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Beatriz Marinelli, 8º termo Atenção Integral à Saúde da Criança Desnutrição em Pediatria • Embora tenha reduzido nos últimos anos, a desnutrição infantil ainda permanece como uma das principais causas do déficit de crescimento e desenvolvimento da criança, além de estar associada a maior risco de doenças infecciosas e consequente mortalidade; • A falta do alimento tem sido classicamente associada à ocorrência de desnutrição; no entanto, sabe- se que grande parte da ocorrência deste agravo está relacionada também a outros fatores que devem ser considerados para a promoção de uma boa nutrição, dentre os quais podem ser citadas as condições de vida e saúde das famílias; • No Brasil, o percentual de óbitos por desnutrição grave em nível hospitalar mantém-se em torno de 20%, muito acima dos valores recomendados pela OMS (inferiores a 5%); • Esses altos índices de letalidade decorrem principalmente de práticas inapropriadas no diagnóstico e na conduta ante crianças desnutridas; • Dessa forma, a sistematização do cuidado clínico-nutricional, bem como a capacitação de todos os profissionais de saúde envolvidos no tratamento hospitalar dessas crianças, mostrou-se indispensável para a redução desses índices. →Conceito e Classificação No conceito ampliado da desnutrição, entende-se que o estado de deficiência ou excesso tanto de macronutrientes quanto de micronutrientes causa desequilíbrio entre o suprimento de energia, de nutrientes e a demanda do organismo, alterando a garantia na manutenção, no crescimento e nas funções metabólicas. Ex: uma criança obesa com deficiência de ferro também apresenta desnutrição por esse conceito. Pode ser classificada como: • Primária: combinação de três fatores ambientais; carência alimentar (macro e micronutrientes); falta de acesso a condições sanitárias (água/esgoto) e serviços de saúde (acarretando por exemplo quadros prolongados de diarreia); falta de práticas de cuidados infantis (vacinação, higiene pessoal); • Secundária: provocada por doenças que aumentam as necessidades metabólicas, diminuem a absorção intestinal ou levam à perda de nutrientes. Ex: síndromes disabsortivas, malignidades, queimaduras extensas. Com relação à forma clínica, o tempo e a gravidade contribuem para a definição e a classificação da desnutrição. Identificam-se indivíduos emagrecidos (wasted) e/ou com parada de crescimento (stunted), conforme o tempo de curso. Beatriz Marinelli, 8º termo Atenção Integral à Saúde da Criança Quanto à gravidade, há as formas moderada e grave. Esta última baseia-se em critérios clínicos e laboratoriais e é dividida em: marasmo, kwashiorkor e kwashiorkor-marasmático. Vamos aprofundar isso mais para frente (quadro-clínico). →Etiologia da desnutrição Diversos fatores concorrem para o surgimento da desnutrição e, na maior parte dos casos, não por falta de alimento. Dentre eles podemos citar: • Os de origem biológica (baixo peso ao nascer, prematuridade); • Os de origem ambiental, como disponibilidade inadequada dos alimentos, falta de saneamento básico, baixa escolaridade, além das infecções que podem causar anorexia e, consequentemente, redução do peso. A história natural da desnutrição tem origem na maioria das vezes ainda no período embrionário, em que a má nutrição da mãe define o destino do bebê. Privações nutricionais durante a gestação podem acarretar retardo do crescimento intrauterino (RCIU) e consequente baixo peso ao nascer, favorecendo a mortalidade neonatal e um maior risco de desenvolver doenças crônicas na vida adulta. O baixo peso ao nascer apresenta associação com o déficit estatural e atua dificultando o estabelecimento da alimentação, além de favorecer complicações clínicas da criança e maior risco de doenças infecciosas. Assim, para a prevenção de alterações nutricionais na infância devem ser observadas as condições sociais, econômicas e demográficas da mãe e da criança, como também os cuidados com a saúde e o risco de morbidades. • Fatores maternos relacionados à afetividade também têm enorme influência no crescimento e desenvolvimento da criança. Sabe-se que privações sofridas durante a infância materna perpetuam- se durante a vida adulta e refletem-se nos cuidados dispensados aos seus filhos, formando um ciclo vicioso. Consequentemente, os cuidados e investimentos dispensados à nutrição da criança ficam prejudicados. • Além disso, as práticas alimentares inadequadas, como a utilização de fórmulas lácteas diluídas, podem contribuir sobre maneira para o déficit nutricional. →Fisiopatologia da desnutrição As alterações fisiológicas observadas em pacientes desnutridos confirmam a premissa de que a homeostase é a base da sobrevivência de todos os seres vivos. Observa-se uma adaptação em todos os compartimentos do corpo, onde o metabolismo basal pode estar reduzido em até 70% dos valores normais. O Quadro 16.1 resume as principais alterações encontradas. Beatriz Marinelli, 8º termo Atenção Integral à Saúde da Criança →Quadro Clínico Sinais e Sintomas da Desnutrição: • Além da perda de gordura corporal (tecido adiposo) podemos ter outros sintomas como fadiga, diarreia, perda de apetite, irritabilidade e apatia; • Aspecto geral: emagrecido e edemaciado; • Cabelo: perda do brilho natural, seco, fino, quebradiço, despigmentado, que se arranca facilmente (sem dor). • Face: avaliar a presença de edema e palidez(icterícia ou anemia). Sinal chave é a perda de gordura da bola de Bichat, assim o arco zigomático fica mais exposto. • Olhos: observar as mucosas (anemia) e presença de xeroftalmia (hipovitaminose A) e queratomalácia. Sinais comuns: olhos escavados, com círculos escuros, pele solta e flácida. • Pescoço/tórax/dorso: bócio tireoidiano(deficiência de iodo). Atrofia supra e infraclavicular, retração intercostal e subcostal e atrofia paravertebral refletem perda de massa muscular à menor força respiratória. • MMSS e MMII: avaliar atrofia muscular e edema. • Abdome: pode apresentar-se plano, distendido ou escavado. • Pele: cor, pigmentação, lesão, turgor e edema. Presença de xerose e elasticidade diminuídas indicam desnutrição. • Unhas: quebradiças, rugosas ou coiloníquia. Formas Graves de Desnutrição Alguns fatores estão intimamente relacionados com o aumento da mortalidade em crianças gravemente desnutridas. Dentre eles podemos citar a presença de edema, distúrbios hidroeletrolíticos, deficiência de Beatriz Marinelli, 8º termo Atenção Integral à Saúde da Criança micronutrientes, disfunção hepática, infecção associada, além da não utilização de um protocolo de atendimento. A desnutrição grave apresenta-se em duas formas distintas (Quadro 16.2); no entanto é comum encontrarmos pacientes com a forma mista. A desnutrição grave deve ser diferenciada em duas formas clínicas de apresentação com parâmetros bem descritos: • Kwashiorkor: acomete crianças acima de 2 anos; caracteriza-se por alterações de pele (lesões hipercrômicas, hipocrômicas ou descamativas), acometimento de cabelos (textura, coloração, facilidade de soltar do couro cabeludo), hepatomegalia (esteatose), ascite, face de lua, edema de membros inferiores e/ou anasarca e apatia. O edema geralmente é bilateral simétrico, começa nos pés (marcado 1+ edema, Figura 3A), progride para os pés e as mãos baixas (2+ edema, Figura 3B) e, em casos graves, pode envolver a face (3+ edema, Figura 3C) (Figura 4); • Marasmo: acomete crianças menores de 12 meses, com emagrecimento acentuado, baixa atividade, irritabilidade, atrofia muscular e subcutânea, com desaparecimento da bola de Bichat (último depósito de gordura a ser consumido, localizado na região malar), o que favorece o aspecto envelhecido (fáscies senil ou simiesca), com costelas visíveis e nádegas hipotróficas. O abdome pode ser globoso e raramente com hepatomegalia (Figura 5). Beatriz Marinelli, 8º termoAtenção Integral à Saúde da Criança →Diagnóstico Nutricional A avaliação nutricional pode ser realizada por meio de quatro procedimentos básicos: anamnese, exame físico, incluindo a aferição de medidas antropométricas, como medida da circunferência braquial (CB), e exames laboratoriais. • Anamnese: deve-se dar ênfase aos antecedentes neonatais (prematuridade, crescimento intrauterino restrito), nutricionais (aleitamento materno – sim ou não; se sim, qual o tempo de exclusivo e total; se não – registrar o motivo; na história alimentar, identificar se há deficiência na quantidade e/ou qualidade); aspectos psicossociais, condições de saneamento e moradia, presença ou não de doenças associadas; • Na ausência de medidas antropométricas, a desnutrição grave também pode ser diagnosticada com base na avaliação clínica, verificando-se a presença de emagrecimento intenso visível; alterações dos cabelos; dermatoses (mais observadas no kwashiorkor), hipotrofia muscular (p.ex., na região glútea) e redução do tecido celular subcutâneo; • Com base na antropometria, a Organização Mundial da Saúde (OMS) define desnutrição grave como CB < 11,5 cm, escore Z de peso para estatura (ZPE) abaixo de -3, ou pela presença de edema nos pés bilateral em crianças com kwashiorkor; Alguns aspectos merecem destaque na identificação dos antecedentes nutricionais da criança. Dentre eles os aspectos psicossociais e dietéticos são a base para um diagnóstico. No Quadro 16.3 encontra-se um resumo dos principais aspectos que devem ser considerados durante a investigação nutricional. Especialmente na ocasião da abordagem à mãe ou responsável, deve-se evitar uma postura imperativa e onipotente, a fim de não causar constrangimento em responder as perguntas. →Tratamento • Uma equipe de saúde bem treinada e integrada nas ações correspondentes aos 10 passos para tratamento do desnutrido grave em nível hospitalar pode ser o diferencial para atingir os objetivos preconizados pela OMS; Beatriz Marinelli, 8º termo Atenção Integral à Saúde da Criança • O profissional de saúde deve ter em mente que o hospital, ambiente muitas vezes inóspito, pode sim ser o local não só para recuperação nutricional, mas também para reabilitação psicomotora e emocional. →Terapia Nutricional Objetivos: • Promover a estabilização metabólica; • Evitar o catabolismo proteico; • Iniciar a recuperação nutricional. A intervenção nutricional deve ser realizada em duas fases: a primeira, chamada fase de estabilização, tem por objetivo corrigir os distúrbios hidroeletrolíticos, evitar a hipoglicemia e fornecer a cota mínima necessária para evitar o catabolismo e promover a estabilização do paciente. A segunda, chamada fase de recuperação, objetiva recuperar os tecidos perdidos mediante a administração de uma cota calórica e proteica elevada. A fase de estabilização inicia-se no primeiro dia do internamento, e já nessa ocasião deve ser administrado o preparado alimentar inicial que contém as características necessárias para atender às necessidades do paciente nessa fase. Pode durar de 1 a 7 dias, dependendo da evolução da criança. O Quadro 16.5 contém as características da dieta conforme a fase do tratamento, e o Quadro 16.6, os constituintes de cada preparado. Beatriz Marinelli, 8º termo Atenção Integral à Saúde da Criança • Em condições favoráveis, a via oral será sempre a preferencial; • Nos casos em que o paciente não atinja as necessidades basais, apresente algum distúrbio de deglutição ou esteja inconsciente ou comatoso, deve-se administrar a dieta por via nasogástrica. • O registro preciso da quantidade ingerida, assim como da quantidade oferecida, permite identificar uma ingestão deficiente e programar a intervenção adequada. Nessa fase, a oferta líquida total não deve ultrapassar o volume de 120 a 140mL/kg de peso/dia, incluindo o volume das preparações e do soro (oral e venoso) administrados; • Se há edema, usar o menor valor, e se houver perdas por vômitos e/ou diarreia, repor com o soro de reidratação oral específico para o malnutrido (Resomal) conforme preconizado pela OMS. Eventualmente, fracionar a dieta em intervalos frequentes e oferecer em pequenos volumes pode facilitar a ingestão programada, garantindo assim a cota mínima para essa fase, que é de 80kcal/kg/dia. Valores inferiores podem manter o paciente em catabolismo e piorar seu estado nutricional. • Caso a criança seja alimentada por via nasogástrica, deve-se permanecer até que ela aceite, por via oral, três quartos do total da dieta das 24 horas ou que aceite o volume total da preparação, em duas refeições consecutivas. Após a retirada da sonda, o volume ingerido deve ser rigorosamente monitorado nas primeiras 48 horas; Concluída a fase de estabilização, deve-se realizar a transição para a fase de recuperação. Nessa ocasião, a criança deve estar apta para receber uma cota calórica (150 a 220kcal/kg/dia) e proteica (4 a 6g ptn/kg/dia) alta a fim de recuperar os tecidos perdidos. O retorno do apetite é um indicador importante de que a criança está preparada. É imprescindível realizar uma transição lenta e gradual entre os preparados alimentares da fase de estabilização e de recuperação, a fim de evitar a ocorrência de sobrecarga cardíaca e até de consequente insuficiência cardíaca, que pode levar a criança à morte. O aumento súbito do conteúdo nutricional da alimentação também pode favorecer a presença de diarreia osmótica e levar a uma impressão errônea de intolerância à lactose. A transição deve ser realizada, substituindo o preparado alimentar inicial (F-75) pelo preparado de crescimento rápido (F-100) nos mesmos volume e frequência calculados para a fase de estabilização e mantidos por 48 horas. Nesse período é importante observar eventuais alterações nas frequências cardíaca e respiratória. A partir daí devem ser aumentados 10mL da fórmula em cada horário de refeição até que a criança deixe sobras. O volume agora passa a ser o volume máximo tolerado pela criança. →Correção da deficiência de micronutrientes • A carência de micronutrientes durante a infância pode contribuir para acarretar déficit no desenvolvimento dos sistemas fisiológicos, em especial do sistema nervoso, retardo no crescimento e imunodeficiência; • Na desnutrição grave, esses micronutrientes encontram-se acentuadamente reduzidos, o que pode levar a diversas disfunções imunológicas, possibilitando, assim, o aumento na suscetibilidade a infecções; Beatriz Marinelli, 8º termo Atenção Integral à Saúde da Criança • A reposição pode ser feita através da adição da solução de eletrólitos tanto nos preparados alimentares quanto na solução de reidratação oral específica para o malnutrido, o Resomal o qual foi elaborado especialmente para oferecer uma menor concentração de sódio e maior de potássio, uma vez que o desnutrido grave apresenta altos níveis de sódio corporal e baixos níveis de potássio em decorrência da falência da bomba de sódio e potássio; • A suplementação vitamínica pode ser feita acrescentando-as diretamente nos preparados alimentares, porém comumente elas podem alterar o sabor, prejudicando a aceitação pela criança; • Desse modo, a suplementação pode ser feita sob a forma medicamentosa, através dos suplementos vitamínicos disponíveis no mercado; • Quanto à deficiência de vitamina A, a administração deve ser feita rotineiramente, em dose única, de acordo com a idade e a presença ou não de manifestações oculares, no primeiro dia de internação, exceto se a criança já recebeu a vitamina A há 30 dias ou menos da internação. →Monitoramento Tanto na fase de estabilização quanto na de recuperação nutricional devem ser feitos a observação e o registro diário dos seguintes dados: • Peso diário no mesmo horário em jejum; • Registro de perdas (vômitos, diarreia); • Ingestão alimentar. O acompanhamentonutricional deve incluir a avaliação da resposta terapêutica do paciente, a qual dever ser realizada por meio do cálculo do ganho médio de peso (GMP). Essa análise leva em consideração o ganho médio de peso por dia e sua relação com o peso médio da criança. Dessa forma, para uma avaliação no período de 3 dias deve-se subtrair o último peso do primeiro peso em gramas e dividir o resultado pelo período (3 dias). Deve-se considerar como peso inicial o peso da criança já hidratada e sem edema. O próximo passo é calcular o peso médio e, após, dividir o GMP pelo peso médio de acordo com o exemplo a seguir: Beatriz Marinelli, 8º termo Atenção Integral à Saúde da Criança →Situações Especiais Algumas situações merecem destaque na conduta nutricional da criança desnutrida grave. • Nos casos em que a criança estiver recebendo aleitamento materno recomenda-se manter o aleitamento, identificar possíveis falhas e garantir uma técnica adequada. No entanto, deve-se assegurar que a criança receba primeiro o preparado alimentar, pois o valor calórico fornecido pelo leite materno, nesse caso, não é suficiente para assegurar a velocidade de crescimento rápido que a criança com desnutrição grave necessita para sua reabilitação. Nas crianças com possibilidade real de relactação deve ser tentada essa técnica após a fase de estabilização. • Outra situação comum é a dificuldade de aceitação da fórmula por parte de crianças maiores que não têm o hábito de tomar leite ou lactentes jovens que possuem o hábito de tomar leite acrescido de farináceos ou engrossantes sob a forma de mingau. Nesses casos, podemos ajustar a terapia ao hábito alimentar dos pacientes acrescentando o farináceo às fórmulas do protocolo (concentrações) e oferecendo cardápios calculados de acordo com a densidade energética do F-100, utilizando alimentos sólidos adequados para a idade. →Bibliografia • BORBA, V.M.J.D.O.; MACIEL, B.J.; SILVA, P.I.C.D. Nutrição Clínica - Obstetrícia e Pediatria. [Digite o Local da Editora]: MedBook Editora, 2011. 9786557830345. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786557830345/. Acesso em: 22 Feb 2021; • Avaliação Nutricional da Criança e do Adolescente: Manual de Orientação- Sociedade Brasileira De Pediatria; • Tratado de Pediatria: Sociedade Brasileira de pediatria, 4ed. Barueri, SP: Manoele, 2017.
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