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Rev Neurocienc 2007;15/3:246–250 246 Uso de Rosuvastatina em Esclerose Múltipla Marcela Ramos de Oliveira1, Diogo Fernandes dos Santos1, Sheila Bernardino Fenelon2, Nilson Penha-Silva3 RESUMO A terapêutica convencional da esclerose múltipla (EM) compre- ende o uso de imunossupressores e imunomoduladores. Como as estatinas têm ações antiinflamatórias e imunomoduladoras, elas poderiam constituir uma terapia alternativa para essa doença. Descrevemos neste trabalho o resultado do uso de rosuvastatina por uma paciente de 34 anos, portadora de EM remitente-re- corrente. A paciente iniciou tratamento com interferon-beta 1A, porém, após queixas de efeitos adversos, recusou-se a continuar o tratamento. Em 2005, ela iniciou uso de rosuvastatina. Seu EDSS (Expanded Disability Status Scale) era igual a 6,0. Após 6 me- ses de tratamento, ela apresentava boa evolução no quadro neu- rológico, passando a deambular distâncias maiores e a praticar exercícios físicos. Seu EDSS baixou para 4,5. O tratamento com estatina é racionalmente promissor na melhoria da qualidade de vida e, provavelmente, no controle da doença. Unitermos: Inibidores de hidroximetilglutaril-CoA redutases. Esclerose Múltipla. Terapias em estudo. Citação: Oliveira MR, Santos DF, Fenelon SB, Penha-Silva N. Uso de Rosuvastatina em Esclerose Múltipla. SUMMARY The conventional therapeutics of multiple sclerosis (MS) com- prises the use of immunosuppressant and immunomodulator agents. Since statins presents antiinflammatory and immuno- modulator actions, they may constitute an alternative therapy to this disease. In this case report we describe the result of the use of rosuvastatin by a 34 years old woman with relapsing-re- mitting MS. The patient initiated treatment with interferon-beta 1A, but after reclaims of adverse effects she refused to follow this treatment. In 2005, she initiated use of rosuvastatin. Its EDSS (Expanded Disability Status Scale) was 6.0. After 6 months of treatment, she presented good evolution of her neurological state, being able to deambulate larger distances and to practice physical exercises. Her EDSS decreased to 4.5. The treatment with statins is rationally promising in the improvement of the life quality and probably in the control of the disease. Keywords: Hydroxymethylglutaryl-CoA reductase inhibitors. Multiple Sclerosis. Investigational therapies. Citation: Oliveira MR, Santos DF, Fenelon SB, Penha-Silva N. Use of Rosuvastatin in Multiple Sclerosis. Trabalho realizado na Universidade Federal de Uberlândia. 1. Estudantes de graduação em Medicina da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). 2. Doutora em Medicina, Professora Adjunta de Neurologia da Facul- dade de Medicina (FAMED) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Coordenadora do Centro de Estudos Triangulino de Esclerose Múltipla (CETEM). 3. Professor titular do Instituto de Genética e Bioquímica (INGEB) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Endereço para correspondência: Nilson Penha-Silva Universidade Federal de Uberlândia Instituto de Genética e Bioquímica Av. Pará 1720 CEP 38400-902, Uberlândia, MG E-mail: nspenha@ufu.br Recebido em: 05/04/2006 Revisão: 05/12/2006 Aceito em: 06/04/2006 a 04/12/2006 Conflito de interesses: não Use of Rosuvastatin in Multiple Sclerosis relato de caso INTRODUÇÃO A esclerose múltipla (EM) é uma doença infla- matória desmielinizante que afeta o sistema nervoso central1. A base anatômica comum das doenças des- mielinizantes do SNC é representada por alterações primárias da bainha de mielina. A lesão primária da bainha de mielina leva à liberação de seus componentes e causa danos e morte de oligodendrócitos2. A etiologia dessa doença ainda não é bem conhecida. Evidências indiretas apóiam uma etiologia auto-imune para a EM3, provavelmente desencadeada por fatores epige- néticos num hospedeiro geneticamente susceptível. A EM pode evoluir de diferentes maneiras. A forma recorrente-remitente (EMRR) caracteriza- se por surtos bem individualizados que deixam ou não seqüelas, não havendo progressão das deficiên- cias entre os surtos. A forma secundariamente pro- gressiva (EMSP) apresenta uma fase precedente de recorrências e remissões seguida de progressão das deficiências, sem surtos ou com surtos subjacentes. Outra forma de evolução da EM é a primariamente progressiva (EMPP), que se caracteriza desde o iní- cio por doença progressiva, evoluindo com discretos períodos de melhora. Por fim, há a forma progressi- va recorrente (EMPR), que também se caracteriza desde o início por doença progressiva, porém inter- calada por surtos, com ou sem recuperação total, mas com progressão contínua entre os surtos4. As manifestações clínicas dessa doença desmie- linizante são inicialmente muito variáveis. Às vezes elas são muito drásticas, mas outras vezes elas são tão brandas que o paciente nem procura assistência mé- dica. Os sintomas iniciais mais comuns consistem em fraqueza em um ou mais membros, visão turva devi- do à neurite óptica, distúrbios sensoriais, diplopia e ataxia. Os sintomas sensoriais incluem parestesia (sen- sação espontânea de dor, adormecimento e/ou quei- mação) ou hiperestesia (aumento da intensidade e/ou da duração da sensação produzida por um estímulo). O comprometimento cerebelar resulta em ataxia da marcha e dos membros. Outros sintomas relatados por portadores de EM são neuralgias do trigêmeo, verti- gem associada a vômitos, urgência vesical, hesitação, esvaziamento incompleto ou incontinência, constipa- ção e urgência fecal. A disfunção cognitiva comum na fase avançada da doença também pode aparecer em seu estágio inicial. As alterações cognitivas observadas com maior freqüência incluem perda da memória, comprometimento da atenção, dificuldade na resolu- ção de problemas e processamento lento das informa- ções. A depressão é também comum na EM3. O diagnóstico de EM é baseado nos critérios estabelecidos pelo Painel Internacional para o Diag- nóstico da Esclerose Múltipla, por McDonalds et al., em 20015. Ele define a distribuição temporal e espacial da doença, utilizando, quando necessário, resultados obtidos com a Ressonância Magnética do encéfalo e da medula espinhal6. Recentemente, em 2005, houve uma revisão desses critérios a fim de tornar mais sen- sível e específico o diagnóstico da doença7. Os tratamentos da EM podem estar associados à detenção do processo patológico e/ou à atenuação dos sintomas3. A terapêutica convencional da EM compreende imunossupressores e imunomodulado- res, como IFNb1B, IFNb1A e acetato de glutiramer6. Entretanto, nos últimos anos, vários estudos têm demonstrado que as estatinas, além de diminuir o nível de colesterol sanguíneo, apresentam também propriedades imunomoduladoras e antiinflamató- rias8, devido à ação inibitória sobre a óxido nítrico sintase (NOSase) e citocinas pró-inflamatórias9, justifi- cando seu uso como terapia alternativa em doenças inflamatórias crônicas como a EM10-12. A região do genoma responsável pela produção da enzima NO- Sase está localizada no cromossomo 12, onde também está presente um loci gênico relacionado à EM. Assim, existe possibilidade de que a ação da NOSase implique em uma maior susceptibilidade à EM, uma vez que o óxido nítrico tem-se mostrado tóxico para oligoden- drócitos e responsável por induzir degeneração do axônio. O gene responsável pela síntese dessa enzima tem sido mostrado como sendo indutor da resposta inflamatória, no caso da EM13. A utilização de lovas- tatina14 e sinvastatina15 em pacientes com EM, em pequenos ensaios clínicos14,15, mostrou uma aparente diminuição das lesões vistas na ressonância magnética nuclear e ausência de efeitos adversos graves. Essas alternativas de prevenção, atenuação e mesmo tratamento da doença, à base de estatinas, carece, entretanto, de suporte experimental. Este re- lato procura explorar a questão relatando o caso de uma paciente com EM que fezuso de rosuvastatina durante seis meses. Em nossa revisão da literatura, não encontramos nenhum outro estudo que tenha usado a rosuvastatina com esse propósito. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Uberlândia e documental- mente consentido pela paciente. CASO Em 1999, a paciente, leucoderma, então com 34 anos, procurou o Hospital de Clínicas da Univer- relato de caso Rev Neurocienc 2007;15/3:246–250247 Rev Neurocienc 2007;15/3:246–250 248 relato de caso sidade Federal de Uberlândia, apresentando edema no tronco e membros inferiores (MMII), parestesia em região lombar e MMII, oligúria, obstipação in- testinal e perda de sensibilidade em área cutânea abdominal, com progressão do quadro neurológico durante internação com perda de sensibilidade dolo- rosa e tátil desde 4 cm abaixo da fúrcula esternal até os pés. No exame neurológico, a paciente apresen- tava paraplegia, arreflexia em membros inferiores, perda de sensibilidade e motricidade de T4 a S5, fla- cidez e hipotonia muscular de membros superiores e Sinal de Babinski à esquerda. Ainda durante esse surto, a paciente teve piora do quadro, apresentando diplopia e nistagmo. O exame do líquido cefalorraquidiano reve- lou líquor incolor e de aspecto límpido, com nível de glicose dentro dos limites da normalidade (61 mg%), mas aumento na concentração de proteínas totais (46 mg%). Ainda durante a internação, a pa- ciente iniciou corticoterapia (prednisona a 1 mg/kg). O exame oftalmológico revelou ausência de neurite óptica. Após alta hospitalar, houve melhora parcial da motricidade e tônus muscular dos membros su- periores e discreta melhora da movimentação em membros inferiores, além de referir retorno da sen- sibilidade dolorosa. Quatro meses depois, houve re- agudização do quadro neurológico e, além disso, a paciente apresentou infecções urinárias recorrentes. Nessa ocasião, foi realizada Ressonância Magnética Nuclear (RMN), quando foi confirmado o diagnósti- co de EM do tipo recorrente-remitente (EMRR). A RMN (figura 1) mostrou lesões múltiplas na substân- cia branca cortical do parênquima cerebral e cere- belo, infratentoriais, supratentoriais, justacorticais e periventriculares. Em 2003, a paciente iniciou acompanhamen- to ambulatorial no Centro de Estudos Triangulino de Esclerose Múltipla (CETEM) da Universidade Fede- ral de Uberlândia (centro de pesquisa filiado ao Co- mitê Brasileiro de Tratamento e Pesquisa da Esclerose Múltipla). Realizado exame neurológico, o escore ob- tido na Escala Expandida do Estado de Incapacidade (EDSS) foi 6,0. Ela, então, iniciou tratamento com interferon-beta 1A (6.000.000 UI, uma vez por sema- na), durante um mês, porém relatou efeitos adversos e recusou-se a continuar o tratamento com qualquer medicação injetável para a doença. Em 2005, devido à recusa da paciente em se submeter ao tratamento convencional, foi-lhe pro- posta uma nova terapia baseada no uso de rosuvasta- tina. Antes de iniciar a nova terapêutica, sua avalia- ção neurológica mostrou que ela mantinha o mesmo escore no EDSS (6,0) que havia apresentado antes do início do tratamento. Ela iniciou, então, o uso de rosuvastatina, a 10 mg/dia nos primeiros 10 dias, passando para 20 mg/dia, durante 6 meses, já que não foi evidenciado nenhum efeito adverso ao uso desse medicamento. Durante o uso da rosuvastatina, foi acompanhada ambulatorialmente e através de testes hematológicos e bioquímicos, incluindo perfil lipídico e dosagem de creatina-quinase (CK). Durante todo esse período, a paciente não fez uso de outra medicação — como anti-inflamatórios, imunomoduladores ou imunossupressores — que pudesse ter modificado favoravelmente a evolução da doença. Além da rosuvastatina, fez uso apenas de antibióticos para o tratamento das infecções recor- rentes do trato urinário e de antidepressivos tricícli- cos e benzodiazepínicos, drogas que ela já utilizava desde 2003. Ela também não se submeteu a outros tratamentos concomitantes, como fisioterapia, psico- terapia, técnicas de relaxamento e ergoterapia. Figura 1. Ressonância Magnética Nuclear, com lesões múltiplas no pa- rênquima cerebral e cerebelo. A e B: lesões infratentorial e justacortical. C e D: lesões justacorticais. E e F: lesões periventriculares. Dois meses após o uso de rosuvastatina, a pa- ciente apresentou uma boa evolução do quadro neu- rológico, passando a deambular distâncias maiores, a praticar exercícios físicos e não necessitar continu- amente de sonda vesical. Não ocorreram surtos du- rante o tratamento. Após seis meses de tratamento, seu EDSS caiu para 4,5, com melhora considerável principalmente das funções piramidais e vesicais. Houve, também, uma diminuição no nível sérico de colesterol total (tabela 1) e a CK manteve-se dentro dos limites da normalidade (< 130 U/l). Atualmente, continua em acompanhamento ambulatorial e com o uso de rosuvastatina. DISCUSSÃO A paciente, desde o início do quadro, apresen- tou sintomas típicos de doença desmielinizante. Seu diagnóstico de EM foi confirmado de acordo com os critérios de McDonalds5, já que ela apresentou dois ou mais surtos, evidência clínica objetiva de uma lesão, além de disseminação espacial (pelo menos 1 lesão infratentorial, 1 lesão justacortical e 3 lesões periventriculares) compatível com os critérios de Ba- rkhof16. Os surtos tiveram duração maior que 24 ho- ras e foram intercalados por um intervalo de tempo, desde o início dos sintomas, de mais de um mês. O uso de imunomodulador foi inicialmente proposto para a paciente pelo fato de apresentar diag- nóstico definido de EMRR, além de evidências clíni- cas da atividade da doença através da presença de um surto recente. Além disso, a paciente não apresentava nenhuma contra-indicação ao uso desse medicamen- to, como gravidez, depressão, doença hepática e/ou doença cardíaca grave. A paciente foi devidamente informada quanto aos possíveis benefícios, eventuais riscos e efeitos colaterais, tendo concordado em iniciar o tratamento sob observação regular. Porém, ela apre- sentou efeitos adversos e não foi possível assegurar a adesão ao tratamento devido à recusa da paciente. Assim, foi proposta uma terapia alternativa com uso de rosuvastatina, com base em resultados de ensaios clínicos realizados com outras estatinas14,15. Os resultados desse tipo de terapia alternativa sugerem que o tratamento com rosuvastatina possa apresentar efeitos clínicos favoráveis em pacientes com EM. Provavelmente, esses benefícios são decor- rentes da capacidade das estatinas de diminuírem a migração de leucócitos para o Sistema Nervoso Cen- tral, inibirem o complexo principal de histocompa- tibilidade classe II e os sinais dos co-estimuladores requeridos para a ativação de células T, além de in- Rev Neurocienc 2007;15/3:246–250249 relato de caso duzirem o fenótipo Th2 e diminuir a produção de mediadores no SNC, como óxido nítrico e fator de necrose tumoral alfa11,17,18. No caso aqui relatado, os efeitos benéficos da ro- suvastatina fizeram-se presentes principalmente na me- lhora da qualidade de vida e na queda do EDSS, que é o parâmetro utilizado para acompanhar a evolução da doença. No início do tratamento, a paciente já se encon- trava estável, com o mesmo escore há dois anos, e ne- cessitava de assistência com auxílio unilateral constante. Após seis meses de utilização de rosuvastatina, passou a deambular plenamente até 300 metros sem ajuda ou descanso, necessitando de mínima assistência. As estatinas podem causar efeitos adversos, como rabdomiólise19, quando usadas em doses ele- vadas. Embora a rosuvastatina apresente os mais baixos riscos quando comparada às outras estati- nas20 e nós tenhamos usado uma baixa dosagem do medicamento, a paciente não apresentou nenhuma evidência clínica de rabdomiólise e, durante todo o tratamento, os níveis de CK mantiverem-se absolu- tamente dentro da normalidade (abaixo de 168 U/l). A função renal tambémfoi acompanhada laborato- rialmente, não tendo apresentado alterações. O tratamento aqui sugerido é racionalmente promissor na promoção de melhorias na qualidade de vida de pacientes com EM e, provavelmente, no controle da doença, mas é preciso ter cautela, pois efeitos pró-inflamatórios foram descritos para a sin- vastatina, que induz um aumento dose-dependente de citocinas pró-inflamatórias, como o interferon gama e a interleucina 1221,22. Apesar do sucesso terapêutico obtido neste caso, faz-se necessária a realização de ensaios clíni- cos adequadamente controlados, com amostragem ampla e um maior tempo de acompanhamento, vi- sando a exclusão de um possível efeito placebo. Tabela 1. Efeito do tratamento com rosuvastatina sobre o EDSS (Kurtzke Expanded Disability Status Scale) e os níveis de colesterol total plasmático. Tempo EDSS Colesterol total (meses) (mg/dl) 0 6,0 322,0 3 5,0 186,8 6 4,5 177,6 Rev Neurocienc 2007;15/3:246–250 250 relato de caso REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Rose JW, Hill KE, Watt HE, Carlson NG. 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