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O USO DE DIFERENTES LINGUAGENS NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES: REDEFININDO OS ESPAÇOS DE APRENDIZAGEM MOURA Jeani Delgado Paschoal Eixo Temático: Formação de professores e profissionalização Docente Agência Financiadora: não conta com financiamento Resumo Esta pesquisa, em andamento, parte do pressuposto de que a formação do professor se constrói em ambientes formais e não formais porque este como sujeito social participa de todas as instâncias formativas, seja na família, na igreja, na escola, na universidade entre outros. O objetivo maior desta pesquisa bibliográfica é discutir a idéia de que todas as formas de conhecimento estão permeadas por diferentes linguagens, que se dão num universo sócio- ideológico constituído historicamente e mediadas por relações de poder. Não há somente uma via para se pensar a linguagem e, sim, várias. Nesse sentido e considerando a polissemia em torno da noção de linguagem, não objetivo me comprometer rigidamente com uma única corrente teórico-metodológica ou realizar classificações buscando colocar cada autor em seu devido lugar. Pretendo demarcar a importância de o professor dominar as linguagens e sua dinâmica para conhecer as condições de produção de leitura de mundo de seus alunos e utilizá-las de forma integrada na sala de aula, ajudando-os a se constituírem criticamente como sujeitos sociais capazes de exercerem a cidadania plena. Pelo uso de diferentes linguagens no processo de ensino e aprendizagem é possível criar uma nova sensibilidade estética comprometida com os valores humanistas e com a formação de uma visão de mundo, que pressupõe sujeitos ativos e dispostos a uma experiência crítica e criativa. Investir na formação de professores leitores por diversos caminhos, significa ampliar suas concepções de linguagem, de leitura e de escrita, de modo a dar conta dos novos desafios do trabalho docente, com vistas a uma formação profissional mais qualitativa. É claro que, para utilizar a linguagem como meio de desenvolver a consciência crítica é necessário, antes de tudo, a construção teórica, sem a qual não existe análise crítica. Palavras-chave: Formação de Professores. Linguagens. Aprendizagens. Introdução Ao afirmar que “não há docência sem discência”, Freire (1996) mostra a relação complexa entre professor-aluno e acredita que ambos devam ser criadores, instigadores, inquietos, curiosos e persistentes, pois, “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende 5388 ensina ao aprender” (1996, p. 23). Essa idéia expressa a natureza incompleta do ser humano diante do acúmulo de informações que atingem a sua cotidianidade e permite a imersão em um mundo de busca incessante. De acordo com as formulações de Freire quanto mais nos percebemos como seres inacabados, mais nos tornamos capazes de mudar. Este é o sentido que busco para a formação docente, não aquela que se conclui com um curso de licenciatura ou pós-graduação, mas sim a que se encontra em construção permanente. O professor enquanto ser humano se constrói em sociedade, em ambientes formais e não formais porque participa de todas as instâncias formativas, seja na família, na igreja, na escola, na universidade entre outros. Posteriormente, como profissional da educação continua em construção permanente. Ao abordar o uso de linguagens na formação de professores, parto do pressuposto de que todas as formas de conhecimento estão permeadas por diferentes linguagens, que se dão num universo sócio-ideológico constituído historicamente, e são mediadas por relações de poder. No discurso de sala de aula, a presença do objeto se oculta na fala do detentor do poder (professor, currículo escolar, livros didáticos etc) que, supondo-se agente único faz dos seus interlocutores (alunos), ouvintes e/ou repetidores. As Diferentes Linguagens Como Maximizadoras De Aprendizagem Apesar dos avanços no campo da Educação e em outras ciências, as linguagens ainda são tratadas em sala de aula como campos fechados e estanques como se fosse possível fragmentá-las em ramos específicos do conhecimento. Assim, a literatura e as formas narrativas ficam fechadas em uma mesma disciplina; o mesmo acontece com as artes, a música etc., quando poderiam estar associadas às mais diferentes disciplinas escolares como meio de construir maior autonomia do aluno frente aos conteúdos de ensino. Neste fim de século, vivemos todos, do Pólo Norte ao Pólo Sul da Terra, um processo aparentemente irreversível de globalização, cifrado nas mais diferentes linguagens. A escola precisa ter a capacidade de interagir com todas elas, fazendo-se palco do grande diálogo de linguagem e de códigos que, porque existem na sociedade, precisam estar presentes na escola, [...]. (LAJOLO, 1996, p. 5) 5389 Entendo linguagem não apenas como a expressão do pensamento ou o instrumento de comunicação (transmissora de informações), mas sim como a mediadora entre o sujeito e a sua realidade. Mediante uso da linguagem é que damos sentido ao mundo vivido e, por isso ela se constitui em um canal pelo qual a aprendizagem pode acontecer. Freire (1996) entende que a existência humana está pautada na linguagem, na cultura e na comunicação. Maturana (1998) escreve sobre o papel da linguagem no processo de humanização. Para ele a conservação do linguajar está no princípio da humanização, abarcando a totalidade da vida cotidiana. O humano surge na história evolutiva a que pertencemos ao surgir a linguagem, mas se constitui de fato como tal na conservação de um modo de viver particular centrado no compartilhamento de alimentos, na colaboração de machos e fêmeas, na criação da prole, no encontro sensual individualizado recorrente, no conversar. Por isso todo o afazer humano se dá na linguagem, e o que na vida dos seres humanos não se dá na linguagem não é afazer humano; ao mesmo tempo, como todo afazer humano se dá a partir de uma emoção, nada do que seja humano ocorre fora do entrelaçamento do linguajar com o emocionar e, portanto, o humano se vive sempre num conversar. Finalmente o emocionar, centra-se no prazer da convivência, na aceitação do outro junto a nós, ou seja, no amor, que é a emoção que constitui o espaço de ações no qual aceitamos o outro na proximidade da convivência. Sendo o amor a emoção que funda a origem do humano, e sendo o prazer do conversar nossa característica, resulta em que tanto nosso bem estar como nosso sofrimento dependem de nosso conversar. (MATURANA, 1998, p. 175) Maturana desvenda a linguagem como portadora de afetividade, agressividade, aberturas, fechamentos, podendo levar ao isolamento ou à convivência consensual, ou seja, como construtora de realidades, a linguagem pode levar tanto a aceitação do outro como à sua negação. Bakhtin (1986) valorizou a cultura popular, resgatando a força da oralidade. Para ele, o único objeto real e material de que dispomos para entender o fenômeno da linguagem humana é o exercício da fala em sociedade, ou seja, a língua falada nas casas, nas feiras, nas ruas, na igreja etc. Na realidade não são as palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida. (BAKHTIN, 1986, p. 95 grifo do autor) 5390 Nesse sentido, a linguagem como fenômeno sócio-ideológico, é construída dialogicamente no fluxo da história. A linguagem utilizada por um determinado grupo é expressa por palavras, gestos, textos, músicas, símbolos que indicam as formas de se perceber o mundo e a imposição de determinados valores, a exemplo do espaço escolar, em que a linguagem foi usada, historicamente, para reforçar os valores concebidos pelas classesdominantes. Para Lúria “o elemento fundamental da linguagem é a palavra. A palavra designa as coisas, individualiza suas características. Designa ações, relações, reúne objetos em determinados sistemas. Dito de outra forma, a palavra codifica nossa experiência” (1987, p. 27). Em situação de sala de aula, entendo que alunos e professores são construtores de linguagens pelas quais emergem diferentes percepções, visões de mundo e posicionamentos. Nesse sentido “[...] o material privilegiado da comunicação na vida cotidiana [em nosso caso de estudo o cotidiano do fazer pedagógico] é a palavra. É justamente nesse domínio que a conversação e suas formas discursivas se situam” (BAKHTIN, 1986, p. 37). Em Bakhtin, vemos que é por meio do dialogismo que ocorre a constituição mútua do sujeito. Assim, a palavra possui primazia nas relações entre os indivíduos, seja em encontros da vida cotidiana, das relações políticos, econômicas entre outras. [...] toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor. (BAKHTIN, 1986, p. 113 grifos do autor) A supervalorização da palavra em seu sentido mais restrito - a palavra do professor no momento da exposição dos conteúdos (linguagem verbal oral) e a palavra dos autores implícitas nos currículos escolares,livros didáticos e apostilas (linguagem verbal escrita) - legitimada pelos discursos competentes (CHAUÍ, 2006) em sala de aula, leva a desconsideração da relação dos alunos com outras linguagens (a pintura, a música, o cinema, hipermídia etc) e com a prática de leitura cotidiana (não-escolar). Assim, a escola se firma em um formalismo descrito por Lefebvre (1983) como o máximo de abstração com um mínimo de significado. O método de ensino do professor se 5391 sobrepõe ao processo de aprendizagem, ou seja, o conhecimento do aluno é desvalorizado o que leva a não relação com o inesperado, o plural e o diferente. Para além da linguagem formal exaltada no espaço escolar, entendo que a relação do aluno com o universo simbólico não se dá apenas por via oral ou escrita, ele opera com outras formas de linguagens na sua relação com o mundo. Assim, ressalto a importância de se valorizar no espaço da sala de aula as linguagens da vida cotidiana, do trabalho, da religião entre outros que frutificam em produções híbridas e são necessárias para que a aprendizagem ocorra. No livro “A vida na Escola e a Escola da Vida”, os autores Ceccon, Oliveira e Oliveira (1985) fazem uma interessante abordagem sobre o distanciamento que existe entre a escola e a vida; denunciam a escola como lócus da reprodução social, já que a linguagem utilizada pela escola é a da classe dominante. Bakhtin (1998) ao trabalhar com o conceito de hibridização, sob este aspecto, lembra que “[...] a mistura de duas linguagens sociais no interior de um único enunciado, é o reencontro na arena deste enunciado de duas consciências lingüísticas, separadas por uma época, por uma diferença social (ou por ambas) das línguas” (1998, p. 156). Podemos compreender a linguagem como fenômeno social que carrega marcas (do presente, passado e futuro) de histórias individuais e coletivas, pois, “[...] enquanto expressão material estruturada (por meio da palavra, do signo, do desenho, da pintura, do som musical, etc), a consciência constitui um fato objetivo e uma força social imensa” (BAKHTIN, 1986, p.118). Por meio do uso de diferentes linguagens o professor poderá conhecer as condições de produção de leitura de mundo de seus alunos. Pois o mais comum no ambiente de sala de aula é [...] observarmos o Conhecimento ser tratado como uma coisa mágica, transcendental, que “cai dos céus” e não é raro encontrarmos educadores que passam para seus alunos e alunas uma visão estática e extática do conhecimento. Um exemplo disso é o ensino da origem de algumas teorias científicas: ensina-se a lenda (como o “eureca” de Arquimedes, acometido de subida iluminação) e a genialidade espantosa dos cientistas, mas não o processo de produção. [...] Torna-se bastante difícil escapar dessa imagem; nos dias de hoje, a mídia (instrumento pedagógico poderoso) oferece uma noção bastante triunfalista da Ciência e aqueles que têm limitado acesso ao pensamento crítico (a maioria) acabam por se deixar levar pela convicção de que tudo isso ocorre em um outro mundo, fora deles e da possibilidade de também serem capazes de nele estarem presentes. (CORTELLA, 1999, p. 101-2) 5392 Pelos anos em que estive à frente de uma sala de aula, percebi que os saberes instituídos pelos livros didáticos ou pelo professor eram tratados, pela maioria dos alunos, como saberes sedimentados e inquestionáveis, pois na fala deles “se está escrito, ou se o professor falou, está certo”. Ciente da presença de elementos alienantes que levam ao “conformismo” no modelo de aprendizagem escolar costumava a iniciar a aula pela análise da biografia do autor (ressaltando a corrente de pensamento) cujos textos seriam estudados. Pois, “[...] este conhecimento permite identificar as linhas assumidas nos livros didáticos e sua própria abordagem, sua pauta de conteúdos, a especificidade da linguagem e da proposta de análise sócio-territorial que assume” (SCHAFFER, 1999, p. 87). Assim, os alunos iniciavam um processo de construção de conhecimento acerca de determinada obra e seu autor - sujeito social cujas idéias, sentimentos, valores, posicionamentos e interesses político-econômicos são determinados pelo contexto histórico e social em que vive e, por isso, determinante de seu pensamento. Dessa forma, analisar as circunstâncias em que o livro havia sido pensado e escrito, significava ir além de um mero exercício maçante de decodificação de palavras, pois, os alunos buscavam decifrar a temática estudada, recriando-as. Cortella (1999) afirma que todo conhecimento é fruto de uma determinada convenção, ou seja, de acordos circunstanciais que não representam a única possibilidade de interpretação da realidade, como exemplificado por ele na seguinte citação O mapa-múndi retangular mais utilizado é aquele que situa o meridiano de Greenwich como o centro divisor vertical do planeta; ora, a Terra é um planeta arredondado, “solto” no espaço sideral e (a menos que se saiba qual é o topo e a base do nosso Universo) não há um ponto fixo (fora da convenção) para se estabelecer qual é a sua parte de cima e a sua parte de baixo. Além do que, nesse formato esférico, pode-se traçar um meridiano em qualquer lugar que se deseje. Observe-se como a linguagem absorve e reproduz essas convenções: quando a hegemonia política concentrava-se, antes da era Moderna, no Oriente, a referência para indicar que alguém estava no caminho correto (mental ou não) era orientado/desorientado; quando a hegemonia, na modernidade, deslocou-se para o hemisfério norte passou- se a dizer norteado/desnorteado. Ambas as expressões hoje convivem, mas foi essa sua origem. [...] Essa lógica histórica é transformada por muitos em um padrão natural, como se o modo “normal” do mapa (e do planeta) deva ser tal qual se mostre na representação dominante; isso acarreta, entre outras coisas, um obscurecimento da compreensão do caráter circular do planeta (no qual as pontas do mapa se conectam) e conduz a deformações de entendimento. (CORTELLA, 1999, p. 104-5) 5393 Eis o sentido de usarmos a sala de aula como um espaço de diálogo comtodas as formas de linguagens, não apenas para ler e interpretá-las, mas, sobretudo para ressignificá- las. Pois, se todo saber pressupõe uma intencionalidade - e, esta é sempre histórica e social - logo, não há linguagem sem finalidade, ou melhor, não há linguagem neutra. Uma outra noção importante para entendermos a teia de relações que permeiam os processos educativos é a de violência simbólica, desenvolvida por Bordieu (1975), em que revela os mecanismos pelos quais os sujeitos enxergam como “naturais” as representações ou as idéias sociais dominantes. A violência simbólica refere-se ao exercício de autoridade em que se apóiam as instituições e seus agentes. No caso da escola, a linguagem utilizada pelos seus agentes é a linguagem da classe dominante, revelando uma violência simbólica exercida sobre os alunos de classes populares, mas que, contraditoriamente, tem a adesão destes. [...] para que sejam favorecidos os mais favorecidos e desfavorecidos os mais desfavorecidos, é necessário e suficiente que a escola ignore, no âmbito dos conteúdos do ensino que transmite, dos métodos e técnicas de transmissão e dos critérios de avaliação, as desigualdades culturais entre as crianças das diferentes classes sociais. Em outras palavras, tratando todos os educandos, por mais desiguais que sejam eles de fato, como iguais em direitos e deveres, o sistema escolar é levado a dar sua sanção às desigualdades iniciais diante da cultura. (BOURDIEU, 1998, p. 53) A posse de capital cultural (diplomas, nível de conhecimento geral, boas maneiras etc) somados a internalização de habitus são ferramentas de classificação social. O habitus, no sentido formulado por Bordieu, é um conceito que se refere à existência de uma certa homogeneidade nas práticas individuais e/ou grupais de sujeitos que possuem uma mesma trajetória social. Como produto social, o habitus deve ser entendido como um conjunto de esquemas de percepção, apropriação e ação que é experienciado e colocado em prática, tendo em vista que as conjunturas de um campo o estimulam. Os alunos de classe média a alta pela proximidade com a cultura erudita, pelas práticas culturais ou lingüísticas de seu meio familiar, têm mais probabilidades de obter o sucesso escolar. Em todos os domínios da cultura, teatro, música, pintura, jazz, cinema, os conhecimentos dos estudantes são tão ricos e extensos quanto mais elevada é sua origem social. [...] A parte mais importante e mais ativa (escolarmente) da herança cultural, quer se trate da cultura livre ou da língua, transmite-se de maneira osmótica, mesmo na falta de qualquer esforço metódico e de qualquer ação manifesta, o que contribui para reforçar, nos membros da classe culta, a convicção 5394 de que eles só devem aos seus dons esses conhecimentos, essas aptidões e essas atitudes, que desse modo, não lhes parecem resultar de uma aprendizagem. (BOURDIEU, 1998, p. 45-6) Apesar desta ação mistificadora da escola e das dificuldades de se romper com a sua função de mantenedora do status quo, acredito que ela pode ser um lugar para que as diferenças culturais entre as classes sociais sejam reduzidas, mediante a socialização da cultura acumulada pela humanidade. A nossa história de luta por melhorias na Educação mostra que nunca se conseguirá uma homogeneidade, ao contrário, a resistência sempre esteve presente nos processos educativos, seja por parte dos professores, administradores educacionais, dos próprios pais entre outros. Refiro-me a uma escola cuja resistência se faz também mediante abertura de “[...] conteúdos que possibilitem aos alunos uma compreensão de sua própria realidade e seu fortalecimento como cidadãos, de modo a serem capazes de transformá-la na direção dos interesses da maioria social” (CORTELLA, 1999, p. 16). O trabalho no espaço escolar requer que os sujeitos (professores, alunos, pais, diretores, pedagogos entre outros) se reconheçam como interlocutores, ou seja, como sujeitos simbólicos que não apenas vivem experiências, mas atribuem a elas sentidos e significados diversos. Pois, a linguagem define [...] o nosso próprio pensamento, o modo como analisamos o mundo que nos cerca e como refletimos sobre ele; ela determina os esquemas que utilizamos para interpretar os fenômenos que nos envolvem; ela nos permite localizá-los e categorizá-los. E, claro, a linguagem acaba por definir, de uma forma direta, o próprio conhecimento, pois conhecer significa também, e principalmente, descrever um fenômeno, seja em seus aspectos estruturais, seja em suas características funcionais, além de relatar suas possíveis relações espaciais e/ou temporais com outros fenômenos. Sim, pois temos já um acervo de imagens, um repertório de significados, uma coleção de símbolos e com estes trabalhamos, com eles qualificamos e ordenamos o mundo, o nosso universo sensível. (GARCIA, 1988, p. 62) Ambos - professores e alunos - devem conviver com a ausência de respostas únicas e definitivas por mais simples que possa parecer lidar com questões supostamente verdadeiras como, geralmente, são impostos pelos sistemas apostilados de ensino, pela “ditadura” dos livros didáticos e pelos meios midiáticos em geral. O aluno da escolarização básica, via de 5395 regra, não mantém uma relação crítica com os seus interlocutores, sejam eles os materiais impressos - artigos de jornal, revistas, livros didáticos, apostilas etc - ou enunciados verbalizados oralmente. Bakhtin entende que o diálogo vai muito além da comunicação entre duas pessoas face a face abrangendo qualquer tipo de comunicação verbal. Para ele “o livro, isto é, o ato de fala impresso, constitui igualmente um elemento da comunicação verbal. Ele é objeto de discussões ativas sob forma de diálogo e, além disso, é feito para ser apreendido de maneira ativa, para ser estudado a fundo, comentado e criticado no quadro do discurso interior, sem contar as reações impressas, institucionalizadas, que se encontram nas diferentes esferas da comunicação verbal (críticas, resenhas, que exercem influência sobre os trabalhos posteriores, etc.). Além disso, o ato de fala sob a forma de livro é sempre orientado em função das intervenções anteriores na mesma esfera de atividade, tanto as do próprio autor como as de outros autores: ele decorre portanto da situação particular de um problema científico ou de um estilo de produção literária. Assim, o discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio, etc.” (BAKHTIN, 1986, p. 123). Nesse sentido, o uso de linguagens pode ser o ponto de partida para combater a reprodução social na medida em que se abre para a socialização do capital cultural. Mediante diálogo com diferentes linguagens é possível desvelar o emaranhado complexo de temáticas que podem ser apropriadas para as reflexões em sala de aula. Ao lançar mão das múltiplas linguagens os professores abrem um leque de possibilidades no campo das comunicações interdisciplinares impulsionando o desenvolvimento de um pensamento crítico e criativo frente ao mundo a ser apreendido. Neste debate não podemos desconsiderar a importância da hipermídia como aglutinadora de múltiplas linguagens. Com o seu aparecimento instaura-se uma espécie de “dança das linguagens”, em que ocorre a combinação, em um mesmo programa digital, da palavra oral ou escrita, imagens e sons em movimento. As linguagens são muitas. Desde a revolução industrial e, mais recentemente, a revolução eletrônica, seguida da revolução informática e digital, o poder multiplicador e o efeito proliferativo das linguagens estão se ampliando enormemente. [...] A era das imagens de registro físico de fragmentos do mundo, iniciada com a fotografia e seguida pelo cinema, TV, vídeo e holografia,por 5396 exemplo, tem apenas um século e meio de existência e já estamos instalados agora em plena efervescência da era pós-fotográfica, de geração sintética das imagens e da realidade virtual [...]. Se, no século passado, a natureza – antiga fonte de inspiração dos pintores paisagistas – já havia virado cartão-postal, hoje ela pode ser gerada através de números nos programas dos computadores. (SANTAELLA, 2005, p. 28) Esta nova mídia resulta da hibridação de várias outras linguagens que tem a Internet como meio de comunicação de base e se caracteriza pela interatividade cada vez maior. Ao analisar a linguagem que envolve signos e significações, Santaella (1984; 2005; 2007) nos ajuda a entender a lógica da linguagem verbal e não verbal. De acordo com seus estudos todas as linguagens, independentemente dos suportes, meios e canais que as veiculam estão alicerçadas em apenas três matrizes de linguagem e pensamento (estes indissociáveis porque o pensamento está ligado aos sentidos): verbais (orais e escritos), visuais ou imagéticos (todas as espécies de imagens fixas e animadas) e sonoros ou audíveis (sons, músicas e ruídos). Para Santaella (2005) qualquer coisa que esteja na mente seja de natureza verbal, imagens, reações, sentimentos deve ser considerada pensamento, por isso, os signos estão ligados ao pensamento, sendo imprescindíveis para que o mesmo ocorra. Da mesma forma mostra que é impossível uma linguagem independente da semiose. O metabolismo das linguagens, dos processos e sistemas sígnicos, tais como escrita, desenho, música, cinema, televisão, rádio, jornal, pintura, teatro, computação gráfica etc., assemelha-se ao dos seres vivos. Tanto quanto quaisquer organismos viventes, as linguagens estão em permanente crescimento e mutação. Os parentescos, trocas, migrações e intercursos entre as linguagens não são menos densos e complexos do que os processos que regem a demografia humana. Enfim, o mundo das linguagens é tão movente e volátil quanto o mundo dos vivos. (SANTAELLA, 2005, p. 27) Mas, a linguagem diferentemente do pensamento que habita o mundo interior, exterioriza e materializa-se nas criações humanas. Santaella usa o termo matriz para designar o lugar onde algo é gerado ou criado; assim, a partir das três matrizes supracitadas é que se originam as múltiplas linguagens existentes, as quais são chamadas de híbridas por serem uma mistura das três matrizes primordiais. 5397 O que define basicamente a natureza da linguagem verbal é o seu poder conceitual, a ponto de podermos afirmar que o verbal é o reino da abstração. [...] Quanto à linguagem visual, sua característica primordial está na insistência com que imagens singulares, aqui e agora, se apresentam à percepção. Ver é estar diante de algo, mesmo que esse algo seja uma imagem mental ou onírica, pois o que caracteriza a imagem é sua presença, estar presente, tomando conta da nossa apreensão. [...] A linguagem sonora, por outro lado, tem um poder referencial fragilíssimo. O som não tem poder para representar algo que está fora dele. (SANTAELLA, 2005, p.19) Como constatamos anteriormente, a linguagem de um modo geral é um instrumento em potencial nas mãos da classe dominante, utilizada como um mecanismo de controle do sujeito. Especialmente no caso da hipermídia, possui grande poder de sedução e de formação de opinião e padrões de comportamento, o que favorece não só a sua aceitação, como também o desenvolvimento de valores que confrontam com aqueles necessários à formação de cidadãos críticos. Em obra mais recente, Santaella (2007), usa a metáfora dos líquidos, criada por Bauman, para mostrar que, no universo digital, as linguagens (texto, imagem e som) não são mais o que costumavam ser; tornaram-se leves e tão voláteis que um dos grandes problemas atuais encontra-se nas novas estratégias de documentação que devem ser encontradas quando os meios de estocagem tornam-se obsoletos em intervalos de tempo cada vez mais curtos. Assim, alerta que nesta era de comunicação móvel, estamos testemunhando o desaparecimento progressivo de obstáculos materiais que costumavam bloquear os fluxos dos signos e das trocas de informação. Cada vez menos, a comunicação está confinada a lugares fixos e os novos modos de telecomunicação têm transformado nossa concepção cotidiana do tempo, do espaço, dos modos de viver, aprender, agir, engajar-se, sentir, provocando reviravoltas em nossa efetividade e sensualidade, crenças e emoções. Nesse sentido, além de permear as mais diferentes formas de linguagens, a palavra possui um poder enquanto signo ideológico, como constatamos, anteriormente, em Bakhtin. Vemos que As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados. [...] Todo produto da ideologia leva consigo o selo da individualidade do seu ou dos seus criadores, mas este próprio selo é tão social quanto todas as outras particularidades e signos distintivos das manifestações ideológicas. Assim, todo signo, inclusive o da individualidade, é social. (BAKHTIN, 1986, p.41/59 grifo do autor) 5398 Desse modo, entendo que os alunos levam para a sala de aula experiências discursivas, incluindo sua relação concreta com a hipermídia, entre outras linguagens, que emergem das condições do meio social em que se insere. A convivência com estas linguagens pode apontar para a inserção no universo simbólico permeado de valores culturais e referências identitárias, cuja conduta não faz parte da dinâmica recorrente na escola. Assim, ao utilizar as diferentes linguagens, bem como os canais que as veiculam, os professores incitam seus alunos na interpretação, criação e recriação das mesmas. A pedagogia crítica situa-se na intersecção entre a linguagem, cultura e história – o nexo no qual as subjetividades dos estudantes são formadas, contestadas e exteriorizadas. O esforço é no sentido da história deles, sua linguagem e sua cultura , e as implicações pedagógicas são tais que, ou é dado aos alunos o acesso ao discurso crítico, ou eles são condicionados a aceitar o familiar como inevitável. Ainda pior, é negada a eles uma voz com a qual possam marcar presença no mundo; eles tornam-se invisíveis para a história e lhes é impossibilitado o poder de moldá-la. (MCLAREN, 1997, p. 255) A cultura midiática é repleta de informações em que os diferentes espaços e fenômenos são explorados de uma forma tão eficiente (ao fim que se presta) que as pessoas parecem vivenciar tais espaços ou fenômenos. Pelo que Mclaren expõe, é preciso aproveitar estas linguagens, não para reproduzi-las em sala de aula, mas para polarizar as informações veiculadas, orientar as discussões, preencher as lacunas do que não foi apreendido e ensinar os alunos a estabelecerem distâncias críticas com o que é veiculado pelos meios de comunicação. Não tem sentido fazer uso das linguagens como se a significação pertencesse a uma palavra enquanto tal. Na verdade, a significação pertence a uma palavra enquanto traço de união entre os interlocutores, isto é, ela só se realiza no processo de compreensão ativa e responsiva. A significação não está na palavra nem na alma do falante, assim como também não está na alma do interlocutor. Ela é o efeito da interação do locutor e do receptor produzido através do material de um determinado complexo sonoro. É como uma faísca elétrica que só se produz quando há contato dos dois pólos 5399 opostos. Aqueles que ignoram o tema (que só é acessível a um ato de compreensão ativa e responsiva) e que, procurando definir o sentido de uma palavra, atingem o seuvalor inferior, sempre estável e idêntico a si mesmo, é como se quisessem acender uma lâmpada depois de terem cortado a corrente. Só a corrente da comunicação verbal fornece à palavra a luz da sua significação. (BAKHTIN, 1986, p. 132) Os sujeitos compreendem o mundo a partir da lógica que possuem; esta construída pela forma como aprendem a perceber, a observar, a julgar, a interpretar e a analisar. A observação é uma atividade seletiva, pois depende dos requisitos do observador. A seleção de elementos observados depende, por exemplo, dos instrumentos conceituais e da sensibilidade do sujeito que observa. Lúria apresenta resultados interessantes de uma pesquisa realizada sobre a decodificação da comunicação verbal, mais especificamente, como a análise por meio da síntese pode ocorrer em um processo de leitura. Conclui que [...] o movimento dos olhos durante a leitura não é em absoluto um movimento linear de uma palavra à outra, nem de uma frase à outra, mas sim um movimento que se detém nos lugares mais informativos. Portanto, um movimento do olhar é um itinerário complexo com muitos avanços e retrocessos, com muitas comparações de partes do texto que estão afastadas entre si. [...] o processo de compreensão do texto possui um caráter de busca ativa, que o sujeito que lê não somente separa os núcleos semânticos individuais do texto, mas também os compara, retornando com freqüência às partes já lidas. Este processo de análise ativa e de precisão do conteúdo do texto, através do confronto de seus elementos, pode ser designado como um processo de análise através da síntese. (LÚRIA, 1987, p. 190-1) Na escola esta capacidade de compreensão acontece por meio do contato com as linguagens e da análise crítica da utilização de suas múltiplas formas, pois, “a compreensão é uma forma de diálogo; ela está para a enunciação assim como uma réplica está para a outra no diálogo. Compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra” (BAKHTIN, 1986, p. 132). Nesse sentido, os estudantes são encorajados a “[...] olhar suas experiências diárias, tidas como comuns (as ideologias do cotidiano), como possíveis fontes de aprendizagem” (MCLAREN, 1997, p. 259). 5400 Considerações Finais O momento atual, com suas instâncias socializadoras (família, escola, igreja, mídia etc) que coexistem numa intensa rede de relações e interdependência, exige transformação no papel do professor e do seu modo de atuar e, conseqüentemente, transformação em seu processo de formação continuada. Investir na formação de professores leitores por diversos caminhos, significa ampliar suas concepções de linguagem, de leitura e de escrita, de modo a dar conta dos novos desafios do trabalho docente, com vistas a uma formação profissional mais qualitativa. É claro que, para utilizar a linguagem como meio de desenvolver a consciência crítica é necessário, antes de tudo, a construção teórica, sem a qual não existe análise crítica. Esse é um debate em construção, e sem dúvida necessita de muitas parcerias na escola e fora dela, para que mudanças ocorram. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Problemas fundamentais do Método Sociológico na Ciência da Linguagem. 3 ed. São Paulo: Hucitec, 1986. ______. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. (Trad. Bernadini et al.) 4 ed. São Paulo: UNESP, 1998. BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A Reprodução. Elementos para uma teoria do sistema de ensino. Portugal, Lisboa, 1975. BOURDIEU, Pierre. 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