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PSICOLOGIA Fernanda Egger Barbosa Escola psicológica: teoria psicanalítica Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Constatar claramente a contribuição da Escola Psicanalítica ao estudo do comportamento humano. � Identificar o processo de construção desta escola da Psicologia e a sua influência para o desvelar do inconsciente. � Relacionar os conceitos desenvolvidos pela Psicanálise no que se refere à constituição do sujeito e ao seu desenvolvimento. Introdução Influenciado pelos avanços científicos e pelas tendências modernas do campo filosófico, Sigmund Freud inaugurou a Clínica da Psicanálise, tomando o conceito de que a subjetividade e, consequentemente, o comportamento humano são regidos por outra lógica que não a da razão cartesiana, mas, sim, por uma que Hegel descreveu como motivada pelo desejo. Em seus estudos e pesquisas empíricas, Freud desvelou a instância do Inconsciente (Ics) como sendo o lugar em que os pensamentos se organizam. O Ics se torna, portanto, o objeto de investigação psicanalítica, evoluindo e se desdobrando em muitas escolas que abordam as questões psicológicas em relação ao sujeito e à dinâmica consciente-inconsciente. A partir dessas concepções, é possível estudar a constituição do sujeito, enquanto humano, as relações que ele estabelece com o ambiente e o seu desenvolvimento, tornando-se, assim, uma das maiores escolas e correntes teórico-metodológicas do campo da Psicologia. Neste capítulo, você vai conhecer os fundamentos da Escola Psica- nalítica e a sua contribuição para o comportamento humano, identificar o processo de construção da Psicanálise e o desvelar do Ics e relacionar os conceitos psicanalíticos que se referem à constituição do sujeito e aos seus desenvolvimentos cognitivo e afetivo. 1 Escola Psicanalítica: contribuições para o estudo do comportamento humano Falar em Escola Psicanalítica exige o regresso a um cenário anterior ao seu surgimento: o século XVII, que é tido como um período de transformação profunda da história e do pensamento científico. Naquela época, revelações epistemológicas e científicas geravam o afastamento da concepção aristotélica e religiosa da era medieval, de modo a desconstruir o paradigma anterior. Entre os pensadores dessa época, para a Psicologia, é importante destacar René Descartes, que emerge no mundo filosófico defendendo a antropomorfização da verdade, sob o axioma já conhecido: “Penso, logo existo, ou penso, portanto sou”. Na antiguidade, o lugar da verdade era o das ideias divinas e não do homem. Nessa época, a verdade humana era cópia da verdade ou um simula- cro, uma cópia mal feita desta, e enquanto simulacro, deveria ser descartada ou suprimida. Para Garcia-Roza (1993), Descartes era, ao mesmo tempo, um revolucionário e um herdeiro do pensamento grego e medieval. Enquanto os críticos do modo de estudar as ciências (Nicolau de Cusa, Giordano Bruno, Galileu Galilei, entre outros) transportavam as ideias de um mundo fechado ao universo infinito, Descartes se debruçava sobre o estudo da subjetividade. Chalmers (1999) também chamou a atenção para as transformações científicas daquele período com as pesquisas inovadoras de Galileu e Newton em oposição à antiga concepção científica aristotélica, ou seja, a lógica incorporava cada vez mais a experiência como fonte de conhecimento: os empiristas (indutivistas). Apesar de os pensadores indutivistas também serem alvo das críticas de Chal- mers (1999), no quesito da ingenuidade de se pensar a ciência como neutra em relação ao objeto observável, podemos dizer que esses indutivistas, tal como Freud, são os mais afeitos aos estudos da psique humana, pois é impossível, para o homem, observar o que quer que seja sendo exclusivamente objetivo. O campo filosófico, relacionado à investigação do conhecimento e da subjetividade humana, começou a abrir o seu universo para o desenvolvimento de diversas teorias críticas, como as de Kant (1724–1804), Hume (1711–1776) e Hegel (1770–1831), que, segundo Garcia-Roza (1993), seguem esse percurso cartesiano de afirmar a verdade da razão como sendo a maior característica do comportamento humano. A partir dessa concepção cartesiana de subjetividade é que vai se definindo e se consolidando o campo da Psicologia como ciência até meados do século XIX e início do século XX, período em que surgem diversos movimentos e escolas de pensamento que investigam e se debruçam sobre os fatores psicológicos básicos (o pensamento, a inteligência, a linguagem, a percepção, a motivação, etc.) e sobre o comportamento humano, tendo como Escola psicológica: teoria psicanalítica2 ponto de partida o conhecimento e a subjetividade oriundos das correntes filosóficas herdeiras da hegemonia platônica da Antiguidade Clássica. No campo da Psicologia como ciência, Wilhelm Wundt é considerado o precursor da Psicologia experimental junto com Ernst Heinrich Weber e Gustav Theodor Fechner. Wundt criou seu laboratório no Instituto Expe- rimental de Psicologia da Universidade de Leipzig em 1879, na Alemanha, atraindo estudantes de várias partes do mundo. Para Araújo (2009, p. 211): “A definição de Psicologia apresentada por Wundt pode ser assim resumida: a Psicologia é uma ciência empírica cujo objeto de estudo é a experiência interna ou imediata”. A partir da Escola de Wundt, várias outras escolas e correntes de pensamento conformaram o campo da Psicologia. Ainda no século XIX, nos Estados Unidos, egressos da Escola de Leipzig desdobraram os ensinamentos de Wundt por intermédio do estruturalismo de Titchener (1877–1927) e do funcionalismo de J. Dewey (1859–1952, Angel (1869–1949) e H. A. Carr (1873–1954). No século XX, as Escolas da Psicologia começaram a se definir de acordo com os seus referenciais teóricos: � Psicologia Comportamental: Watson (1878–1958); � Psicologia da Gestalt com alguns dos seus precursores, como Werthei- mer (1880–1943), Koffka (1886–1941) e Köhler (1887–1967); � Behaviorismo: Skinner (1904–1990); � Psicologia Cognitiva: Piaget (1896–1980); � Psicanálise: Freud (1856–1939). Para saber mais sobre a origem da Psicologia como ciência e das Escolas de Psicologia, leia o artigo “Principais escolas de pensamento em Psicologia”, de Joviane Aparecida de Moura (2009) no site Psicologado. Sigmund Freud era um médico austríaco que se dedicou às investigações sobre o Eu balizado, não pela razão, mas pelo desejo, descobrindo, a partir disso, o Ics. O início de seus trabalhos, para definir a técnica psicanalítica, ocorreu pela influência do neurologista francês Jean-Martin Charcot (1825–1893) sobre a hipnose (FREUD, 1996a) como sendo uma forma de acessar os conteúdos 3Escola psicológica: teoria psicanalítica https://pt.wikipedia.org/wiki/Universidade_de_Leipzig obscuros que fugiam das decisões conscientes de uma pessoa. Não conseguindo ver eficácia na hipnose em seu trabalho clínico, Freud começou a orientar sua clínica por meio da associação livre de ideias, em conjunto com o que os próprios pacientes lhe retornavam. No princípio, ele usava uma leve pressão sobre a fronte dos pacientes, como se aquilo pudesse induzi-los a falar o que lhes viesse à mente, porém, um deles sinalizou que aquele procedimento não era necessário e que bastava que o psicanalista deixasse que ele falasse livremente. E foi assim que Freud passou a sugerir que seus clientes falassem o que lhes viesse à cabeça, sem censura, definindo-se, assim, o método psicanalítico pela livre associação de ideias. A Psicanálise, como técnica construída por Sigmund Freud (1856–1939), vai na contramão do Eu único da razão e da verdade de Descartes, inaugurando, nesse momento, a visão do Eu dividido, que obscurece a verdade. Freud, porém, também não conseguiu se ver livre da forma platônica de construir o conhecimento e da ciência (positivista). Garcia-Roza (1993, p. 20) fez essa diferenciação da seguinte forma: “[...] a psicanáliseproduziu uma derrubada da razão e da consciência do lugar sagrado em que se encontravam. Ao fazer da consciência um mero efeito de superfície do Inconsciente, Freud operou uma inversão do cartesianismo [...]”. A Psicanálise freudiana muito contribuiu para a compreensão do funciona- mento psíquico e para a apreensão do comportamento humano e o tratamento do sofrimento, ou seja, a partir do Ics, o comportamento humano não pode ser apenas explicado por aspectos psicológicos racionais. Instaura-se, a partir daí, toda uma corrente que valoriza o afeto. Para Freud (1996b), o conflito psíquico é resultante do embate de forças instintivas (inconscientes) e repres- soras (oriundas do Ego e do Superego), sendo os sintomas as representações simbólicas desse conflito. Ele desvelou a instância do Ics, revelando a ideia de dissociação do Eu em sujeito consciente e inconsciente, e as pulsões que movem o desejo do ser humano em pulsões de vida e de morte (FREUD, 1996a), as quais funcionam sob lógicas diferentes. Freud defendeu que, além da livre associação, havia outro meio de acesso aos conteúdos inconscientes expressos por lembranças: as reminiscências dos sonhos (FREUD, 1996c, 1996d). O médico chocou a comunidade científica ao defender a existência de uma sexualidade infantil, denominando os traumas sofridos na infância pela instância do Complexo de Édipo (FREUD, 1996e). Ele revelou, ainda, aspectos subjetivos, como repressões, resistências e identificações como contribuintes para a formação do caráter, da personalidade e do comportamento humano e o fenômeno da transferência como o pivô para o tratamento psicanalítico (FREUD, 1996e). Escola psicológica: teoria psicanalítica4 Para Garcia-Roza (1993), foi a produção do conceito de Ics que resultou em uma clivagem da subjetividade, apontando, de tal forma, para uma identificação do sujeito sob duas realidades — um sujeito dividido —, pois, se a alma fosse passiva de cognição, não haveria erro. Ressalta-se que o Ics freudiano não é o lugar das trevas, da irracionalidade. A lógica do Ics é apenas distinta da lógica da consciência e é o desejo (e não a razão) que a anima. 2 Inconsciente e processo de construção da Psicanálise Sigmund Freud era médico e nasceu em uma família judaica de origem aus- tríaca. Sua descoberta e afirmação da lógica do Ics, movido pelo desejo, inaugurou a própria técnica psicanalítica e se institucionalizou como Escola de Psicanálise. A teoria foi se desenvolvendo conforme sua aplicação prática, ou seja, de forma empírica. Ela perpassa o abandono de Freud da técnica da hipnose, aprendida com o mestre Charcot, volta-se à livre associação, sugerida por uma de suas pacientes, e apresenta esclarecimentos sobre a técnica na troca de inúmeras correspondências com outros pesquisadores de sua época (Breuer, Ferenczi, Fliess, entre outros). O marco de criação da Psicanálise é o ano de 1896, com a definição do aparelho psíquico. Para Mezan (2008), Freud estava ligado a Charcot pela vinculação da histeria com o processo de hipnose e com Breuer pelo processo catártico e pela teoria dos estados hipnoides (FREUD, 1996a). A evolução clínica da Psicanálise o fez avançar, a ponto de acabar com a amizade com Breuer, como reconhece o próprio Freud (1996f). Segundo Baratto (2009) o Ics foi elaborado como um sistema de repre- sentações, obedecendo às leis de deslocamento e condensação, e se constitui como a verdadeira instância de produção de pensamentos, os quais podem encontrar um meio de expressão na palavra (enquanto registro simbólico). A Psicanálise teve um laborioso percurso histórico para sua formulação. O intuito freudiano, no entender de Baratto (2009), era o de aliviar o sofrimento dos pacientes expressos por meio de sintomas, tentando investigar o momento exato em que se estabeleceu o trauma ligado a ele. Freud tentou utilizar as téc- nicas de hipnose e catarse para descobrir a causa desencadeante dos sintomas. Inicialmente foram abordados os sintomas que não podiam ser localizados em lesões biológicas, como paralisias, tiques, cegueiras e comportamentos repeti- tivos. Nesse percurso investigativo, Freud constatou a presença de uma força poderosa que se opunha a tornar conscientes certos aspectos inconscientes, 5Escola psicológica: teoria psicanalítica https://pt.wikipedia.org/wiki/Judeus denominou-a como resistência. A prática clínica comprovou que as emoções penosas tendiam a se manter vinculadas a uma lembrança. Fazendo uso da livre associação, ele identificou o alívio de certas tensões psíquicas. Nessa primeira parte da teoria freudiana, podemos dizer que, nos estudos clínicos com pacientes histéricas, descobriu-se que elas sofriam de reminiscências das situações que lhes foram traumáticas (principalmente na infância) e produ- ziam sintomas. Para se verem livres dos sintomas, as pacientes precisavam rememorar essas reminiscências por meio da fala. Garcia-Roza (1993) aponta para o surgimento de uma primeira definição de organização do aparelho psíquico no Projeto para uma Psicologia Científica (FREUD, 1996i), em que, aquilo que se convencionou chamar de Ego tem uma função repressora com a finalidade de inibir o investimento de energia pulsional (instintiva) da imagem mnêmica de um objeto satisfatório, evitando, assim, a alucinação. Essa força ainda está muito ligada às descargas elétricas neuronais e vê expressa a oposição entre o Ego (Cs) e o recalcado (Ics). Ao dar ênfase à lembrança em vez de a um acontecimento, Freud formulou o conceito de fantasma, que está intimamente articulado à teoria do trauma, ou seja, ele percebeu que nem sempre o trauma está veiculado a um acontecimento real, mas, sim, à lembrança fantasmática que o paciente tem deste. Para Baratto (2009), é na interpretação de sonhos que Freud (1996c, 1996d) afirma que a estrutura do fantasma é comparável à estrutura do sonho, pois o fantasma e o sonho constituem formas de realização de desejo inconscientes. Além disso, os mecanismos de deslocamento e condensação são fundamentais no trabalho do Ego na deformação do desejo (enquanto mecanismos de defesa), visando a torná-lo irreconhecível para o sujeito. No que tange aos mecanismos de defesa — elementos importantes na obra freudiana —, podemos destacar que eles são, resumidamente, formas de o sujeito consciente se proteger de algum conflito entre o Ego e o mundo externo ou entre o Ego e os desejos inconscientes. Esses mecanismos geralmente são úteis para o sujeito quando este precisa enfrentar algo considerado, pelo seu Ego, como perigoso ou ameaçador. O sujeito acaba criando formas imaginárias de se proteger dessa situação que, em geral, é reacionada (repetida) diante de novas situações, as quais, por algum motivo, lembram a primeira ocorrência que se caracterizou como traumática. Eles não se resumem, no entanto, ape- nas aos fenômenos citados por Baratto (2009) e Maia (2009), com relação à formação do conteúdo dos sonhos, mas a eles também. Os mecanismos de defesa são definidos, abordados e trabalhados ao longo do desenvolvimento da Psicanálise em textos como As neuropsicoses de defesa (FREUD, 1996b) e Inibições, Sintomas e Angústias (FREUD, 1996g). Sobre os mecanismos Escola psicológica: teoria psicanalítica6 de deslocamento e condensação, Maia (2009) afirma que, para Freud, os sonhos não se reduzem a um conteúdo inconsciente, pois são, na verdade, formações do Ego. A partir das contribuições do editor inglês das obras de Freud, James Strachey, em 1905, Freud já havia publicado dois dos seus trabalhos mais sig- nificativos para o conhecimento a partir da descoberta do Ics e a compreensão sobre a sexualidade humana: A interpretação dos sonhos e os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (EDINGTON, 2012). Nesse período, Freud definiu diversos aspectos importantes que delineiam a Psicanálise além da formulação do Ics: a associação livre de ideias e a interpretação dos sonhos como forma de acessar seus conteúdos, a vidaanímica sexual da criança e o medo da castração (Complexo de Édipo), as resistências e as repressões da realização da libido pelo sistema consciente e, por fim, a presença constante da dualidade das pulsões (autopreservação e sexual). Sobre o Complexo de Édipo, Moreira (2004) afirma que não se trata apenas de um complexo nuclear das neuroses (uma das psicopatologias investigadas por Freud na Psicanálise que inclui a histeria — fenômeno psíquico presente em suas primeiras pacientes, cujo tratamento inaugura a própria teoria psica- nalítica), mas de um ponto decisivo na sexualidade humana. O Complexo de Édipo estrutura e organiza como o sujeito se posiciona em sua vida e como esse sujeito vai diferenciar o Eu e o Outro, o mundo interno e o externo e os sexos. “A resolução do Complexo de Édipo” (FREUD, 1996h) é um texto fundamental para a definição dessa estrutura complexa que muito contribuiu para a teoria psicanalítica e é tomada como referência por outras Escolas de Psicanálise. Testi (2012) afirma que, na busca pelas situações patogênicas que se es- tabeleceram a partir das repressões da sexualidade e quando se originaram os sintomas, no lugar das fantasias reprimidas, Freud (1996e) se aprofundou na história do sujeito até a sua infância. Segundo essa autora, desde os Três Ensaios, Freud (1996e) deixou claro sua posição acerca da sexualidade infantil, mesmo que atendesse apenas adultos. Testi (2012) lembra que Freud supervi- sionou a análise de Hans, feita pelos pais, e de sua própria filha — quem ele observava os comportamentos infantis. A partir de 1910, Freud fez uma clara distinção entre pulsões de autocon- servação (conjunto de necessidades ligadas às funções corporais essenciais à vida reguladas pelo princípio de realidade) e as pulsões sexuais (GARCIA- -ROZA, 1993). Freud (1996i) defendia ter verificado que a satisfação dessas necessidades é acompanhada de uma sensação de prazer. Esse prazer, no entanto, dissocia-se do instinto, tomando como objeto não mais algo do mundo 7Escola psicológica: teoria psicanalítica real, mas um fantasma do objeto, passando, portanto, a representar pulsões sexuais, contrapondo-se com as de autoconservação. Em Freud (1996j), essa oposição entre as pulsões é atenuada pela oposição libido do Ego (narcísica) e libido objetal (libido investida sobre objetos externos). É apenas no texto de 1914 que Freud vai definir mais claramente o Ego em oposição ao Ics e a ruptura com Jung, por persistir com a ideia da sexualização da libido (GARCIA-ROZA, 1993). Avançando em seus estudos sobre o embate de forças inconscientes e conscientes, Freud formulou uma nova organização psíquica, a qual alguns autores chamam de esquema topográfico do aparelho psíquico. Dessa forma, Freud (1996k) distinguiu três instâncias mentais: o Ics, o Pré-Cs e o Consciente (Cs). O trabalho da Psicanálise, nesse caso, seria o de tornar conscientes os conteúdos inconscientes. Baratto (2009) afirma que, no texto O Inconsciente, Freud (1996j) levanta a questão de como se dá a transposição, isto é, a passagem das ideias do sistema Ics para o sistema Cs. Essa questão é precisamente introduzida em função da concepção tópica de que o aparelho psíquico é constituído por três sistemas: Ics, Pré-Cs e Cs. Os estudiosos da Psicanálise chamam essa primeira configuração espacial do psiquismo humano de Primeira Tópica Freudiana. De acordo com Baratto (2009), Freud defendeu que o trabalho clínico comprova que o recalque não é removido, nem os seus efeitos são anulados pela sugestão (FREUD, 1996l). A autora lembra que os psicanalistas devem estar advertidos que a revelação do Ics ao paciente em atendimento resulta, na maioria dos casos, uma intervenção inócua e o fortalecimento das resistências. A Psicanálise freudiana não visa a promover um alargamento da consciência, Freud chamou esse método de ambição terapêutica, um sentimento perigoso para o analista (selvagem). Freud também apontou, mas refutou a ideia da possibilidade de que a passagem de ideias inconscientes para a consciência se daria por um esforço de atenção. O Ics se torna Cs pela palavra, ou seja, por meio das associações das representações inconscientes, uma vez que o recalque recusa as representações. Foi por essa via que Lacan posteriormente apontou a distinção de função de linguagem e estrutura de linguagem para explicar o Ics (BARATTO, 2009). Em relação ao recalque, para Garcia-Roza (1993), este vem do Ego e tem como fonte as exigências éticas e culturais do indivíduo. Freud percebeu que nem todos os sujeitos reagiam da mesma forma às exigências e experiências, explicando que um determinado indivíduo pode erigir um grande ideal de vida no qual mede o seu Ego e outro pode simplesmente não ter uma referência tão alta, Freud entendeu, portanto, que para existir um recalque, é necessário que exista, como condição, um ideal. No Narcisismo, o Ego real se desloca para o Escola psicológica: teoria psicanalítica8 novo Ego ideal, dotado de perfeições, que não pode ser renunciado (perfeição narcísica da infância). O homem então busca recuperá-lo pela forma de um ideal do Ego. Temos aqui dois termos importantes para a dinâmica psíquica: o Ego ideal (objetiva a repressão) e o ideal de Ego (objetiva a idealização). Em Luto e Melancolia, Freud (1996j) abordou mais precisamente o Narci- sismo e a identificação imaginária com o objeto, caracterizando como a libido no processo de luto deve passar pelo teste de realidade e pelo confronto com a perda do objeto, esvaziando-se dos laços afetivos outrora ligados a ela. Um processo similar, mas fundamentalmente diferente, ocorre na Melancolia, processo no qual o paciente identifica a fantasia do objeto com o Ego e passa a investi-lo por essa identificação. Ainda em Garcia-Roza (1993), notamos que, no texto “Além do Princípio do Prazer”, (FREUD, 1996m) declarou que há grande parte do Ics no Ego, ou seja, além de uma parte do Ego estar ligada à consciência, existe outra que é inconsciente, mas é apenas em O Ego e o Id, de Freud (1996h), que é assinalada a emergência de um novo sistema que ficou conhecido como Segunda Tópica Freudiana: Ego, Id e Superego. A nova tríade, no entanto, não vem substituir a anterior, pois: “[…] enquanto a primeira tópica voltava sua atenção para a economia libidinal, a segunda está voltada para o confronto da libido com o que lhe é externo: a exigência de renúncia imposta pela cultura” (GARCIA-ROZA, 1993, p. 206). Em outras palavras, o que recalca a libido são as regras de uma sociedade. Só podemos falar em ideal do Ego quando se introduz o outro. Podemos afirmar que as máximas freudianas dessa segunda tópica nos dizem que não devemos confundir Ics com Cs, mas que algo no Ego também é inconsciente. Tudo que é recalcado é inconsciente. O Ego pertence tanto ao Cs, como ao Pré-Cs e ao Ics. Por sua vez, o Id é a parte inacessível do nosso psiquismo e tem características opostas ao Ego, pois está aberto a influências somáticas e abriga os representantes pulsionais que buscam satisfação (GARCIA-ROZA, 1993). Garcia-Roza (1993) destaca também que Freud admitiu que o Ego é aquela parte do Id que se modificou pela proximidade e influência do mundo externo (FREUD, 1996n), confrontando o princípio do prazer e da realidade. Mas e o Superego? Ainda de acordo com o autor, não é apenas contra o Id que o Ego 9Escola psicológica: teoria psicanalítica se confronta, pois uma parte dele se diferencia e se constitui como instância autônoma, produzindo, no psiquismo, o Superego, que tem a função de agente crítico. Este é herdeiro do Complexo de Édipo e construído com uma função tríplice: auto-observação, consciência moral e ideal de Ego. As crises para o sujeito são explicadas pela economia e dinâmica psíquica em relação às negociações do Ego com as exigências pulsionais do Id, das idealizações e repressões do Superego e da realidade. Uma frase criou polêmica no final da XXXI Conferência (FREUD, 1996n): Wo eswar, sol ich werden. Ela pode ser entendida de várias formas, mas principalmente como: onde Isto (Id) estava, então Eu devo ser (estar) — análise mais aprofunda realizada posteriormente por Jacques Lacan (GARCIA-ROZA, 1993). Você pode visualizar melhor a diferença das definições da primeira e da segunda tópicas freudianas pela representação do aparelho psíquico por meio de alguns esboços esquemati- zados na Figura 1. Figura 1. Esquemas visuais do aparelho psíquico: primeira tópica freudiana. Inconsciente Pré-consciente Consciente No artigo “A dissecção da personalidade psíquica”, das Conferências Introdutórias, de Freud (1996n), procura-se mostrar, esquematicamente, as relações estabelecidas entre o Ego, o Id e o Superego (Figura 2). Figura 2. Esquemas visuais do aparelho psíquico: segunda tópica freudiana. Fonte: Freud (1996n, p. 53). Escola psicológica: teoria psicanalítica10 Encontramos uma analogia sobre o aparelho psíquico que conforma a personalidade humana e um iceberg flutuante, conforme vimos em Feldman (2015), lembrando que o conceito é abstrato, ou seja, ele não se encontra no plano físico (Figura 3). Figura 3. Adaptação do esquema de Feldman. Fonte: Feldman (2015, p. 386). Complementarmente às questões do Ics são desenvolvidas, por diversos pre- cursores de Freud, algumas conceituações acerca do Narcisismo, da dissociação do Ego, das fases erógenas infantis, do fortalecimento do Ego, da educação, entre outras características de comportamento e desenvolvimento humano. Podemos destacar aqueles que se mantiveram atrelados à Escola Freudiana: Karl Abraham (estudos dos estágios pré-genitais do desenvolvimento e sobre o Narcisismo), Sandor Ferenczi (fundamentos da teoria das relações objetais e a teoria do trauma da sedução real infantil), Wilhelm Reich (crítica de que uma análise deve ir além da remoção dos sintomas, visando a mudanças na armadura resistencial), Anna Freud (enalteceu e aprofundou as funções do Ego e foi pioneira da Psicanálise com crianças) e Bion. Além de outras escolas oriundas da Psicanálise freudiana, como a kleiniana, winnicotiana, do Ego, do self e a Escola Lacaniana, entre outras, destacaremos algumas dessas escolas a seguir, considerando suas contribuições à subjetividade e ao desenvolvimento humano. 11Escola psicológica: teoria psicanalítica 3 Constituição do sujeito e seu desenvolvimento Para destacarmos as especificações das fases de desenvolvimento infantil em Freud, vale ressaltar que desde o início de seus trabalhos, no Projeto (FREUD, 1996i), ele analisa o vínculo mãe-bebê com uma experiência de satisfação erógena. A experiência de satisfação vai ser importante no processo dinâmico psíquico de prazer-desprazer. Para Testi (2012), a experiência de satisfação em Freud se caracteriza pelo encontro entre o bebê e a pessoa que permite as descargas das tensões internas (geralmente a mãe), promovendo, assim, o apaziguamento dessas tensões, que é reconhecida como uma vivência de satisfação, produzindo a primeira sensação de prazer, além da saciação de uma pura necessidade. Assim, para a autora, quando a mãe está cuidando do filho, ela também está despertando no filho a pulsão sexual ou libido. Garcia-Roza (1993) lembra a distinção freudiana entre Narcisismo primário e secundário. O narcisismo é uma categoria criada por Freud para representar um investimento libidinal no Ego. O narcisismo primário descreve um estado precoce em que a criança investe toda a libido em si mesma (autoerotismo), ao passo que o secundário descreve o retorno da libido ao Ego depois da retirada dos investimentos objetais (libido do objeto). O narcisismo primário é entendido aqui, enquanto realidade psíquica, como o mito primário do regresso ao seio materno, sendo o autoerotismo uma fase anterior e preparatória ao narcisismo. Uma das formas de lidar com o narcisismo infantil é o recalque (função normalizante). Freud defendia tanto o menino quanto a menina como sendo o primeiro objeto original de amor da mãe, mas insistia na ideia de que o abandono da mãe, como objeto de amor, é uma condição necessária para a entrada da menina no Édipo (MOREIRA, 2004). Freud caracterizou as fases de desenvolvimento infantil a partir das pulsões sexuais em quatro fazes: oral, anal, genital e fálica. Para Testi (2012), a sexualidade infantil na teoria freudiana não se caracteriza por uma fase cronológica de desenvolvimento, mas por fases de organização psíquica frente ao objeto. Na constituição psíquica do sujeito, Freud classificou duas etapas de organização pré-genital: a oral e a sádico-anal, pois estando a satisfação a serviço da autopreservação, é natural que ocorra em referência à nutrição. Situada entre a organização pré-genital e a organização sexual adulta, é definida uma organização sexual infantil ou fálica (sob a primazia do falo). O amadurecimento da criança pode levar à resolução (dissolução) de seu Complexo de Édipo. Escola psicológica: teoria psicanalítica12 Devemos destacar, ainda, algumas contribuições à constituição do sujeito e ao seu desenvolvimento segundo outras Escolas de Psicanálise pós-freudiana. Além de Anna Freud, que deu continuidade à Escola de seu pai, mas tomando rumos próprios, Jung, que fundou sua própria terapia, Abraham, Bion, entre outros, podemos também destacar as contribuições de Melaine Klein. Se- gundo Ribeiro e Caropreso (2018), entre 1920 e 1945, a Psicanálise infantil se restringia ao circuito europeu, tendo Anna Freud, Melaine Klein, Margaret Mahler, Donald Winnicott, Spitz, Ferencsi e Abraham como seus principais contribuidores. Com os determinantes da Segunda Guerra, alguns desses psicanalistas precisaram se mudar para os Estados Unidos. Melaine Klein teve seu ponto de partida se baseando em alguns conceitos de Freud, como fantasia, mundo interno, Complexo de Édipo, etc., mas ela também elaborou outros conceitos originais, como o de posição e Ego primitivo (desde o nascimento) para mobilizar mecanismos de defesa arcaicos (disso- ciações, identificação projetiva, identificação introjetiva, negação onipotente, idealização e denegrimento) contra ansiedades primitivas advindas da inata pulsão de morte, conservando o conceito freudiano do Complexo de Édipo, mas identificando-o nos primórdios da vida da criança (NEVES, 2007). Melaine Klein fundou a Escola dos Teóricos das Relações Objetais. Ela investigava os estágios iniciais do desenvolvimento infantil, criando a técnica do brincar como forma de expressão do Ics. Klein avaliou o primeiro trimestre de vida do desenvolvimento infantil, identificando o medo do aniquilamento (perpetrado pelo trauma do nascimento e pela identificação de objetos par- ciais, como o seio materno) — uma ansiedade persecutória que engendra seus primeiros mecanismos de defesa (posição esquizo-paranoide da criança). A partir desse conceito, Melaine Klein descreveu o desenvolvimento psicológico do indivíduo humano. O período caracterizado pela Escola kleiniana valorizou os aspectos relacionados ao desenvolvimento emocional primitivo, as relações objetais parciais, os mecanismos de defesa primitivos e, apesar da valorização da transferência oriunda da teoria freudiana, começou-se a ganhar visibilidade o caráter contratransferencial do analista. Essa Escola se desenvolveu nos trabalhos de vários autores, inclusive no Brasil, como Isaacs, Segal, Rosenfeld, Meltzer, Bion e Aberastury (ABRÃO, 2008). 13Escola psicológica: teoria psicanalítica Outra importante escola advinda da Psicanálise foi a chamada Escola da Psicologia do Ego. Nela, destaca-se o trabalho da psicanalista austríaca Margaret Mahler, que junto com Anna Freud criou o primeiro centro de tratamento infantil em Viena. Fugindo da perseguição dos judeus, ela se mudou para a Inglaterra e posteriormente para os Estados Unidos. Em 1950, junto com Manuel Furer, fundou um instituto para tratamento de crianças em Nova Iorque. Para Ribeiro e Caropreso (2018), usando seus argumentossobre a teoria da simbiose e separação-individuação já desenvolvidas, Mahler começou a pesquisar sobre as patologias decorrentes de vivências não satisfatórias nas fases iniciais do desenvolvimento infantil. Ela realizou estudos clínicos sobre as psicoses normais e patológicas em crianças e desenvolveu um modelo de tratamento no qual a mãe participava, enfatizando o papel do meio ambiente e a dualidade mãe-bebê. Mahler e a Psicologia do Ego identificam, no desenvolvimento da criança, três fases: uma fase autística (nas primeiras semanas de nascimento do bebê), uma fase simbiótica (que vai até os cinco meses) e uma fase de separação-individuação. Ribeiro e Caropreso (2018) resumem a fase da separação-individuação como se iniciando entre os 4 e 5 meses de vida do bebê e indo até os 30 a 36 meses. Nas observações diárias no Master Children’s Center (MAHLER, 1971), descreveram-se certos comportamentos frequentes nos bebês, como o uso de objetos inanimados relacionados à mãe, os quais funcionavam como substitutos dela durante a sua ausência (objeto transicional). Além disso: Outro fato observado é que houve significativa modificação cinestésica das crianças normais quando em contato com o corpo humano e pouca alteração quando manuseando objetos inanimados. Entretanto, nas crianças psicóticas, o quadro inverso foi notado. Uma terceira observação foi a ocorrência, entre irmãos, de diferentes reações diante de estranhos, mostrando que, apesar de terem o mesmo objeto materno, a aquisição da expectativa confiante e da des- confiança básica dependem da maneira com que foram cuidados (RIBEIRO; CAROPRESO, 2018, p. 905). Outra importante escola criada nos EUA foi a Psicologia do self. Ela foi inaugurada por Heiz Kohut, médico austríaco que, assim como Mahler e outros, fugiu do caos nazista. Kohut inicialmente se considerava um aprofundador dos conceitos freudianos, porém, em Chicago, ele acabou se distanciando desses conceitos de base dos egressos da Psicanálise tradicional. Para Kohut, as concepções psicanalíticas tomavam posturas muito ortodoxas (as Escolas de Escola psicológica: teoria psicanalítica14 Anna Freud, Melaine Klein e a Psicologia do Ego). Ele afirmou que fenômenos psicológicos só podem ser apreendidos por intermédio da introspecção e da empatia. Por estudar as patologias narcísicas, sofreu críticas negativas contun- dentes, apesar disso, seus ensinamentos se expandiram. Segundo Sarkis (2016), os estudos de Kohut sobre as patologias narcísicas apresentadas em trabalhos e publicadas em seus livros sofreram críticas negativas. Colegas e estudantes se reuniam e o ajudaram a formar o Grupo de Estudos da Psicologia do self. Heiz Kohut formulou o conceito de self-objeto que responde empaticamente às necessidades psicológicas, ou seja, o indivíduo que vem a desempenhar uma vivência aglutinada às funções que um bebê ainda não pode desempenhar sozinho, devido a dispor apenas de um núcleo de self a ser desenvolvido, por intermédio da vinculação com seu próprio self (SARKIS, 2016). De forma mais clara, para o bebê, o adulto que cuida dele é parte de si mesmo. O self- -objeto idealizado garante a segurança e o amparo e o sentimento de pertencer a um contexto humano, mas se esse self-objeto falha, haverá a internalização idealizada do self vinculado, surgindo, a partir daí, as patologias narcísicas do self. Kohut defendia a existência de um self completo (não defeituoso) com capacidades realizantes, criativas e produtivas em oposição ao self narcísico (defeituoso). A cura do self narcísico se dá pelas vivências emocionais do paciente na reativação e na análise de transferência, emoções inconscientes revividas e elaboradas na consciência durante o processo analítico. Mais tarde, Kohut modificou certos conceitos, como o do narcisismo, que passou a ser conceituado como uma estrutura da mente, algo próprio das relações humanas, tendo capacidade de transformações evolutivas. Ele criticava, por meio do conceito de fúria narcísica, a agressividade destrutiva que é reativa às ameaças de fragmentação do self. Além disso, Kohut diferenciava, fazendo uso de metáforas, o homem culpado (relação do homem com suas pulsões) do homem trágico (que busca um sentido existencial), ao apontar decisivamente seu distanciamento da Psicanálise freudiana, afirmando que o homem sofre pela ameaça de fragmentação do self. A Escola de Donald Woods Winnicott (1896–1971) também se tornou bastante importante, tendo em vista que o pediatra, psiquiatra infantil e psi- canalista nascido na Grã-Bretanha atuou clinicamente e escreveu para revistas destinadas ao público em geral. Nelas, ele discutia os problemas das crianças e das suas famílias. Sua extensa obra foi dedicada à construção da teoria dos processos maturacionais (um caminho a ser percorrido partindo da dependên- cia absoluta e da dependência relativa à independência relativa) que, além de constituir uma teoria da saúde, com descrição das tarefas impostas desde o início da vida pelo próprio amadurecimento, configura também o horizonte 15Escola psicológica: teoria psicanalítica teórico necessário para a compreensão da natureza e a etiologia dos distúrbios psíquicos. Winnicott exerceu a psiquiatria infantil com base na Psicanálise modelada por ele mesmo em três pontos: 1. a teoria da sexualidade no entendimento das patologias maturacionais e das práticas clínicas; 2. a valorização do fator ambiental; 3. a substituição do Complexo de Édipo pela resolução dos conflitos no colo da mãe e nos ciclos que vão se ampliando conforme o amadurecimento. A distinção de seu trabalho, metodologicamente, em relação a Freud e outros, foi a decisão de estudar o bebê e sua mãe como uma unidade psíquica. Isso lhe permitia observar a sucessão de mães e bebês e obter conhecimento referente à constelação mãe-bebê, e não como dois seres puramente distintos. Assim, não há como descrever um bebê sem falar de sua mãe, pois, no início, o ambiente é a mãe (ambiente facilitador: mãe suficientemente boa), é apenas gradualmente que ele vai se transformando em algo externo e separado do bebê. Naffah Neto (2005) defende que, para Winnicott, muito antes de o bebê constituir seu self unificado e coeso, ele define um jeito peculiar de estar no mundo, aglutinando a herança biológica e a articulando com o seu ambiente. Apesar de um início de self fragmentado (gesto espontâneo, criativo), há um eixo central, um núcleo a partir do qual se desenvolverá rumo à maturidade, produzindo experiência, o fator primordial para o desenvolvimento da análise winnicottiana. A psicopatia se caracteriza por um transtorno ou falha no ambiente. A teoria de Winnicott se baseia no fato de que a psique não é uma estrutura pré-existente, mas, sim, algo que vai se constituindo a partir da elaboração imaginativa do corpo e de suas funções — o que constitui o binômio psique- -soma. Essa elaboração se faz na possibilidade materna de exercer funções primordiais, como o holding (permite a integração no tempo e no espaço), o handling (possibilita o alojamento da psique no corpo) e a apresentação de objetos (permite o contato com a realidade). O psique-soma inicial prossegue ao longo de uma linha de desenvolvimento, desde que sua continuidade de existência não seja perturbada. Para que isso ocorra, é necessário um ambiente suficientemente bom, no qual as necessidades do bebê sejam satisfeitas. Um ambiente mau é sentido como uma invasão a que o psicossoma (o bebê) precisa reagir. Essa reação perturba a continuidade de existência do bebê. O adoeci- mento, então, ocorre devido a perturbações na relação mãe-bebê, pois estas provocam falhas no desenvolvimento do indivíduo. Tais perturbações criam Escola psicológica: teoria psicanalítica16 uma sensação de falta de fronteiras no corpo, ameaças de despersonalização, angústias impensáveis, ameaças de desintegração e despedaçamento e de cair para sempre e falta de coesão psicossomática. A última Escolade Psicanálise que abordaremos aqui é a da Escola Francesa inaugurada por Jacques Lacan. Lacan se tornou um autor polêmico, muito discutido e admirado, de modo que seus seguidores o consideram um psica- nalista brilhante, e o maior depois de Freud, enquanto seus críticos o acusam de deturpar/desvirtuar a Psicanálise, afirmando que a teoria lacaniana é um retrocesso à Psicanálise. Lacan debruça-se sobre a teoria freudiana para apoiar suas diversas críticas à Psicologia do Ego e as escolas desenvolvidas nos EUA. Segundo Garcia-Roza (1993), Lacan lê Freud e se propõe a analisar a enigmática frase do final da XXXI Conferência: Wo es war, sol ich werden (FREUD, 1996n). O autor considera que, para Freud, o sujeito não é o sujeito da verdade, que o Eu desconhece os desejos do sujeito (deslocamento do sujeito cartesiano já mencionado aqui). Então, “[…] dizem Freud e Lacan é que esse sujeito, até então absoluto, é atropelado por outro sujeito que ele desconhece e que lhe impõe uma fala que é vivida pelo sujeito consciente como estranha, lacunar e sem sentido” (GARCIA-ROZA, 1993, p. 210). No discurso do sujeito (na cadeia significante), o que é lacunar é o lugar do Outro para Lacan, e é nele que o sujeito aparece. Lacan fazia distinção desse Outro (com O maiúsculo) como sendo o lugar do Ics e da ordem simbólica, ao passo que o outro (com letra minúscula) é o semelhante, ou seja, um outro sujeito. Para Lacan, é esse Outro que agita (GARCIA-ROZA, 1993). O Outro é a própria ordem simbólica que é constituída pela linguagem e composta de elementos significantes formadores do Ics. Já o Ego é a imagem que o sujeito tem de si mesmo, manifestando-se como defesa e por isso tem a função fundamental de desconhecimento. Em sua origem, o Ego (moi) é anterior ao Eu ( je). O Eu, para Lacan, é o da realidade falada, da comunicação, aquele que faz referência a um tu. Lacan determinou a origem do Ego como anterior à linguagem. Ele formulou a teoria do Estádio do Espelho como formador da função do Eu, designando um momento da história do sujeito entre os 6 e 18 meses de vida, quando a criança se torna capaz de formar sua unidade corporal por identificar a imagem do outro (reflexo, espelho) (GARCIA-ROZA, 1993). O sujeito é produzido na passagem do imaginário ao simbólico, ou seja, por meio da linguagem. Nesse momento, Lacan concebeu a constituição e o desenvolvimento do sujeito a partir de uma ordem tríplice: a ordem Simbólica, a ordem Imaginária, e a ordem do Real. Essa última representa a realidade barrada, impossível de ser definida, já que não é possível de ser definida por escapar da compreensão do sujeito. 17Escola psicológica: teoria psicanalítica São considerados discípulos de Lacan os psicanalistas Jaques Allain-Miller, Fraçoise Dolto, Maud Mannoni, Moustapha Safouan, entre outros, que ajudaram a disseminar no mundo a Escola Psicanalítica francesa. Psiquismo Humano de Lacan Segundo Laender (2010), Lacan fez a releitura do Complexo de Édipo freudiano que havia sido relegado a um segundo plano pela Psicologia do Ego, demonstrando a importância do nome do pai na estruturação do psiquismo humano como um fator essencial da estruturação edipiana. Lacan traduziu o psiquismo humano e utilizou o esquema L para ilustrar sua descoberta, no qual o eixo do imaginário (a----a') resulta o triângulo a, a', A. Fonte: Laender (2010, p. 40). Podemos apontar uma questão para a reflexão: partindo do que conhecemos até aqui quanto à revelação do Ics e a constituição do Eu, perpassando por diversos conceitos que contribuem para o entendimento do campo da Psicologia e para o desenvolvimento do ser humano, ao comparar a ideia e a dinâmica da sexualidade infantil presente em todas essas linhas de pesquisa, podemos afirmar que o ser humano sofre enquanto ainda retém conteúdos infantis na forma de agir no mundo externo? Talvez aqueles que conseguem melhor se adaptar às exigências do nosso ambiente interno e externo sejam sujeitos um pouco mais amadurecidos e livres de suas energias libidinais infantilizadas. Escola psicológica: teoria psicanalítica18 Um dos mais famosos casos que Freud atendeu bem no início da construção da Teoria Psicanalítica ficou conhecido como o caso Dora. Muitos dos conteúdos do caso foram confiados em cartas a um amigo de Freud, o médico Wilhelm Fliess. Freud começou a atender a moça, que chamou Dora, em outubro de 1900 e terminou em 31 de dezembro do mesmo ano. O médico só publicou o artigo sobre o caso em 1905 e o considerava um prato cheio para a confirmação de sua teoria, pois notou a dificuldade de manter uma cronologia dos relatos da vida da paciente devido à associação livre, às amnésias, que serviam para encobrir os conteúdos recalcados, à cena edípica presente no relacionamento com seus pais (suspeita de infidelidade do pai a quem nutria muito afeto), aos seus amplos conhecimentos dos assuntos sexuais, apesar da sua juventude (18 anos), à utilização de sua doença (sintomas) para conseguir coisas (ganho primário e secundário), ao papel dos sonhos e à sua interpretação. O atendimento foi interrompido após a interpretação do segundo sonho, não sendo um sucesso, do ponto de vista da cura, mas, sim, da confirmação de alguns conceitos que ele defendia como condição da Psicanálise (FREUD, 1996e). ABRÃO, J. L. F. 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