estavam concentrados nas mãos da Igreja. Então, a revo- lução científica trouxe uma transformação no poder da Igreja. A explicação divina para a vida, divulgada pela Igreja, foi substituída pela explicação dos homens, a explicação da vida pela ciência. Copérnico e Galileu, Descartes, Bacon e Newton são os principais representantes do pensamento científico moderno. Nos séculos XVI e XVII, Copérnicoe Galileu contribuíram para revolucionar o pensamento do- minante na explicação da vida, fundando o pensamento científico, organizado sis- tematicamente por Bacon, que desenvolveu o método empírico na ciência. O ob- jetivo das ciências foi, então, dominar e controlar a natureza. Se, na Antiguidade, a sabedoria tinha por finalidade a compreensão da ordem natural da vida, no século XVII ela passou da integração para a autoafirmação. Descartes contribuiu para o de- senvolvimento do método nas ciências, desenvolvido com base no empirismo, na objetividade, na neutralidade, e, principalmente, no antropocentrismo. Lembremos que a ciência moderna significou um grande avanço na explica- ção do mundo e das coisas e grande foi o seu desenvolvimento, produzindo co- nhecimentos sobre os fenômenos do mundo natural (físicos, biológicos, quími- cos etc.), dos objetos ideais (lógicos e matemáticos) e dos fenômenos culturais (sociológicos, históricos etc.). Embora esses conhecimentos tenham avançado enormemente sob o método científico moderno, vivemos, há algumas décadas, uma crise dos paradigmas científicos. Paradigmas são princípios de organização das teorias, modelos, tipos exem- plares, conjunto de crenças, valores e técnicas que fundamentam o processo de desenvolvimento do conhecimento científico. A crise dos paradigmas da ciência O conhecimento do mundo social e natural 37 moderna, hoje muito difundido, é o reconhecimento, no mundo científico, da in- suficiência dos pressupostos para a explicação dos fenômenos estudados. Berman (1986), Kuhn (1987), Capra (1993), Prigogine e Stengers (1997), Santos, (1989, 1995, 1997) e Morin (s/d), entre outros, são importantes referências para essa discussão. O consenso teórico que esses autores constroem diz respeito à superação do pa- radigma mecanicista dominante na ciência moderna, indicando que está a surgir uma nova concepção de ciência e, portanto, de sociedade. A constatação de que a confiança epistemológica da ciência está abalada é o ponto de partida para a construção de uma nova forma de pensar e fazer o mundo e a vida, o ponto de partida de uma alternativa para a construção do conhecimento: estamos vivendo um momento de transição paradigmática (SANTOS, 1995, 1997). A crise dos paradigmas nas ciências, na sociedade e, particularmente para nós na educação, tem sido um tema muito discutido desde a década de 1960. A ideia-base é a insuficiência do paradigma da ciência moderna – mecânica, carte- siana, positiva, empírica, antropocêntrica etc. – para a compreensão da natureza e para a organização dos homens em sociedade. A certeza de que a ciência não tem conseguido resolver problemas científicos e não científicos a partir de seus referenciais teórico-metodológicos tradicionais já está consolidada. Essa situa- ção de turbulência levou a própria comunidade científica a buscar novos cami- nhos epistemológicos – novos paradigmas – que revolucionam a ciência porque, por um lado, preocupam-se em responder aos problemas que os paradigmas anteriores não conseguiram resolver e, por outro, produzem a nova estrutura da ciência. Kuhn (1987) analisa as relações do pensamento científico com a organi- zação social e faz uma crítica radical à legitimação do saber e do poder, dos con- ceitos da ciência e da ordem social na sociedade moderna. A ideia de verdade ab- soluta, segundo esse autor, está em crise e, portanto, deixa de existir. Porém, seu lugar permanece vazio e os conflitos paradigmáticos são os principais referen- ciais da ciência e da organização social nesse momento (TOZONI-REIS, 2004). Contribuindo para discussão, Capra (1993) analisa o surgimento da nova física como expressão da revolução nas ciências. Nesse sentido, a transição de paradig- mas se dá substituindo a concepção mecânica pela concepção holística, ecoló- gica e intrinsecamente dinâmica do universo. Segundo o autor, o holismo aqui pretendido tem um caráter fortemente místico. A física é apresentada como a ci- ência básica de todas as ciências, e a cada ciência ele coloca a tarefa de descobrir limitações mecanicistas de seu próprio contexto. A problemática fundamental das ciências hoje é a ampliação dos referenciais. Essa nova visão diz respeito, essen- cialmente, à inter-relação e a interdependência de todos os fenômenos – físicos, biológicos, psicológicos, sociais e culturais. É uma visão sistêmica: 38 O conhecimento do mundo social e natural Os sistemas são totalidades integradas cujas propriedades não podem ser reduzidas às unidades menores. Em vez de se concentrar nos elementos ou substâncias básicas, a abordagem sistêmica enfatiza princípios básicos de organização. Os exemplos de sistemas são abundantes na natureza. Todo e qualquer organismo – desde a menor bactéria até os seres humanos, passando pela imensa variedade de plantas e animais – é uma totalidade integrada e, portanto, um sistema vivo. As células são sistemas vivos, assim como os vários tecidos e órgãos do corpo, sendo o cérebro humano o exemplo mais complexo. Mas os sistemas não estão limitados a organismos individuais e suas partes. Os mesmos aspectos de totalidade são exibidos por sistemas sociais – como o formigueiro, a colmeia ou uma família humana – e por ecossistemas que consistem numa variedade de organismos e matéria inanimada em interação mútua. O que se preserva numa região selvagem não são árvores ou organismos individuais, mas a teia complexa de relações entre eles. (CAPRA, 1993, p. 260) Essas ideias vem tendo muita influência nos meios científicos. Para Prigogi- ne (1996), a crise do paradigma científico é a crise da crença na capacidade da ciência moderna para compreender a natureza e o mundo a partir da submissão do pensamento aos processos objetivos de verificação racional. A ideia de um mundo natural e social simples e racionalmente organizado, presente na ciência moderna, está abalada pelo próprio desenvolvimento científico – “a ciência atin- giu hoje seus próprios limites” (PRIGOGINE; STENGERS, 1997, p. 40). O universo da ciência moderna é linear, o tempo é reversível, a ordenação do mundo é não caótica, mas para a nova ciência o universo é turbulento, não linear, irreversível e caótico (PRIGOGINE, 1996). A estabilidade da natureza é de equilíbrio, mas um equilíbrio dinâmico (CAPRA, 1993). Assim, o ideal do conhecimento científico clássico, que pretende esgotar a inter- pretação da realidade natural e social, tem que ser substituído por novas sínteses. A concepção mecânica é substituída pela concepção dinâmica, uma complexa con- cepção de mundo. “Chegou o tempo de novas alianças, desde sempre formadas, durante muito tempo ignoradas, entre a história dos homens, de suas sociedades e seus saberes e a aventura exploradora da natureza” (PRIGOGINE; STENGERS, 1997, p. 226). Morin (s/d) também debate o novo espírito científico na linha da complexidade da ciência. A crise do paradigma científico é, também para esse autor, a crise da objetividade dos enunciados científicos e da objetividade das verificações cientí- ficas. Partindo do pressuposto contemporâneo de que a ciência não é totalmente científica – “cientificidade é a parte emersa de um iceberg profundo de não cienti- ficidade” (p. 18) –, está colocada a complexidade, que comporta a imperfeição, a incerteza e o reconhecimento da impossibilidade de reduzir os fenômenos para estudá-los. As análises de Capra, Prigogine e Morin têm em comum a necessidade de reconhecer a participação e/ou intervenção do sujeito no processo de conheci- O conhecimento do mundo social e natural 39 mento. Dessa forma, a objetividade da ciência moderna (um dos seus pilares) é questionada. Constatando-se ser impossível a objetividade, a perspectiva que se abre é a de superação do paradigma científico formal e disciplinar em busca de um paradigma complexo e totalizante. A ciência aparece articulada à cultura, “a nova ciência é a ciência humana” (PRIGOGINE; STENGERS, 1997). Se o consenso entre os autores que discutema crise de paradigma da ciên- cia moderna é a própria crise, isto é, o reconhecimento de que os paradigmas da ciência moderna não são suficientes para explicar o dinamismo do mundo natural e do mundo social, não podemos dizer que o holismo e a complexi- dade se constituem nesses novos paradigmas de forma definitiva. Ao contrá- rio, Grün (1996) considera essa abordagem uma solução vaga e apressada e Tozoni-Reis (2004), concordando com esses argumentos, identifica o holismo e a complexidade como base teórica das abordagens desmobilizadoras da re- lação da sociedade com o ambiente. Santos (1995) contribui para esse debate partindo de uma abordagem diferente: discute a crise do paradigma moderno – dominante – e o surgimento de um novo paradigma – emergente. O pressu- posto desse autor é que não faz mais sentido a distinção entre as ciências na- turais e as ciências sociais, e também que há uma necessidade de superação da dicotomia entre o conhecimento científico e o conhecimento popular (senso comum). Isso não implica recusar ou negligenciar as diferenças ônticas entre os objetos das ciências sociais e os das ciências naturais. Os objetos são distintos, mas o que os une é mais importante, no plano epistemológico, do que o que os separa. O que os separa só é epistemologicamente decisivo num paradigma científico que se propõe um conhecimento instrumentalista e dominador da natureza e, portanto, do homem. (SANTOS, 1989, p. 69) Esse autor identifica no plano social o caráter dominador da ciência moderna. Nesse sentido, a racionalidade científica viabilizou um projeto político e econô- mico dominador – o capitalismo. Assim, o esgotamento do paradigma domi- nante que hoje vivemos, tanto do ponto de vista do desenvolvimento da ciên- cia quanto, principalmente, do ponto de vista da organização social traz para a pós-modernidade a necessidade de pensar a partir do princípio da totalidade. A superação da dicotomia entre ciências naturais e ciências sociais tende a re- valorizar os estudos humanísticos. As tradicionais tarefas de compreensão do mundo (ciências humanas) e controle da natureza (ciências naturais) exigem transformações radicais, por meio de um diálogo radical, para o enfrentamento dos desafios epistemológicos e sociais contemporâneos (TOZONI-REIS, 2004). Nesse movimento, todo conhecimento se articula, e até o conhecimento do senso comum é reabilitado. 40 O conhecimento do mundo social e natural É nesse sentido que lançar mão da ciência como instrumento de conheci- mento do mundo natural e social é articular o conhecimento científico com o co- nhecimento filosófico e o conhecimento tradicional, buscando a compreensão mais complexa e total das relações dos sujeitos entre si e deles com o ambiente em que vivem. Conclusão As discussões sobre os novos paradigmas das ciências sociais e naturais estão aqui por causa das implicações pedagógicas que trazem para a educação de crianças pequenas. É importante que os professores percebam a complexidade do papel da ciência no conhecimento do mundo social e natural, tanto do ponto de vista epistemológico quanto do ponto de vista pedagógico. Sobre o conheci- mento do mundo, vejamos o que nos diz Kamii (2003, p. 119): Na construção do conhecimento físico na criança, pode encarar-se um certo continuum no que se respeita aos papéis relativos da ação e da observação. Os exemplos apontados situam-se num extremo do continuum, onde a ação da criança é predominante. Quando empurra um objeto, por exemplo, esta ação produz um efeito simples, diretamente observável. No outro extremo do continuum situam-se as atividades nas quais a observação prima e o papel da ação da criança se remete a um plano secundário. Articuladas ao estímulo e às discussões coletivas para, pelo pensamento, compreender o mundo que nos cerca, a ação e a observação são as atitudes principais pedagógicas no processo de conhecimento do mundo natural e social pelas crianças. Mas se são essas as principais formas para essa proposta peda- gógica, quais são seus conteúdos? Os conteúdos do conhecimento do mundo natural e social dizem respeito a tudo aquilo que está direta ou indiretamente ligado à vida das crianças, aos seus interesses de compreensão da sua própria experiência, nos aspectos sociais e naturais de suas relações pessoais. No entan- to, podemos apresentar, a título de conclusão das reflexões aqui empreendidas, alguns dos temas propostos pelo Referencial Curricular Nacional para a Educa- ção Infantil, em especial no item Natureza e Sociedade (v. 3), compreendidos de forma um pouco mais complexa. Iniciemos com a sugestão de trabalhar com as crianças a noção de grupo. O pri- meiro aspecto a ser considerado é que essa noção não é dada – é construída. As teorias tradicionais sobre grupos definem um grupo como uma reunião de pessoas com objetivo em comum, mas as teorias críticas rejeitam essa definição indicando o dinamismo das relações grupais como seu principal aspecto, portanto valorizan- O conhecimento do mundo social e natural 41 do na formação do grupo, muito mais do que os objetivos dos indivíduos, o próprio processo grupal. Considerando que um grupo não é grupo simplesmente porque as pessoas estão juntas, destacamos, na educação das crianças, a importância do investimento no processo grupal. Os adultos e educadores têm a responsabilidade de contribuir para a construção do processo grupal. Ajudar as crianças a superarem o egocentrismo na percepção dos outros é contribuir para esse processo. Assim, as atividades de conhecimento de outras culturas, pessoas, modos de viver e tra- balhar contribuem para o desenvolvimento da noção de grupo ao mesmo tempo em que constroem, sobre a base da ideia de diversidade, o conhecimento sobre o mundo social. Um outro interessante tema na construção do conhecimento do mundo na- tural e do mundo social com as crianças é o estudo da paisagem. Paisagem é mais do que o ambiente natural: é o ambiente natural e o ambiente construído. A proposta pedagógica para o estudo da paisagem como forma de construção do conhecimento do mundo natural e social fundamenta-se em estimular as crianças a conhecerem diferentes e variados elementos da paisagem como ativi- dade básica: observação da paisagem local (da escola e seu entorno, da cidade, do campo), os rios, lagos, vegetação, florestas, mar, montanhas, diferentes cons- truções, ruas, avenidas etc. Um terceiro tema de interesse das crianças no processo de conhecimento do mundo natural e social é a transformação dos objetos. A transformação res- ponsável da natureza em objetos e de objetos em outros objetos pode ser tema de estudo da proposta pedagógica na Educação Infantil e na primeira etapa do Ensino Fundamental. É importante também que as crianças tenham oportuni- dade de comparar objetos produzidos em diferentes momentos históricos para compreenderem de forma mais aprofundada a transformação dos objetos como atividade humana de transformação do mundo natural. Os seres vivos configuram-se como mais um tema de estudo para o conhe- cimento das crianças sobre o mundo natural e social. O conhecimento das ca- racterísticas e necessidades das diferentes espécies vivas é uma forma educati- va muito interessante para o conhecimento da diversidade do mundo natural. Nesse sentido, identificar as espécies, criar hipóteses sobre suas características, necessidades e comportamentos é a atividade básica para tratar desse tema com as crianças. Descobrir por que as plantas precisam de água e luz, por que os animais precisam de cuidados etc., pode ser incorporado ao cotidiano das 42 O conhecimento do mundo social e natural crianças na escola. O mais importante aqui é superar a tendência de estudo dos seres vivos ainda presentes nas escolas: informações desarticuladas sobre espé- cies animais e vegetais, sem qualquer esforço de contextualização das espécies no ambiente em que vivem e em suas relações com os homens. Favorecer o conhecimento da complexidade
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