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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA FELIPE RIBEIRO CAZELLI RELIGIÃO E IMAGINAÇÃO NO PENSAMENTO DE RUBEM ALVES VITÓRIA 2008 2 FELIPE RIBEIRO CAZELLI RELIGIÃO E IMAGINAÇÃO NO PENSAMENTO DE RUBEM ALVES Monografia apresentada ao Departamento de Filosofia do Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito final para a obtenção do título de Bacharel em Filosofia, tendo como título Religião e Imaginação no Pensamento de Rubem Alves. Orientador: Prof. Dr. Antônio Vidal Nunes. VITÓRIA 2008 3 Dedico o presente trabalho ao Prof. Dr. Antônio Vidal Nunes pelo seu carinho e atenção dedicados em sua orientação e também pelo estímulo e encorajamento para a realização destas pesquisas. 4 RESUMO A religião é um fenômeno humano estudado e muito criticado no ambiente acadêmico. Rubem Alves vê a religião a partir de sua origem na imaginação, que é a capacidade que o homem tem de criar um mundo diferente daquele que é dado materialmente pela realidade objetiva. Seu pensamento tem como base as teorias de Feuerbach, Marx e Freud. Para Feuerbach, a religião expressa a essência humana projetada na transcendência, no entanto, ela necessita ser introjetada para que o homem volte tê-la dentro de si, voltando a estar no controle de sua vida; Marx teoriza a religião como sendo mais uma forma de alienação, dentre tantas outras, provocada pelo capitalismo e a organização contemporânea da sociedade civil, mas que ela não expressa verdade alguma e que, assim que o capitalismo for superado, ela deixará de existir; Freud considera a religião uma ilusão infantil em que surge do desejo humano, quando, por falta de maturidade, o homem acredita que seus desejos são onipotentes e podem ser realizados através da execução de ritos religiosos. Rubem Alves concorda com Freud que o homem é um ser de desejo, com Marx que ele é alienado por uma estrutura econômico-social e com Feuerbach que a religião diz algo de sua essência. Mas para ele, o homem faz religião pois essa é uma forma eficiente de resistir à opressão e de se lançar à realização de uma vida melhor. 5 ABSTRACT Religion is a human phenomenon studied and much criticized in the Academy. Rubem Alves sees religion from its origins on imagination, that is the capacity the man has to create a world different from what is materially given by objective reality. His thoughts are based on the theories by Feuerbach, Marx and Freud. To Feuerbach, religion expresses the human essence projected on transcendence, however, it needs to be incorporated for the man to have it within once again, that way being on the control of his life; Marx's theory thinks religion as one more way of alienation, among many others, caused by capitalism and the contemporary organization of civil society, but it does not express any truth and, as soon as the capitalism is overcome, it will no longer exist; Freud considers religion a childish illusion that comes from human desire, when, not being mature, the man believes that his desires are omnipotent and they can become real through the execution of religious rites. Rubem Alves agrees with Freud that the man is a being of desire, with Marx that he is alienated by a social-economic structure and with Feuerbach that religion tells something about his essence. But for him, man makes religion because it is an eficient way of resisting the opression and to throw oneself into the completion of a better life. 6 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO..................................................................................................7 2. CONCEPÇÃO FEUERBACHIANA DE RELIGIÃO.........................................11 3. CONCEPÇÃO MARXISTA DE RELIGIÃO......................................................19 4. CONCEPÇÃO FREUDIANA DE RELIGIÃO...................................................24 5. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA EM RUBEM ALVES....................................33 6. RUBEM ALVES – RELIGIÃO E IMAGINAÇÃO..............................................40 7. CONCLUSÃO..................................................................................................53 8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................56 7 1. Introdução Estamos presenciando, e mesmo vivenciando, um período que alguns teóricos convencionaram chamar de “retorno da religião”1. Ela tanto retorna enquanto fenômeno social quanto como um discurso sobre a religião, que advém de um limbo para o qual foi banido pela academia, para voltar a ser tema de estudo e pesquisa consistentes, que refletem um anseio latente da comunidade em geral pelo fenômeno religioso. Esse anseio, percebido pela proliferação de igrejas das mais diferentes vertentes e com as mais diferentes propostas, cresce a partir de uma busca de sentido para a qual as pessoas comuns se lançam, uma vez que não o percebem em suas vidas. A moderna civilização tecnocrática é estéril de sentido. Entretanto, a busca desse sentido na religião é deveras perigosa, pois uma pessoa que enfrenta esse caminho corre o risco de cair em armadilhas dogmáticas que alienam, podendo levar a um fundamentalismo cego e mal direcionado. Segundo Rubem Alves, nenhuma investigação pode ser dita inteiramente “objetiva” se nesse objetivismo se busca uma imparcialidade, ou seja, um distanciamento do objeto de estudo para que o resultado não seja “contaminado” pelos valores do pesquisador. Isso porque, ao se proceder uma determinada pesquisa, tem-se já que estar (ou ser) irremediavelmente partícipe da dinâmica da qual o objeto de estudo fala. Principalmente quando o objeto é a religião. Diz Rubem Alves (2006, p. 11-12): Um surdo de nascença, poderia ele compreender a experiência estética que se tem ao ouvir a Nona Sinfonia de Beethoven? Parece que não. No entanto, lhe seria perfeitamente possível fazer a ciência do comportamento das pessoas derivado da experiência estética: o surdo poderia ir a concertos e, sem ouvir uma só nota musical, observar e medir com rigor o que as pessoas fazem e o que nelas ocorre, desde suas reações fisiológicas até padrões de relacionamento social, conseqüências de experiências pessoais estéticas a que ele mesmo não tem acesso. Mas que teria ele a dizer sobre a música? Nada. Creio que o mesmo acontece com a religião. 1 Márcia Sá Cavalcante Schuback observa esse discurso sobre o retorno da religião (apesar de não concordar com ele) em Scintilla, Curitiba, vol. 2, n. 2, p. 217-234, jul./dez. 2005. 8 O presente trabalho parte de um interesse pessoal que emerge no contato com a concepção religiosa de Rubem Alves, a forma como ele concebe o fenômeno religioso. Dada toda a experiência humana com o fenômeno religioso, especialmente a contemporânea, percebemos que é um tanto quanto ingênuo, de fato, tentar apresentar alguma evidência do que seria uma “realidade divina” ou, em outras palavras, tentar comprovar a existência (ou não-existência) de (um) Deus através de palavras, argumentos lógicos, silogismos. Por menor que seja o contato que se tem com qualquer doutrina religiosa ou mesmo com a filosofia da religião ou com a lógica, é notório que Deus, enquanto realidade possível, é inalcançável por esse caminho. Não obstante, muito se fala e muito se argumenta a respeito de Deus e da experiência religiosa em nosso tempo. Logo surge uma importante pergunta: por que se fala tanto sobre Deus hoje? A primeira resposta que nos ocorre é a de que o falar em Deus é um mecanismo de dominação ideológica, através do qual aqueles que estão no poder mantêm as pessoas controladas e submetidas aos seus desígnios. A segunda respostadiz respeito à tentativa de atribuir um sentido à vida através da Revelação Bíblica (ou de qualquer outro livro sagrado). Esse é o caminho da Teologia, que busca orientar a existência humana como um “existir para Deus” com base nas Sagradas Escrituras. Apesar da leitura de Rubem Alves a respeito de como se dá esse “existir para Deus” ser, na maioria das vezes, bem diferente da doutrina cristã corrente, não adentraremos em questões teológicas, por ser este um trabalho de Filosofia da Religião e que, portanto, apresenta um enfoque filosófico. Além disso, existe, tanto nesta resposta quanto na anterior, um grande potencial alienante, pois, uma vez que o controle das instituições religiosas se encontra nas mãos de uma elite sacerdotal, a idéia de Deus para a qual o homem existe é manipulada por essa elite, para atender aos seus interesses, dentre outros, o de permanecer no poder. 9 A partir daí ocorre que é, então, a terceira resposta aquela que mais nos interessa, a saber: fala-se de Deus na tentativa de estabelecer a dimensão do Sagrado como constituindo ontologicamente o homem. A defesa filosófica da construção de um discurso sobre tal dimensão se dá aqui com base no fato de ser o homem aquele para o qual o Sagrado se mostra. Nosso trabalho é, portanto, uma busca de conceituação da experiência do Sagrado, sua relação com a dimensão humana e com aquilo que lhe é intrínseco e ontológico – e aí estabelecemos a relação entre o fenômeno religioso e a imaginação – objetivando também desmascarar as formas de dominação ideológica impostas aos homens, através da religião, ao longo dos anos (especialmente as últimas décadas), para escapar do risco de cair na armadilha montada pela casta sacerdotal e sua “má fé”. Este discurso pretende ser uma resposta àqueles que desqualificam a religião, condenando-a a um status de ilusão perniciosa, criada pelo homem para escapar da “realidade”, que seria aquilo com que ele deveria estar se preocupando – e se ocupando – imediatamente. Nosso objetivo é propor, a partir do pensamento de Rubem Alves, um resgate do valor da imaginação, que nem sempre é compreendido adequadamente, e relacionar essa imaginação à religião, enquanto fundamento desta. Para a realização desse intento, recorremos a uma extensa bibliografia alvesiana sobre Deus e sobre religião. Além disso, por ser o pensador pesquisado profundamente influenciado pelos pensamentos de Marx, Feuerbach e Freud, trazemos, também, o pensamento destes como forma de mostrar a base de onde Rubem Alves retira a sua bagagem e a transforma no brilhantismo de sua obra. 10 2. Concepção feuerbachiana de religião Feuerbach é comumente conhecido por seu declarado ateísmo. Por esse motivo, é colocado, geralmente, lado a lado com pensadores também declaradamente ateus e que criticam veementemente a religião, como Marx, Freud, Sartre, Nietzsche e outros. Acontece que, em um breve estudo sobre Feuerbach, com o intuito de avaliar de que maneira seu pensamento influencia Rubem Alves, notamos que o dito ateísmo do autor é passível de complexa relativização. É famosa a proposição de Feuerbach de que a “teologia é antropologia”. Com tal afirmação, o filósofo remove Deus de seu trono metafísico e o coloca dentro do homem, em sua mente, em sua imaginação. A partir daí, a causalidade de Deus é exterminada, o que, por si só, já caracteriza o ateísmo – que se define como “a negação da causalidade de Deus”, acrescentando-se ainda que “o reconhecimento da existência de Deus pode ser acompanhado pelo ateísmo se não incluir também o reconhecimento da causalidade específica de Deus”. (ABBAGNANO, 2003, p. 87) Sua crítica se dirige grande parte a Hegel e seu sistema. A infinitude, que antes Hegel atribuía ao Absoluto, em Feuerbach é uma característica do homem, e é no homem que o infinito e o finito se encontram em unidade. Enquanto Hegel diz que a consciência do homem sobre Deus é autoconsciência de Deus, Feuerbach afirma que a consciência do homem sobre Deus é autoconsciência do homem. O eu finito, enquanto indivíduo, experimenta-se a si mesmo em facticidade existencial como infinitamente distante do que pode e deve ser. Com isso, na consciência humana, emerge a tensão fundamental entre o eu (indivíduo singular e finito) e a espécie- homem (infinitude). A religião nasce onde o homem considera essa sua essência como separada de si como Deus. Neste caso é a projeção do que o homem deseja ser. Nada mais. (ZILLES, 2007, p. 106) Ou seja, a essência do homem nunca se dá no homem singular, mas sempre no homem enquanto coletividade, numa comunidade que tem por base sempre a relação entre os homens, entre o eu e o tu, que formam juntos uma unidade de 11 gênero. Nessa unidade está a essência do homem para Feuerbach. O dito “ateísmo” nada mais é que uma determinação do homem agora por si mesmo, não mais por fatores externos, muito menos metafísicos transcendentais. A diferença essencial entre o homem e o animal é a consciência. Consciência, no sentido feuerbachiano, se dá quando um ser consegue fazer, não apenas de si mesmo, mas de seu gênero, objeto. E a consciência dos gêneros leva à ciência. E só pode fazer ciência, ou seja, só pode ter como objeto os gêneros de uma forma geral, aquele que pode fazer de objeto o seu próprio. A consciência, no homem, é “consciência do infinito”. A religião não tem, na essência do homem, apenas o seu fundamento, mas tem, também aí, o seu objeto. A essência do homem é, portanto, infinita, pois um ser de essência finita não é capaz de ter consciência do infinito, já que sua finitude é um limitador para sua consciência, que Feuerbach chega a chamar de “instinto” (consciência finita). A religião é a projeção da essência do homem para fora dele, para um plano metafísico. Mas, perguntamos, poderíamos dizer, a partir dessa premissa, que Feuerbach é contra a religião, como Freud ou Sartre, por exemplo? Sua pretensão é estabelecer o verdadeiro lugar da religião e do sagrado. Poderíamos afirmar, assim, que Feuerbach desqualifica a religião, atribuindo-lhe um lugar entre as coisas das quais a humanidade deveria se livrar? Veremos que não. Ao contrário da “patologia” freudiana e do “ópio do povo” marxista, a compreensão feuerbachiana de religião é, de certa forma, positiva. O próprio Feuerbach afirma, no prefácio à segunda edição do seu “A Essência do Cristianismo” (2007, p. 24): Se a minha obra contivesse somente a segunda parte, então ter-se-ia de fato a razão de acusá-la de uma tendência unicamente negativa, de se atribuir como seu único conteúdo essencial a afirmação de que religião não é nada, é loucura. Mas não digo absolutamente (e quão fácil seria para mim!) – Deus não é nada, a Trindade não é nada, a 12 Palavra de Deus não é nada, etc., mostro apenas que tais coisas não são o que são na ilusão da teologia, que não são mistérios estranhos, mas íntimos, os mistérios da natureza humana. Primeiramente, para efeito de esclarecimento, podemos notar que o autor fala em “segunda parte” de sua obra. Isso porque o livro “A Essência do Cristianismo” é dividido em duas partes. A primeira delas, intitulada “A essência verdadeira, isto é, antropológica da religião”, versa sobre os pensamentos do autor a respeito do que ele acredita ser a religião positivamente, ou seja, em termos daquilo que a religião realmente é e que papel ela representa (ou deveria representar) para o homem. A segunda parte, “A essência falsa, isto é, teológica da religião” nos dá a crítica do autor à religião (ou às formas reprováveis de se fazer religião ou de se pensar sobre ela). Posteriormente, podemos notar que, de fato, o pensador chega a afirmar que deforma alguma classificaria a religião como “loucura”, mesmo porque ela faz parte de algo que diz respeito à “natureza humana”. Longe de nos adentrarmos profundamente nas idéias de Feuerbach, aqui se atém nosso objetivo, qual seja: é exatamente na “antropologia filosófica” de Feuerbach, isto é, na sua idéia de homem, ou, melhor dizendo, de “essência” ou “natureza” (Wesen) humana que reside a aproximação entre o pensamento de Rubem Alves e o seu. O filósofo alemão afirma se afastar da chamada “filosofia especulativa” da religião para que possa emitir seus pensamentos e conclusões a respeito dela de forma objetiva. Para ele, a filosofia especulativa somente respeita a voz da religião se esta encontra eco eu sua própria voz. Por isso, Feuerbach não se permite entregar seu pensamento a uma filosofia especulativa, mas a apóia em fatos, através da experiência. Em suas palavras: A especulação só deixa a religião dizer o que ela própria pensou e dito de maneira muito melhor do que a religião; ela determina a religião sem se deixar determinar por ela; ela não sai fora de si. (op. cit., p.22) Para Feuerbach, a essência das coisas está nas próprias coisas, e podemos chegar 13 a essa essência empiricamente, através da intuição sensível. Os nossos sentidos nos dão a essência das coisas e é através deles que chegamos até o mundo real. Só o sensível é ser verdadeiro, real e só mediante os sentidos, não com o pensamento puro, é-nos dado um objeto propriamente como tal. O ponto de partida da nova filosofia proposta por Feuerbach é o ser real. A realidade fundamental é a natureza, não a consciência ou o pensamento, que são derivados ou secundários. O ser é o sujeito, diz Feuerbach, e o pensamento, o predicado. (ZILLES, op. cit., p. 100) É por isso que o filósofo decide abandonar a filosofia especulativa de cunho hegeliano. A abstração que ela contém é vazia e leva o homem a projetar sua própria essência na transcendência. Dessa forma, o homem se perde de si mesmo, aliena-se. Religião é o comportamento do homem perante seu próprio ser infinito. Nisso está sua verdade. Por outro lado, a falsidade da religião está em o homem tornar independente de si mesmo o seu próprio ser infinito, separando-o e opondo-o como diferente de si, produzindo a bipolaridade Deus e homem, alienando, assim, o último, ou seja, empobrecendo-o. (ZILLES, op. cit., p. 101) A essência do humano está, então, fora dele e mesmo fora do mundo, fora da realidade. Ao se voltar para Deus, o homem dá as costas às contingências do mundo que o cerca. O mundo real, no qual se está inserido, e todos os seus problemas são abandonados, ou, melhor dizendo, são aceitos pelo homem religioso que, em vez de lutar para mudar sua condição, resigna-se a projetar um mundo além mundo. A necessidade de proclamar um “ateísmo” para Feuerbach se reflete na necessidade de abandonar a religião enquanto um instrumento de dominação, pois a religião vista dessa forma, a saber, como um olhar sempre voltado para o transcendente e esquecido do mundo, faz com que o homem aceite qualquer que seja a injustiça que lhe é imposta desde que ele receba a dádiva de uma felicidade no pós-vida, no reino de Deus, enfim, na transcendência. 14 Vemos, portanto, que a crítica do filósofo não se direciona à projeção em si, e sim ao seu resultado. Feuerbach nega, pois, o correlato metafísico da fé, não a projeção. Ao projetar a si mesmo, o homem aliena-se de si mesmo, gerando a divisão de si mesmo. A alienação religiosa, segundo ele, é tomar como Deus algo que, na verdade, é apenas expressão do próprio homem. (ZILLES, op. cit., p. 103) Rubem Alves completa (2006, p. 38), dizendo que “o que é ilusão não é a religião mas, antes, a tradução que dela faz a teologia, transformando-a em conhecimento de uma realidade metafísica, supra-sensória”. Nesse modelo de religião, o homem projeta para fora, num ser metafísico, características que participam da própria essência do homem. Quais seriam essas características? Para Feuerbach, a essência do homem consiste naquilo que ele chama de três forças: a razão, enquanto pensamento ou “força do pensar”; a vontade ou “força da vontade”, um querer que se traduz como “energia do caráter” e o coração ou “força do coração”, amor. Tais forças constituem teleologicamente o fundamento da existência humana e, conseqüentemente, a essência do homem. Ao falar em razão, Feuerbach não se refere apenas àquilo que se convencionou modernamente chamar de razão, a saber, a lógica formal, matemática, “científica”. Ele inclui no conceito razão aquilo que considera suas “formas sensíveis”: imaginação, fantasia, representação, opinião, ou seja, tudo aquilo que é produto do pensamento. A “razão” humana é a sua consciência, que é algo que separa homens de animais. Os animais não têm a capacidade de pensar em si mesmos enquanto gênero, isto é, não conseguem pensar em “animais” de forma geral, e colocar seu gênero na posição de objeto de seu pensamento, de sua reflexão. 15 Para Feuerbach, “consciência, em sentido estrito, só existe quando um ser tem como objeto o seu gênero, a sua essencialidade. O animal é decerto objeto para si enquanto indivíduo – por isso tem sentimento de si –, mas não enquanto gênero.” (op. cit., p. 9) Assim, já que o homem é o único capaz de se perceber enquanto gênero (e é somente aí que temos a essência do homem “em geral”), o homem é capaz de conceber a sua própria essência. Seu reconhecimento leva o homem para a dimensão da vida religiosa. Por isso o pensador afirma que “a religião repousa na diferença essencial entre o homem e o animal – os animais não têm religião”. (FEUERBACH, op. cit., p. 9) Em Feuerbach (...) o homem nunca toma consciência de sua essência de forma direta. Ele não conhece o que ele é. A essência se revela por meio de uma série de símbolos cujo significado permanece oculto ao próprio sujeito. Este é, por exemplo, o sentido dos símbolos religiosos. (ALVES, 2006, p. 43) De forma que, a partir da capacidade que o homem tem de imaginar, fantasiar, que são possibilidades do intelecto humano, ele pode também criar um mundo que não é idêntico àquele que se lhe apresenta. Ou seja, o mundo onde os animais vivem é apenas o mundo da natureza; já o homem tem a natureza da mesma maneira que os animais, mas pode também projetar algo que não está na natureza e posteriormente dar corpo a esse algo. Esse processo de criar algo – que antes não existia – com o poder da imaginação é responsável pela civilização. Diz Feuerbach: “O animal tem, por isso, apenas uma vida simples, o homem uma vida dupla: no animal, a vida interior coincide com a vida exterior, mas o homem tem uma vida interior e uma vida exterior” (op. cit., p. 10). O problema é: ao criar Deus, faz o homem alguma alteração na própria realidade? Para Feuerbach, Deus, objetivamente, não existe, já que é absolutamente subjetivo, o que significa dizer que sua “existência” se limita à mente humana. Pergunta-se: 16 dizer que a religião ou que Deus são criações humanas é de alguma forma diminuí- los ou tirar-lhes importância? É o suficiente para taxar Deus e a religião de ilusões vazias, sem sentido e até mesmo patológicas? Para Rubem Alves (2006), Feuerbach percebe que existe um discurso sobre a religião em que os símbolos são compartilhados tanto por teólogos quanto pelos empiristas. O Deus de que fala a religião deve ser, para ambos os grupos, um ente definido e concreto, com existência objetiva e independente. A questão é que os empiristas notam a falta da experiência sensível de Deus, de consequência, afirmando sua inexistência.Para os empiristas, os pais da ciência moderna, o pensamento deve ser uma representação perfeita, uma cópia das coisas do mundo, que chegam até as idéias por meio dos sentidos. Ou seja, qualquer idéia que não fosse antes uma realidade concreta percebida sensivelmente deve ser relegada ao status de “desarranjo mental”. Assim acontece com a imaginação lato sensu, e com a religião stricto sensu. Juan Antonio Estrada (2003, p. 157) lembra que “a premissa ontológica e epistemológica é que só o objeto sensorial é real porque é um objeto externo à consciência” e consequentemente “Deus não existe porque não tem entidade fora do cogito, porque não é objeto sensorial, mas mera imanência humana projetada”. Feuerbach sugere que manter a projeção é um desvio das “energias humanas”, e que deveríamos nos reconhecer na projeção e introjetá-la, passando a ver em nós aquilo que vemos em Deus, mas que é essencialmente nosso. Veremos que Rubem Alves em muito concorda com Feuerbach nas questões de pensar o homem como dotado de imaginação, considerando esta a mãe do fenômeno religioso. Entretanto, Alves não considera a religião uma ilusão perniciosa. Muito pelo contrário, atribuir ao homem a “invenção” da religião a coloca em seu devido lugar: uma dimensão da vida interior do homem, sem a qual sua própria existência estaria comprometida. 17 Dessa forma, coloca-se a religião dentro do homem, como constituinte de sua vida interna, desfazendo o equívoco de localizar a religião fora do homem, institucional e teologicamente. Mais adiante veremos de que forma se daria esse “comprometimento” da existência e a crítica alvesiana ao pensamento sobre a religião. 18 3. Concepção marxista de religião: A “filosofia da religião” de Marx (se é que seja possível falar em uma) tem forte influência do pensamento de Hegel e sua dialética, principalmente seu caráter totalitário e a atenção que dedica à História. Por outro lado, também Feuerbach está muito presente no pensamento de Marx sobre a religião, em especial no tocante à inversão feuerbachiana da dialética de Hegel, sobre a qual tratamos no capítulo anterior, a saber, a substituição do idealismo pelo materialismo. Não nos ateremos, porém, à teoria de Marx como um todo, mas discutiremos o ponto em que ela toca a religião e em que momentos ela mais influencia Rubem Alves. Marx concorda com Feuerbach principalmente quando este afirma que não é Deus quem cria o homem, mas sim o homem quem cria Deus. Ainda assim ele propõe uma superação do materialismo de Feuerbach, que considera “metafísico e mecanicista”, e o critica por não ter uma práxis, um projeto prático de mudança do estado de coisas. Além disso, em Marx a religião não tem o caráter de “autoconhecimento” de Feuerbach. Isso porque, para ser “autoconhecimento”, Feuerbach postula a religião como projeção da essência humana, que, para Marx, não existe. Para Marx, toda alienação tem como origem ou causa a alienação primeira, de ordem econômico-social, em torno da qual orbita todo o seu pensamento, lembrando que a conceituação marxista de alienação difere sensivelmente da feuerbachiana. Para Marx, alienação diz uma dinâmica estritamente material de distanciamento entre o homem e sua capacidade produtiva, que fica nas mãos de outro. Enquanto em Feuerbach a alienação é um acontecimento fundante que gera efeitos posteriores, para Marx a alienação religiosa é secundária, já efeito de uma outra que lhe é anterior, a econômico-social. O mundo alienado em que o homem vive no capitalismo é um mundo invertido, onde o que é bom ao homem é permanecer acorrentado. A religião nesse contexto não é uma realidade verdadeira que foi projetada num lugar falso: a transcendência (como 19 é em Feuerbach), mas é uma realidade falsa, resultado da repressão. A respeito do pensamento de Marx sobre a “inversão” do mundo e o papel da religião, Rubem Alves assim resume: O que caracteriza o discurso religioso é uma estranha inversão: as correntes são cobertas com flores e a dor real é esquecida sob os efeitos do ópio. O próprio sangue que sai das feridas é bebido como remédio. A doença é a sua própria cura. O grito de dor se transforma em canção de amor. Não existe, assim, nenhum trânsito epistemológico da religião para a realidade. Religião é inevitavelmente falsidade porque a sua função social é ser ópio. A religião é assim definida funcionalmente como o discurso que reconcilia o homem com o mundo que o oprime. (ALVES, 2006, p.54) Não obstante ser Marx sempre citado como grande crítico da religião, não encontramos nenhuma obra sua que seja especificamente dedicada ao tema. Apesar de sua famosa afirmação “a religião é o ópio do povo”, ele não tem preocupações diretas com o fenômeno religioso, mas apenas se refere a ele de um modo consideravelmente indireto. A preocupação dele é econômico-social e a religião é apenas mais uma das diversas formas de alienação à qual a classe dominante lança mão para oprimir o proletariado. Somando-se a isso, o projeto filosófico marxista exclui qualquer possibilidade de pensar a transcendência, impossibilitando a religião enquanto mediação entre o imanente e o transcendente. Para Marx, nada existe além da imanência. Seguindo Hegel, Marx afirma a totalidade como única realidade ontológica, identificando, porém – contra o Mestre – o ser com a natureza. A doutrina de Hegel, segundo a qual a natureza “é criada” pelo Espírito Absoluto, nada mais é que a tradução, em linguagem filosófica, da velha afirmação metafísica da criação da natureza e do homem por um “ser abstrato e imaterial”, observa Marx. (STACCONE, 1991, p. 97) E Marx despreza o “abstrato e imaterial”, considerando-o impróprio como objeto de reflexão filosófica. A “totalidade do ser” marxista é fundada na relação sujeito (enquanto “eu” consciente) x objeto (enquanto natureza, mundo real palpável). A existência de um ser fora dessa totalidade concreta é um non sense ou, no máximo, meramente fruto da imaginação, do pensamento. 20 Logo, longe de ser propriamente ateu, como comumente se apregoa, o ateísmo para Marx não faz sentido algum, pois ele é uma tentativa de negar Deus. Porém, vale ressaltar: Afirmada a consistência ontológica autônoma da natureza em seu conjunto e do homem em especial, tanto a busca como a negação de Deus tornam-se atividades inúteis, pois o círculo da experiência prático-sensorial fecha-se na relação homem-natureza. (STACCONE, op. cit., p. 100) O comunismo, entendido como a proposta marxista, seria então a “negação da negação”, negando tanto o ateísmo quanto a religião, os dois como desprovidos de sentido. Com isso, abre-se caminho para o prático, o positivo, onde o homem pode abandonar a auto-alienação e se apropriar de sua própria natureza. Marx critica todo o idealismo anterior a ele, considerando a filosofia uma especulação que deve ser superada, para dar lugar à razão prática que “se compromete na transformação do mundo”. Para Juan Antonio Estrada: A superação da filosofia passa pela racionalização da realidade. Não basta a essência abstrata recuperável especulativamente, mas se deve detectar a origem social da religião e as causas históricas sociais que possibilitam a projeção teísta. A religião continua sendo um epifenômeno cuja “verdade” remete às outras realidades, por isso, para recuperar a essência alienada na religião, devem-se transformar as raízes históricas sociais que as tornam possível. (ESTRADA, 2003, p. 163-164) Para Marx, a religião é alimentada e produzida primeiramente pela ignorância que o homem tem da natureza, quelhe gera um grande medo; isso estimula o homem a criar seres metafísicos que, ao menos em sua imaginação, o proteja do que quer que possa fazer-lhe mal vindo da natureza desconhecida. Tal postura deve ser superada com a ciência já que é ela o método mais eficaz de conhecimento dessa mesma natureza que, não mais amedrontadora, se mostrará conhecida e dominada. A religião perderia seu sentido. Mas outro acontecimento que também alimenta a atitude religiosa é o Estado, que surge como “regulador” da sociedade civil, que é composta de vários grupos, lutando 21 por seus próprios interesses, em conflito entre si. E um grupo acaba dominando todos os outros, criando imensas desigualdades, que só podem ser mantidas com a alienação daquilo que Feuerbach chamava de “energia” ou “essência” do homem. O Estado não executa seu trabalho de regulador. Todo esse sistema deve cair para que o homem seja senhor de si mesmo. Staccone ensina (op. cit., p. 113): O Estado não anula tais desigualdades; ao contrário, existe sobre elas tal qual a religião. Daí, infere-se que a superação do Estado e da religião, enquanto alienações das forças humanas e sociais dos homens, só é possível destruindo a sociedade civil que as engendrou. O homem, situado historicamente como Marx postula, é fruto de todas essas relações sociais. Trabalha e não consegue se perceber no fruto do seu trabalho. Está absolutamente submetido ao modo de produção material, mas o que ele produz lhe é “alheio”, “estranho”. Daí o termo alienação. O homem trabalha e não pode desfrutar do resultado do seu trabalho. Dentro dessa forma de opressão, ele precisa achar que é livre de alguma forma; precisa encontrar alguma maneira de protestar. Na religião, o que acontece é que se cria um sem número de verdades metafísicas para levar os homens a acreditarem que, mais importante que vencer a opressão de que são vítimas neste mundo, é conquistar o direito a um outro mundo, irreal, imaginário, ilusório. Dessa forma, o homem é distanciado da possibilidade de recuperar sua dignidade. Da mesma maneira que na estrutura de mercado capitalista o homem é apenas mão-de-obra, nunca sendo considerado enquanto sujeito, assim também a religião o relega ao papel de engrenagem de um sistema maior, exterior a ele. A realidade é fruto da vontade de Deus, ou seja, as desigualdades existem porque deveriam existir e não há o que se possa fazer. As injustiças são legitimadas e a população não se dá conta das raízes históricas e econômicas da situação na qual ela se encontra. A transcendência é o fundamento no qual se cultiva a conformidade e a resignação. “O sofrimento e a humildade transformam-se assim na mediação necessária para a salvação futura” (ESTRADA, op. cit., p. 166). 22 A superação da religião acabará acontecendo junto com a superação de toda opressão, pois, dessa forma, todas as alienações seriam superadas e, em sendo a religião uma delas, também desapareceria, perderia o sentido. 23 4. Concepção freudiana de religião: As opiniões de Freud a respeito da religião constituem um dos pensamentos mais polêmicos a respeito do tema, em toda a história do pensamento ocidental, desde a modernidade. Freud considera a religião uma patologia, uma doença, e se esforça no sentido de esclarecer essa posição através de uma extensa teoria psicológica. O objetivo deste capítulo é esclarecer essa teoria, evidenciar sua postura e correlacioná-la com o pensamento de Rubem Alves. Freud é um pensador positivista. O que significa dizer, em última instância, que ele aposta na Ciência como o estágio máximo do conhecimento humano e, mais do que isso, como a única forma legítima pela qual o homem pode vir a conhecer qualquer coisa. Todas as outras tentativas de conhecer, que não sejam conduzidas pelo processo ou método científico (revelação, adivinhação, intuição), devem ser relegados à patologia que Freud chamou de “neurose” – uma tentativa ilusória de realizar os impulsos do desejo. A religião em Freud vira “neurose coletiva da humanidade”, sintoma de uma falta de maturidade das pessoas em geral, que precisa e será superada assim que consigamos nos desenvolver científica e tecnologicamente, atingindo plenamente a idade da Razão, superando a infância da fantasia e da ilusão. Antes, porém, de definir propriamente a neurose, voltemos um pouco ao estabelecimento da teoria. É preciso, primeiramente, evidenciar a antropologia filosófica freudiana, ou seja, dizer quais são os fundamentos filosóficos, a partir dos quais Freud entende o homem em sua totalidade. A relação do pensamento freudiano com a religião perpassa todos os seus escritos, mas em três deles se percebe uma dedicação maior ao tema. São eles: “Totem e tabu”, “O mal estar na civilização” e “O futuro de uma ilusão”. Existe ainda um outro, “Moisés e o monoteísmo”, que, no entanto, é muito criticado e pouco levado a sério por completa falta de fundamentação das idéias que expõe. 24 A busca de Freud não é por falar a respeito de uma realidade última, emitir algum conhecimento sobre a existência ou não de Deus. Nesse ponto, parece ter, desde o princípio, tudo resolvido, ou seja, Deus não existe – não há o que questionar. A questão para Freud é: Deus não existindo, como o homem chega a crer em sua existência? Ou, mais diretamente: por que o homem faz religião? A novidade da teoria freudiana é o inconsciente. Não é algo que tenha sido criado partindo absolutamente do nada. Freud desenvolveu sua definição de inconsciente a partir de sua experiência no atendimento a pessoas que apresentavam algum tipo de distúrbio mental (ou qualquer patologia que não se explicasse fisiologicamente). É com esse conceito que Freud revoluciona o pensamento sobre o homem. É quando ele descobre que o homem não é um ser racional. Existe uma instância na psique humana (a mente, a alma ou como quer que se chame) sobre a qual sujeito algum teria controle, mas que determinaria o curso de várias ações humanas do cotidiano sem que alguém sequer perceba ou tome conhecimento de suas motivações ou de seus conteúdos. Além disso, esses processos mentais inconscientes são a causa de certas enfermidades que se manifestam inclusive no plano físico, como deficiências orgânicas. Esses conteúdos potencialmente adoecedores são frutos do encontro entre uma estrutura mental humana e as experiências com o mundo externo. Na formação da pessoa, no seu desenvolvimento enquanto bebê, desde o nascimento, o sujeito encara uma série de questões que envolvem o estar no mundo. A partir daí, a mente cria uma instância denominada de ego, que reúne a personalidade subjetiva, aquilo que o sujeito entende como sendo o “eu”. Entretanto, as experiências pelas quais a pessoa passa não são sempre e totalmente percebidas como benéficas à individualidade da pessoa. É quando o ego as ignora e, por considerá-las nocivas, prefere não tomar conhecimento delas. Contudo, essas experiências não passam completamente desapercebidas, pois existe o inconsciente que as percebe e as registra. 25 Começa então o conflito do ego (consciente) e do inconsciente. Este, uma força original, poderosa, que manifesta seus conteúdos sem que se apresente, nela mesma, um limite e se guia exclusivamente pelo princípio do prazer; aquele, a força da individualidade que luta pela sobrevivência e, dessa forma, tenta impedir que os conteúdos do inconsciente, prejudiciais, a invadam. Sobre o assunto, Urbano Zilles (2007, p. 139) esclarece: Se os homens buscassem simplesmente a realização de seus desejos acabariam destruindo-se uns aos outros. Os indivíduos fazem então umpacto de defesa mútua contra as ameças da natureza mais forte. Surge assim a cultura como tarefa para o homem auto conservar-se diante do poder supremo da natureza. Sobre a relação entre religião e civilização no pensamento de Freud, falaremos mais à frente. O interessante agora é saber que o mecanismo do qual o ego (a mente consciente) lança mão para impedir que os conteúdos do inconsciente cheguem até ele são o recalque e a repressão. A repressão impede que tais conteúdos sequer cheguem à consciência; o recalque os devolve para o inconsciente, após os mesmos haverem chegado à consciência e serem considerados impróprios, inadequados, nocivos. Isso porque, em seu estudo com Breuer, seu professor, Freud descobriu que, quando a pessoa que apresentava um distúrbio como aquele citado acima lembrava ou revivia um determinado fato que, por ser traumático, teria dado origem a tal distúrbio, este desaparecia. Então, o responsável pela persistência do distúrbio é o recalque. A teoria de Freud é sempre apoiada por experimentos práticos no tratamento de pessoas com distúrbios psíquicos ou físicos de origem psicológica. Sobre isso, Palmer ensina: Assim, sem que o indivíduo se dê conta, há um perpétuo conflito entre o inconsciente e a mente consciente, e é desse conflito que vêm os distúrbios neuróticos. A emoção passada quer descarregar- se e tornar-se consciente; porém, vendo-se repudiada e desautorizada, canaliza-se para a produção de sintomas neuróticos. (PALMER, 2001, p. 28) Freud acrescenta, ainda, ao conceito de neurose, o seu cunho sexual, a partir da 26 elaboração do Complexo de Édipo. Quando a criança se vê às voltas com seus impulsos instintuais de deitar-se com a mãe e matar o pai – momento pelo qual, segundo Freud, toda criança passa –, acontece o recalque, já que tais impulsos são considerados “vergonhosos e ameaçadores”. Palmer (op. cit., p. 30) explica, então, que “a neurose tem a ver com a sexualidade recalcada do paciente ou, para usar a nova terminologia, com o recalque, pelo ego, dos impulsos instintuais localizados no id.” Esse foi o começo do desenvolvimento de toda a teoria da sexualidade por Freud. Mais tarde, a divisão da psiquê entre consciente e inconsciente cedeu lugar a uma divisão um pouco mais complexa: id, ego e superego. No id localizam-se aqueles instintos primários, que foram classificados como pulsões de vida (Eros) ou de morte (Thanatos). O ego é o nosso eu, a consciência. O superego, por sua vez, contém a influência dos pais na vida do sujeito; se relaciona aos pais tudo o que é imposto ao sujeito de fora para dentro, como normas sociais, valores, tradições, etc. Estas instâncias estão em conflito, gerando o distúrbio psicológico. Palmer assevera: O superego, agindo no âmbito do inconsciente e infundido da moralidade da família e da cultura, insiste com maior agressividade ainda na supressão dos instintos emanados do id. (...) O ego obedece invariavelmente às exigências morais do superego, mas às vezes pode reagir a um superego demasiado exigente recalcando parte desse superego. Assim surge, diz Freud, o sentimento de culpa inconsciente tão típico dos neuróticos. (PALMER, op. cit., p. 30) O conflito entre essas instâncias psíquicas gera uma situação na qual o sujeito muitas vezes assume uma certa atitude mental em que constrói um mundo ilusório, fantástico – uma quimera – dentro do qual seu desejo é onipotente no controle da realidade. Essa postura é alimentada pela necessidade de colocar um limite, uma proibição naquilo que, ao mesmo tempo, conduz à satisfação. A onipotência do pensamento e as práticas dela advindas traem uma atitude emocional ambivalente – a saber, a proibição de um desejo – e, nessa medida, também elas confirmam o complexo de Édipo como 27 o núcleo de toda neurose e de toda culpa. Por conseguinte, todos os rituais religiosos configuram-se como expressões do remorso e como tentativas de preparação pela reexperiência presente de algo ocorrido no passado. (PALMER, op. cit., p. 48) Para Freud, os três estágios galgados pela humanidade em busca do conhecimento da realidade coincidem com o desenvolvimento psíquico de cada indivíduo, desde o seu nascimento até a vida adulta. No primeiro estágio, o anímico, ao ser humano é atribuída a onipotência dos pensamentos, que lhe outorga poderes ilimitados sobre a realidade, assim correspondendo ao “auto-erotismo” da primeira infância. Posteriormente, no estágio religioso, o homem não mais é onipotente, delegando, agora, esse poder a Deus. Entretanto, é possível, através de ritos e sacrifícios, obter de Deus a realização dos próprios desejos. Este momento acontece de modo similar ao desenvolvimento da psique infantil. Zilles (op. cit., p. 145) resume muito bem: No seu relacionamento carinhoso com a mãe, a criança sente o pai como rival. Divide o amor da mãe com o pai. Por isso formam-se desejos agressivos em relação ao pai que, não raro, transformam-se no desejo de matá-lo. Mas, ao mesmo tempo, a criança sabe que precisa do pai. Com isso constitui-se o conflito entre amor e ódio, afeição e hostilidade, admiração e medo do pai. Esse é o Complexo de Édipo. E é através desse mesmo complexo que o homem se relaciona com Deus, um ser que ele cria como o Pai Supremo, ao qual devotará seu ódio e seu amor, odiando-o por suas características castradoras e opressoras e amando-o por sua benevolência e proteção. A ciência, por último, representaria a maturidade, quando o homem se dá conta de que a realidade não tem a obrigação de satisfazer os seus desejos. Assim, o homem abandona a ilusão infantil em que vivia para adequar-se à realidade, projetando seu desejo em algo objetivo que essa realidade lhe apresente. Portanto, para Freud, “a religião é uma obsessão infantil que a maturidade deverá, se tiver sorte, descartar.” (PALMER, op. cit., p. 49) 28 A revolução social proposta por Marx de nada adianta a Freud, uma vez que, segundo sua teoria, a repressão dos instintos e a do princípio do prazer existiriam em qualquer ordem social, já que são praticamente “ontológicas” e se mostram “essenciais”, intrínsecas à condição humana. De forma que o homem só seria feliz se aceitasse se “ajustar” à realidade, mas não é o que ocorre. O que vemos é uma consciência que rejeita o real. Uma consciência “desajustada”. E a consciência religiosa é a expressão máxima desse desajuste. Sob a ótica de Freud, por conseguinte, a religião reproduz, de forma universal, a mesma dinâmica da neurose obsessiva individual. Ao afirmar isso, ele não sugere que a fé religiosa seja falsa, mas que ela tem o objetivo de satisfazer os desejos das pessoas que crêem ser ela verdadeira. Objetivamente, porém, é improvável que ela tenha qualquer correspondência com o mundo real, não passando de uma ilusão, um engano. Freud atribui, ainda, uma outra característica à ilusão: a indiferença que lhe é intrínseca quanto à verificação ou justificação racional. Para ele, não existem evidências que comprovem as asserções da religião, que tem que recorrer a argumentos de autoridade, de ancestrais ou de textos sagrados. A religião tem três funções, dadas as exigências que a constituem. A primeira consiste em aplacar o sofrimento e o sentimento de impotência diante das forças da natureza, que constantemente ameaçam a sobrevivência humana. A segunda, para aplacar também todo o tumulto interno, provocado pelos instintos primitivos do homem, que necessitam ser acalmados para que se possa viver em sociedade. Segundo Palmer, “Freud enumera entre esses desejos instintuais o incesto, o canibalismo e a sede de matar” (op. cit., p. 55). Para Freud, o homem guarda dentro desi muita hostilidade para com a sociedade que o obriga a reprimir seus instintos, fazendo-lhe uma série de imposições, outorgando-lhe um sem número de deveres. 29 A terceira e última função da religião que Freud isolou é a satisfação e realização de um desejo fundamental pela figura do pai existente na humanidade, que se encontra nas fundações da atitude religiosa da nossa sociedade. A força desse desejo se reflete na “instância psíquica” que Freud chamou de superego. A agressividade humana precisa ser contida, para o bem da civilização. A forma que a psique encontra para fazê-lo é introjetar essa agressividade, devolvê-la para dentro. Uma porção do ego, então, dá conta dela e a devolve ao ego sob a forma de uma consciência exigente – o superego – levando àquilo que chamamos de sentimento de culpa. Dessa forma, o superego se relaciona à figura do pai, pela qual anseia o homem: “o superego enfrenta o ego tal como um pai severo enfrenta o filho” (PALMER, op. cit., p. 58) Quando essa figura é, na fase adulta, novamente projetada para fora, temos a criação da figura de Deus Pai, a quem o homem ama e admira, desejando ser igual a ele – principalmente por sua onipotência ou capacidade de realizar qualquer desejo, que se contrapõe com a impotência humana – e, ao mesmo tempo, teme e odeia como aquele que é um obstáculo para a realização dos desejos individuais. Logo, a religião seria o conjunto de rituais obsessivos baseados na crença (iludida) na existência desse Pai, a quem devemos agradar em troca de sua proteção e para quem devemos implorar que nos livre da culpa que sentimos por termos os instintos que temos. Em seu livro “Totem e tabu”, Freud cria uma teoria sob forte influência darwinista onde ele postula ter sido o homem, tempos atrás, semelhante ao animal, vivendo numa espécia de “estado de natureza” pré-civilizatório. Nessa época, os homens se juntavam em pequenos grupos para terem mais chances de protegerem seus interesses. Acontece que esses grupos eram provavelmente comandados pelos machos mais fortes, que subjugavam os demais a ponto de, num dado momento, os outros se juntarem e o matarem. E assim é com todo macho que assume a liderança. 30 Na dinâmica de assassinarem o líder, os subjugados permanecem, até que entrem num acordo, fundando a “instituição totêmica”. Ao totem da tribo se devia respeito pois ele os mantinha unidos. Um animal geralmente simbolizava o ancestral daquela tribo e era proibido comer de sua carne, exceto num ritual feito de tempos em tempos. Tal rito objetivava lembrar a todos do assassinato do Pai, o ancestral mais antigo da tribo. Num misto de êxito por matarem o Pai opressor e culpa por assassinar aquele que também era o provedor, o rito se dá e o respeito ao ancestral continua na forma de condutas que visam respeitar as regras que teriam sido estabelecidas por ele. A religião participa dessa dinâmica e agora, em vez de um animal totêmico, temos um Deus Pai e comemos a carne de seu Filho (que também é o Pai) no ritual cristão que relembra a Santa Ceia. A principal crítica que se faz a Freud diz respeito à sua fundamentação. Ele constrói uma antropologia extremamente negativa criando conceitos sobre a mente humana que dificilmente são refutados, justamente por não apresentarem nenhuma evidência objetiva, a despeito de todos os seus esforços nesse sentido. A teoria freudiana parece estar, consequentemente, cheia de axiomas e, por que não dizer, dogmas, se mostrando tão inverificável e injustificável racionalmente quanto a religião que ele tanto critica. Ao mesmo tempo que Freud acusa o homem de não ser racional, afirmando, porém, que sua conduta está sempre embasada em fortes conteúdos emocionais, ele postula a objetividade e cientificidade de sua teoria. Não consegue reconhecer, portanto, que assim como qualquer outra teoria a respeito do homem (e das coisas, por que não?), a sua também contém uma auto-confissão das questões que se abriram para ele mesmo, inclusive sob o ponto de vista emocional. Essa é a “metafísica” do pensamento freudiano que seu autor jamais foi capaz de reconhecer. Resta a pergunta sobre se de fato toda a teoria freudiana constitui um avanço na compreensão do homem ou se é uma “patologização” de uma condição 31 humana perfeitamente saudável, apesar de complexa. A resposta de Rubem Alves, veremos mais adiante. Sobre Freud e sua teoria, escreve Emil Ludwig (apud PALMER, op. cit., p. 22): Milhares de pessoas saudáveis são declaradas doentes porque um homem estava doente e acreditava que os sintomas desagradáveis advindos de sua infância eram comuns a todos. O mundo é sexualizado, toda motivação é pervertida na fonte, porque uma natureza obstinada conseguiu impor suas visões patológicas a pessoas feitas de uma matéria menos resistente. 32 5. Antropologia Filosófica em Rubem Alves Entendemos como “antropologia filosófica” uma ontologia do humano, ou seja, um falar sobre o homem enquanto determinação de sua essência, daquilo que ele é, de todas as suas possibilidades e como ele acontece no mundo. Dessa forma, vemos que o pensamento de Rubem Alves só faz sentido – como não poderia deixar de ser – a partir do momento que deixamos bem clara sua idéia de humanidade e de todas as forças em jogo na existência do homem. Veremos também que essa idéia é absolutamente influenciada pelos teóricos que vimos até aqui. Duas palavras chaves na concepção alvesiana são alienação e desejo. O homem é um ser alienado e desejante. Mas o que Alves quer dizer com alienação? Em sua obra “O suspiro dos oprimidos” (2006, p. 31-36) ele chama a atenção para três tipos de alienações: a primeira, a político-social. Cada indivíduo tem seus próprios interesses no mundo, tem desejos que gostaria de ver realizados, “oriundos de suas estruturas biológicas e psicológicas”. Entretanto, muitos desses desejos podem ir de encontro ao bem viver em sociedade, quer dizer, os interesses particulares podem não estar em consonância com as necessidades do coletivo, do social. Então, no surgimento da sociedade, os indivíduos tiveram que abrir mão de seus desejos individuais para apostar numa vida em sociedade, colocando as necessidades do coletivo acima das suas próprias. Assim, encontra-se a “ordem social”. Mas Rubem assinala que, mascarado por trás do véu de igualdade social de direitos, está uma situação de desequilíbrio muito grande, porque, assim como foi mostrado por Marx e mesmo por Hegel antes dele, há uma luta de classes onde os mais fortes dominam os mais fracos. Vejamos: Essa visão da ordem social sofre uma transformação profunda quando se toma consciência do fato de que o contrato social não se estabelece por iguais: ele é imposto pelos fortes sobre os fracos. Se 33 este é o caso somos então forçados a concluir que, ainda que seja verdade, toda ordem social exige certo grau de alienação; a alienação, na sua presente forma histórica não é ontologicamente necessária e poderá ser abolida se se processar uma inversão na distribuição de forças que mantém a sociedade sob sua organização atual. (op. cit., p. 32) É aqui que o marxismo entra na teoria de R. Alves. Ele seria a proposta de superação dessa alienação do cidadão na sociedade capitalista. Como a discussão aqui não é político-social, mas religiosa, continuemos. A segunda forma de alienação é a “epistemológica”. É quando o pensamento e as percepções do sujeito não estão em consonância com os dados do real, com a realidade objetiva. Tal estado alienado seria a expressão de “estados emocionais individuais e coletivos” que contribuiriam para distanciar o sujeito do conhecimento objetivo do mundo. Mal esse a ser superadopela Ciência, com sua objetividade metodológica – a principal aposta de Freud. Reconhecemos como alienação epistemológica o que Marx chama de “ideologia” e também o que Freud chama de “neurose”. Por fim, o terceiro sentido de alienação é o “psicológico” ou “existencialista”. É o fenômeno que se dá quando o sujeito, na tentativa de fugir de um mundo que lhe é hostil e ameaçador, se tranca em sua própria subjetividade. A identidade da pessoa é, então, reprimida ou suprimida por uma disciplina de ajustamento a essa realidade exterior. Diz Rubem Alves: Alienação significa, aqui, o caráter ameaçador da realidade externa, tanto de indivíduos quanto de estruturas; significa o movimento de recolhimento subjetivo; significa a artificialidade das regras de operação efetiva pelas quais nos comportamos socialmente. Significa, em última análise, o esfacelamento e a fragmentação da experiência humana, dividida entre uma identidade reprimida e uma funcionalidade imposta. (op. cit., p. 33) Rubem Alves aponta, a partir disso, dois principais pensamentos contrários à religião, ao sugerirem que ela é alienação. O primeiro é o que afirma ser a religião “falsa consciência”, ou seja, a partir do segundo conceito de alienação, temos a 34 religião como ideologia ou neurose, um conhecimento que nada mais é que uma quimera, uma ilusão infantil a ser superada pelo conhecimento científico, que corresponde ao real e é, portanto, legítimo. O segundo pensamento contrapõe uma pretensa criticidade científica com o conservadorismo religioso. A religião é dogmática e rígida, não suportando o questionamento de suas verdades metafísicas; enquanto que a ciência é a ferramenta que abre os olhos dos alienados, fazendo-os enxergar a verdadeira verdade. Ora, essa concepção de religião, vem nos dizer Rubem Alves, não encerra toda a verdade a respeito do fenômeno religioso. Mesmo enquanto alienação, ele pode – e deve – ser interpretado positivamente como uma forma de lutar, de não aceitar o real como ele se apresenta, mas de imaginar um mundo novo, onde a opressão não exista e o homem possa viver em paz. Considerada sob este prisma, a consciência religiosa contém sempre, ainda que de forma reprimida e inconsciente, um projeto de natureza política. A consciência que suspira em decorrência da opressão e que protesta contra o sofrimento, se projeta idealmente para a superação de tais condições. Não importa se os símbolos de que a consciência religiosa lança mão não sejam “cópias verdadeiras” do real. Na verdade, perguntaria a consciência religiosa, se as nossas representações se limitarem a descrever o dado, não estaremos condenados a uma postura conservadora e de ajustamento? (...) Ao contrário, se estamos em conflito com o real e projetamos a sua transformação, não é necessário que criemos símbolos de sua própria superação, símbolos estes que, por se referirem a um futuro inexistente e proibido pelo presente, só são sustentados pelo desejo e a imaginação – símbolos que têm de ter um caráter religioso, portanto? Considerada sob tal ponto de vista, a alienação é o pressuposto da crítica e da transformação. (ALVES, 2006, p. 34) Por outro lado, pensar a ciência como a grande libertadora também não parece ser completamente correto. Por trás da “ideologia de objetividade e de neutralidade”, ela tem se mostrado mais um instrumento de dominação, quando seu desenvolvimento é sustentado por questões econômicas e políticas, favorecendo a minoria opressora, minando qualquer potencial “revolucionário” que a ciência possa ter. 35 Então, Rubem Alves se pergunta, como superar a alienação? Ora, se tomarmos como alienação o conceito feuerbachiano, a saída é simplesmente introjetar novamente a projeção da essência que se encontra fora do homem. É meramente uma questão lógica, um salto de consciência, uma alteração de postura mental, psicológica. Se tomarmos como ponto de partida a compreensão marxista, porém, a solução pode ser um tanto diferente, porque, para Marx, as causas da alienação são independentes, objetivas, fazem parte da “entidade” na qual se transformou o sistema econômico. Ela é simplesmente uma situação que se impõe ao homem. Rubem Alves tenta duas saídas para a superação dessa alienação, as duas representando as principais vertentes epistemológica da Filosofia: uma solução lógica e outra empírica. A solução lógica não se mostra eficaz. Ele diz: A dedução lógica (...) só é legítima quando a conclusão já se encontra presente nas premissas. Aqui não se permite a introdução de nenhum salto qualitativo no real. Procedimentos lógicos só são válidos sobre o pressuposto da unidade e continuidade do real. Mas a abolição da alienação é um destes saltos qualitativos. A via lógica está, assim, bloqueada. (ALVES, 2006, p. 63) E quanto à solução empírica? Também não se revela útil, vejamos: À parte da experiência nenhuma conclusão pode ser deduzida. Mas a abolição da alienação não é um dado da experiência. Ela ainda não ocorreu. Trata-se de um ideal, de uma esperança. Como, portanto, falar dela empiricamente? A via empírica está igualmente bloqueada. (id, ibid, p. 63) Então, só resta uma saída. Aquela com a qual tentamos prever fatos do futuro, com base na nossa experiência do passado, explicada por David Hume. Aqui, Rubem Alves denuncia, na teoria de Marx, a presença do elemento “fé”. A crença na superação do passado (e do presente) pelo futuro. Alves termina sua análise dizendo: 36 Parece-me, na verdade, que a explicação mais simples para o poder histórico do Marxismo não se encontra no rigor de suas análises científicas mas no seu poder para catalisar e exprimir o desejo daqueles que sofrem sob as condições de alienação e, portanto, sonham com sua abolição. (id, ibid, p. 64) Vemos então que, para Rubem Alves, o homem é também um ser de desejo. O desejo é um fator determinante na vida humana. Mas, onde se localiza o desejo na religião? Rubem Alves atribui ao desejo o lugar da diferença entre os homens e os animais. Nesse ponto aproxima-se de Freud. E também aproxima-se de Feuerbach, ao situar, na religião, um dos lugares mais próprios para a manifestação dos desejos humanos. Segundo o ponto de vista freudiano compartilhado por Alves, o desejo humano nasce da percepção de uma falta. Ao homem há sempre um “algo” que falta e que lhe gera um desejo que não é outro senão o de, de alguma maneira, suprir essa falta, satisfazer esse desejo. Ora, aos animais, nada falta. Ou, melhor dizendo, não há para os animais consciência de falta. Por conta disso não há, para eles, tentativa alguma de buscar ser algo além do que aquilo que já lhes é dado desde o princípio, a saber, sua biologia, sua genética. Percebemos sua programação genética como reunindo todas as características e comportamentos que irão desenvolver no futuro. Rubem nos diz: O animal é seu corpo. Sua programação biológica é completa, fechada, perfeita. Não há problemas não respondidos. E, por isso mesmo, ele não possui qualquer brecha para que alguma coisa nova seja inventada. (ALVES, 1999, p. 18) Estruturalmente, a ontologia animal é fechada. Dada a espécie, já sabemos como se comportará em cada fase de sua vida. Com os seres humanos, é tudo bem diferente. Podemos dizer que o homem é “ontologicamente aberto”. Não está fechado em uma programação biológica que ditar-lhe-á seu comportamento ou suas realizações ao longo de sua existência material. Assim como Feuerbach, Rubem 37 Alves percebe que o animal vive apenas em um mundo: o mundo natural, sua natureza, aquilo que é biologicamente programado parafazer. Ao passo que o homem vive em dois mundos: aquele que se lhe apresenta de fora – também o mundo da natureza, de forma semelhante aos animais – mas, além deste, vive num outro, que é seu mundo interno, com “a maldição da neurose e o terror da angústia”, derivados de uma abertura ontológica que, ao mesmo tempo que permite ao homem não ser aquilo que lhe é ditado pela natureza, da mesma forma lhe atribui a responsabilidade da escolha de qual caminho traçar, em busca de criar ou construir sua própria essência, seu próprio ontos. O fato é que os homens se recusaram a ser aquilo que, à semelhança dos animais, o passado lhes propunha. Tornaram-se inventores de mundos. E plantaram jardim, fizeram choupanas, casas e palácios, construíram tambores, flautas e harpas, fizeram poemas, transformaram seus corpos, cobrindo-os de tintas, metais, marcas e tecidos, inventaram bandeiras, construíram altares, enterraram seus mortos e os prepararam para viajar e, na sua ausência, entoaram lamentos pelos dias e pelas noites. (ALVES, op. cit., p. 19) Esse é um jeito poético – como lhe é sempre de costume – de Rubem Alves nos dizer que, ao escolher caminhos diferentes, os homens criam mundos diferentes, na tentativa de satisfazer seu desejo, de suprir sua falta. Afinal, só se deseja aquilo de que se sente falta e só se sente saudades daquilo que não está presente. A solução alvesiana, entretanto, para o problema do desejo, a saber, o fato de que ele encontra uma realidade que lhe é hostil e que se mostra proibitiva à sua realização, é a expressão desse desejo de formas simbólicas, em discursos que contém sua própria “chave de interpretação”, ou seja, seu códigos participam de um jogo de linguagem fechado, ao qual não adianta se impor uma determinada interpretação que esteja fora dos significantes que o jogo em questão elabora. Ora, Freud sugere que o sujeito que não se encontra “ajustado” ao real está doente. Vimos como denúncia marxista que a realidade está doente, já que vivemos um período em que o mundo se encontra estruturado sobre uma dinâmica em que a 38 maioria da população é oprimida por uma minoria e se ajustar a isso seria aceitar a opressão. Temos, portanto, um paradoxo. Tais questões passam despercebidas por Freud, mas não por Rubem Alves, que, além de tematizá-las, propõe uma nova leitura à religião, com o objetivo de resgatar sua função política. 39 6. Rubem Alves – Religião e Imaginação Para Rubem Alves, a religião nasce sempre de uma experiência mística originária, vivida por alguém que posteriormente se dedicou a transmitir a outras pessoas os caminhos que poderiam levá-las à mesma experiência. Mas que seria ela? Que tipo de sentimentos proporcionaria? Quais verdades revelaria? Ao nos depararmos com relatos daqueles que evidentemente a alcançaram, ouvimos (e lemos) falar em “encontro com a totalidade” e total identificação com o outro, a ponto de chamá-lo de “irmão” e amá-lo como a nós mesmos, num sentimento de pertença a uma realidade comum que, longe de ser fragmentada, como a consciência “profana” parece sugerir, é una e única, com todos fazendo parte dela, mesmo sem perceber. O que acontece depois desse primeiro momento de vivência dessa experiência sagrada, divina – sim-bólica por excelência – é a fatídica tentativa de transmití-la. A única forma de transmissão de conhecimento que nós, seres humanos ocidentais, conhecemos é a razão expressa através da linguagem. E a palavra, uma vez arremessada para fora do corpo (seja através da fala ou da escrita), perde seus contornos subjetivos, aquelas nuances furta-cor que se nos apresentam sempre de forma a sugerir que jamais se encerrariam em si mesmas, mas que estariam sempre dispostas a conter algo de uma possibilidade de ser mais do que são – ou do que foram até então. As palavras que são atiradas no mundo sofrem o processo do “desencantamento” e passam a ser cruas, frias, objetivas e duras, como barras de ferro; inflexíveis e inalteráveis. Ora, se essas palavras deveriam expressar aquilo que se sabia com verdade a partir de uma experiência legítima, natural e necessária às possibilidades humanas, então tais palavras são a expressão máxima daquela verdade, devendo, portanto, serem seguidas à risca. Aqui começam todos os problemas que tocam a religião e que enchem de motivos as críticas que a nossa época (séculos XIX e XX, especialmente) lhe dirigiu. 40 Tais críticas, representadas no presente trabalho pelos pensamentos de Ludwig Feuerbach, Karl Marx e Sigmund Freud, acusam a religião de ser uma ilusão, uma mentira, pois não encontra correspondência com a realidade. Pior que isso: especificamente no caso de Marx e Freud, a religião é colocada como uma doença, uma ilusão perniciosa da qual a humanidade não só deveria se livrar, como certamente se livrará assim que atingir maturidade para tanto. O que separa aquela experiência direta de uma realidade sagrada, divina, distinta da realidade comum e profana, dessa “ilusão”, dessa “doença” que não tem razão de ser na vida do homem? Para Rubem Alves, o que provoca essa separação são os dogmas. Dogmas formados por aquelas palavras “barras de ferro”. Ora, é justamente de barras de ferro que é feita uma gaiola e essa é justamente a metáfora da qual Rubem Alves lança mão para nos mostrar o que é essa prisão em que nós mesmos nos colocamos e qual é o caminho para que possamos nos libertar dela. Ele diz: As religiões são instituições que pretendem haver colocado numa gaiola o pássaro encantado. E não percebem que o pássaro que têm nas suas gaiolas de palavras é um pássaro empalhado. (...) E proclamam que o pássaro só pode ser encontrado dentro das suas gaiolas. Religiões: uma enorme feira onde se vendem pássaros engaiolados de todos os tipos. (ALVES, 2005, p. 10) O “pássaro encantado” de Alves é a Verdade. E é por isto que o pássaro está empalhado: a Verdade não está nos dogmas porque o caminho que ela trilha até chegar neles é desencantador, é desmistificante, mata a própria experiência. As palavras são expressão da razão humana e, apesar de inúmeros esforços na tentativa de representar dimensões “não racionais” do humano através delas, ainda assim a tradição ocidental nos orienta pela crença de que a Verdade só o pode ser quando transmitida racionalmente. Caso contrário, não passa de uma expressão da subjetividade e não pode – e nem deve – valer para outras pessoas. Rubem expõe: Nossa tradição filosófica fez seus mais sérios esforços para demonstrar que o homem é um ser racional, ser de pensamento. Mas 41 as produções culturais que saem de suas mãos sugerem, ao contrário, que o homem é um ser de desejo. (ALVES, 1999, p. 21) Sobre o fato de o homem ser um “ser de desejo” já tratamos no capítulo anterior. O importante aqui é observar que, não obstante estarem vazios de seus conteúdos originários, os dogmas chegam até as pessoas e elas, a partir de sua abertura e possibilidade de escolha, escolhem ouvir, seguir, obedecer a eles, muitas vezes de forma cega e fundamentalista. A tentativa de suprir a falta encontra salvação quando alguém que se diz não- faltante – no caso, o sacerdote – por ter encontrado o conforto da unidade com a totalidade (chamada de Deus), oferece o caminho para que se encontre, cada um em sua própria vida, a mesma unidade. As pessoas se apegam a esse caminho pelo medo da danação eterna e acreditam veementemente nele; qualquer que seja aquele que venha para colocar em xeque aquelas verdades deve ser encarado como herege, pecador, e deve ser combatido com todas as forças. A danação eterna nem sempre é um inferno metafísico para onde as pessoas más vão quando morrem, mas tambémse apresenta como a possibilidade de enxergar a realidade como “sempre inacabada, sempre em mutação, sempre perturbadora, sempre questionadora”. (ALVES, 1988, p. 12) E dessa forma, a imposição de dogmas encontra ressonância na alma de uma grande parcela da humanidade, que se sente aterrorizada pelo simples pensamento de viver num estado de incerteza, numa realidade que se dá a cada momento de uma forma diferente, que exige um cuidado constante e um igualmente constante esforço de construção, de um fazer que se dá sempre mais uma vez, numa realidade eternamente incompleta. Para essas pessoas, a forma dogmática de religião nada mais é do que um alívio, um porto seguro, cheio de certezas e verdades às quais se apegar para se estar então numa situação confortável, distante da angústia trazida pelo caos. 42 Por isso é necessário atribuir um caráter último aos dogmas, às crenças, a essas verdades aprisionantes – esta, a definição alvesiana de “fundamentalismo”. Uma vez que haja qualquer coisa que abale a veracidade dessas fórmulas, a consequente volta àquele estado de caos é uma possibilidade, cuja proximidade provoca pânico, terror e angústia. A partir daí, a religião passa de experiência mística a instrumento de dominação das massas por uma minoria eclesial. O nome de Deus ganha força na alma das pessoas, servindo muito bem a propósitos escusos, como expõe Rubem: Deus se tornou uma arma ideológica para a preservação do poder, para justificar as coisas, tais como elas eram, para executar os dissidentes. Assim, de forma concreta, a palavra Deus ficou repentinamente sem sentido. Ou melhor: esvaziou-se, dentro do contexto institucional e teológico tradicional. (ALVES, op. cit., p. 16) É a morte de Deus, tão propagada pela crítica à modernidade. Que esperança podemos ver, entretanto, num mundo sem Deus? Aqui entendamos Deus em seu aspecto teleológico, como Senhor de um mundo melhor do que este. Um sentido que se mostra aquele mais nobre no qual pode um homem depositar suas súplicas: o sentido do Amor. Amor como condição básica para uma existência humana em que, através Dele, haja uma identificação dos humanos uns para com os outros na construção de um mundo comum, em cooperação, com todos os direitos básicos assegurados. Atribuindo-se, ao invés disso, o sentido da vida humana à técnica, à burocracia, à política ou à economia, à produção e ao consumo, que tipo de mundo poderemos esperar? Assim, aqueles que um dia viram seus deuses morrer, (...) descobriram repentinamente que a menos que eles fossem capazes de dar à luz novos deuses, só lhes restava a loucura. Mesmo Nietzsche, que proclamou a morte de Deus, sentiu que um universo em que Deus morreu é frio e escuro. (ALVES, op. cit., p. 18) Enfrentamos a questão de vivermos a partir de paradigmas que essencialmente fundam a nossa realidade. A essência da realidade que vivemos nada mais é que os 43 paradigmas que a determinam. São verdades que aceitamos antes mesmo de qualquer questionamento, ou poderíamos dizer que, mesmo para questionar, necessitamos já estar pisando sobre um chão ladrilhado de verdades. Entretanto, exatamente por serem a priori da nossa realidade, não conseguimos perceber esses paradigmas; por serem requisito de todo questionamento, não conseguimos questioná-los. Como diz Rubem Alves, eles são “como os nossos olhos: vemos através deles, mas não os vemos” (op. cit., p. 22). É por isso que eles nos “enfeitiçam”: nós não temos escolha a não ser olhar o mundo da forma como eles determinam. Tal forma de modo algum poderia tomar ares de coisa-em-si. Mas, de que outra coisa podemos falar, se esta é a única que estamos aptos a conhecer? Nos rendemos, então. E nos rendemos a quem, afinal? Ora, atualmente a ciência e a técnica ditam os paradigmas, a ponto de podermos dizer que vivemos uma sociedade “tecnocrática”, ou seja, governada pela técnica. Um dos principais paradigmas científicos que determinam o nosso tempo diz respeito à nossa forma de conhecer. A ciência aposta numa realidade objetiva que não se submete aos desejos humanos, mas afirma que, a despeito deles, ela vai seguir seu curso histórico. Assim, o conhecimento a respeito dessa realidade (que outro conhecimento poderia existir?) se dá pela capacidade de reproduzir, de duplicar aquilo que é dado. E, para que esse conhecimento obtenha qualquer validade (uma espécie de selo invisível com o qual a sociedade presenteia determinados pensamentos), ele precisa ser verificado. Verificação essa que nada mais é que uma comparação com aquilo que é real (objetivo). Se o pensamento e o real forem idênticos, tem-se aí uma verdade. A partir disso, temos algumas conseqüências profundas em nossa organização social. Por exemplo: daí podemos inferir que o sujeito que não esteja apto a reproduzir o real, a reduplicar os dados empíricos da realidade objetiva, não é um sujeito normal. Vem Freud nos dizer que esse sujeito apresenta uma patologia; é um enfermo. 44 Rubem Alves sintetiza: “ao ideal científico de objetividade, no nível epistemológico, corresponde um padrão psicossocial de normalidade em termos de ajustamento” (op. cit., p. 23). Logo, todas as pessoas normais e saudáveis são aquelas que correspondem àquilo que lhes é apresentado pelo real. Aqui encontramos outra consequência desse paradigma: a história do homem prescinde do próprio homem. Não há uma conexão entre os processos sociais e históricos e a vivência subjetiva do ser humano, a não ser na forma de uma determinação deste por aquele, e nunca o contrário. Em última análise, o homem não é um fator. Ele não faz história. Sua ação não brota da sua liberdade, mas antes dos determinismos concretos que o cercam. (...) [Consequentemente] a imaginação não faz história. (1988, p. 24) É a história, os contextos sociais, que fazem do homem o que ele é, que o determinam. Eles são as causas do comportamento humano. Já Rubem Alves observa que os conteúdos da consciência são a causa dos processos sociais, nunca seu efeito. Assim, a imaginação faz história. Para ele, religião é imaginação e vice-versa, ou seja, a imaginação para o homem tem sempre uma dimensão religiosa. Se a desconsideramos, temos que assumir a metafísica científica, que nos diz que conhecimento é adequação e que a verdadeira consciência é aquela que reproduz o real. Entretanto, “o ambiente nunca é percebido como algo neutro” (op. cit., p. 25) porque um imperativo que se mostra ao homem, sempre e a todo momento, é o da sobrevivência. Porque quer viver, o homem se emociona, se irrita, se comove, se assusta, sente medo, amor, esperança, frustração. Da mesma forma que o mundo promete vida e prazer, também apresenta morte e dor. A vida é recheada de emoções as mais diversas porque o homem se encontra no mundo em meio à batalha pela própria sobrevivência. A consciência, para Rubem Alves, longe de estar próxima a uma razão pura, é uma “função do corpo”. 45 Essa foi uma grande “descoberta” de Freud, a saber, que a vida do homem não é racional. E que até mesmo os sonhos têm um significado, e não são apenas manifestações sem sentido da psique. E se o sonho para Freud é um conteúdo simbólico inconsciente, Rubem concorda que a religião seja um sonho coletivo da humanidade. Não uma neurose no sentido patológico, mas a expressão da esperança humana de que o desejo pela vida se realize no mundo, mesmo que esse mundo não dê mostras de que essa realização seja possível. Toda a teoria de Rubem Alves indica que, para que haja uma pesquisa séria no campo da religião, é necessário que ela seja compreendida, não mais a partir apenas de suas características
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