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Semiologia Psiquiátrica - Parte 1

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Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais DALGALARRONDO 
1 PSIQUIATRIA | INTERNATO | Eva Gabryelle Vanderlei Carneiro 
Semiologia Psiquiátrica – Parte 1 
Funções Psíquicas e suas alterações 
Consciência 
 Consciência é a capacidade do indivíduo de entender o que está acontecendo dentro e fora de si mesmo. 
A clareza dessa consciência é traduzida pela lucidez. Quando o paciente está desperto, recebendo e devolvendo 
informações com o meio ambiente, está lúcido. 
 As alterações da consciência podem ser quantitativas e qualitativas. Em seu aspecto quantitativo, a 
consciência pode estar diminuída ou aumentada. Dentre as diminuições da consciência, a forma mais suave é 
denominada obnubilação, que resulta em intensificação dos estímulos para obter-se acesso eficiente à 
consciência. Ocorre diminuição da sensopercepção, lentidão da compreensão e da elaboração das impressões, 
lentificação no ritmo e alteração no curso do pensamento, prejuízo da memória, algum grau de desorientação e 
sonolência mais ou menos acentuada. Se na diminuição da consciência os estímulos para determinar 
manifestações primitivas como gemer ou balbuciar são muito intensos, fala-se em estupor. Um grau mais 
aprofundado, ou seja, a abolição total do contato entre o indivíduo e o meio, é denominado estado de coma. 
Qualitativamente, a consciência é avaliada como a aptidão em apreender todos os fenômenos interiores ou 
exteriores e integrá-los a um contexto real das circunstâncias ocorridas no presente, no passado e que ocorrerão 
futuramente. 
Alterações Qualitativas 
Estado Crepuscular 
 É um estreitamento transitório da consciência, com a conservação de atividade mais ou menos 
coordenada e mais ou menos automática. Normalmente, há a falsa aparência de que o paciente está 
compreendendo a situação. Em geral, a percepção do mundo exterior é imperfeita ou de todo inexistente. Os 
estados crepusculares costumam desaparecer rapidamente, mas, em alguns casos, podem durar muitos dias. 
Apresentam-se e terminam de modo súbito, acompanhados de amnésia em relação às vivências acessuais. 
Dissociação da Consciência 
 Ocorre fragmentação ou divisão do campo da consciência, com perda da unidade psíquica do ser 
humano. Observa-se estado semelhante ao sonho, podendo ocorrer em estados dissociativos e de ansiedade 
intensa. 
Transe 
 É o fenômeno em que a pessoa se sente transformada em outra, como uma “despersonalização”. 
Desaparece a relação entre o corpo e os objetos do meio exterior, como impossibilidade de estabelecer a 
distinção entre o que é próprio e o que pertence ao exterior. Pode ocorrer em contextos religiosos (não sendo 
patológico), casos neurológicos ou início de psicoses. 
Polarização da Consciência ou Estado Hipnótico 
 
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 É a orientação forçada da consciência em determinado sentido, segundo forte tendência afetiva. É uma 
atitude mais focal e profunda do que o estado crepuscular e nem sempre sugere estado patológico. É possível 
que, tocado por intensa motivação afetiva, o indivíduo concentre toda a sua consciência em um dado ponto 
(música ou imagem), desconsiderando os demais estímulos à sua volta. 
Atenção 
 A atenção é um processo psíquico que concentra a atividade mental sobre determinado ponto, 
traduzindo um esforço mental, e resulta de atividade deliberada e consciente do indivíduo. Existem a atenção 
voluntária (ativa e intencional – capacidade de ler um livro, por exemplo) e a espontânea (por algum interesse 
incidental e momentâneo por algum objeto – capacidade de parar de ler o livro para focar em algum barulho que 
acontece no momento, por exemplo). 
Investigação: 
I. Atenção: normal ou euprosexia; 
II. Hiperprosexia: estado de atenção exacerbada; 
III. Hipoprosexia: diminuição global da atenção; 
IV. Aprosexia: abolição total da capacidade de atenção; 
V. Hipertenacidade: atenção voltada, demasiadamente, a algum estímulo específico, com diminuição da 
atenção espontânea; 
VI. Hipotenacidade: atenção afastada com demasiada rapidez do estímulo específico, com diminuição da 
atenção voluntária. 
Orientação 
 Pode-se definir orientação como um complexo de funções psíquicas pelo qual tomamos consciência da 
situação real em que nos encontramos. A orientação pode ser inferida da avaliação do estado de consciência e 
está intimamente ligada às noções de tempo e espaço. 
 Em geral, o primeiro sentido de orientação perdido é o do tempo; depois, o do espaço, que 
envolve deslocamento e localização e, em um estado mais grave, a “desorientação do próprio eu” (identidade e 
corpo). 
Orientação: 
I. Autopsíquica: o paciente reconhece dados de identificação pessoal e sabe quem é; 
II. Alopsíquica: o paciente reconhece os dados do ambiente: 
a. Temporal: dia, mês e ano em que está; em que parte do dia se localiza (manhã, tarde e noite); 
b. Espacial: em que lugar se encontra e para que está lá; a cidade onde está; como chegou ao consultório. 
Sensopercepção 
 Sensação é o fenômeno elementar gerado por estímulos físicos, químicos ou biológicos, que produzem 
estimulação dos órgãos receptores. Percepção é a tomada de consciência de tal estímulo sensorial. Podem 
acontecer alterações quantitativas e qualitativas. 
Quantitativas 
I. Hiperestesia: 
a) Intoxicação por alucinógenos, epilepsia; 
b) Aumento das formas de sensibilidade. 
II. Hipoestesia: 
 
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a) Quadros depressivos; 
b) Diminuição das formas de sensibilidade. 
III. Anestesia: abolição de todas as formas de sensibilidade. 
Qualitativas 
I. Ilusão: é a percepção deformada da realidade, de um objeto real e presente, uma interpretação errônea 
do que existe. Pode acontecer em rebaixamento do nível de consciência ou esgotamento afetivo e fadiga 
grave; 
II. Alucinação: é a percepção real de um objeto inexistente, ou seja, sem um estímulo externo. Dizemos 
que a percepção é real, tendo em vista a convicção inabalável que a pessoa manifesta em relação ao 
objeto alucinado; portanto, será real para ela. As alucinações podem ser auditivas (dentre elas, podem 
ocorrer sonorização do pensamento, quando o paciente ouve os próprios pensamentos, e publicação 
do pensamento, quando o paciente sente que as pessoas escutam o que ele pensa), auditivo-verbais 
(mais comuns), visuais, olfativas, gustativas, cenestésicas (corpórea – “cabeça encolhendo”), 
cinestésicas (movimento – “corpo voando”) e sinestésicas (envolvem mais de um sentido). Também 
existem as alucinações hipnagógicas (ao adormecer) e hipnopômpicas (ao despertar); 
III. Pseudoalucinação: não apresenta os aspectos vivos e corpóreos da alucinação e é menos nítida. Ocorre 
em casos de psicoses orgânicas, intoxicações ou estados afetivos intensos; 
IV. Alucinose: é um quadro alucinatório sem perda da consciência da realidade; o paciente percebe a 
alucinação como estranha à sua pessoa. Acontece em casos de alcoolismo; 
V. Despersonalização: o paciente tem a sensação de que seu corpo não lhe pertence; 
VI. Desrealização: o ambiente ao redor parece estranho e irreal. 
Memória 
 Memória é a capacidade de registrar, manter e evocar fatos passados. Há quatro dimensões principais 
do seu funcionamento: 
a. Percepção: modo como o sujeito percebe os fatos e atitudes em seu cotidiano e 
reconhece-os psiquicamente; 
b. Fixação: capacidade de gravar imagens na memória; 
c. Conservação: tudo o que o sujeito guarda para o resto da vida (a memória aparece como 
um todo e é um processo tipicamente afetivo); 
d. Evocação: atualização dos dados fixados (nem tudo pode ser evocado). 
A função mnésica pode ser avaliada pela rapidez, precisão e cronologia das informações oferecidas pelo 
próprio paciente, assim como a observação da capacidadede fixação. 
 A memória pode ser imediata, de curto ou de longo prazo. Podem existir as alterações quantitativas: 
hipermnésia (aceleração psíquica) e hipomnésias ou amnésias. As últimas podem ser anterógradas (o paciente 
não consegue fixar memória a partir do evento que causou o dano cerebral) ou retrógradas (perda da memória 
para fatos ocorridos antes do trauma). Podem, também, ocorrer amnésias lacunares, ou seletivas. 
O exame da memória passada (retrógrada) é feito com perguntas sobre o passado do paciente e data 
de acontecimentos importantes. Contradições nas informações podem indicar dificuldades. Com relação à 
memória recente (anterógrada), podem ser feitas perguntas rápidas e objetivas, como “O que você fez hoje?”, 
ou dizer um número de quatro ou cinco algarismos ou uma série de objetos e pedir para que o paciente os repita 
após alguns minutos. Para o exame da memória de retenção, pode-se pedir a ele que repita algarismos na ordem 
direta e depois inversa. 
A maior parte das alterações da memória provém de síndromes orgânicas (amnésia, hipermnésia ou 
hipomnésia). As alterações qualitativas, ou paramnésias, são lembranças deformadas, que não correspondem 
à sensopercepção original. 
 
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Alterações da memória: 
a. Ilusões mnêmicas: acréscimos de elementos falsos a um núcleo verdadeiro; 
b. Alucinações mnêmicas: criações imaginativas; 
c. Confabulações: fantasias que preenchem vazios de memória (podem ocorrer na síndrome de 
Korsakoff). 
Afetividade 
 A afetividade compreende o estado de ânimo ou de humor, os sentimentos, as emoções e as paixões e 
reflete sempre a capacidade de experimentar sentimentos e emoções. É ela que determina a atitude geral do 
indivíduo diante de qualquer experiência vivencial, promove os impulsos motivadores e inibidores, percebe os 
fatos de maneira agradável ou sofrível, confere disposição indiferente ou entusiasmada e determina sentimentos 
que oscilam entre dois polos: depressão e euforia. 
A afetividade divide-se, basicamente, em: 
1. Humor: um estado de ânimo; é a disposição afetiva de fundo, que penetra em toda a experiência 
psíquica do indivíduo. Algumas alterações de humor são: 
I. Hipertimia: euforia; 
II. Hipotimia: depressão; 
III. Disforia: irritabilidade, mau humor. 
2. Afeto: o tônus emocional que acompanha uma ideia ou representação mental. 
Alterações afetivas: 
a. Labilidade afetiva: estado especial em que se produz a mudança rápida e imotivada do 
humor, sempre acompanhada de extraordinária intensidade afetiva; 
b. Ambivalência afetiva: acentuações afetivas opostas e, basicamente, simultâneas nos 
indivíduos; 
c. Embotamento afetivo: perda de todo tipo de vivência afetiva; ausência dos nexos afetivos; 
d. Anedonia: incapacidade de sentir prazer com determinadas atividades da vida antes 
prazerosas; muito comum nas depressões; 
e. Hipomodulação: inadequação ou distanciamento afetivo. 
Pensamento 
 Por meio do pensamento ou do raciocínio, o ser humano é capaz de manifestar suas possibilidades de 
adaptar-se ao meio. É por ele que se elaboram conceitos, articulam-se juízos, constrói-se, compara-se, 
solucionam-se problemas, elaboram-se conhecimentos adquiridos e ideias, transforma-se e cria-se. 
Curso 
Trata-se da velocidade com que o pensamento é expresso e pode ir do acelerado ao lentificado. 
Forma 
o Fuga de ideias: pessoas afetadas mudam de assunto a todo instante, sem concluí-los ou dar 
continuidade, em uma aceleração do fluxo do pensamento; é a forma extrema do taquipsiquismo 
(comum na mania); 
o Interceptação ou bloqueio: há interrupção brusca do que vinha falando, e o assunto pode ser 
retomado como se não o tivesse interrompido (comum na esquizofrenia); 
 
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o Prolixidade: é um discurso detalhista, cheio de rodeios e repetições, com certa 
circunstancialidade; há introdução de temas e comentários não pertinentes ao que se está 
falando; 
o Arborização: há perda da direcionalidade, sem conclusão do raciocínio (comum nos episódios 
maníacos); 
o Circunstancialidade: o paciente dá voltas em torno do tema sem conseguir atingi-lo (comum em 
casos de transtorno obsessivo-compulsivo); 
o Descarrilamento: há mudança súbita do que se está falando; 
o Perseveração: há repetição dos mesmos conteúdos de pensamento (comum nas demências) 
Conteúdo 
As perturbações no conteúdo do pensamento estão associadas a determinadas alterações, como as 
obsessões, as fobias e, especialmente, os delírios. Para classificar uma ideia como delirante, deve-se considerar 
alguns aspectos: a incorrigibilidade (não há como modificar a ideia delirante por meio de correções), a 
influenciabilidade (a vivência é muito intensa; chega a ser mais fácil o delirante influenciar a pessoa dita normal) 
e a incompreensibilidade (não pode ser explicada logicamente). O delírio é uma convicção íntima e irremovível, 
contra a qual não há argumento. 
 Os delírios podem ser primários (núcleo da doença) ou secundários (consequentes à situação social, 
manifestação afetiva ou disfunção cerebral). 
 
Linguagem 
A linguagem é considerada um processo mental predominantemente consciente, significativo, além de 
ser orientada para o social. É um processo dinâmico que se inicia na percepção e termina na palavra falada ou 
escrita e, por isso, se modifica constantemente. As alterações mais comuns são disartrias (má articulação de 
palavras), afasias (perturbações por danos cerebrais que implicam dificuldade ou incapacidade de compreender 
e utilizar os símbolos verbais), verbigeração (repetição incessante de palavras ou frases), parafasia (emprego 
inapropriado de palavras com sentidos parecidos), neologismo (criação de palavras novas), jargonofasia 
(“salada de palavras”), mussitação (voz murmurada em tom baixo), logorreia (fluxo incessante e incoercível de 
 
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palavras) e pararrespostas (responde a uma indagação com algo sem relação alguma com o que foi 
perguntado). 
Vontade / Volição 
 A vontade, relacionada aos atos voluntários, é uma disposição (energia) interior com o princípio de 
alcançar um objetivo consciente e determinado. 
 O indivíduo pode apresentar-se normobúlico (vontade normal), ter a vontade rebaixada (hipobulia), uma 
exaltação patológica (hiperbulia), responder a solicitações repetidas e excessivas (obediência automática), 
concordar com tudo o que é dito, mesmo que sejam juízos contraditórios (sugestionabilidade patológica), realizar 
atos contra a sua vontade (compulsão), duvidar exageradamente do que quer (dúvida patológica), opor-se de 
forma passiva ou ativa às solicitações (negativismo), repetir de forma automática as palavras ou ações do 
entrevistador (ecolalia e ecopraxia). 
Psicomotricidade 
 A psicomotricidade pode estar normal, diminuída (hipocinesia), inibida (acinesia) ou exaltada 
(hipercinesia). O paciente pode apresentar maneirismos (movimentos bizarros e repetitivos), estereotipias 
posturais (repetições automáticas e uniformes), automatismos, flexibilidade cérea (tendência a manter-se na 
posição colocada pelo examinador), cataplexia (perda abrupta do tônus muscular), tiques motores e alterações 
na marcha. 
Consciência do eu 
 Refere-se ao fato de o indivíduo ter a consciência dos próprios atos psíquicos, a percepção do seu eu, 
como o sujeito apreende a sua personalidade. 
São características formais do eu: 
o Sentimento de unidade: “Eu sou uno no momento”; 
o Sentimento de atividade: consciência da própria ação; 
o Consciência da identidade: “Sempre sou o mesmo ao longo do tempo”; 
o Cisão sujeito-objeto: consciência do eu emoposição ao exterior e aos outros. 
Inteligência 
 O que se faz na avaliação da inteligência não é o que chamamos de “avaliação fina”, realizada por meio 
de testes; o objetivo é constatar se o paciente está dentro do considerado padrão de normalidade, conseguindo 
resolver os problemas básicos da vida. Devem-se considerar sempre o contexto sociocultural e a escolaridade 
do paciente. As deficiências de inteligência são os retardos mentais, em todos os seus níveis. 
Exemplo de exame psíquico 
“Paciente trajado e asseado adequadamente; vígil, gesticulando muito, inquieto, por vezes saindo da 
cadeira para andar pela sala; coopera com o entrevistador, mas se mostra um tanto irritado com as 
perguntas; linguagem um tanto exaltada, por vezes prolixo; atenção espontânea e voluntária 
preservadas; orientado auto e alopsiquicamente; humor exaltado, afeto expandido; pensamento expansivo, 
mas sem alteração de curso; pragmatismo preservado; inteligência sem rebaixamento; crítica parcial do 
estado mórbido.”

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