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3.1 As infâncias no mundo contemporâneo Muitas são as infâncias vividas diariamente pelas crianças existentes em nosso Brasil – de acordo com o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a população infantil de zero a 14 anos era de 46 milhões (IBGE, 2010). Há as infâncias passadas em subúrbios de classe alta, em que as crianças têm acesso a um leque oportunidades; aquelas vividas em favelas e cercadas por miséria; a infância da classe média, com seus muros altos e, muitas vezes, cerceadas pelo medo. São vidas e vivências diferentes que se entrelaçam e formam as infâncias brasileiras, sendo que muitas delas se chocam na escola, cabendo ao professor saber lidar com essas crianças de forma a estabelecer uma práxis que o permita escutar e levar em consideração todas essas experiências diversas e traduzi-las em troca, ajuda e sensibilidade. 3.1.1 Entre a riqueza e a pobreza Que o Brasil é um país de desigualdades, já sabemos; o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) lançou um estudo em 2016, que chegou aos seguintes dados: 10% da população brasileira detêm 43,4% da renda do país, enquanto 90% da população dividem, injustamente, o restante da fatia. Mapa estatístico feito pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2016, com a desigualdade social do Brasil. Fonte: IBGE, 2017a. Desta forma, pode-se afirmar que são várias as realidades dos brasileiros e, consequentemente, das crianças brasileiras. Se entendermos que as crianças são seres sociais, marcadas e constituídas pela sociedade em que vivem, essas maneiras diversas de viver, a partir da realidade econômico-social de cada família, influenciam diretamente nas formas de viver a infância. Pensemos nas crianças que vivem entre os 10% que detêm a maior fatia da riqueza do país. Em um primeiro momento, chega-se à conclusão de que essas crianças vivem a melhor vida que o dinheiro pode comprar, porém, há pesquisas que indicam que há muitas minúcias no que se refere aos modos de viver dessas crianças. Por exemplo, na tese de doutorado em Antropologia Social, Saraiva (2014) estudou as crianças ricas de Fortaleza e constatou que a infância desse público é marcada por uma parcela que vive reclusa a lugares fechados – como shoppings, suas próprias casas e escolas – e uma parte com medo de lugares públicos. Além disso, são muitas vezes impedidas por seus familiares a brincarem e interagirem com outras crianças fora de suas casas “segundo suas mães devido, principalmente, às más influências” (SARAIVA, 2014, p. 123). Se buscarmos estudos da infância ao longo da história, no Brasil, constata-se que há registros de crianças pobres, vivendo em condições de miséria, deixadas à margem da sociedade e da vida digna, o que revela a infância desvalida no Brasil e como esse modo de viver a infância ultrapassou os séculos, permanecendo e se agravando nos dias atuais. O mapa a seguir ilustra a alta porcentagem de indivíduos em situação de pobreza no país: Mapa da pobreza no Brasil e a alta porcentagem de pessoas em situação de pobreza. Fonte: IBGE, 2017b. Como exemplos de pesquisas que ilustram essas infâncias brasileiras, temos os estudos de Assis et al. (2007), que trazem uma pesquisa com crianças pobres e suas infâncias no Nordeste, constatando que essas crianças têm altas taxas de mortalidade e doenças devido à falta de políticas públicas de saúde e desigualdade social da região. Da mesma maneira, o estudo bibliográfico de Veiga (2017) teve como foco o “entendimento da condição de pobreza como desqualificação moral e a estigmatização da criança pobre” (VEIGA, 2017, p. 1), trazendo dados de que a criança de baixa classe social é vista como outsider, ou seja, como alguém que sempre está à margem da sociedade, e as instituições sociais, como a escola, ao contrário de fazer o papel de minimizar essas diferenças, favorece esse estigma de criança pobre como ser inferior. Outro exemplo é o estudo realizado por Moraes (2000) revela o tratamento oferecido às crianças pobres no transcorrer histórico do Brasil, e o quanto esse passado se revela na vida presente e na “usurpação dos direitos fundamentais da criança na contemporaneidade no país.” (MORAES, 2000, p. 93). A partir desses exemplos, pode-se concluir que a criança pobre é maioria no país, e sua infância, na maioria das vezes, é tomada por dificuldades que vão além da falta de estrutura ou da falta de bens materiais; é uma infância privada de direitos básicos, apesar de muitos destes direitos serem reconhecidos por lei. 3.1.2 O papel da escola com as infâncias A escola deve ser um lugar que acolha as diferenças, ou seja, as crianças deveriam se sentir seguras e protegidas na escola, e suas diferenças enaltecidas. Desta forma, faz-se necessária uma educação que leve em consideração essas diversidades, propondo momentos de aprendizagem em que se respeitem as vivências e os conhecimentos trazidos pelas crianças, bem como as características individuais, a partir da igualdade de direitos que privilegie a todos, sem distinção de raça, sexo ou classe social. Mas a escola está preparada para trabalhar com as distintas realidades? Há profissionais capacitados e políticas voltadas à manutenção e ampliação da escola pública que permita à instituição seguir o caminho de igualdade e atendimento de qualidade para todas as crianças? As políticas públicas relacionadas a gastos com educação não revelam boas notícias para o país. Em outubro de 2016, o Governo Federal lançou – e a Câmara dos Deputados aprovou – a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241 (BRASIL, 2016), que congelou por duas décadas os investimentos em educação, sendo que o próprio Instituto Brasileiro de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), órgão do Governo Federal, lançou pesquisas sobre o impacto positivo dos investimentos em educação para o desenvolvimento socioeconômico do país. Destarte, estamos vivendo momentos de sucateamento da educação, no qual a pauta do Governo está no desmantelamento do direito universal à educação pública de qualidade ao invés de investirem em políticas que avancem nas discussões da universalidade da educação como direito de todos. Viver plenamente a infância, em uma sociedade na qual os direitos não são garantidos a todos, é tarefa difícil. A escola, inserida nesse contexto, deveria contribuir para assegurar, a todos os envolvidos, o direito de ser criança e viver a infância. No entanto, a falta de investimentos em educação acaba não permitindo que a instituição faça valer seu papel. Essa diminuição de investimento do dinheiro público em educação abre as portas para a privatização dentro da escola, com o interesse de trazer dinheiro da iniciativa privada para cobrir os déficits da escola pública. A partir disso, cria- se uma atmosfera de obediência ao capital, sendo a instituição, muitas vezes, obrigada a se adaptar à lógica do mercado: Pesquisas apontam um incentivo à privatização da educação pública no país, com a finalidade de promover a lógica de mercado dentro das escolas, ou seja, tratar a educação com a lógica de uma empresa, na qual o lucro de sobressai em detrimento da construção de conhecimento. Diante desse processo de privatização situada na lógica do sistema capitalista, produz-se um dos efeitos para a Educação pública que é justamente a transformação da Educação em mercadoria. Transformação em um objeto ou coisa que tem um valor e pode ser comercializada na sociabilidade capitalista [...]. (SANTOS, 2017, p. 259-260). Desta forma, a escola está à mercê de políticas que favorecem sua passagem da esfera pública para a privada através de acordos e financiamentos que ferem a constitucionalidade da educação para todos, sendo queuma educação direcionada à lógica do mercado é mais atrativa para os detentores dos meios de produção. E a educação violada que permeia muitas escolas acaba reproduzindo a lógica excludente da sociedade, e, mais uma vez, muitas crianças não têm seus direitos básicos atendidos. A escola é uma instituição com a possibilidade de levar em conta a criança sendo criança, em seu contexto de infância, tendo como pressuposto a compreensão de seu papel enquanto agente social na sociedade da qual faz parte, bem como o protagonismo infantil nas relações que se estabelecem nas interações. 3.2 Infância como um direito da criança A criança, como ser social, também é cidadão com direitos e deveres. Viver a infância é direito, porém, a análise está em como essas crianças vivem suas diferentes infâncias dentro de suas particularidades sociais. Além disso, deve-se ter em conta que os direitos constitucionais e legais das crianças são universais, ou seja, são para as crianças ricas e pobres, negras, brancas ou amarelas, meninos e meninas de todas as classes sociais que permeiam todas as localidades desse grande país. A visibilidade dessas crianças deve ser real e na concretude de suas particularidades, assim como seus direitos devem ser garantidos, possibilitando que todas as crianças possam viver sua infância. 3.2.1 Análise dos direitos da criança Quando tratamos sobre o direito das crianças no Brasil, se estabelece que os principais documentos no que tangem aos seus direitos e deveres são a Constituição do Brasil de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990 e, no âmbito mais específico da educação, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), promulgada em 1996. Esses três documentos permeiam as práticas sociais na instância dos direitos no que se refere às crianças e adolescentes, são eles que ditam à sociedade quais as determinações em relação às crianças no que se refere à educação, bem-estar, saúde, mas também em como lidar com a criança marginalizada, indefesa, que sofre maus tratos. Enfim, esses documentos se completam e se entrelaçam, na tentativa, ao menos no campo das ideias, de permitir à criança viver a infância no seu tempo e de forma plena. Devemos iniciar a discussão a partir da lei magna do país, a Constituição. Em seu artigo 5º, o documento traz a seguinte afirmação: Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo- se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...] (BRASIL, 1988, p. 2). Infelizmente, nem todas as pessoas têm esses direitos efetivamente garantidos, já tratamos sobre os casos de pobreza no país nos tópicos supracitados, o que exprime a não garantia de direitos em detrimento ao que dita a referida lei. Continuando, em seu artigo 227, a Constituição trata sobre os direitos das crianças que devem ser assegurados por diversas instâncias sociais: [...] É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988, p. 103). Considerando que a criança é ser social, ao deixar de garantir direitos básicos às famílias, consequentemente se estará deixando de atender os direitos das crianças que vivem nessas famílias. Dessa forma, ao congelar o investimento com saúde e educação por 20 anos a partir da homologação da PEC 241 (BRASIL, 2016), por exemplo, o poder público deixa claro que não está levando em consideração os direitos mínimos dos cidadãos, sejam crianças, jovens, adultos ou idosos, consequentemente, seus direitos constitucionais não estão sendo respeitados. No que se refere ao ECA (BRASIL, 1990), trata-se de um documento que avançou muito as discussões sobre os direitos da criança, estabelecendo normas rígidas e punição para quem violar, maltratar ou negar à criança e ao adolescente quaisquer direitos que lhe cabem em lei. Em seu artigo 5º, o estatuto estabelece: “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais” (ECA, 1990, p. 10). Esse discurso, que atende à legalidade, mas não à realidade, é promessa de campanhas de inúmeros candidatos, levando a sociedade a crer em um vir a ser de direitos, ou seja, está exigido na lei, mas não ocorre com todas as crianças na realidade, podendo vir a ocorrer – ou não. De acordo com o ECA, criança é o indivíduo menor de 12 anos de idade, sendo assim, em seus artigos 60 a 69, trata da profissionalização e proteção do trabalho: “[...] é proibido qualquer trabalho ao menor de quatorze anos, salvo na condição de aprendiz.” (BRASIL, 1990, s. p.). Em pesquisa feita pelo IBGE, em 2016, 998 mil crianças entre 5 e 13 anos de idade estavam em situação de trabalho infantil (IBGE, 2017c). Esse dado nos leva a pensar sobre as diferentes infâncias que existem nos mais diversos cantos do Brasil: de um lado, a infância vivida em sua plenitude por uma parcela das crianças que nascem com possibilidades de uma vida digna, com os direitos à educação, saúde e moradia garantidos, não por força da lei, mas pelos recursos financeiros de suas famílias; de outro, tantas infâncias desvalidas e desprovidas de pertencimento e direito, vividas por crianças trabalhadoras, analfabetas, negligenciadas e marginalizadas, os outsiders de que tratam Elias e Scotson (2000, p. 1), delegados à categoria de seres inferiores, sem direitos, mas com deveres; sem infância, mas ainda crianças. Quanto à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a conhecida Lei 9.394/1996 (BRASIL, 1996), igualmente foi um avanço no que se refere à legislação, mais especificamente à educação infantil e de todos os indivíduos da sociedade. Iniciaremos a discussão a partir de seu artigo 5º, que trata do acesso à educação: O acesso à educação básica obrigatória é direito público subjetivo, podendo qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organização sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída e, ainda, o Ministério Público, acionar o poder público para exigi-lo. (BRASIL, 1996, s. p.). De acordo com pesquisa feita 2016 pelo IBGE, em 2016, cerca de 99,2% das crianças e adolescentes frequentavam a escola, o que é uma margem muito boa, porém, a taxa de analfabetismo foi de 7,2%; sendo assim, em algum momento, falha-se no ensino, já que a pesquisa nos faz ter certeza de que há analfabetos frequentando a escola (IBGE, 2017d). O que chama a atenção nessa pesquisa é que as taxas de escolaridade oscilam entre os Estados, sendo que em alguns as taxas são boas, e em outros são muito ruins, o que deixa claro que o direito chega para alguns, e não para outros. Cabe mencionar que a região Nordeste, uma das mais pobres do país, é a região com maiores taxas de analfabetismo e baixa escolarização de pessoas das mais variadas idades (IBGE, 2017d). Observe que a ideia não é minimizar a existência das leis, uma vez que muitas crianças e jovens hoje estão na escola – ou protegidos da violência –, por exemplo, devido ao amparo legal. Contudo, deve-se atentar para o fato de que as leis não são para todos, sendo o Brasil um país notoriamente soterrado pelas desigualdades (IBGE, 2017e). Desta forma, sempre é necessário analisar criticamente os aspectosdas leis para não cairmos no senso comum e na ingenuidade, acreditando que, por haver leis, estamos todos protegidos. 3.3 Metodologia de pesquisa Melhorar a práxis educativa significa, além da busca pela garantia de uma educação infantil de qualidade do ponto de vista do conhecimento, também procurar compreender as crianças das mais diversas formas. A pesquisa com crianças é uma maneira eficaz de entender o processo educativo e esses educandos per se, permitindo também ao professor melhorar seu desempenho profissional. Desta forma, ser professor-pesquisador é exigência primeira na busca por melhorar a práxis e, consequentemente, a educação das crianças, assim como compreender os pressupostos da pesquisa qualitativa, para que se garanta a melhor forma de pesquisar as crianças e dar voz a elas. 3.3.1 Professor-pesquisador É de conhecimento geral que o pesquisador é aquele que produz conhecimento, enquanto que ao professor cabe o ofício de ensinar. No dia a dia da escola, porém, essas duas características podem se relacionar, fazendo com que o professor seja também um pesquisador que busque refletir sobre sua prática, bem como sobre os contextos que envolvem os processos de ensinar e aprender. A esse respeito, veja o que diz Paulo Freire, um dos maiores pensadores e pesquisadores da educação no Brasil: Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino, continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo, educo e me educo. Pesquiso para conhecer e o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade (FREIRE, 1996, p. 16). Na perspectiva deste autor, o dia a dia da escola pode ser objeto de estudo e reflexão a partir de práticas, e dos sujeitos envolvidos em diferentes contextos, baseadas em pesquisa. Nesse intuito, podem ser realizadas sobre o cotidiano vivenciado, as práticas pedagógicas, o papel dos sujeitos envolvidos, entre outros tantos temas (FREIRE, 1996). Ouvir e observar as crianças em suas minudências também pode ser um pretexto para refletir sobre seus movimentos e aprendizagens, dentro e fora da escola, bem como levar em consideração o protagonismo das crianças na produção de seus conhecimentos e culturas infantis. Nesse sentido, observe o caso a seguir. Escola pública, horário de intervalo. A professora está caminhando por entre as crianças enquanto essas lancham, conversam, ou simplesmente esperam o sinal de fim de intervalo tocar. Nesse ambiente, a professora ouve vários sons. Dentre os diversos ruídos, destaca-se um choro baixo, com um soluçar tímido. Ao se aproximar, a professora se depara com três meninas em roda: uma chorosa, enquanto as outras duas –com olhar de tristeza –, escutam os lamentos da amiga. Perplexa, a professora ouve a menina contar sobre as diversas vezes que apanhou do pai, sobre a violência quase diária em sua casa e como ela e a mãe sofrem com o alcoolismo do seu pai. Sem saber muito bem o que fazer naquele instante, além de acolher a menina, a professora decide não intervir, mas leva consigo o que escutou. Mais tarde, em sua casa, reflete sobre o relato daquela criança e decide que, no dia seguinte, conversará com os professores sobre possibilidades e atitudes que a escola deve tomar ante os casos de violência doméstica. Com essa conversa, verá de que maneira cada um pode ajudar na busca de agir de forma adequada tanto com aquela menina quanto com outras tantas crianças que sofrem abuso. Ouvir, observar e sentir as crianças na escola, bem como suas atitudes e expressão de vivências fora do contexto escolar, além de ser um compromisso que o professor tem com as crianças, podem se apresentar como evidências que se tornem objeto de questionamento e pesquisa. Um dos propósitos do professor que pesquisa pode ser melhorar o seu desempenho nos processos de ensinar e aprender, além de também conhecer seus alunos e refletir sobre suas vivências e conhecimento. Para tanto, o professor deve ter concepções de criança e infância que levem em conta diferentes contextos, e escolher um método de pesquisa que seja adequado àquilo que pretende. 3.3.2 Pesquisa qualitativa Os métodos de pesquisa mais conhecidos nas ciências humanas são as metodologias chamadas de pesquisas qualitativas, pelas quais se realiza a coleta de dados a partir da observação e escuta dos sujeitos. “A abordagem qualitativa parte do princípio de que a realidade só existe a partir do ponto de vista da pessoa. Ou seja, o que é real é a interpretação que se faz de um fenômeno, não o fenômeno em si.” (MALHEIROS, 2011, p. 188). Assim, os dados coletados são analisados a partir de pressupostos teóricos, e não apenas apresentados como mero resultado. Dessa forma, interagir, escutar e observar atentamente os indivíduos é a melhor maneira de garantir precisão na coleta de dados da pesquisa. De acordo com Bogdan e Biklen (1991, p. 11-12), as características de uma investigação qualitativa seriam: [...] (I) ter o ambiente natural como sua fonte direta de dados e o pesquisador como seu principal instrumento; (II) coletar dados predominantemente descritivos; (III) ter maior atenção ao processo que com o produto; (IV) o processo de análise tende a ser indutivo, sendo que ‘os pesquisadores não se preocupam em buscar evidências que comprovem hipóteses definidas antes do início dos estudos. Dessa maneira, se comprovam os pressupostos da pesquisa de cunho qualitativo, a escuta e observação atenta do sujeito, bem como formas de registro que evidenciem um compromisso com a fidelidade dos dados, garantindo ética e coerência nas evidências. Assim, é de extrema importância dar a devida atenção ao caderno de campo ou a outra forma de registro utilizada, sendo estes instrumentos indispensáveis para a pesquisa. Os dados coletados são predominantemente descritivos. O material obtido nessas pesquisas é rico em descrições de pessoas, situações, acontecimentos; inclui transcrições de entrevistas e de depoimentos, fotografias, desenhos e extratos de vários tipos de documentos. (LUDKE; ANDRÉ, 1986, p. 12- 13). Diante disso, o pesquisador deve ter uma amplitude de material retirado do campo para haver várias possibilidades de análise, seja na forma de diários de campo, entrevistas, registro fotográfico, filmagens, no intuito de garantir uma quantidade de dados que o permita, de forma segura, entender a realidade e os indivíduos estudados. Graue e Walsh (2003) tratam da importância de se observar atentamente as pequenas coisas diárias, quando falam sobre pesquisar as crianças em contexto, propondo que: […] os investigadores pensem nas crianças como vivendo em contextos específicos, com experiências específicas e em situações da vida real. Sugerimos que os investigadores gastem menos tempo a tentar desenvolver grandes teorias e mais tempo a aprender a retratar toda a riqueza das crianças nos inúmeros contextos em que elas se movem. (GRAUE; WALSH, 2003, p. 22). Os autores chamam a atenção para o fato de que há maior relevância de pesquisa na observação das crianças a partir delas mesmas, permitindo a elas demonstrarem como vivem e como entendem sua realidade. Nesse sentido, as crianças não devem ser classificadas a partir de teorias, as quais devem servir como referência para o trabalho e forma de contextualização. Ou seja, a partir dos dados coletados, as teorias são meios para refletir sobre – e com – esses dados, priorizando a narrativa da criança em seu contexto. Observe a figura a seguir, que ilustra o dinamismo no processo de pesquisa. A análise de dados perpassa as observações, queperpassa as anotações, no processo dinâmico que busca entender a realidade do sujeito pesquisado. O pesquisador que busca compreender a criança em suas interações deve caracterizar a escolha do campo, contextualizar as teorias a partir da subjetividade dos sujeitos pesquisados e recolher uma grande quantidade de dados. Dessa forma, assegura-se a escuta dos indivíduos participantes, compreendendo a realidade a partir dela mesma e dos envolvidos, assim como entender o contexto situacional desses sujeitos, na tentativa de propor coisas novas e na garantia de uma pesquisa que privilegie o processo de construção do saber e a melhora na práxis do professor. 3.4 Pesquisa com as infâncias e a educação São várias as maneiras de fazer pesquisa com as crianças na escola ou fora dela, assim como são muitos os parâmetros de escolha no fazer empírico, sendo que o professor-pesquisador deve ter conhecimento da metodologia de pesquisa que será mais adequada, dependendo de seus objetivos e de seu público. Cada metodologia empregada carrega consigo uma perspectiva daquilo que se quer investigar, sendo que o mais importante é que o pesquisador tenha uma sólida pergunta de pesquisa, bem como um objetivo claro do caminho que quer perseguir e daquilo que busca compreender. As formas de fazer pesquisa descritas neste tópico são algumas das mais usadas na área de ciências humanas – dentre tantas outras ainda existentes –, portanto, cabe ao pesquisador escolher a que lhe pareça mais oportuna e que melhor responda às suas indagações. 3.4.1 As diversas formas de pesquisa – pressupostos teórico-metodológicos Quando tratamos de pesquisa qualitativa, contamos com diversos pressupostos teóricos e metodológicos que a caracterizam. Dessa forma, antes de começar uma pesquisa, devem-se levar em conta as intenções e quais os sujeitos da referida pesquisa. A partir destes, é definido o problema de pesquisa, bem como a metodologia adequada. A pesquisa envolve várias etapas. Primeiramente, o pesquisador deve levantar seu problema de pesquisa, ou seja, especificar o assunto que ele deseja abordar. Posteriormente, faz-se a pergunta da pesquisa, o que consiste na indagação que o pesquisador precisa responder para abordar o problema. A partir disso, levantam-se hipóteses baseadas nas perguntas e indagações do pesquisador na tentativa de traçar caminhos para responder a pergunta principal. Ao iniciar a pesquisa, após o processo de levantamento de hipóteses, deve-se fazer uma investigação teórica sobre o tema e, dependendo dos procedimentos metodológicos da pesquisa, ir a campo fazer o experimento, o que significa, em ciências humanas, observar os indivíduos em seu contexto levantando dados que, após analisados, serão o resultado de sua pesquisa e estes resultados levarão a uma conclusão que deve responder à sua pergunta inicial. Esse levantamento de dados deve ser feito de acordo com uma metodologia específica, baseada, principalmente, naquilo que se quer saber sobre os sujeitos investigados. Neste momento, o pesquisador deve escolher qual metodologia melhor se emprega à sua pergunta. As principais metodologias de pesquisa qualitativa feitas na escola são a pesquisa etnográfica, a pesquisa-ação e o estudo de caso, conhecidas por suas abordagens que priorizam o estudo da realidade a partir do entendimento do indivíduo estudado. A etnografia, segundo Fetterman (1989, p. 11) seria “[...] a arte e a ciência de descrever uma cultura ou grupo [...]”, não como simples descrição dos fatos, mas compreendendo os significados que os sujeitos participantes atribuem aos eventos. Dessa forma, em uma pesquisa com abordagem etnográfica, o pressuposto é dar voz às crianças e observá-las a partir daquilo que elas fazem e vivenciam diariamente. Essa etnografia pode ser do tipo participante; a diferença é que nesta o pesquisador não age apenas como aquele que observa, escuta e anota, mas interage com os indivíduos pesquisados. O termo participante remete à controvertida presença de um pesquisador num campo de investigação formado pela vida cotidiana de indivíduos, grupos, comunidades ou instituições próximos ou distantes. Esta presença do pesquisador no campo encontra sua complementação no convite ou convocação do outro – indivíduo, grupo, comunidade ou instituição – para participar da investigação como informante, colaborador ou interlocutor (SCHMIDT, 2008, p. 394). Outra abordagem muito utilizada em pesquisas com crianças é a pesquisa-ação, entendida como aquela em que se planejam intervenções no campo, ou seja, a partir das investigações feitas por meio de observações e interações entre os sujeitos, o pesquisador propõe intervenções a fim de resolver problemas e apresentar soluções para algo de necessidade do grupo ou do pesquisador. Mais especificamente, a pesquisa-ação pode ser entendida como: [...] um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo (THIOLLENT, 2000, p. 14). Dessa forma, para que haja uma pesquisa-ação é necessário que aconteça uma pesquisa atenta no local ou situação escolhidos, através de discussões com os indivíduos participantes para que, juntos, se estabeleçam os possíveis problemas e suas soluções e, finalmente, as ações dos envolvidos visando à melhora ou solução do problema. Porém, se a pesquisa é feita com crianças muito pequenas que ainda não falam, deve-se entender que os professores são os sujeitos responsáveis pelas discussões que virão a acontecer na escola, sendo que neste caso, cabe um cuidado maior com as observações iniciais e um olhar atento às crianças, pois se deve compreendê-las em seus contextos, seja a partir de filmagens ou fotos, seja por meio de anotações no caderno de campo, garantindo-se que, posteriormente, se considerem essas informações ao fazer a análise dos dados. O estudo de caso é outra metodologia de abordagem qualitativa que pode ser utilizada na pesquisa com crianças ou para coleta de dados na escola. Como o próprio nome já diz, ela se caracteriza pelo estudo de um caso específico, seja de um indivíduo, seja de múltiplos indivíduos ou instituições (VENTURA, 2007). O importante é que se tenha em mente uma pergunta a ser respondida a partir de uma especificidade. Dessa maneira, o estudo de caso “visa à investigação de um caso específico, bem delimitado, contextualizado em tempo e lugar para que se possa realizar uma busca circunstanciada de informações.” (VENTURA, 2007, p. 384). Estas são algumas das possibilidades de pesquisas de cunho qualitativo, ou seja, que visam um estudo mais abrangente da realidade a partir da interpretação dos indivíduos que nela vivem. É muito importante que o professor e/ou pesquisador fundamente suas investigações em uma metodologia que o ajude a levantar dados concretos e objetivos da realidade, bem como dos sujeitos investigados, para que se garanta veracidade e exatidão no estudo realizado, inclusive, se for o caso, com a possibilidade de que existam mudanças significativas a partir da pesquisa. Síntese Concluímos o estudo relativo aos direitos das crianças na sociedade. A partir do entendimento das principais leis que regem os direitos das crianças no Brasil, você já sabe que é também compromisso da escola fazer valer esses direitos no dia a dia das crianças. Além disso, com base no que estudou sobre as questões teórico-metodológicas de pesquisa utilizadas para a compreensão da criança e da infância, está apto a considerar a pesquisa com as infâncias e a educação como um pressupostoque deve fazer parte do fazer pedagógico dos professores. Neste capítulo, você teve a oportunidade de: • entender que a escola tem um papel importante na busca pela compreensão das infâncias no país; • conhecer as principais leis brasileiras de proteção às crianças e aos adolescentes; • identificar a responsabilidade do professor em analisar criticamente a abrangência das leis que prometem proteção e assistência às crianças; • entender o que são pesquisas qualitativas e sua relevância para a práxis do professor; • conhecer os principais tipos de pesquisa utilizados na área de ciências humanas para entender a infância.
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