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1Espelhos Part idos Patrícia Maria Melo Sampaio2 PRESIDENTA DA REPÚBLICA Dilma Rousseff MINISTRO DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA Aloizio Mercadante Oliva GOVERNADOR DO ESTADO DO AMAZONAS Omar José Abdel Aziz SECRETÁRIO DE ESTADO DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA Odenildo Teixeira Sena PRESIDENTA DA FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DO AMAZONAS Maria Olívia de Albuquerque Ribeiro Simão Esta obra foi publicada com o apoio do Governo do Amazonas, por meio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas - Fapeam. Travessa do Dera, s/n, Flores, CEP: 69058-793, Manaus-AM Fone: (92) 3878-4000 www.fapeam.am.gov.br 3Espelhos Part idos ESPELHOS PARTIDOS Etnia, legislação e desigualdade na Colônia Patrícia Maria Melo Sampaio4 UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS CONSELHO EDITORIAL Presidente Henrique dos Santos Pereira Membros Antônio Carlos Witkoski Domingos Sávio Nunes de Lima Edleno Silva de Moura Elizabeth Ferreira Cartaxo Spartaco Astolfi Filho Valeria Augusta Cerqueira Medeiros Weigel COMITÊ EDITORIAL DA EDUA Louis Marmoz (Université de Versailles) Antônio Cattani (UFRGS) Alfredo Bosi (USP) Arminda Mourão Botelho (Ufam) Spartacus Astolfi (Ufam) Boaventura Sousa Santos (Universidade de Coimbra) Bernard Emery (Université Stendhal-Grenoble 3) Cesar Barreira (UFC) Conceição Almeira (UFRN) Edgard de Assis Carvalho (PUC/SP) Gabriel Conh (USP) Gerusa Ferreira (PUC/SP) José Vicente Tavares (UFRGS) José Paulo Netto (UFRJ) Paulo Emílio (FGV/RJ) Élide Rugai Bastos (Unicamp) Renan Freitas Pinto (Ufam) Renato Ortiz (Unicamp) Rosa Ester Rossini (USP) Renato Tribuzi (Ufam) 5Espelhos Part idos Patrícia Maria Melo Sampaio Manaus - 2011 ESPELHOS PARTIDOS Etnia, legislação e desigualdade na Colônia Patrícia Maria Melo Sampaio6 Copyright © 2011 Universidade Federal do Amazonas REITORA Márcia Perales Mendes Silva EDITORA Iraildes Caldas Torres REVISÃO José Enos Rodrigues Gabriel Arcanjo Santos Albuquerque EDITORAÇÃO GRÁFICA (MIOLO) Danielle de Oliveira Reis Revisão editorial Cinara Cardoso CAPA Otoni Mesquita Luciana Freire Braga do Nascimento (FINALIZAÇÃO) Editora da Universidade Federal do Amazonas Av Gal. Rodrigo Octavio Jordão Ramos, 3000 69.077-000, Manaus AM Telefax: (0xx) 92 3305-5410 E-mail: edua@ufam.edu.br edua_ufam@yahoo.com.br S192e Sampaio, Patrícia Maria Melo Espelhos Par tidos: etnia, legislação e desigualdade na Colônia/Patrícia Maria Melo Sampaio. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2011. 352 p., il. 21 cm. ISBN 978-85-7401-488-3 1. História Colonial – Amazônia – século XVIII 2. Colônia – História – Amazônia I. Título. CDU 93/99 (1-52) (811) “17” Ficha Catalográfica 7Espelhos Part idos Somos nosso passado Somos este quimérico museu de formas inconstantes; este amontoado de espelhos partidos. Jorge Luís Borges Quantas vozes ao nosso redor. E quantas mãos se estendem para escrever a história. As vozes querem, humanas, nos dizer coisas: no vento, e há também as vozes da água, no fogo da terra. Ouvem? Nós não estamos sós, e no entanto estamos. Todas essas vozes, e todas essas histórias de homens, e animais, e floresta. Esta é mais uma e ela toca o ouvido talvez trêmulo, talvez impassível daquele que abre o livro, mas isso que fala não é exatamente a vida. E não a voz exata. Há outras, melhores, para dizer que estamos empilhados, esquecendo o tecido fino de que é feita a nossa humanidade. Vicente Cecim. Viagem a Andara Patrícia Maria Melo Sampaio8 9Espelhos Part idos Este livro nasceu como uma tese de doutorado, defendida em 2001, junto ao Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal Fluminense (UFF/ RJ). Em certa medida, ainda o é porque não fui capaz de transformar o texto original em algo mais agradável. De toda sorte, devo, mais uma vez, agradecer à Universidade Federal do Amazonas (Ufam), ao PICD/CAPES pelas condições necessárias à tese e ao empenho da Edua para esta edição. Agradeço, imensamente, aos funcionários da Biblioteca Nacional, Arquivo Nacional, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Arquivo do Itamaraty, Arquivo Público do Estado do Pará e aos colegas do Museu Amazônico. Pelas traduções (e versões) do inglês, alemão e nheengatu, agradeço aos professores Paulo Renan, Giancarlo Stefani e Auxiliomar Ugarte. Sem a ajuda de Sérgio Chahom (RJ), Rosevaner Nogueira e Patrícia Cavalcante (PA) na coleta de dados teria sido complicado ficar tanto tempo longe de casa. Ao Prof. John Monteiro, a disponibilidade com que sempre atendeu às minhas solicitações e a leitura atenta de todas as versões deste trabalho. Sheila de Castro Faria, João Fragoso e Flávio dos Santos Gomes, pelas observações valiosas por ocasião da defesa. À minha orientadora, Hebe Maria Mattos, difícil agradecer o interesse com que acompanhou esta tese, sua crítica cuidadosa, intervenções cruciais e uma impressionante capacidade de enxergar para além do texto. Pouco se pode fazer sem a ajuda de grandes amigos. Aos meus, devo o apoio incondicional, solidariedade sem fronteiras e inestimável interlocução intelectual: Nora e Vânia Magalhães, João Fragoso, Keila Grinberg, Barbara Sommer, Maria Eugênia Mattos, Bernadette Grossi, Francisco Jorge dos Santos, Hideraldo Costa, Mauro Coelho, Sofia Costa, Pedro Campos, Márcia Mello e James Roberto Silva. José Enos Rodrigues fez a primeira revisão e Gabriel Albuquerque, a segunda, mas, se algo ficou, mea culpa. AGRADECIMENTOS Patrícia Maria Melo Sampaio1 0 Nossa familia ocupa os últimos parágrafos em textos como este. Talvez porque seja o lugar do afeto para onde sempre se pode voltar: Ledinha e Sidarta, sempre presentes, meu pai Santoris, que foi embora sem ver esta tese virar livro, e Beto, Gabriel e Uriel. Sem eles, nem eu, nem este texto chegaríamos até aqui... Acabou! Finalmente, posso “tirar o nariz dos livros e olhar para vocês”. Mas, eu confesso (e nem precisava), esse finalmente é, na verdade, por enquanto porque o que sinto pelo meu trabalho - de certa maneira – se parece muito com o que sinto por vocês: também não cabe nas palavras. 1 1Espelhos Part idos PREFÁCIO Foi com grande prazer que recebi a notícia de que Espelhos Partidos finalmente virava livro. Não era sem tempo. Originalmente tese de doutorado defendida na Universidade Federal Fluminense, a análise inteligente de Patrícia Melo Sampaio reclamava publicação. Com base em pesquisa original e inovadora, o livro ilumina a reiterada produção da situação de conquista nos Sertões do Grão Pará, no repetido desafio de interação (e tentativa de subordinação) dos diferentes povos indígenas presentes na região. Ali, na segunda metade do século XVIII, a coroa portuguesa se confrontava com uma imensa variedade de povos e línguas indígenas a serem incorporados ao projeto colonial, com uma população de colonos que se comunicava preferencialmente em língua geral (o nheengatu), e com fronteiras tênues e movediças entre uns e outros. Os sertões do Grão-Pará foram laboratório privilegiado da experiência colonial portuguesa e de seus projetos de modernização no século das Luzes. Na segunda metade do século XVIII, a Amazônia ocupava papel central nos projetos reformistas da coroa portuguesa. A política pombalina para o Estado do Grão Pará e Maranhão procurou se substituir ao papel antes desempenhado pelas Ordens Religiosas, aliando-se às lideranças indígenas para trazer seus grupos da vida “selvagem” às povoações. O objetivo era transformá-los em vassalos da coroa portuguesa nas Américas, capazes de defender o domínio português na região e de fornecer mão-de-obra aos colonos que ali se fixassem. A legislação conhecida como Diretório dos Índios passou desde então a regular a situação de transição entre a condição de “gentio” ou “selvagem” e a de vassalo da coroa portuguesa. Ela atuava, porém, face um fluxo constante de descimentos de novos grupos indígenas, que mantinha intensamente freqüentadas as zonas de fronteira entre a vida dita selvagem e a incorporação nos aldeamentos. As intervenções modernizadorasdo projeto colonial pombalino aumentaram também o fornecimento de mão-de-obra escrava africana à praça mercantil de Belém, estabelecendo um fluxo de “negros novos” de diferentes Patrícia Maria Melo Sampaio1 2 procedências no continente africano à paisagem humana da região. Parte desse fluxo chegaria à Capitania do Rio Negro, na condição de trabalhadores cativos, especialmente à cidade de Manaus. Os processos de trocas culturais e de construção de hierarquias resultantes do encontro de tão díspares atores constituem a principal estrutura dramática revelada por Espelhos Partidos. Na busca de formar vassalos leais que defendessem aqueles sertões e de fornecer a eles os trabalhadores de que necessitavam, o processo colonial nos Sertões do Grão-Pará se desenrolava distante dos projetos oficiais, produzindo tensões, alianças surpreendentes e também novas hierarquias não previstas ou desejadas. Tratava-se ainda de conquista. A chamada “guerra justa” continuava no horizonte. Para evitá-la, lideranças indígenas eram convidadas a se reunir aos aldeamentos, a se tornarem vassalos do Rei de Portugal, a casar suas filhas com colonos portugueses com a promessa de que seus filhos não mais guardariam qualquer “mancha de sangue” por sua origem (por lei não poderiam sequer ser chamados de caboclos) e a fornecerem trabalhadores indígenas temporários e disciplinados àqueles mesmos colonos com os quais se aliavam. O projeto não transcorreu como planejado. Muitos grupos retornaram aos sertões, por vezes aliando-se a cativos de origem africana que ali se aquilombavam. Outros, talvez a maioria, buscaram se apropriar de formas diferenciadas da nova legislação e das posições que lhes eram atribuídas, incorporando novas formas de gerir o destino coletivo. O Diretório foi extinto em 1798, tendo dado origem a uma hierarquia indígena diferenciada dentro dos aldeamentos. Não era este o objetivo desejado. Não por acaso, a Carta Régia de 1798, legislação que substituiu o Diretório dos Índios na região, buscaria eliminar tais hierarquias e as identidades a elas referenciadas. Na vigência da nova legislação, só adotada na Amazônia, não haveria mais índios vassalos com seus Principais reconhecidos como intermediários oficias entre os aldeamentos e as autoridades coloniais. Haveria apenas súditos (sem qualificação de origem) e índios “selvagens”, passíveis de serem capturados e colocados sob trabalho compulsório pelos que fossem considerados súditos coloniais, que se tornavam individualmente responsáveis por fazê-los transitar da “barbárie” à “civilização”, reproduzindo, no processo, formas análogas à escravidão. Além dos colonos, quais redes de relação faziam alguém índio ou súdito da coroa? Como se colocavam “caboclos” (mestiços de índios) e “tapuios” (vassalos índios destribalizados) neste processo? Qual o destino das hierarquias indígenas que se haviam fortalecido no período anterior? A análise apresentada faz surgir com 1 3Espelhos Part idos força as tensões e ambigüidades decorrentes da adoção da Carta Régia de 1798 e de sua longa vigência na região. A partir de fragmentos de histórias de vida, o texto faz emergir pequenas histórias de humilhação e sucesso, como a vivida pelo sargento tapuio Felipe Muniz, que nos fazem entender as confrontações e acomodações específicas daquele contexto de reiteração de hierarquias baseada no trabalho compulsório de cativos africanos ou de “administrados” indígenas, e de criação e expansão de populações liminares de tapuios, caboclos ou pretos forros, com trânsito entre os dois mundos e direitos formalmente iguais aos demais colonos da região. É neste quadro que a independência política e o discurso liberal de igualdade perante a lei (para os homens livres) chegaria à região. A tensão étnica subjacente ao processo explodiria na Cabanagem, bem como nas formas adotadas pela repressão que se seguiu, com o desenvolvimento de legislação específica para não brancos, como nos Corpos de Trabalhadores e na longa permanência da legalidade do trabalho compulsório dos índios na região. Espelhos Partidos é contribuição definitiva seja à história indígena, à historiografia da escravidão ou simplesmente à história do Brasil Colonial, em sentido amplo. Mas não trata de um passado que passou, como podemos acompanhar na introdução do trabalho. Na Amazônia de hoje, além dos diversos povos indígenas, são muitos os atores sociais “negociando e confrontando projetos diferenciados”. Oxalá nenhum deles possa contemplar, ainda que de forma velada, a utilização de formas análogas à escravidão. Que o aspecto mais doloroso do passado fique apenas no passado. Hebe Mattos Professora Titular de História do Brasil Universidade Federal Fluminense Patrícia Maria Melo Sampaio1 4 1 5Espelhos Part idos ABREVIATURAS ABAPP AEP AHU ANRJ APAM APP BI BNRJ CEDEAM DFB IHGB MA MPEG RN RIHGB Anais da Biblioteca e Arquivo Público do Pará Amazônia na Era Pombalina Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa) Arquivo Nacional do Rio de Janeiro Arquivo Público do Amazonas Arquivo Público do Pará Biblioteca do Itamaraty (Rio de Janeiro) Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro Comissão de Estudos e Documentação da Amazônia (Manaus) Dicionário de Famílias Brasileiras Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro Museu Amazônico – Universidade do Amazonas Museu Paraense Emílio Goeldi Rio Negro Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro UNIDADES DE PESO, MEDIDAS E MOEDAS Alqueire 36, 3 kg Alqueire do Pará 2 paneiros (cerca de 30 kg) Arratel 0,429 kg Arroba 14, 7 kg Braça 2,2 m Canada 2, 64 litros Côvado 66 cm (3 palmos) Frasco 3, 3 litros (5 quartilhos) Frasqueira 39,8 litros (12 frascos) Palmo 22 cm Paneiro Cerca de 15 kg Quartilho 0, 66 litros Quintal 4 arrobas (cerca de 58 kg) Vara 1, 10 m Légua Entre 5 555 e 6 000 metros Cruzado $ 400 (400 réis) Oitava 1$200 (1200 réis) Pataca Moeda de prata ($300 e $320) Tostão Moeda de níquel ($100) Patrícia Maria Melo Sampaio1 6 1 7Espelhos Part idos 13 29 35 43 53 73 97 115 INTRODUÇÃO .................................................................................................... ................. PARTE I Quando o fim é o começo: os mundos da fronteira na Amazônia do século XVIII .................................................................................................... .......................... CAPÍTULO 1 Onde ficam os “sertões”? ............................................................................................... CAPÍTULO 2 Fortificações e aldeamentos: as estratégias coloniais .................................................. CAPÍTULO 3 Os índios .................................................................................................... .......................... CAPÍTULO 4 Os escravos africanos .................................................................................................... .. CAPÍTULO 5 Enriquecidos e inventariados: alguns colonos ........................................................... CAPÍTULO 6 Passagens e encruzilhadas: transitando entre os mundos ......................................... PARTE II Códigos da fronteira: consolidando diferenças ......................................................... SUMÁRIO Patrícia Maria Melo Sampaio1 8 CAPÍTULO 7 Trabalho, poder e liberdade I: o Diretório Pombalino .............................................. CAPÍTULO 8 Remédios para a pobreza: roteiros do Diretório ................................................... CAPÍTULO 9 Políticas e poderes nas povoações do Grão-Pará ....................................................... CAPÍTULO 10 Refazendo o Diretório .................................................................................................. . CAPÍTULO 11 Trabalho, poder e liberdade II: a Carta Régia de 1798 ............................................ CAPÍTULO 12 Caminhos possíveis: as armas e a República ................................................................... CAPÍTULO 13 Fronteiras da diferença ..................................................................................................... Capítulo 14 Liberdades e desigualdades: projetos e processo colonial ................................... CONCLUSÃO .................................................................................................... .................... FONTES E BIBLIOGRAFIA .................................................................................................... ANEXOS .................................................................................................... ........................ 1 9Espelhos Part idos INTRODUÇÃO Os estudos de história indígena no Brasil são recentes se comparados aos de outros países, especialmente os da América Hispânica que produziram, entre as décadas de 1960-1970, um importante corpo de trabalhos acerca das populações ameríndias. Entre as temáticas mais significativas dessa produção deve-se incluir o violento contato com os conquistadores europeus, o dramático extermínio das populações indígenas, sua cruel exploração em regimes de trabalho compulsório e, como não poderia deixar de ser, sua heróica (porém infrutífera) resistência. Da destruição da magnífica capital de Montezuma aos horrores das minas de Potosi, a historiografia dos povos indígenas da América foi marcada pela denúncia das dores, da violência e do sangue derramado, buscando escrever uma “história dos vencidos”.1 No caso do Brasil, a presença de historiadores nesse campo foi mais modesta como John Monteiro já deixou patente em 1989 em um artigo que recuperava a importância da escravidão indígena como elemento fundamental para compreender a formação da sociedade colonial. Confrontando-se com uma historiografia que a considerava como uma “instituição fracassada”, o autor contra argumentava que era necessário recuperar as dinâmicas internas do mundo colonial e a lógica das ações, reações e ajustamentos que vincularam esses diferentes personagens. “Na articulação destes processos históricos – da expansão européia e das mudanças sociais indígenas – reside a gênese da sociedade colonial.”2 1 A “história dos vencidos” não deixava de guardar vinculações com a “história vista de baixo”, de inspiração marxista presente na historiografia européia. Suas implicações políticas são evidentes, alimentando e também sendo alimentada pelas lutas contemporâneas. Apenas para mencionar alguns dos clássicos, ver Nathan Watchel. La vision des vaincuns. Les indiens du Pérou devant la Conquête espagnole, 1530-1570. Paris: Gallimard, 1971; ROMANO, Ruggiero. Mecanismos da Conquista Colonial: os conquistadores. São Paulo: Perspectiva, 1973; LÉON-PORTILLA, Miguel. A conquista da América vista pelos índios. Petrópolis: Vozes, 1984 (A edição da Visión del los Vencidos, do mesmo autor, é de 1959). 2 Cf. MONTEIRO, John Manuel. De índio a escravo. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, v. 30/31/32, p. 170, 1989. Patrícia Maria Melo Sampaio2 0 Destacando a importância de revisão crítica da historiografia, Monteiro a dividiu, grosso modo, em duas vertentes no que diz respeito à questão do trabalho indígena: de um lado, trabalhos que partiam de uma ótica institucional enfatizando a trajetória de formação de uma política indigenista. A despeito de suas contribuições, sublinha o autor que as abordagens construídas nesse perfil mantiveram o índio na condição de objeto ou, no máximo, de vítima passiva de processos exteriores. A outra vertente de trabalhos, considerada mais rica, procurou registrar o índio como ator histórico no drama colonial. Mesmo notando o crescimento de trabalhos na área, Monteiro não deixou de pontuar a necessidade de ampliação dessas investigações.3 Seis anos depois (1995), Monteiro fez novo balanço da produção acerca da história indígena, mas ainda estava presente a constatação das limitações da historiografia. Parecia que a sentença de Francisco Adolfo Varnhagen de que, para os índios, “não existia história, apenas etnografia” tinha penetrado mais fundo do que se poderia imaginar. Porém já existiam sinais importantes de mudança.4 Falar em história indígena significa, necessariamente, recorrer aos trabalhos que se realizam na fronteira entre a história e a antropologia. Monteiro assegura que esses trabalhos buscam não só preencher vazios deixados por décadas de silêncio, mas também e, principalmente, discutir criticamente as diferentes formas de abordagem do passado dos povos indígenas. No desdobrar dessa discussão, foi colocada em xeque uma postura pessimista que marcou profundamente as leituras quanto ao futuro possível para os índios: o seu fatal desaparecimento (físico e/ou cultural). 3 Na primeira vertente, Monteiro enumera os trabalhos de Mathias Kieman. The Indian Policy of Portugal in the Amazon Region, 1614-1693; BELLOTO, Heloísa L. Trabalho indígena, regalismo e colonização no Estado do Maranhão nos séculos XVII e XVIII. Revista Brasileira de História. São Paulo, 4, p. 177-192, 1982. THOMAS, George. Política indigenista dos portugueses no Brasil. São Paulo: Loyola, 1982. Na segunda, são mencionados os de THOMAS, John. Red Gold. The Conquest of the Brazilian Indians. Cambridge: Harvard University Press, 1978; RIBEIRO, Berta. O Indio na História do Brasil. São Paulo: Global, 1983; SCHWARTZ, Stuart. Indian Labor and New World Plantations: European Demands and Indian Responses in the Northeastern Brazil. American Historical Review. Washington, p. 43-79, 83. SWEET, David. A Rich Realm of Nature Destroyed: the Middle Amazon Valley, 1640-1750. PhD Thesis, University of Winsconsin, Madison, 1974, Dauril Alden. Indian versus Black Slavery in the State of Maranhão during Seventeenth and Eighteenth Centuries, Biblioteca Americana, 1, n. 3, p. 91-142; MOTT, Luís. Os índios e a pecuária nas fazendas de gado do Piauí Colonial. Revista de Antropologia, 22, p. 61-78, São Paulo. FARAGE, Nádia. As muralhas dos sertões: os povos indígenas do rio Branco e a colonização. Unicamp, Dissertação de Mestrado, 1986. Rio de Janeiro: Paz e Terra/ ANPOCS, 1991. 4 Cf. MONTEIRO, John Manuel. O desafio da história indígena no Brasil. In: SILVA, Aracy Lopes da; GRUPIONI, Luís Donisete (Org.). A temática indígena na escola. Brasília: MEC/MARI/UNESCO, p. 221-228, 1995. 2 1Espelhos Part idos Essa era uma tese sustentada por diferentes correntes do pensamento social brasileiro que foi reforçada pelas teorias que orientavam a antropologia no país e marcou significativamente as políticas indigenistas: na melhor das perspectivas, a “integração” era algo de inexorável e seu impacto poderia ser, no máximo, amenizado pelas agências de proteção.5 Nessa mesma direção, Manuela Carneiro da Cunha já tinha apontado – “por má consciência e boas intenções” – a durabilidade da noção de que os índios foram apenas vítimas do sistema mundial, de políticas e práticas externas que os levaram à destruição. Se o sentido da história deveria vir obrigatoriamente de seu epicentro – a metrópole –, a periferia era uma mera resultante. Dizia Carneiro da Cunha que “o resultado paradoxal dessa postura ‘politicamente correta’ foi somar à eliminação física e étnica dos índios sua eliminação como sujeitos históricos.”6 John Monteiro identifica que o principal movimento de reversão desse pressuposto veio dos próprios índios expresso através de novas formas de expressão política quando suas organizações reinventaram o próprio significado da noção de autonomia na luta pela reivindicação e retomada de direitos históricos. Sem contar a tendência de estabilidade e até de crescimento demográfico de populações o que, na prática, sinalizou a revitalização física e até mesmo cultural de populações até então fadadas à “extinção”. Ao encontro desse processo, o que Monteiro chama de “um novo indigenismo” pode então pautar-se em uma bibliografia renovada, preocupada não apenas com questões acadêmicas mas também interessada em instrumentalizar as reivindicações contemporâneas dessas populações. O resultado foi o aumento da “visibilidade dos povos indígenas numa história que sempre os omitiu, como também revela as perspectivas destes mesmos povos sobre seu própriopassado, incluindo visões alternativas do contato e da conquista.”7 Entre historiadores, trabalhos mais recentes sinalizaram leituras renovadas. Importante destacar, inicialmente, o trabalho do próprio John Monteiro, Negros da Terra, que recuperou a presença e a importância do uso da mão-de-obra indígena em São Paulo colonial. Também A Heresia dos Índios de Ronaldo Vainfas, que analisa 5 MONTEIRO, J. M. Idem, p. 222, 1995. 6 CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). Introdução à uma história indígena. In: História dos indios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 17-18. 7 MONTEIRO, J. M. Idem, p. 223, 1995. Patrícia Maria Melo Sampaio2 2 a Santidade do Jaguaribe concebendo a idolatria como uma manifestação de resistência ao colonialismo e, assim, trata-a como um fenômeno historicamente novo, ao mesmo tempo, produto do confronto colonial e também da reestruturação das relações de poder e de novas estratégias de sobrevivência das populações indígenas. As considerações de Edgard Ferreira Neto acerca do papel de ruptura desempenhado pela pesquisa em etnohistória também remetem para uma revisão importante, questionando a validade de juízos universalizantes e de base etnocêntrica, permitindo evidenciar a historicidade e as dinâmicas internas das diferentes sociedades humanas. 8 Para a Amazônia, também recentemente, Francisco Jorge dos Santos relendo um tema tão clássico quanto é a resistência dos índios na Amazônia pombalina, não deixou de enfatizar o peso das políticas indígenas na elaboração desses confrontos. A mais inovadora é, sem dúvida, a proposta de Barbara Sommer que, analisando o processo colonial no Grão-Pará, vai na contramão da historiografia que enfatiza apenas a destruição sistemática das populações indígenas, colocando em relevo seu ativo papel histórico nas negociações e na demarcação dos limites que deram o tom dos estabelecimentos coloniais na região.9 Se, por um lado, ainda é inquestionável o vigor da produção dos antropólogos, como bem demonstra História dos Índios no Brasil organizada por Manuela Carneiro da Cunha, por outro, lendo atentamente, a maior tarefa ainda parece ser atribuída aos historiadores expressa no que Monteiro definiu como um duplo desafio. É preciso recuperar o papel histórico de atores índios na formação das sociedades e culturas do continente. Porém não se trata apenas de resgatar outra leva de “esquecidos” da história; é preciso antes “redimir a própria historiografia de seu papel conivente na tentativa – fracassada – de erradicar os índios.” 10 Sinceramente, um desafio desses não é algo que possa passar despercebido... 8 MONTEIRO, John Manuel. Os negros da terra. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. FERREIRA NETO, Edgard. História e etnia. In: VAINFAS, Ronaldo; CARDOSO, Ciro F. S. (Org.). Domínios da história. Rio de Janeiro: Campus, p. 313-328, 1997. 9 SANTOS, Francisco Jorge dos. Guerras e rebeliões indígenas na Amazônia na época do Diretório Pombalino (1757- 1798). Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP, 1995. Além da conquista: guerras e rebeliões indígenas na Amazônia. Manaus: EDUA, 1999. SOMMER, Barbara. Negociated Settlements: Native Amazonian and Portuguese Policy in Pará, Brazil, 1758-1798. New Mexico: University of New Mexico, PhD Thesis, 2000. 10 MONTEIRO, J. M. Idem, p. 227, 1995. 2 3Espelhos Part idos A proposta que se apresenta aqui traduz um esforço de incorporar essas novas perspectivas de análise, tendo como objeto a sociedade colonial estabelecida no Grão-Pará e seus sertões. Esse trabalho busca, em particular, refletir sobre a produção e reiteração de diferenças e desigualdades a partir da segunda metade do século XVIII e sobre o papel jogado pelo conjunto de atores nelas envolvidos nas formas historicamente específicas assumidas por esta reiteração. A idéia central é que as políticas indigenistas da Coroa (Diretório – 1757 e Carta Régia de 1798) fundaram a possibilidade de uma igualdade (antes inexistente), mas que, ao mesmo tempo, viabilizava a utilização compulsória do trabalho indígena, essencial para reprodução da sociedade amazônica. Tratando as políticas indigenistas como a expressão legal de um projeto de dominação colonial, na sua análise, entretanto, buscaram-se enfatizar as ações dos próprios atores índios que, a princípio, seriam objetos imediatos de sua aplicação. A ênfase na interação entre políticas indígenas e indigenistas teve, como vetor de investigação, a hipótese de que os atores índios não foram meros objetos desses projetos de dominação, mas, no decorrer da sua aplicação, interferiram – na medida de suas possibilidades – na sua implementação. No limite, foi essa intervenção que transformou um projeto colonial em processo colonial. No decorrer desses anos, essa pesquisa sofreu revisões profundas que a transformaram em uma proposta distinta daquela inicialmente esboçada. É certo que, nessa conjuntura, este não é um comentário original, nem se tratando dos diversos (des)caminhos da pesquisa histórica e menos ainda quando se refere a uma que tenha a Amazônia como objeto de reflexão. As afinidades da proposta atualmente desenvolvida com o projeto original são poucas; resguardei a preocupação com as questões relativas à desigualdade étnica e social e ao lugar dos índios no contexto das hierarquias locais. A revisão começou ainda quando eu iniciava o levantamento documental no Rio de Janeiro. Em uma das primeiras reuniões com minha orientadora (Prof.a Dra Hebe Maria Mattos), enquanto eu tentava explicar as categorias de um censo do XIX, ela me fez algumas perguntas aparentemente simples: “Afinal, qual é a diferença entre pardo, mestiço e caboclo? Quando é que essas categorias são formuladas? Patrícia Maria Melo Sampaio2 4 Como é que se pode distinguir cidadãos do Império dessa forma?” Eu não tinha condições de responder a nenhuma delas. Partira de um recorte sobre o qual essas categorias já estavam estabelecidas, mas não tinha refletido sobre suas variações ou mesmo sobre o lugar dessas fórmulas prontas. Buscando as respostas, concentrei minhas leituras na historiografia da Amazônia colonial e fiz muitas incursões na antropologia. Na verdade, à proporção que o levantamento documental apresentava seus primeiros resultados, novas questões iam se delineando e aquelas perguntas se ampliando. Foi aí que ficou claro que o “início” dessa história estava relacionado com a aplicação da política pombalina na região, quando os vassalos do Rei deveriam ser tratados como iguais; mas uns eram mais iguais do que os outros... Foi grande a surpresa (e não menor o meu entusiasmo) com a riqueza da documentação existente no Arquivo Público do Pará; mesmo a documentação do Museu Amazônico em Manaus – já conhecida minha de outros tempos – aparecia agora com nuances insuspeitas. A disponibilidade documental assegurou a possibilidade de reelaborar minha proposta de pesquisa que, necessariamente, deveria iniciar-se no século XVIII. Agora, quem sabe posso tentar começar a responder àquelas perguntas... Antes de apresentar o trabalho, talvez fosse importante, se não for cansativo, recuperar minha própria trajetória com relação ao tema e seus personagens. Sempre vivi na Amazônia, portanto a minha opção pela região não é apenas acadêmica, mas guarda profundas ligações com tudo que experimentei nesses anos. Meus contatos com a história indígena remontam à graduação, sendo parte de uma geração de historiadores que foi ‘apresentada’ ao tema guiada pelo entusiasmo do Prof. José Ribamar Bessa Freire. Esta temática – pela importância e densidade da questão indígena na Amazônia contemporânea – costuma emergir e vincular-se (às vezes, insistentemente) às nossas pesquisas. É certo que meu contato com essas populações era sempre acadêmico. Costumava dizer aos amigos que trabalham em organizações indígenas que “meus índios” já não existiam mais. Ledo engano do qual me dei conta em 1997, quando assessorei a comissão organizadora da exposiçãoMemórias da Amazônia, um fantástico evento realizado pelas universidades do Amazonas, Coimbra e Porto expondo, pela primeira vez no Brasil, o material etnográfico coletado durante a viagem do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira à Amazônia em finais do século XVIII. 2 5Espelhos Part idos Paralelamente aos eventos acadêmicos que já nos são familiares, representantes das diferentes etnias que habitam a Amazônia hoje participavam ativamente da exposição. Dança, música, artesanato, histórias, pinturas, rituais e manifestações de caráter político em defesa de identidades e territórios foram a tônica dos meses em que a mostra se desenrolou. Não posso esquecer o trabalho coletivo dos índios do rio Negro (Desâna e Tukano) construindo a maloca Tuyuka, a precisão das amarras de cipó, a organização silenciosa sobre a qual eu mesma tinha preparado um folheto explicativo, sem nunca tê-la visto de perto. Muito menos da luminosidade da maloca dos Kinja (Waimiri-Atroari) depois que ficou pronta e ambientada pelos técnicos do nosso museu sob a atenta orientação dos Kinja. Impossível descrever a sensação de ver meu filho dançando com outras crianças em meio aos Sateré-Mawé ou envolvido pela fumaça dos rituais de cura do Pajé Leôncio Apurinã, ao mesmo tempo em que lembrava que sua bisavó Rosa era uma índia Mura do rio Solimões. Também não consegui entender a minha emoção desarmada pela delicadeza da dança de despedida dos Yanomami. Pensar em Haximu era como um pesadelo. Assisti ainda a inúmeras negociações com os índios citadinos fechando contratos e a diferentes situações, impossíveis de recuperar agora, que definíamos como “reedições coloniais”; estávamos – de novo – todos lá: índios, portugueses, brasileiros, tapuios, cientistas, militares, autoridades públicas disputando, negociando e confrontando projetos diferenciados. Posso lembrar também a densidade dos discursos das lideranças indígenas e seus dilemas contemporâneos, divididas entre as pressões internas de suas comunidades, das ONG’s e outras forças externas. Em se tratando dos índios, não cabia sequer revisitar o “bom selvagem” ou mesmo pensar exclusivamente em “vencidos”, vítimas indefesas diante da voracidade dos brancos. Estava diante de sujeitos históricos concretos. Isso era o que mais me impressionava. Enquanto eu pensava estar construindo um tema de pesquisa situado no século XVIII, ele se desenhava diante dos meus olhos, nos comentários dos visitantes diante das peças e das oficinas indígenas, nos olhos atentos e na fala pausada dos índios, nas alianças e concessões mútuas necessárias ao funcionamento da exposição, nas recordações gradativas, nos inúmeros choques de um cotidiano subitamente tornado colonial. Recuperei memórias antigas como as criadas índias das casas dos fazendeiros de Roraima, acordadas durante a madrugada para atender solicitações descabidas de suas patroas. Ou a história da Margarida, que veio do interior ainda pequena para Patrícia Maria Melo Sampaio2 6 ser criada em Manaus pela família de um delegado de quem apanhava tanto que, aos quase 70 anos, ainda podia mostrar cicatrizes. Sem contar a surpresa do reencontro inesperado e a forte emoção com que revivi as dolorosas lembranças de exclusão e preconceito da minha amiga Juvita, filha de uma índia Wapixana, com quem dividi os bancos escolares ainda na infância. Violência e resistência, alianças estratégicas e omissões, desigualdade e preconceito. Risos, dores e silêncios. Sobrevivência. Cenas e histórias corriqueiras do mundo amazônico. Era quase inevitável que essas impressões aparecessem nas minhas perguntas e inquietações. A complexidade dos sujeitos históricos terminou por tornar- se demasiado evidente para caber em reducionismos apressados e reclamava muito mais para entender o intrincado processo de construção das desigualdades e das diferenças que ajudasse a explicar essas e tantas outras histórias. Foi assim, feito de memórias e inquietudes, que comecei a completar o desenho desse trabalho. Depois de 5 séculos, um dos traços mais visíveis do país é a desigualdade. O peso da escravidão africana, do trabalho compulsório dos índios e da acumulação desigual da riqueza corporificou-se em dramáticas realidades de exclusão, discriminação e intolerância. Este é um legado colonial, mas não é o único. Refletir sobre a sociedade colonial que se formou no Brasil significa debruçar-se sobre realidades mais complexas do que aquela produzida por leituras generalizantes e apressadas que a dividiram em dois blocos; de um lado, os dominantes – senhores de todas as prerrogativas de poder, vorazes exploradores de índios, negros e outros desclassificados sociais. Do outro lado, os dominados – massa informe, sem identidade e sem outra perspectiva histórica senão a subordinação ou o extermínio. Indicar as limitações dessa abordagem não significa afirmar a inexistência da exploração e expropriação violentas e suas cruéis resultantes sociais. Ao contrário, destacar a complexidade do mundo colonial significa, antes de tudo, recuperar a historicidade de personagens que, através de processos múltiplos, transformaram projeto colonial em processo colonial e isso não é pouco. No limite, o que se está buscando colocar no horizonte da reflexão é a busca de variáveis que iluminem os mecanismos de mudança social e o desvendamento das formas pelas quais seus atores – ainda que em posição subordinada – tomaram nas mãos seus próprios destinos. Esse é o limite de tais 2 7Espelhos Part idos leituras dicotômicas; não permitem que se abram caminhos para a explicação de fenômenos aparentemente impossíveis de ocorrer. Se é possível recuperar aqui as rebeliões indígenas e escravas, os quilombos e mocambos, as revoltas populares de enorme densidade social e política, também é imperioso resgatar as inúmeras táticas de sobrevivência e o emprego de estratégias políticas de resultados possíveis. Se vistos apenas como meros espasmos de reação à dominação e não como embates entre projetos diferenciados, esses processos – e outros aqui não referidos – perdem em riqueza de possibilidades porque esvaziados das ações dos que ousaram conduzir-se pelos seus sonhos. Sem dúvida, a sociedade que resultou desses embates é profundamente desigual, mas é preciso não esquecer que as possibilidades de gestação e articulação de projetos alternativos estão presentes no seio dessa estrutura, indicando e refazendo seus limites. Observando a produção sobre a história dos índios no Brasil e, especialmente aquela relativa à Amazônia, não pude deixar de relacionar a construção dicotômica dos índios –“heróis da resistência”, de um lado, e de outro, “pacíficos e colaboradores” – com uma trajetória similar à que se verificava na historiografia acerca da escravidão negra no Brasil, acompanhando o mesmo viés empregado por Eduardo Silva, quando categorizava Zumbi e Pai João. Foi durante uma conferência de John Monteiro (Manaus,1997) que apresentei, de forma ainda muito incipiente, essa avaliação chamando-os de ajuricabas e canicurus, respectivamente.11 Não se tratava de uma proposição tão nova assim. De fato, como já se disse, na antropologia, a discussão acerca dos índios enquanto atores históricos reais era bastante presente e alimentava vários trabalhos de referência como o organizado por Manuela Carneiro da Cunha (História dos Índios no Brasil) e também o de John Monteiro (Os Negros da Terra). O postulado básico vinculava-se à antropologia histórica que, ao contrário da tendência de minimizar (ou mesmo eliminar) a participação dos índios, buscava qualificar a ação consciente desses povos enquanto sujeitos concretos, articulando estratégias políticas e desenhando destinos possíveis, ainda que em condições de subordinação e dominação.12 11 Canicuru: “Traidor. Nome que no rio Negro davam aos índios que se tinham submetido e aceito o jugo português.” Cf. STRADELLI, Ermano. Vocabularios da lingua geral. 1929: 11-768. Ajuricaba foi o líder da famosa guerra dos índios Manaó (Rio Negro - 1727-1738), paradigma da resistênciaindígena. Em artigo recente, Monteiro comentou essa intervenção, posteriormente apresentada em um paper na XXI LASA/ 1998. Cf. John Monteiro. “Armas e Armadilhas”. In: NOVAES, Adauto (Org.). A outra margem do Ocidente, p. 223-236. 12 MONTEIRO, John. Idem, p. 227, 1995 ; CUNHA, Manuela Carneiro da. Introdução à uma história indígena. In: História dos índios no Brasil, p. 18-19. MONTEIRO, John. Os negros da terra. São Paulo: Cia das Letras, 1992. Patrícia Maria Melo Sampaio2 8 Depois de algum tempo (e muitas outras leituras), passei a acreditar que, na consolidação da história indígena como linha de pesquisa, seria possível valer-se das experiências de reflexão advindas das releituras feitas para a escravidão e, de certa forma, poupar caminhos nesse processo de construção. As considerações de Flávio Gomes ajudaram a avançar essa compreensão. Afirma o historiador que novas pesquisas e abordagens da história da escravidão vêm permitindo a crítica da idéia modelo de um tipo de rebeldia escrava que se esgotava em si mesmo, expressando apenas uma “reação” contra a violência senhorial e do próprio cativeiro. Foi o esforço de ampliar a compreensão das lutas dos escravos que a ênfase na “reação” cedeu a vez para as reflexões sobre as ações e seus significados. Não se pretendeu negar ou obscurecer a violência e a ‘coisificação’ física dos escravos, porém, novos estudos tentaram mais que atravessar sob a superfície, o mar das denúncias e da constatação, e sim mergulhar nas profundidades do cotidiano das experiências e visões escravas. Sob a escravidão, é certo, milhares de homens e mulheres não só viveram. Procuraram, na medida do possível, organizar suas vidas, recriando-as.13 Em outros trabalhos mais contemporâneos sobre escravidão, busquei (e encontrei) inspiração para rever determinadas informações e tentar refinar algumas proposições; foi assim com o clássico de Claude Meillassoux, Antropologia da Escravidão, para pensar a questão da produção de “estrangeiros”, o de Manolo Florentino & Roberto Góes, A paz das senzalas, para revisitar estratégias de acordos cotidianos e o acesso a determinados privilégios e prerrogativas no contexto do cativeiro, o de Robert W. Slenes, Na senzala, uma flor, o de Sidney Chalhoub, Visões da Liberdade, e também o de Hebe Mattos, Das Cores do Silêncio. 14 13 GOMES, Flávio dos Santos. A hidra e os pântanos: quilombos e mocambos no Brasil (sécs. XVIII e XIX). Tese de Doutorado. Campinas: Unicamp, p. 4-5, 1997. 14 MEILLASSOUX, Claude. Antropologia da escravidão: o ventre de ferro e dinheiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1995; FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz nas senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790 - c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista. Brasil - século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. 2 9Espelhos Part idos Ampliando a questão, o que está em jogo, como bem definiu Hebe Mattos é a influência das ações e motivações humanas na história, seus condicionamentos e limites. Mas não se trata apenas de optar por uma abordagem que privilegia o reconhecimento de agentes históricos ou por outra que enfatiza os fenômenos coletivos e as tendências de longo prazo que limitam, informam e condicionam a história humana. O que Mattos propôs, informada pelas experiências da microhistória italiana (e, na medida das possibilidades, tentei eu acompanhar), foi a construção de uma leitura que integrasse ambas as questões, tentando articular o tempo longo das estruturas culturais e sócio-econômicas ao tempo do vivido, dando ênfase ao papel da experiência humana para o entendimento da dinâmica histórica e social.15 Partindo da conjuntura de implementação da política pombalina na região, através do Diretório e suas leis complementares, a idéia é demonstrar que índios, tapuios e portugueses defrontaram-se com projetos diferenciados e esses confrontos nem sempre foram belicosos ou necessariamente desfavoráveis aos índios. Mais do que isso, esse projeto colonial sofreu reveses e “adaptações” como resultado tanto da configuração das povoações e aldeamentos já existentes como das diferentes ações e reações que índios aldeados empregaram no seu cotidiano para fazer frente àquelas empreendidas no contexto do colonialismo luso. O corpo documental que dá base a esse trabalho é extremamente variado. Utilizei as correspondências oficiais existentes no Arquivo Público do Pará mantidas entre os diferentes níveis da administração colonial, relatos coloniais de diferentes matrizes (viajantes, cientistas, eclesiásticos, funcionários da Coroa, militares), inventários post-mortem, mapas de população e mapas de comércio das povoações. Porém a base documental que dá sentido ao texto é a própria política indigenista: o Diretório (1757) e a Carta Régia (1798). Esses são projetos diferenciados; enquanto o Diretório se constitui em uma política global que se aplica ao conjunto da colônia portuguesa na América, a Carta de 1798 é produzida em estreita consonância com as questões locais e não é aplicada fora dos limites do Estado do Grão-Pará e Rio Negro. Assim, a própria legislação serviu como baliza cronológica inicial para delimitação do trabalho que se inicia com o Diretório, passa pela sua extinção em 1798 e alcança o final do período colonial na região em 1823, quando o Grão-Pará adere à independência do Brasil, indicando o fim do período colonial. 15 MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio. Op. cit., p. 16-17 Patrícia Maria Melo Sampaio3 0 A opção pelo recorte em 1823, entretanto, não se justifica apenas pelo “fim da colônia”, ainda que esse seja aqui seu motivo mais relevante; nesse mesmo momento, José Bonifácio de Andrada elabora e apresenta uma nova proposta de intervenção geral com relação às populações indígenas do novo império. O novo projeto deveria fazer parte da carta constitucional, àquela altura, em elaboração. Tal não aconteceu e o império brasileiro só legislaria para o conjunto da população indígena apenas em 1845, com a publicação do Regimento das Missões.16 Se vista como um conjunto, a política indigenista, entre 1798 e 1845, permanece estreitamente informada pelas demandas locais, na mesma medida em que a autonomia provincial, garantida pela nova estrutura administrativa, permitirá a emergência de propostas pontuais que são (naturalmente) muito variadas entre si: poderiam ir desde a reativação do Diretório, como ocorreu no Ceará, até a criação de leis novas, como o Corpo de Trabalhadores criado no Pará pós-Cabanagem. Desse modo, acredita-se que 1823 representa a acentuação de um processo, já em curso no final do século XVIII, que desloca as preocupações com a civilização dos índios, afastando-se progressivamente da variável mão-de-obra para a variável ocupação das suas terras. É nesse sentido que os projetos locais refletem, com maior ou menor intensidade, esse distanciamento. No caso da Amazônia, a preocupação com a incorporação dos índios, sobretudo enquanto força de trabalho, persiste na pauta das administrações locais, durante o decorrer do século XIX. É muito provável que a abertura de espaço para que os poderes locais pudessem ingerir diretamente nessa questão, definindo os rumos que julgava adequados, tenha contribuído para a não-efetivação do projeto de Bonifácio.17 De todo modo, quando se trata da política indigenista, é fácil perceber o quanto os recortes cronológicos de matrizes políticas não dão conta de sua diversidade. Como demonstram os livros de câmaras aqui utilizados, a Carta de 1798 permanece em vigor na região até a eclosão da Cabanagem (1835). Mesmo no pós-Cabanagem, quando a Carta já não mais era referência, a Assembléia Provincial do Pará produz o seu próprio “corpo de trabalhadores” – figura central criada pela legislação de 1798 – que 16SILVA, José Bonifácio de Andrada e.; DOLHNIKOFF, Miriam (Org.). Projetos para o Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1998. Ver também CUNHA, Manuela Carneiro da. Pensar os índios: apontamentos sobre José Bonifácio. In: Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense/EDUSP, p. 165-173, 1986. 17 As idéias quanto às transformações sofridas no trato da questão indígena no século XIX são de Manuela C. da Cunha. Ver Legislação indigenista no século XIX. São Paulo: EDUSP/Comissão Pró-Índio de São Paulo, p. 4, 1992. 3 1Espelhos Part idos vigora no Pará até bem entrada a segunda metade do século XIX e aplicado em concomitância à legislação imperial de 1845, tanto no Pará quanto no Amazonas. A continuidade da política, assim, deixa (entre outras) a sensação não só de reiteração da situação colonial – que é fato –, mas também um incômodo sentimento de que o trabalho jamais chegará ao fim. Como disse (providencialmente) Manuela Carneiro da Cunha, a escolha que se coloca é entre terminar o trabalho e dá-lo por terminado. Em um caso, tenta-se atingir assintoticamente uma inalcançável exaustividade, no outro, para-se. Optamos por parar quando sua densidade nos pareceu suficiente.18 Acompanhar a aplicação do corpo legal que conformava a política indigenista da Coroa portuguesa a partir da segunda metade do século XVIII teve como inspiração fundamental, a obra Senhores e Caçadores, de E. P. Thompson. Ainda que não possa considerar o que aqui se faz como um “experimento historiográfico”, foi a partir daí que se processaram as operações de “ler” a lei e buscar, na documentação, seus desdobramentos efetivos tanto com o Diretório Pombalino de 1757 quanto com a Carta Régia de 1798.19 Esse procedimento, como bem explicitou Beatriz Perrone-Moisés, partiu do pressuposto de que a política indigenista não é mera aplicação de um projeto a uma massa indiferenciada de índios. Ao contrário, é “um processo vivo formado por uma interação entre vários atores, inclusive indígenas, várias situações criadas por essa interação e um constante diálogo com valores culturais”.20 Os fragmentos das histórias de vida que emergiram do contato com essa documentação e com toda uma historiografia serviam como sinais e pistas para tentar penetrar além da superfície do discurso legal, da fala oficial e, a partir deles, tentar captar outros movimentos. Nesse particular, os procedimentos de pesquisa inspirados na microhistória foram de enorme valia, na operação de coletar fragmentos, rejuntar peças, perseguir rastros, pistas e sinais.21 18 CUNHA, Manuela C. da (Org.). Legislação indigenista no século XIX, op. cit., p. 3 19 THOMPSON, E. P. Senhores e caçadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 20 PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos. In: CUNHA, Manuela C. da. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, p. 129, 1992. 21 GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. LEVI, Giovanni. La herencia inmaterial. Madrid: Editorial NEREA, 1990. REVEL, Jacques (Org.). Jogos de escala. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1998. Patrícia Maria Melo Sampaio3 2 O trato da documentação permitiu apontar a criação e consolidação de uma hierarquia indígena que se diferenciava do conjunto das populações aldeadas e dos gentios como resultante das ações de catequese missionária e das próprias estratégias de sobrevivência (individuais ou coletivas) que emergiram do contato, da convivência e do confronto. Reconhecidos pelo aparato legal que surgiu com a administração pombalina, Principais, Oficiais e Abalizados serão os membros preferenciais dessa elite que estabelece relações de mediação com agentes do mundo colonial, ingerindo em diferentes espaços de poder Na trama das relações de poder que se consolidam no decorrer do século XVIII, a hierarquização dos vassalos, potencializada pelo Diretório, abriu espaço para que certos indivíduos, ao ocuparem postos administrativos e militares, se valessem das prerrogativas dos seus cargos públicos para acessarem – de forma mais livre – o trabalho compulsório das populações aldeadas e, até mesmo, o crédito. Desta forma, criou-se uma relação indissociável entre hierarquização social e poder político e econômico. É aqui que as pontas se unem porque as hierarquias se fundam sobre um discurso informado por bases étnicas em função do suposto estado de barbárie dos índios. O trabalho está fundado no argumento de que existe uma hierarquia social excludente que se fundamenta, em última análise, sobre um discurso que reforça a desigualdade existente entre barbárie e civilização. Contudo sua manutenção só parece ser possível com o envolvimento dos agentes que dela participam incluindo-se aí, os índios, os tapuias e mestiços, ou seja, o ponto nevrálgico é o fato de que as populações aldeadas participam da reificação da desigualdade porque, em certa medida, são algumas de suas próprias estratégias que colaboram na reiteração dessa estrutura desigual. A questão central dessas políticas de tutela sobre a passagem do índio da barbárie à civilização (de fato, um processo de destribalização) reside no fato de ela fundar uma possibilidade de igualdade formal, “lenta e gradual”, antes inexistente, que viabilizava regularmente, entretanto, formas de utilização compulsória da mão de obra indígena, chave importante do processo de produção e reprodução da sociedade colonial amazônica. Nesse contexto, compreender esse processo de produção e reiteração de desigualdades passa pela compreensão dos caminhos disponíveis para que essas hierarquias se consolidassem estruturalmente. Como se tratava de observar políticas e seus desdobramentos efetivos, destacar o peso das 3 3Espelhos Part idos câmaras e também das tropas coloniais no cotidiano das povoações coloniais serviu para lançar mais luz sobre essas relações. A sociedade colonial de finais do século XVIII e meados do XIX é complexa. O fluxo de novas populações indígenas permanecia constante reiterando a chegada de novos “estrangeiros” nas povoações e obrigando a constantes rearranjos. É dentro dessa lógica mais ampliada que devem ser situados os limites da aplicabilidade das políticas de igualdade preconizadas na legislação pós-Pombal. Na mesma medida em que os padrões coloniais de uso compulsório da mão-de-obra permanecem, persiste a oposição entre barbárie e civilização funcionando como elemento de diferenciação das populações já incorporadas daquelas ainda em vias de incorporação. Uma observação importante: participar dessa reificação, contudo, não deve significar a desqualificação desses agentes, tratando-os, de maneira maniqueísta, como “traidores” ou indivíduos “fracos” e “incapazes” de articular qualquer atitude contra a dominação colonial. Não é tão simples assim. Entrar nessa lógica representava apenas uma parte em um jogo de possibilidades e, mesmo inseridos nas hierarquias coloniais, esses indivíduos não seguiram apenas o que se poderia considerar como o caminho da “submissão”. Ao contrário, é possível perceber que, exatamente utilizando de suas prerrogativas, conseguiram, inclusive, forjar novas regras em seu benefício e também de suas comunidades. Evidentemente, não se trata aqui de enfatizar o papel do indivíduo isolado na construção do processo histórico. Ao contrário, fala-se aqui de ações, sobretudo, coletivas, fundadas em identidades construídas e reconstruídas no contexto da colonização. No esforço de procurar combinar o micro e o macro, o trabalho está dividido em duas partes. A primeira Quando o fim é o começo: os mundos da fronteira amazônica no século XVIII apresenta e demarca os espaços, os personagens e suas relações. Busca recuperar também esboços do “sertão” tal como aparecem no século XVIII para, posteriormente, dialogar com as estratégias coloniais para ocupação e com a sociedade de fronteira daí resultante na tentativa de aproximar-se da complexidade que caracteriza os sertões do Grão-Pará nesse período. A segunda parte Códigos da Fronteira: consolidandodiferenças abre com a história do sargento tapuio Felipe Muniz. Vivendo em um momento favorável à afirmação da igualdade entre os vassalos, Felipe é preterido em sua promoção, entre outras Patrícia Maria Melo Sampaio3 4 razões, porque era índio. Tendo o Diretório (1757) e a Carta de 1798 como eixos condutores para falar da desigualdade, apresentam-se os textos legais e seu funcionamento, buscando acompanhar o processo que emergiu ainda durante o Diretório pombalino e se consolidou no final do século XVIII com a nova legislação: a progressiva diferenciação e hierarquização dos vassalos reais nos sertões do Grão- Pará. Também se recuperam, nessa parte, as linhas gerais dos fluxos da produção de riquezas do Grão-Pará colonial, entendendo que é fundamental destacar e compreender a forma e os mecanismos de inserção dos diferentes atores que compõem nosso quadro. As populações indígenas são incorporadas ao mundo colonial, inicialmente, como mão-de-obra e este é um aspecto importante para compreender estratégias e mecanismos não só da criação, mas também da própria reiteração das diferenças. Ainda é no decorrer do XVIII que novos personagens entram em cena com mais vigor: Belém entra no fluxo do tráfico atlântico de almas e os escravos africanos passam a fazer parte desse tecido social carregando-o de novas contradições. Da lei à sua aplicação, dos dados aos processos, a ênfase dada às histórias de vida tem por finalidade iluminar as estratégias de sobrevivência no mundo amazônico colonial e a própria possibilidade de construção de um “novo mundo”. Partindo do pressuposto de que não existe um caminho único para demarcar esse campo de possibilidades, a proposta é apresentar a multiplicidade daquilo que foi identificado como estratégia de sobrevivência e recriação de espaços no mundo colonial. 3 5Espelhos Part idos PARTE I QUANDO O FIM É O COMEÇO: OS MUNDOS DA FRONTEIRA NA AMAZÔNIA DO SÉCULO XVIII Patrícia Maria Melo Sampaio3 6 3 7Espelhos Part idos Os moradores da colônia viviam em um e entre três mundos: a vila, o reino e o sertão. Mundos diversos entre si mas que afetavam profundamente a vida das pessoas a tal ponto que “o modo como as famílias interagiam em cada uma dessas áreas determinou em grande parte sua riqueza e posição social”.1 Porém, ainda que considerando as estreitas relações entre esses mundos, nada mais poderia estar afastado do conhecido do que as zonas genericamente denominadas de sertões. Na América colonial portuguesa elas pareciam mesmo ser onipresentes. A rarefação do povoamento fora do circuito restrito do litoral fazia com que, de certa maneira, todo o interior do território que veio a denominar-se Brasil fosse um vasto sertão. Poderia estar ao alcance da vista, imediatamente próximo aos imprecisos limites das vilas e povoados espalhados nas solidões das Capitanias ou mesmo a léguas de distância desses mesmos núcleos; o que definia o sertão não era apenas sua maior ou menor proximidade, mas algo mais fluido que poderia incluir variáveis diversas ou, por empréstimo de Le Goff, fronteiras mais permeáveis. Claro que a distância era o critério mais visível e talvez o primeiro para defini-lo enquanto tal. Mas distante da vila significava também afastado da civilização; esta é a segunda imagem mais freqüente do sertão: selvagem, inóspito, bravio. Contudo não necessariamente vazio ou despovoado. Poderia ser habitado sim, mas por uma casta de gente diversa que, estranhamente, veria agregar e incorporar a si as características e imagens da região onde viviam. Assim é que os primeiros habitadores dos sertões serão os índios definidos como “feras”, “selvagens” e “bárbaros”. A capacidade mutante e mutável do sertão é bem explorada no trabalho de Hal Langfur tratando das chamadas “terras proibidas” nos sertões das Minas Gerais. Retomando a questão da guerra aos índios Botocudo iniciada formalmente no 1 METCALF, Alida. Vila, Reino e Sertão no São Paulo Colonial. In: AZEVEDO, Francisca; MONTEIRO, John (Org.). Raízes da América Latina. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: EDUSP, 1996, p. 419. Patrícia Maria Melo Sampaio3 8 século XIX, o autor propõe uma releitura da questão da fronteira e das “terras proibidas” partindo do reconhecimento de que a guerra aos Botucudo, na verdade, se iniciou ainda no século XVIII quando as definições de fronteira foram reconceitualizadas diante das novas variáveis e ajustes que transformaram as terras indígenas de Édens promissores em obstáculos a serem removidos e transpostos.2 É a partir dessa leitura que o autor percebe um contexto conceitual fluido e o espaço de uma competição ideológica e cultural na qual posições irreconciliáveis relativas ao significado do sertão oriental das Gerais competiram pela predominância fazendo, em última análise, com que o espaço geográfico fosse reconstituído culturalmente: de um deserto selvagem para uma fronteira plena de possibilidades de enriquecimento, de uma barreira geográfica para uma cornucópia fértil de riquezas a serem conquistadas. Langfur recupera noções e definições diferenciadas de sertão sendo progressivamente construídas e apropriadas pelos diferentes agentes coloniais, inclusive pelos próprios índios que, de uma certa maneira, utilizaram-se destas redefinições (e, às vezes, indefinições) para traçar suas próprias estratégias políticas. A conjunção de todas estas imagens pode formar um desenho peculiar do sertão, genérico o suficiente para tornar-se comum nos relatos e, em certa medida, nas próprias representações do mundo colonial, tal como descrito pelos seus habitantes – os das vilas, não os dos sertões. Até mesmo porque é mais do que provável que, para estes, as fronteiras fossem outras bem diversas. Assim é que a imagem da fronteira a ser desbravada, ocupada, “desinfestada” é quase um sinônimo de sertão, se é possível traduzir esse desenho para uma linguagem mais afeita aos ouvidos contemporâneos. Ainda que apresentando preocupações diferentes das que se tratam aqui, não parece ser anacrônico considerar para as imagens do sertão algumas das conclusões de Le Goff quanto ao deserto-floresta no ocidente medieval, especialmente quando afirma que sua história foi sempre feita de “realidades espirituais e materiais misturadas entre si, de um vaivém constante entre o geográfico e o simbólico, o imaginário e o econômico, o social e o ideológico.”3 2 LANGFUR, Hal. The Prohibited Lands: Conquest, Contraband, and Indian Resistence in Minas Gerais, Brazil, 1760 - 1808. Comunicação apresentada na XXI Reunião Internacional da Latin American Studies Association - LASA, Chicago, setembro/ 1998. 3 LE GOFF, Jacques. O deserto-floresta no ocidente medieva. In: LE GOFF, J. O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval, Lisboa: Edições 70, p. 46, [s.d.] 3 9Espelhos Part idos No fundo, as imagens parecem encontrar-se referindo-se a um não-lugar definido apenas em contraponto ou em oposição a outro mas, ao mesmo tempo, com certa autonomia para existir de forma independente. Referindo-se à floresta, Le Goff a recupera definida e utilizada como fronteira, refúgio para vencidos e marginalizados e também fonte de materiais preciosos à sobrevivência cotidiana, reserva de caça e outros alimentos. Lugar a um só tempo, repulsivo e desejável. Sem contar que a floresta também poderia aparecer como um deserto de instituições e de leis. Estas também são considerações possíveis para o sertão. V. Leonardi, no seu ensaio Entre Árvores e Esquecimentos, define sertão destacando precisamente esta última categoria: espaços fora do alcance e dos limites das instituições formais, o lugar onde “as leis são, muitas vezes, letra morta.” No caso de São Paulo, Metcalf registra que “as grandes distâncias tornavam virtualmente impossível aos corregedores do conselho da vila fazer cumprir os decretos do reino, especialmente quando eram impopulares”.4 Todas estas características são visíveis no desenho que se traçou no século XVIII para os sertões das Amazonas. O governador e Capitão-General do Grão- Pará,Francisco Xavier de Mendonça Furtado, ao destacar a importância da criação da Capitania do Rio Negro, reforça exatamente a incapacidade da Coroa em agir naqueles sertões, seja na distribuição das justiças seja controlando e limitando o espaço de asilo e refúgio de “celerados”, em particular porque, sem contar com as proteções e apadrinhamentos, “a larguíssima extensão deste imenso país não permitia que se dessem as eficazes providências que eram precisas para as evitar”.5 O sertão como reserva também é recorrente. É fonte de produtos e matérias- primas “úteis”, necessárias à subsistência e ao comércio. O rio Madeira é definido como “paiol dos pobres e remédio para pobreza” devido à sua enorme abundância de cacau. Os sertões do Tocantins e do Xingu abundam de pau cravo assim como os sertões do Negro eram “fertilíssimos” em salsa, piaçava e outros produtos. Entre inúmeros exemplos a citar (de resto, tão abundantes quanto são os rios e seus sertões), foi o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira quem sintetizou a importância do sertão como reserva: “Neste Estado, digo eu, a riqueza ou pobreza das povoações pende da riqueza ou pobreza do mato.”6 4 LEONARDI, Victor. Entre árvores e esquecimentos: história social nos sertões do Brasil. Brasília: Paralelo 15, p. 127, 1996. METCALF, Alida. Vila, Reino e Sertão no São Paulo Colonial. Op. cit., p. 421. 5 Francisco Xavier de Mendonça Furtado ao Marquês de Pombal. Arraial de Mariuá, 6 de julho de 1755. In: MENDONÇA, Marcos C. de. A Amazônia na era pombalina - AEP. Rio de Janeiro: IHGB, 2º tomo, 1963, p. 707, 1963. 6 FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem filosófica ao Rio Negro. MPEG/CNPq/Fundação Roberto Marinho, 1983, p. 119. Patrícia Maria Melo Sampaio4 0 Mas as enormes utilidades do sertão não se restringiam apenas às suas produções. Ao se descrever o sertão de um rio aparece logo, junto aos seus produtos, a menção à sua abundância de índios; os sertões dos rios Içá, Japurá, Ixié, Uaupés e Içana são “viveiros de índios”. Nas terras do rio Arinos, existiam “tanto o pau cravo e a salsa como o gentio.” Da mesma maneira, os sertões do Tapajós abundavam em cravo, óleo de copaíba e “muitas nações de índios infiéis”. Existiam rios descritos como tão densamente habitados que bastaria apenas um deles, “e não dos maiores, para povoar Portugal”.7 Logo no início de sua gestão no Estado, Mendonça Furtado já se havia apercebido dos verdadeiros laços que ligavam os sertões aos moradores: Toda esta gente é ignorante em ínfimo grau, imagina que toda a sua fortuna lhe há de vir dos sertões, não extraindo drogas, mas aprisionando índios com os quais se propõem a fazer grandes progressos nas suas fábricas e lavouras.8 Um espaço tão caleidoscópico só permite reforçar sua historicidade e também suas possibilidades de reapropriação e reconstrução culturais. José de Souza Martins afirmou que o desencontro na fronteira é um desencontro de temporalidades históricas. Recuperá-los em conjunto aqui faz parte de uma certa estratégia narrativa para apresentá-los em sua multiplicidade e possibilidades. Sem contar também que, como já se disse no início, as formas de relacionamento com este espaço em muito contribuem para compreender os mecanismos de apropriação da riqueza. Se a riqueza e o poder podem vir do sertão, nem todos terão acesso igual a esses recursos. A Fortuna traz os olhos vendados, mas leva uma roda nas mãos.9 7 SAMPAIO, F. X. Ribeiro de. Notas ao papel que tem por título, Memória sobre o governo do Rio Negro. p. 46; JOSÉ, Fr. João de S. Viagem e visita do sertão em o Bispado do Grão-Pará em 1762 e 1763. p. 68; 91. NORONHA, José Monteiro de. Roteiro da viagem da cidade do Pará até as últimas colônias dos domínios portugueses em os rios Amazonas e Negro. p. 22-24. 8 Francisco X. Mendonça Furtado a Diogo de Mendonça Corte Real. 30.11. 1751. In: MENDONÇA, Marcos C. de. Amazônia na era pombalina - AEP, Tomo 1, p. 84. 9 MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: Hucitec, 1997. p. 151. 4 1Espelhos Part idos CAPÍTULO 1 ONDE FICAM OS “SERTÕES”? Aqui viram-se índias com arcos e flechas que faziam tanta guerra quanto os índios ou mais e comandavam e animavam os índios para que pelejassem; Fr. Gaspar de Carvajal Rio Nhamundá, 1542. Recuperar notícias do rio das Amazonas poderia significar retomar relatos quinhentistas ou antes, quando “o mundo não existia”. Sinceramente, acreditei desnecessário iniciar nossas incursões por águas tão dilatadas. O interesse maior é conduzir o olhar para o momento no qual a ocupação lusa já é fato na Feliz Lusitânia. Certamente, há controvérsias quanto a esse recorte e restrições a essa última afirmação porque, de certo modo, é possível dizer que os portugueses “vieram, viram, mas não venceram”1. Mas este é um assunto que fatalmente será discutido em outro momento dessa viagem pelos sertões. Precisando um pouco mais, gostaria de começar com a fundação de um forte, responsabilidade de uma expedição que partiu do Maranhão em pleno Natal de 1615. Não causa surpresa, nessas condições, que a primeira fortaleza lusa na Amazônia recebesse o significativo nome de Forte do Presépio, fundado na baía do Guajará, no início do século XVII. A despeito de um início quase bucólico, as coisas 1 A frase em destaque é de Joaquim Nabuco. Freire a utiliza para destacar o fato de que, após a independência, o Amazonas constituía-se como a única unidade política que não havia sido portugalizada, permanecendo majoritariamente indígena. Cf. FREIRE, José Ribamar Bessa. (Coord.) Amazônia Colonial (1616 - 1798). Manaus: Metro Cúbico, 4. ed. 1991, p. 62. Quanto à expressão “antes o mundo não existia”, refiro-me ao mito de criação do mundo dos Desâna - Alto Rio Negro. Patrícia Maria Melo Sampaio4 2 não correriam tão pacífica ou heroicamente como já depreenderam observadores (não tão) incautos. O leitor já sabe que está-se buscando refazer aqui a história de uma ocupação colonial, com toda a carga de tensão e embate que essa conjuntura histórica carrega.2 Os incidentes que se verificaram no núcleo recém-fundado anunciam, em certa medida, toda uma trajetória para “re-fazer” a história da conquista do vale amazônico. A sensação provocada pela retomada da fundação do Presépio é a de que os diferentes atores coloniais estavam apenas testando seus papéis históricos. Disputas entre os colonos ainda mal estabelecidos na nova terra, revolta das guarnições, disputas territoriais com “estrangeiros” (ingleses, franceses e holandeses) e, em particular, nas relações com as populações indígenas, o uso de estratégias não necessariamente excludentes: o aldeamento e o confronto armado.3 O Estado do Maranhão foi instituído em 1621 como unidade administrativa separada do Estado do Brasil, diretamente ligada a Lisboa, em plena vigência da União Ibérica. Instalado em 1626, compreendia as capitanias reais do Ceará, Maranhão, Grão-Pará, Gurupá e as capitanias hereditárias de Caeté, Cametá, Marajó, Tapuitapera, Cabo Norte e Xingu. Extinto por um curto espaço de tempo em 1652, foi restabelecido em 1654 com a denominação de Estado do Maranhão e Grão- Pará. Sua extensão e limites permaneceram os mesmos, pelo menos, até 1656, quando a capitania do Ceará passou à subordinação do Estado do Brasil.4 Durante a administração pombalina, a região sofreu outros reordenamentos. Em 1751, foi extinto o Estado do Maranhão e Grão-Pará e criado o Estado do Grão- Pará e Maranhão, com sede administrativa em Belém. Entre 1772-1774, uma nova divisão criou o Estado do Maranhão e Piauí e o Estado do Grão-Pará e Rio Negro. A sede deste último manteve-se em Belém e sua subordinação direta à Lisboa. Essa situação persistiu até o início do XIX. 2 Uma leitura clássica para a ocupação do Vale está em REIS, Arthur. A ocupação portuguesa do Vale Amazônico. In: HOLANDA, Sérgio B. de. (Dir.). História geral da civilização brasileira. São Paulo: Difel, 7. ed. Tomo I, p. 257- 272, 1985. 3 STUDART FILHO, Carlos. Fundamentos Geográficos e Históricos doEstado do Maranhão e Grão-Pará. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1959, p. 211. 4 As especificidades do Estado do Maranhão e Grão-Pará com relação ao Estado do Brasil foram indicadas, pioneiramente, por Capistrano de Abreu e aparecem também sugeridas na obra de Sérgio Buarque de Holanda. Nádia Farage, em trabalho mais recente, também sublinhou que a separação da imensa região do Estado do Brasil, de início, justificou-se por conveniências geográficas e administrativas. Contudo, como afirmou Farage, no decorrer do processo colonial , “essa divisão veio configurar uma real e profunda diferença de cunho político-econômico entre as duas regiões”. Cf. FARAGE, Nádia. As Muralhas dos Sertões: os povos indígenas no rio Branco e a colonização. Rio de Janeiro: Paz e Terra; ANPOCS, 1991. p. 23. 4 3Espelhos Part idos Até meados da segunda metade do Seiscentos, as guarnições portuguesas vão se dividir entre conflitos com várias nações indígenas - entre estas, Tupinambás e Nhengaíbas – e confrontos com outros europeus como ingleses e holandeses. Porém, mesmo “arranhando a costa”, a ação colonial não se dirigia apenas para o Cabo Norte, mas também na direção do Baixo Amazonas. A atuação das ordens missionárias já dava seus primeiros resultados com o início do processo de catequese dos índios, acompanhada das indefectíveis “tropas de resgate” e “tropas de guerra” que alcançaram o rio Tapajós em 1626 e o Amazonas, dois anos depois. Após a viagem de Pedro Teixeira (1637-1639), têm início as incursões sertão a dentro, até chegar ao vale do rio Negro.5 A segunda metade do Seiscentos já registra a presença de tropas de resgate na região do Negro. Em 1657, a tropa comandada por Vital Maciel Parente, acompanhada pelos missionários jesuítas Francisco Velloso e Manuel Pires, chegaram ao rio e estabeleceram um aldeamento à boca do rio Tarumã. Nessa que foi registrada pelo Pe. Antônio Vieira como a primeira incursão portuguesa, foram descidas 600 peças para proveito dos particulares. Também não seria a última a descer tão grande número de peças do sertão para abastecer um mercado carente de mão-de-obra. É a partir desse momento que o rio Negro passa então a ser mais freqüentado por missionários acompanhados de tropas para garantir os descimentos dos índios e também para atestar a legalidade de seus resgates e cativeiro.6 A ação das epidemias de varíola e a violência dos descimentos tinha contribuído para uma redução na disponibilidade de índios no Baixo Amazonas. Entre 1640 e 1720 é difícil não destacar a voracidade das expedições de apresamento de índios no médio e alto Amazonas, incluindo o baixo curso de seus principais afluentes. Como já havia destacado A. Porro, “a história completa dessas entradas e do destino específico de cada população indígena ainda está para ser escrita.”7 A forte contração na oferta de mão-de-obra no Baixo Amazonas no início do XVIII é paralela à expansão do comércio de cacau. É para suprir essa necessidade 5 A expedição de Teixeira foi a resposta lusa imediata à viagem dos franciscanos espanhóis Brieva e Toledo que chegaram à Belém, descidos do rio Napo. A expedição durou cerca de dois anos, chegando até Quito e é reputada pela historiografia como sendo a grande responsável pela dilatação das possessões portuguesas. No retorno, foram acompanhados pelo jesuíta Cristóbal de Acuña, autor do Novo descobrimento do grande rio das Amazonas, texto que Porro classifica como a “mais importante descrição até então feita do rio e de seus habitantes”. PORRO, Antônio. As crônicas do rio das Amazonas. Petrópolis: Vozes, 1993. 6 Este mesmo aldeamento recebeu nova visita no ano seguinte. Dessa feita, os jesuítas Pedro Pires e Francisco Gonçalves retornaram à Belém com 700 peças. Cf. REIS, Arthur. História do Amazonas. 2. ed. Minas Gerais: Itatiaia; Manaus: SCA, 1989. p. 67. 7 PORRO, Antônio. O povo das águas. Op. cit., p. 61-62. Patrícia Maria Melo Sampaio4 4 que colonos e missionários de Belém e São Luís penetram cada vez mais longe nos sertões, em busca de índios, com tropas de resgate, tropas de guerra e expedições clandestinas de apresamento. Para compreender a expansão portuguesa para o rio Negro, é preciso considerar o esgotamento das zonas de fornecimento de escravos índios nas áreas que se estendem de Belém ao Tapajós. Este processo se completa em finais do século XVII e, já no início do XVIII, as áreas de reserva de mão-de- obra seriam prioritariamente os vales dos rios Solimões e Japurá e, ao norte, os rios Negro e Branco, intensamente freqüentadas por tropas de resgate.8 Porém um esboço das primeiras décadas do XVIII nos sertões do Rio Negro estaria incompleto sem mencionar as guerras, revoltas e rebeliões. A resistência armada dos índios da Amazônia ao avanço colonial português, parafraseando Florestan Fernandes, foi “dura e terrível”. Quanto a esse aspecto, F. Santos chega a assegurar que, cruzando todas as informações de guerras e levantes indígenas na Amazônia colonial, “é possível concluir que em nenhum momento de sua historicidade a região esteve vivendo em plena situação de paz.”9 Do ponto de vista das ações coloniais metropolitanas, o vale do Amazonas e suas populações viviam um processo de compressão espacial entre dois movimentos expansionistas: de um lado, as ações da Coroa portuguesa no sentido leste-oeste e, em sentido contrário, as de Espanha, em especial através da atuação das missões jesuítas no Alto Solimões.10 Contemporâneas ao processo de intensificação das ações de apresamento no médio Amazonas e Solimões, as missões estabelecidas pelo Pe. Samuel Fritz entre as populações indígenas do Solimões datam de finais do século XVII. A atuação dos jesuítas espanhóis alcançaria até o curso do médio Solimões. Esses extensos aldeamentos incorporaram diversas etnias, entre elas, Omagua, Jurimagua, Mayoruna, Aisuari e Ibanoma.11 8 SWEET, David. A rich realm of nature destroyed: the Middle Amazon Valley, 1640-1750. PhD Thesis. Madison: University of Winsconsin, 1974. Porro recupera cerca de 18 tropas de resgate, entre 1651 e 1721, atuando em diferentes regiões. Cf. PORRO, A. O povo das águas. Op. cit., 1995, p. 62-63. 9 SANTOS, Francisco J. dos. Guerras e rebeliões indígenas na Amazônia na época do Diretório Pombalino (1757-1798). Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP, p. 145, 1995. 10 Não se trata de considerar as missões jesuítas espanholas como “maquiavélicos” agentes do expansionismo de Espanha, agindo perigosamente nas fronteiras lusas. Quero apenas destacar o fato de que, observando do ponto de vista das populações indígenas do Vale, elas estavam literalmente entre a cruz e a espada. 11 “Eram populações numerosíssimas [...] organizadas em cacicados ou senhorios teocráticos com princípios de estratificação social. Durante o século XVIII foram vir tualmente extintas pelas epidemias, guerras e deportações promovidas pelos portugueses para abastecer de mão-de-obra as fazendas do baixo Amazonas.” PORRO, A. O povo das águas. Op. cit., p. 136. 4 5Espelhos Part idos Com a redistribuição das áreas de atuação missionária produzida pela Repartição das Missões e a definição das fronteiras luso-espanholas no Alto Solimões na passagem do XVII-XVIII, os aldeamentos espanhóis que se estendiam de Santa Teresa de Tefé até São Paulo dos Cambebas serão ocupados pelos carmelitas a partir de 1710, após uma série de ações militares para garantir as possessões portuguesas na área.12 Na primeira metade do século XVIII, a região que vai da Fortaleza da Barra do Rio Negro até a povoação de Nossa Senhora do Loreto no alto curso desse rio estava sob a influência dos missionários carmelitas e no Solimões, seus aldeamentos se estendiam até Tabatinga. Os missionários do Carmelo adentravam os sertões, semeando aldeias, colhendo drogas e apresando índios.13 Para traçar um mapa dos sertões das Amazonas nesses meados do Seiscentos, não bastam tinta, pena e papel. Sua ocupação é produto direto das demandas de um crescente e voraz mercado de mão-de-obra, incapaz de adquirir escravos africanos,