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História da Antropolia, Eriksen

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THOMAS HYLLAND ER1KSEN 
FINN SlVERT NIELSEN
■=
HISTÓRIA
DA
ANTROPOLOGIA
r t ^ I
r
A editora 
▼ VOZES
T h o m a s H y lla n d E r ik s e n 
F in n Siv e r t N ie l s e n
História da antropologia
Tradução: Euclides Luiz Calloni 
Revisão técnica: Emerson Sena da Silveira
A EDITORA
6 .0 3 - Y VOZES
C p>0 VV
Petrópolis
1
Inícios
H á quanto tempo existem antropólogos? As opiniões a esse respeito estão divi­
didas. Em grande parte, a resposta depende do significado atribuído à palavra antro­
pólogo. As pessoas sempre tiveram curiosidade sobre seus vizinhos e sobre desco­
nhecidos mais distantes. Elas conjeturaram sobre eles, lutaram contra eles, casaram 
com eles e contaram histórias sobre eles. Algumas dessas histórias ou mitos foram 
escritos. Alguns desses registros foram mais tarde criticados como imprecisos ou 
etnocêntricos (ou simplesmente racistas). Algumas histórias foram comparadas com 
outras, sobre outros povos, levando a pressuposições mais gerais sobre “pessoas em 
outros lugares”. Nesse sentido, começamos com uma investigação antropológica no 
momento em que um estranho se muda para o apartamento em frente ao nosso.
Se nos restringimos à antropologia como disciplina científica, alguns estudiosos 
remontariam suas origens ao Iluminismo europeu durante o século dezoito; outros 
sustentariam que ela só surgiu como ciência na década de 1850; outros ainda afirma­
riam que as pesquisas antropológicas no sentido atual começaram depois da I Guerra 
Mundial. Nós também não podemos evitar essas ambigüidades.
Não há dúvida, porém, de que a antropologia, considerada como a ciência do ho­
mem, teve origem na região que em geral, mas imprecisamente, chamamos de “Oci­
dente”, especialmente em três de quatro países “ocidentais”: França, Grã-Bretanha, 
Estados Unidos e, até a II Guerra Mundial, Alemanha. Historicamente falando, a an­
tropologia é uma disciplina européia, e seus praticantes, como os de todas as ciências 
européias, às vezes gostam de atribuir suas origens aos antigos gregos.
Heródoto e outros gregos
Graças às pesquisas realizadas por antropólogos, historiadores e arqueólogos, 
acreditamos hoje que “os antigos gregos” provavelmente eram muito diferentes de
10 História da Antropologia
nós. Nas cidades-Estado clássicas, “democráticas”, mais da metade da população era 
constituída de escravos: os cidadãos livres consideravam o trabalho manual como 
degradante, e a democracia (que também foi “inventada” pelos gregos) provavel­
mente era mais semelhante às competitivas festaspotlatch dos kwakiutls (capítulo 
4) do que às instituições descritas nas constituições modernas (ver Finley 1973; P. 
Anderson 1974).
Voltar aos gregos é assim uma longa jornada, e nós entrevemos o mundo deles 
através de um vidro trincado e esfúmaçado. Vemos pequenas cidades-Estado circun­
dadas de áreas rurais tradicionais da Idade do Feiro e ligadas ao mundo externo por 
uma rede de relações comerciais marítimas entre povoados urbanos distribuídos ao 
longo das costas do Mediterrâneo c do Mar Negro. O comércio de bens de luxo e a es­
cravidão levaram riqueza considerável às cidades e os cidadãos da polis, com sua 
aversão ao esforço físico, tinham à disposição um grande excedente, que usavam, en­
tre outras coisas, para construir templos, estádios, banhos e outros prédios públicos, 
onde os homens podiam reunir-se e envolver-se em debates filosóficos e especula­
ções sobre como o mundo foi organizado.
Foi numa comunidade assim que viveu Heródoto de Halicamasso (c. 484-425 
a.C.). Nascido numa cidade colonial grega na costa sudoeste da Turquia atual, Heró­
doto começou a viajar ainda muito jovem e acumulou um profundo conhecimento 
sobre muitos povos estrangeiros com os quais os gregos mantinham contato. Hoje 
Heródoto é lembrado principalmente por sua história das Guerras Persas, mas ele 
também escreveu narrativas de viagem minuciosas de várias partes da Ásia Ociden­
tal e do Egito, e de lugares tão distantes como a terra dos citas na costa norte do Mar 
Negro. Nessas narrativas, tão afastadas do nosso mundo atual, reconhecemos um 
problema que acompanha a antropologia, em roupagens várias, até os dias atuais: 
como devemos relacionar-nos com “os outros”? Eles são basicamente como nós ou 
são diferentes? Grande parte da teoria antropológica procura estabelecer um equilí­
brio entre essas posições, e é exatamente isso que Heródoto também fez. Às vezes ele 
é simplesmente um “homem civilizado” preconceituoso e etnocêntrico que desdenha 
tudo o que é estrangeiro. Outras vezes ele reconhece que diferentes pessoas têm valo­
res diferentes porque vivem sob diferentes circunstâncias, não porque são moral­
mente deficientes. As descrições que Heródoto faz da língua, do vestuário, das insti­
tuições políticas e judiciais, das ocupações e da economia são perfeitamente legíveis 
nos dias atuais. Embora às vezes captasse os fatos de modo equivocado, ele era um 
pesquisador meticuloso, e seus livros são em geral as únicas fontes escritas que te­
mos sobre povos de um passado distante.
I
1. Inícios 11
Muitos gregos testaram sua argúcia enfrentando um paradoxo filosófico que toca 
diretamente o problema de como devemos relacionar-nos com “os outros”. Trata-se 
do paradoxo do universalismo em oposição ao relativismo. Um universalista atual 
procuraria identificar aspectos e semelhanças comuns (ou mesmo universais) entre 
diferentes sociedades, ao passo que um relativista enfatizaria a singularidade e parti­
cularidade de cada sociedade ou cultura. Os sofistas de Atenas são às vezes descritos 
como os primeiros relativistas filosóficos na tradição européia (vários pensadores 
quase contemporâneos na Ásia, como Gautama Buda, Confúcio e Lao-Tsé, envol­
viam-se com questões semelhantes). Nos diálogos de Platão (427-347 a.C.) Protágo- 
ras e Górgias, Sócrates debate com os sofistas. Podemos imaginá-los numa batalha 
intelectual de alto nível, rodeados de templos de colorido variegado e prédios públi­
cos imponentes, com seus escravos quase imperceptíveis nas sombras entre as colu­
nas. Outros cidadãos são espectadores, enquanto a fé de Sócrates numa razão univer­
sal, capaz de determinar verdades universais, é contestada pela visão relativista de 
que a verdade irá sempre variar de acordo com a experiência e com o que hoje cha­
maríamos de cultura.
Os diálogos de Platão não tratam diretamente das diferenças culturais. Mas eles 
testemunham que encontros entre culturas faziam parte da vida cotidiana nas cida- 
des-Estado. As rotas do comércio grego estendiam-se desde o estreito de Gibraltar 
até a Ucrânia atual. Os gregos empreenderam guerras contra os persas e muitos ou­
tros “bárbaros” . O próprio termo bárbaro é de origem grega e significa “estrangeiro”. 
Para um ouvido grego, ele soava como se esses estranhos só fossem capazes de dizer 
“bar-bar, bar-bar”. Do mesmo modo, na Rússia, os alemães são até hoje chamados de 
nemtsy (os mudos): os que falam, mas não dizem nada.
Aristóteles (384-322 a.C.) também se dedicou a especulações complexas sobre a 
natureza do homem. Em sua antropologia filosófica ele analisa as diferenças entre os 
seres humanos em geral e os animais, e conclui que, embora os humanos tenham vá­
rias necessidades em comum com os animais, somente o homem possui razão, sabe­
doria e moralidade. Ele também afirmava que os seres humanos são fundamental­
mente sociais por natureza. Na antropologia e em outras disciplinas esse estilo de 
pensamento universalista, que procura estabelecer semelhanças mais do que diferen­
ças entre grupos de pessoas, desempenha um papel de destaque até hoje. Além disso, 
parece claro que, ao longo da história, a antropologia oscilou entre o universalismo e
bém penderam para uma posição ou outra.
o relativismo, e que os principais representantes illnâscom freqüência tam-
12 HISTÓRIA DA ANTROPOLOGIA
Depois da Antigüidade
Na cidade-Estado grega clássica, as condições talvez fossem particularmente fa­
voráveis para o desenvolvimento da ciência sistemática.Mas também nos séculos 
seguintes, atividades “civilizadas”, como arte, ciência e filosofia, se desenvolveram 
em tomo de todo o Mediterrâneo: primeiro, no período helenístico, depois que Ale­
xandre Magno (356-323 a.C.), da Macedônia, conduziu seus exércitos até os confins 
setentrionais da índia, difundindo a cultura urbana grega por onde quer que passasse; 
em seguida, mais tarde, durante os vários séculos em que Roma dominou grande parte 
da Europa, do Oriente Médio e do norte da África e imprimiu em sua população uma 
cultura derivada dos ideais gregos. Nessa sociedade complexa, multinacional, não sur­
preende descobrir que o interesse grego pelo “outro” também continuou. Assim, o geó­
grafo Estrabão (c. 63-4 a.C.-c. 21 d.C.) escreveu vários tomos volumosos sobre povos 
estrangeiros e lugares distantes, obras que cintilam de curiosidade e de alegria da des­
coberta. Mas quando o cristianismo foi elevado à condição de religião oficial e o Impé­
rio Romano começou a desintegrar-se na metade do século IV d.C., processou-se uma 
mudança fundamental na vida cultural européia. Os cidadãos abastados da Antigüida­
de, que graças às suas receitas provenientes do comércio e do trabalho escravo podiam 
dedicar-se à ciência e à filosofia, desapareceram. Na verdade, desapareceu toda a cul­
tura urbana, o próprio elemento aglutinador que mantinha coeso o Império Romano 
como um Estado integrado (embora de modo instável). Em seu lugar, manifestava-se 
um sem-número de culturas européias locais, portadoras de tradições germânicas, es­
lavas, fmo-ugrianas e celtas, tão antigas quanto as da Grécia pré-urbana. Politicamen­
te, a Europa se desagregou em centenas de soberanias, cidades e enclaves locais autô­
nomos, que só foram integrados em unidades maiores com o crescimento do Estado 
moderno, do século dezesseis em diante. No decorrer de todo esse longo período, o 
que manteve o continente unido foi em grande parte a Igreja, a última depositária da 
estrutura “universal” de Roma. Sob a égide da Igreja, redes internacionais entre mon­
ges e clérigos surgiram e floresceram, interligando nichos de saber em que sobrevi­
veram as tradições filosóficas e científicas da Antigüidade.
Os europeus gostam de se ver como descendentes lineares da Antigüidade, mas 
no curso de toda a Idade Média a Europa foi uma periferia. Durante os anos 600 até 
os 700 os árabes conquistaram territórios desde a Espanha até a índia e no decorrer 
dos sete séculos seguintes, pelo menos, os centros econômicos, políticos e intelec­
tuais do mundo mediterrâneo ficaram sediados em metrópoles sofisticadas como Bag­
dá e Córdova, não nas ruínas de Roma ou Atenas, para não mencionar vilas de reno­
me como Londres ou Paris. O maior historiador e filósofo social desse período foi 
Ibn Khaldun (1332-1406), que viveu na atual Tunísia. Entre outras coisas, Khaldun
1. Inícios 13
escreveu uma volumosa história dos árabes e berberes, com uma longa introdução 
critica sobre o modo como usou suas fontes. Ele desenvolveu uma das primeiras teo­
rias sociais não religiosas e antecipou as idéias de Émile Durkheim sobre a solidarie­
dade social (ver capítulo 2), hoje considerada um dos fundamentos da sociologia e da 
antropologia. À semelhança de Durkheim e dos primeiros antropólogos que utiliza­
ram suas teorias, Khaldun destaca a importância do parentesco e da religião na cria­
ção e manutenção de um senso de solidariedade e de compromisso mútuo entre os 
membros de um grupo.
Existem, no entanto, alguns escritos europeus do período medieval tardio que 
podem ser considerados precursores da antropologia dos nossos dias. O mais famoso 
é o relato de Marco Polo (1254-1323) de sua expedição à China, onde ele teria per­
manecido durante dezessete anos. Outro exemplo é a grande viagem através da Ásia 
Ocidental descrita em The Voyage and Traveis ofSir John Mandeville, Knight, escri­
ta por uiíi inglês desconhecido no século quatorze. Esses dois livros estimularam o 
interesse europeu por povos e costumes estrangeiros. Então, com o advento de eco­
nomias mercantilistas e o Renascimento contemporâneo nas ciências e nas artes, as 
pequenas, mas ricas cidades-Estado européias da Idade Média tardia começaram a se 
desenvolver rapidamente e surgiram os primeiros sinais de uma classe capitalista. 
Estimuladas por esses grandes movimentos sociais e financiadas pelos novos empre­
endedores, muitas e longas viagens marítimas exploratórias foram promovidas por 
governantes europeus. No Ocidente, essas viagens - com destino à África, Ásia e 
América - são em geral descritas como “as grandes descobertas”, embora os povos 
“descobertos” quase sempre tenham tido razão em questionar essa grandeza ( ver, por 
exemplo, Wolf 1982).
O impacto das conquistas européias
As “grandes descobertas” tiveram importância crucial para as mudanças que 
ocorreriam a partir delas na Europa e no mundo, e — em menor escala - para o desen­
volvimento da antropologia. Da exploração de Henrique, o Navegador, da costa oci­
dental da África no início do século quinze, passando pelas cinco viagens de Colom­
bo à América (1492-1506), até a circunavegação do mundo por Magalhães (1519- 
1522), as viagens desse período alimentaram a imaginação dos europeus com descri­
ções vívidas de lugares cuja própria existência lhes fora até então íotalmente desco­
nhecida. Essas narrativas de viagens, além disso, chegaram a um público insohta- 
mente numeroso, uma vez que a imprensa, inventada em 1448, transformou o livro 
num produto comum e relativamente barato em toda a Europa.
14 História da antropologia
Muitas narrativas de viagens estavam obviamente repletas de erros factuais e 
prejudicadas por preconceitos cristãos arraigados. Exemplo bem conhecido é a obra 
do cartógrafo Américo Vespúcio, que publicou muitos relatos populares sobre o con­
tinente que ainda preserva seu nome. Seus livros foram reimpressos e traduzidos mui­
tas vezes, mas suas descrições dos americanos (que eram chamados índios, pois Co­
lombo acreditava que havia descoberto uma rota para a índia) revelam uma atitude 
muito menos cuidadosa com relação aos fatos do que os escritos de Heródoto ou de 
Khaldun, Vespúcio parece usar os índios como mero efeito literário para justificar 
afirmações sobre sua própria sociedade. De modo geral, os americanos nativos são 
representados como reflexos distorcidos e muitas vezes invertidos dos europeus: são 
gentios, promíscuos, andam nus, não têm governo nem leis e chegam a ser canibais! 
Sobre esse pano de fundo Vespúcio defende ardorosamente as virtudes da monarquia 
absolutista e do poder papal, mas suas descrições etnográficas são praticamente inú­
teis como dados fidedignos sobre a vida nativa na época da conquista.
Houve contemporâneos de Vespúcio, como o huguenote francês Jean de Léry, que 
fizeram relatos mais confiáveis da vida dos índios, e esses livros também vendiam 
bem. Mas tudo indica que o mercado para histórias de aventuras em regiões distantes 
era insaciável na Europa nesse tempo. A maioria desses livros traça um contraste mais 
ou menos explícito entre os Outros (que bem eram “nobres selvagens” ou então “bár­
baros”) e a ordem existente na Europa (que é contestada ou então defendida). Como 
veremos em capítulos adiante, o legado desses primeiros relatos, moralmente ambí­
guos, continua resistente na antropologia contemporânea, e ainda hoje antropólogos 
são muitas vezes acusados de distorcer a realidade dos povos sobre os quais escrevem 
- nas colônias, no Terceiro Mundo, em subculturas ou áreas marginais. Como no caso 
de Vespúcio, essas descrições são geralmente denunciadas por refletirem mais a pró­
pria formação e experiência do antropólogo do que o povo estudado.
A conquista da América contribuiu para uma verdadeira revolução entre os inte­
lectuais europeus. Além de provocar a reflexão sobre diferenças culturais, em pouco 
tempo ela deixou claro que fora descoberto todo um continente que nem sequer esta­
va mencionado na Bíblia! Essa compreensão “não-religiosa” estimuloua seculariza- 
ção cada vez maior da vida intelectual européia, a libertação da ciência com relação à 
autoridade da Igreja e a relativização dos conceitos de moralidade e de pessoalidade. 
Como diz Todorov (1984), os indios atingiram a própria essência da idéia européia 
do que significa ser um ser humano. Os índios eram humanos, mas não se comporta­
vam do modo como os europeus consideravam “natural” para seres humanos. O que 
era humano, então? O que era natural? Para os filósofos da Idade Média, Deus havia 
criado o mundo num ato único e definitivo e dera aos seus habitantes a natureza espe-
l. Inícios 15
cífica que os distinguia, e que haviam conservado desde então. Agora era possível 
perguntar se os índios representavam um estágio anterior no desenvolvimento da 
humanidade. Essa percepção, por sua vez, deu origem aos conceitos de progresso e 
desenvolvimento que prenunciaram uma ruptura radical com a visão de mundo está­
tica da Idade Média. Na história mais recente da antropologia, concepções de desen­
volvimento e progresso desempenharam às vezes um papel importante. Mas se o 
progresso é possível, infere-se que ele é produzido pela atividade de seres humanos, 
e essa idéia, de que as pessoas traçam seu próprio destino, é uma noção ainda mais 
persistente em antropologia.
Assim, quando se examinaram no espelho oferecido pelos índios, os europeus se 
perceberam indivíduos livres e modernos. Entre as expressões mais marcantes dessa li­
berdade subjetiva recém-descoberta estão os Ensaios (1580) do filósofo francês Mi- 
chel de Montaigne (1533-1592). Com abertura e um estilo pessoal até então desconhe­
cido, Montaigne especula sobre inúmeras questões de maior e menor relevo. Diferen­
temente da maioria dos seus contemporâneos, em seus escritos sobre povos remotos 
Montaigne se revela alguém que hoje chamaríamos de relativista cultural. No ensaio 
“Dos Canibais”, ele inclusive conclui que se tivesse nascido e sido criado numa hibo 
canibal, com toda probabilidade teria comido came humana. No mesmo ensaio, que 
mais tarde inspiraria Rousseau, Montaigne também cunhou o termo le bon sauvage, “o 
bom selvagem”, uma idéia que depois foi muito debatida em antropologia.
Nos séculos seguintes as sociedades européias se expandiram rapidamente em 
escala e complexidade, e os contatos interculturais - através do comércio, das guer­
ras, da atividade missionária, da colonização, da migração e da pesquisa - toma­
ram-se cada vez mais comuns. Ao mesmo tempo, “os outros” passaram a ser progres­
sivamente mais visíveis na vida cultural européia - a começar com as peças de Sha- 
kespeare até os libretos de Rameau.
Todo grande filósofo desde Descartes (1596-1650) até Nietzsche (1844-1900) 
desenvolveu sua própria doutrina sobre a natureza humana, sua própria antropologia 
filosófica, muitas vezes baseando-a diretamente no conhecimento corrente e em 
crenças sobre povos não-europeus. Mas na maioria desses relatos, “os outros” ainda 
desempenham um papel passivo: os autores raramente se interessam pelo modo de 
vida desses povos; antes, importa-lhes sua utilidade como munição retórica em deba­
tes europeus sobre a própria Europa.
Exemplo relevante desse fato foi a grande polêmica filosófica entre empiristas e 
racionalistas durante os séculos dezessete e dezoito. Os primeiros eram representa­
dos por filósofos ingleses, como John Locke (1632-1704). Para Locke a mente hu-
16 História da Antropologia
mana, no momento do nascimento, era como uma tábua rasa, unia tabula rasa. Todas 
as nossas idéias, valores e especulações resultam de nossas experiências - ou “im­
pressões dos sentidos” - do mundo. As pessoas não nascem diferentes, mas tor­
nam-se diferentes através de diferentes experiências. Locke lança aqui os fundamen­
tos epistemológicos de uma ciência da sociedade que combina um princípio univer- 
salista (todos nascemos iguais) com um princípio relativista (nossas experiências nos 
tornam diferentes). Mas os filósofos do século dezessete eram menos especializados 
do que os dos tempos atuais, e por isso era bastante comme il faut para um homem 
como Locke passar diretamente de uma discussão de ontologia para um comentário 
político contemporâneo. O empirismo de Locke teve assim repercussões diretas so­
bre seu argumento político a favor de um princípio de “lei natural” (jus naturel) - que 
é a base da idéia moderna dos direitos humanos universais. A idéia de que todos os 
seres humanos nascem com certos direitos intrínsecos remonta à Idade Média, quan­
do Tomás de Aquino (1225-1274) afirmava que os direitos do Homem eram dados 
por Deus. Mas no século dezessete filósofos como Locke e Thomas Hobbes (1588- 
1679) defendiam que a lei natural não era “dada” do alto, mas estava implícita nas 
necessidades biológicas do indivíduo. Assim, o argumento é invertido: o indivíduo 
tem direitos porque é um ser humano, e não pela graça de Deus (ou do rei). Essa foi 
uma posição radical na época, e mesmo quando assumida explicitamente para justifi­
car a autocracia (como faz Hobbes), ela tem um potencial revolucionário. Em toda a 
Europa, reis e príncipes defrontaram-se com exigências de uma burguesia liberal 
cada vez mais irrequieta e forte: exigências de que o governante fosse obrigado por 
lei a respeitar os direitos dos indivíduos à propriedade, à segurança pessoal e ao de­
bate público racional. Parece seguro supor que Locke se interessava mais por essas 
questões do que pelo modo de vida de povos distantes e que sua antropologia filosó­
fica foi fortemente influenciada por esse fato.
A herança do empirismo britânico, que chegou à sua forma mais sofisticada no 
Iluminismo escocês, notadamente na filosofia de David Hume, ainda é evidente 
na antropologia britânica contemporânea, como veremos mais adiante. Do mesmo 
modo, as antropologias francesa e alemã ainda trazem a marca do racionalismo con­
tinental, uma posição que talvez tenha sido mais ardorosamente defendida por René 
Descartes, um homem de muitas qualidades que deu contribuições substanciais à 
matemática e à anatomia e que é por muitos considerado o criador da filosofia mo­
derna. Na antropologia ele é particularmente conhecido pela distinção clara que esta­
beleceu entre consciência moral e vida espiritual de um lado, e mundo material e cor­
po humano de outro. Enquanto os empiristas britânicos diziam que os sentidos do 
corpo eram a única fonte de conhecimento válido sobre o mundo externo, Descartes
1. Inícios 17
duvidava dos sentidos. Nossas imagens do mundo externo são apenas isso-im agens 
- e como tal elas são profundamente marcadas pelas idéias preexistentes que o sujei­
to que percebe tem sobre o mundo. Só podemos ver o mundo através de um filtro de 
idéias. Por isso, a tarefa primeira da filosofia é verificai' se existem idéias verdadeiras 
que possam constituir uma base sólida para o conhecimento positivo. Com esse obje­
tivo em mente, Descartes assumiu uma atitude de “dúvida metodológica radical”. 
Todas as idéias de que se pode duvidar são incertas, e portanto inadequadas como 
fundamento para a ciência. Poucas idéias subsistiram à prova decisiva de Descartes. 
Sua máxima Cogito, ergo sum (“Penso, logo existo”) expressa essa certeza funda­
mental: posso ter certeza de que existo porque sei que penso. Mas Descartes gastou 
muita energia para derivar dessa primeira duas outras certezas: a certeza da existên­
cia de Deus e a certeza das proposições matemáticas.
Diferentemente de Locke, Descartes não era um filósofo social. Ainda assim, ele 
foi produto do seu tempo. Apesar de sua epistemologia racionalista ser explicitamen­
te contrária à dos empiristas, Descartes - como Locke e Hobbes - situa o indivíduo 
no centro de sua investigação. Afinal, sua prova da existência de Deus foi uma decor­
rência do auto-reconhecimento do indivíduo. Os empiristas também tinham a mesma 
fc dc Descartes na faculdade humana da razão, e tanto racionalistas como empiristas 
foram atores fundamentais para definir as premissas de uma ciência secular,como 
representantes da nova ordem social, a ordem burguesa, que em pouco tempo emer­
giria em toda a Europa Ocidental.
Por que tudo isso ainda não é antropologia
Essa breve revisão da pré-história da antropologia sugere que inúmeras questões 
que mais tarde se destacariam na antropologia já haviam sido tema de muitos debates 
desde a Antigüidade. Povos exóticos haviam sido descritos normativamente (etno- 
centrismo) ou descritivamente (relativismo cultural). Também fora retomada repeti­
damente a dúvida de se as pessoas em toda parte e em todos os tempos são basica­
mente semelhantes (universalismo) ou profundamente diferentes (relativismo). Ha­
viam sido feitas tentativas de definir as diferenças entre animais e seres humanos, na­
tureza e cultura, congênito e aprendido, coipo sensual e mente consciente. Muitas 
descrições detalhadas de povos estrangeiros também haviam sido publicadas, algu­
mas delas baseadas em estudos meticulosos.
Apesar desses desenvolvimentos históricos antigos e contínuos, sustentamos 
que a antropologia como ciência só apareceu num estágio posterior, não obstante ser 
verdade que sua origem foi um processo mais gradual do que às vezes se supõe. Nos­
18 HISTÓRIA DA ANTROPOLOGIA
sas justificativas para isso são, primeira, que todo o trabalho mencionado até aqui 
pertence a um de dois gêneros: escritos de viagem e filosofia social. Só quando esses 
dois aspectos da investigação antropológica se combinam, isto é, quando dados e 
teoria se integram, é que surge a antropologia. Segunda, e talvez mais controversa, 
chamamos a atenção para o fato de que todos os escritores até aqui mencionados são 
influenciados pela época e pela sociedade em que viveram. Isso naturalmente se apli­
ca também aos antropólogos contemporâneos. Mas os antropólogos modernos vi­
vem num mundo moderno, e nós sustentamos que a antropologia não faz nenhum 
sentido fora de um contexto moderno. A disciplina é produto não apenas de um con­
junto de pensamentos singulares como os que mencionamos acima, mas de mudan­
ças muito amplas na cultura e na sociedade européias que no devido tempo levariam 
à formação do capitalismo, do individualismo, da ciência secularizada, do naciona­
lismo patriótico e da reflexividade cultural extrema.
Por um lado, então, alguns tópicos nos acompanharam constanteraente ao longo 
do tempo que estivemos considerando até aqui, Por outro, do século quinze em dian­
te apareceram inúmeras novas idéias e novas formas de vida social que formariam a 
base sobre a qual a antropologia e as demais ciências sociais seriam construídas.
Duas dessas novas idéias foram analisadas acima. Primeira, vimos que o encon­
tro com “o outro” estimulou os intelectuais europeus a ver a sociedade como uma en­
tidade passível de mudanças e crescimento, de comunidades locais relativamente 
simples, de pequena escala, para nações industriais grandes e complexas. Mas a idéia 
de desenvolvimento ou progresso não se limitou a noções de mudança social. O indi­
víduo também podia se desenvolver, através da educação e da profissão, aprimoran­
do sua personalidade e encontrando seu “eu verdadeiro” . Como diz Bruno Latour 
(1991), a idéia do indivíduo autônomo foi um pré-requisito para a idéia de sociedade. 
Só quando o indivíduo livre foi alçado à condição de “medida de todas as coisas” é 
que a idéia de sociedade como associação de indivíduos pôde formar raízes e tomar-se 
objeto de reflexão sistem ática. E só quando a sociedade em ergiu com o objeto a ser 
continuamente aperfeiçoado e remodelado em formas mais avançadas é que o indiví­
duo racional, independente, pôde transformar-se em algo novo e diferente, e inclusi­
ve “mais verdadeiro para si mesmo”. Sem um discurso explícito sobre essas idéias, 
jamais haveria possibilidade de surgir uma disciplina como a antropologia. As se­
mentes foram lançadas no alvorecer da filosofia moderna, avanços importantes fo­
ram feitos no século dezoito, mas foi no século dezenove que a antropologia se tor­
nou uma disciplina acadêmica e somente no século vinte que alcançou a forma em 
que é ensinada aos estudantes atualmente. Dirigiremos nossa atenção agora às cor­
rentes intelectuais do século dezoito e dos inícios do século dezenove, antes de des­
1- inícios 19
crever - no próximo capitulo - como a antropologia chegou à maioridade como dis­
ciplina acadêmica.
f O Iluminismo
O século dezoito testemunhou um florescimento da ciência e da filosofia na Eu­
ropa. Nesses anos a autoconfiança da burguesia aumentou, os cidadãos refletiam so­
bre o mundo e seu lugar nele e em breve fariam exigências políticas de uma ordem 
social racional, justa, previsível e transparente. A palavra-chave era iluminismo 
(Aufídarung, iluminação). Como Hobbes, Locke e Descartes haviam afirmado, o in­
divíduo livre devia ser a medida de todas as coisas - do conhecimento e da ordem so­
cial. A autoridade de Deus e do rei deixou de ser considerada um pressuposto natural. 
Mas as novas gerações de intelectuais desenvolveram essas idéias ainda mais. Eles 
se reuniam em clubes infonnais e em salões para discutir arte, filosofia e temas sociais. 
Cartas pessoais e diários evoluíram para jornais, periódicos e romances, e embora a 
censura ainda fosse comum em quase toda a Europa, os novos meios de comunicação 
logo conquistaram uma liberdade maior e ampliaram sua circulação. A burguesia se 
empenhava em libertar-se do poder da Igreja e da nobreza e em substituí-lo por uma 
democracia. Crenças religiosas tradicionais eram denunciadas cada vez mais como 
superstições - obstáculos no caminho para uma sociedade melhor, governada pela 
razão. A idéia de progresso também parecia confirmar-se através do desenvolvimen­
to da tecnologia, que fez seus primeiros grandes avanços nessa época. Novas 
tecnologias tornaram mais precisas as medições científicas. Máquinas industriais 
começaram a aparecer. A tentativa puramente teórica de Descartes de provar a ver­
dade universal da matemática de repente tomou-se uma questão prática de suma rele­
vância. Se a matemática, a linguagem da razão, podia revelar verdades naturais fun­
damentais como as leis de Newton, não se seguia que a natureza era ela própria racio­
nal e que todo empreendimento dirigido pela razão estaria destinado ao sucesso? To­
das essas expectativas culminaram abmptatnente na Revolução Francesa, que tentou 
realizar o sonho de uma ordem social perfeitamente racional na prática, mas foi rapi­
damente suplantada por seu oposto irracional: a revolução devorou seus filhos. E en­
tão todos os sonhos, decepções e paradoxos da Revolução se espalharam a toda a Europa 
durante as Guerras Napoleônicas, no início dos anos 1800, influenciando profunda­
mente as idéias de sociedade que gerações posteriores desenvolveriam.
Mas estamos ainda no século dezoito, a “idade da razão”, quando foram feitas as 
primeiras tentativas de criar uma ciência antropológica. Uma obra inicial importante 
foi La scienza nuova (1725; The New Science, 1999), de Giambattista Vico (1668- 
1744), uma síntese grandiosa de etnografia, história da religião, filosofia e ciência
20 História da Antropologia
natural. Vico propõe uma estrutura universal de desenvolvimento social segundo o 
qual todas as sociedades passam por quatro fases, com características específicas for­
malmente definidas. O primeiro estágio é uma “condição bestial” sem moralidade ou 
arte, seguido de uma “Idade dos Deuses”, caracterizada pelo culto à natureza e por 
estruturas sociais rudimentares. A seguinte, a “Idade dos Heróis”, distingue-se por 
perturbações sociais generalizadas devidas à grande desigualdade social. Por fim, a 
“Idade do Homem”, quando as diferenças de classe desaparecem e predomina a 
igualdade. Essa fase, porém, degrada-se pela corrupção interna e degenera em “bes­
tialidade”. Vemos aqui, pela primeira vez, uma teoria de desenvolvimento social que 
não só contrapõe barbarismo e civilização, mas específica vários estágios de transi­
ção. A teoria de Vico serviría de modelo para os futurosevolucionistas, desde Marx 
até Frazer. Mas Vico comporta um elemento que inexiste na maioria dos seus segui­
dores. As sociedades não necessariamente se desenvolvem lineannente na direção de 
condições sempre melhores, mas passam por ciclos de degeneração e crescimento. 
Esse aspecto confere à obra iluminista de Vico um subtexto crítico e romântico, 
como em Rousseau (ver abaixo).
Vico foi um pioneiro italiano, mas os primeiros passos para a instituição da an­
tropologia como ciência foram dados na França. Em 1748 o Barão de Montesquieu 
(1689-1755) publicou o seu De l 'esprit des lois, (The Spirit o f Laws, 1977). Essa obra 
é um estudo comparativo entre “culturas” distintas, sobre sistemas legislativos que 
Montesquieu conhecia de primeira ou de segunda mão, com base nos quais ele pro­
cura derivar os princípios gerais que subjazem aos sistemas legais interculturalmen- 
te. Montesquieu apresenta o sistema legal como um aspecto do sistema social mais 
amplo, intimamente entrelaçado com muitos outros aspectos do todo maior (política, 
economia, parentesco, demografia, religião, etc.) - uma concepção que levou muitos 
a descrevê-lo como protofuncionalista (capitulo 3). Segundo Montesquieu, a poliga­
mia, o canibalismo, o paganismo, a escravatura e outros costumes bárbaros podiam 
ser explicados pelas funções que eles exerciam na sociedade como um todo. Montes­
quieu escreveu também o notável Lettres persanes (1722; Persian Letters, 1973), 
uma coleção de cartas fictícias de dois persas que descrevem a França para seus con­
cidadãos. Aqui o autor explora o “estranhamento” da diferença cultural para parodiar 
a França no tempo de Luís XIV. O livro é provocante e estimulante. Mesmo atual­
mente ele continua polêmico, pois recentemente Montesquieu foi acusado de ser um 
proto-orientalista (Said 1978, 1993) que enfatizou indevidamente o exotismo dos 
persas. Essa crítica justifica-se, sem dúvida, pois evidentemente o principal objetivo 
de Montesquieu não é descrever a Pérsia, mas criticar a França. Mas as cartas persas 
também revelam uma compreensão sutil de um problema às vezes descrito como ho-
1. Inícios 21
meblindness na antropologia cultural: nossa incapacidade de ver nossa própria cultu­
ra “objetivamente”, “de fora”. Montesquieu empregou uma técnica específica para 
resolver esse problema: descreveu sua própria sociedade do ponto de vista de um fo­
rasteiro. Antropólogos críticos ainda usam essa técnica atualmente.
Outro passo na direção de uma ciência antropológica foi dado por um grupo de 
intelectuais franceses jovens e idealistas. Foram os enciclopedistas, liderados pelo fi­
lósofo Denis Diderot (1713-1784) e pelo matemático Jean Le Rond d’Alembert 
(1717-1783). O objetivo desses intelectuais era coletar, classificar e sistematizar o 
maior volume possível de conhecimentos com o intuito de promover o avanço da ra­
zão, do progresso, da ciência e da tecnologia. A Encyclopédie de Diderot foi publica­
da em 1751-1772, e incluía artigos de intelectuais eminentes como Rousseau, Voltai­
re e Montesquieu. A enciclopédia se impôs rapidamente como modelo para projetos 
posteriores do mesmo gênero. Obra liberal e abrangente, para não dizer revolucioná­
ria, ela foi censurada em muitos países da Europa por sua crítica acerba à Igreja, Mas 
os 17 volumes de texto e 11 volumes de ilustrações também continham outros mate­
riais polêmicos, como descrições detalhadas de aparelhos mecânicos desenvolvidos 
por agricultores e artesãos comuns. Assuntos assim receberem destaque numa obra 
acadêmica era fato inédito à época e indicava que em breve seria natural estudar a 
vida cotidiana de pessoas comuns. A enciclopédia também continha descrições deta­
lhadas de costumes culturais e sociais de todo o mundo. Um dos colaboradores mais 
jovens, o Marquês de Condorcet (1743-1794), que morrería prematuramente numa 
prisão jacobina, escreveu comparações sistemáticas entre diferentes sistemas sociais 
e procurou desenvolver uma síntese da matemática e da ciência social que lhe possi­
bilitasse fonnular leis objetivas de desenvolvimento social.
O colaborador mais influente da Encyclopédie foi sem dúvida Jean-Jacques 
Rousseau (1712-1778). Contrariamente à maioria dos seus contemporâneos, Rous­
seau afirmava que o desenvolvimento não era progressivo, mas degenerativo, e que a 
causa desse declínio era a própria sociedade. De um estado de natureza inicial, ino­
cente, em que cada indivíduo vivia por si mesmo em harmonia com seu ambiente, as 
pessoas passaram a criar instituições de casamento e parentesco e se estabeleceram 
em grupos pequenos e sedentários. Aos poucos esses grupos cresceram em comple­
xidade e criaram sacerdotes e chefes, reis e príncipes, propriedade privada, polícia e 
magistrados, até que a alma livre e boa do homem ficou esmagada sob o peso da desi­
gualdade social. Todos os vícios humanos são produto do aumento da desigualdade 
social, e Rousseau atribuiu a queda original desde um estado de graça à entrada da in­
veja no mundo. “O homem nasceu livre, mas está a ferros em toda parte”, declara ele 
em D li contrai social (1762; On die Social Contract, 1978); mas Rousseau também
22 I-IISTÓRIA DA A NTROPOLOGIA
promete que o “contrato social falso” do tempo dele pode ser substituído por um con­
trato verdadeiro baseado na liberdade e na democracia. Apesar do seu pessimismo 
com relação à situação da época, Rousseau continuou assim com os mesmos sonhos 
utópicos de Vico ou Condorcet.
O modelo da sociedade ideal de Rousseau devia ser encontrado entre os “nobres 
selvagens”, os povos livres e sem Estado. Essa reavaliação das sociedades livres re­
presentou obviamente um passo significativo para o verdadeiro relativismo cultural. 
Mas o relativismo de Rousseau era “superficial”. Também ele se interessava pelos 
“primitivos”, principalmente por representarem valores contrários aos da época. 
Eles simbolizavam o homem racional que renasceria na sociedade ideal do futuro. 
Assim o homem era livre e racional ou cativo e corrompido, e com isso como premis­
sa, pesquisas práticas e aplicadas de diferenças culturais empíricas eram considera­
das irrelevantes. Não obstante, Rousseau foi uma fonte importante de inspiração para 
cientistas sociais que vieram depois - desde Marx a Lévi-Strauss - e com freqüência 
é considerado intermediário entre o llumimsmo francês e o Romantismo alemão, que 
surgiu nas décadas finais dos anos 1700, em parte como reação à filosofia iluminista. 
Aqui, a celebração rousseauniana do “homem autêntico" recebeu novo impulso e os 
prim eiros conceitos de cultura foram apresentados explicitamente.
Romantismo
O Iluminismo acreditava no indivíduo e na mente racional. Em contraste, o pensa­
mento romântico deslocou sua atenção do indivíduo para o grupo, da razão para a emo­
ção. Na política, houve um movimento semelhante, de um discurso universalista sobre 
indivíduos livres e democracia para um discurso particularista sobre construção da na­
ção e sentimento nacional. É comum considerar o Romantismo como uma tendência 
que substituiu o Iluminismo nos anos de reação depois da Revolução Francesa. Mas, 
como sugere Emesl Gellner (1991), talvez seja mais exato ver os dois movimentos co­
mo fluxos paralelos, às vezes divergindo ou competindo, às vezes convergindo e 
mesclando-se. Esta segunda constatação é especialmente comum na antropologia, que 
tem como objetivo não somente compreender todos culturais (um projeto romântico), 
mas também dissecá-los, analisá-los e compará-los (um projeto iluminista).
No século dezoito, a Alemanha, o centro do pensamento romântico, ainda era um 
mosaico político de principados independentes e cidades autônomas, reunidos tenue- 
mente sob a égide do “Sacro Império Romano” - ao qual Voltaire se referiu certa vez 
dizendo que não era sacro, nem romano, nem império. Assim, diferentemente das 
idéias francesas de sociedade e cidadania, o conceito de uma nação germânica basea­
i. Inícios 23
va-se na língua e na cultura mais do que na política. AFrança era um Estado grande e 
poderoso, cujo estilo, poesia e realeza dominavam o mundo ocidental. Saber falar 
francês era em toda parte sinal de uma mente cultivada. Um dos românticos alemães 
mais populares (Friedrich Richter) chegou a adotar um pseudônimo francês: Jean 
Paul. Era muito natural que os alemães, politicamente fragmentados, mas cultural­
mente articulados, acabassem reagindo à dominação francesa. Eles também tinham 
mais razão em especular sobre as qualidades que unificavam sua nação do que os 
franceses centralizados. Em 1764, o jovem Johann Gottfried von Herder (1744- 
1803) publicou seu Audi eine Philosophie der Geschichte (“Yet another Philosophy 
of History”, 1993), um ataque vigoroso ao universalismo francês defendido, por 
exemplo, por Voltaire (1694-1778). Herder proclamava a primazia das emoções e da 
linguagem e definia a sociedade como uma comunidade profundamente consolida­
da, mítica. Ele afirmava que todo Volk (povo) tem seus próprios valores, costumes, 
língua e “espírito” ( Volksgeist). Dessa perspectiva, o universalismo de Voltaire não 
passava de umprovincialismo disfarçado. Sua civilização universal, na verdade, não 
era outra coisa senão cultura francesa.
O debate Voltaire-Herder continua a confrontar-nos atualmente. O ataque de 
Herder ao universalismo aberto, transnacional, de Voltaire lembra a crítica dos an­
tropólogos do século vinte às missões, à ajuda ao desenvolvimento, às políticas de 
minorias e globalização. Lembra também a critica lançada à própria antropologia 
como agente de imperialismo cultural. Além disso, uma distinção entre cultura e ci­
vilização processou-se posteriormente no mundo de língua alemã, embora com su­
cesso limitado na academia: a cultura era considerada como experimental e orgânica, 
ao passo que a civilização era cognitiva e superficial,
O conceito de Volk introduzido por Herder foi aperfeiçoado e politizado por filó­
sofos posteriores, inclusive Fichte (1762-1814) e Schelling (1775-1854), que o 
transformaram num instrumento de germinação de movimentos nacionalistas que se 
espalharam pela Europa na esteira das Guerras Napoleônicas. Mas o mesmo concei­
to entrou também na academia, onde reapareceu, no início do século vinte, como a 
proposição do relativismo cultural. Assim, os sistemas antagônicos do relativismo e 
do nacionalismo remontam ambos suas origens ao mesmo conceito de cultura que se 
originou no Romantismo alemão.
O maior filósofo desse período foi sem dúvida Immanuel Kant (1724-1804). A 
filosofia de Kant é fundamental demais para ser enquadrada numa escola filosófica 
bem definida. Em geral se diz que Kant pôs um ponto final a muitos debates filosófi­
cos respeitáveis, entre eles a controvérsia entre empirismo e racionalismo. Em seu 
Kritik der reinen Vemunft (1781; Critique qfPure Reason, 1991) Kant concordou
24 História da Antropologia
cora Locke e Hume que o verdadeiro conhecimento deriva das impressões dos senti­
dos, mas ele também ressaltava (com Descartes) que os dados sensoriais eram filtra­
dos e modelados pelas faculdades da mente. O conhecimento era tanto sensual como 
matemático, positivo e especulativo, objetivo e subjetivo. A grande realização de 
Kant foi demonstrar que pensamento e experiência estavam relacionados dinamica­
mente e que a aquisição do conhecimento é um processo criativo. Conhecer o mundo 
é criar um mundo que é acessível ao conhecimento. Num sentido, o homem é, por­
tanto, incapaz de conhecer o mundo como este é em si mesmo (Ding an Sich). Mas o 
homem tem acesso ao mundo enquanto o mundo representa a si mesmo para o ho­
mem (.Ding für Mich) e o homem é capaz de obter conhecimento verdadeiro sobre 
este mundo.
Conhecer o mundo é contribuir com sua criação, como todo antropólogo que rea­
liza trabalho de campo sabe. Nós colhemos amostras, modelamos e interpretamos a 
realidade à medida que prosseguimos; Kant foi o primeiro a reconhecer explicíta- 
mente esse processo, o qual continua a gerar debates importantes na antropologia 
atual. Na formulação de Kant, porém, essa idéia ainda não se aplicava diretamente às 
ciências sociais. Coube a seu sucessor, Georg WilhelmFriedrich Hegel (1770-1831), 
completar essa linha de raciocínio. Para Kant, o conhecimento era um processo, um 
movimento sem fim. O ponto fixo em torno do qual seu movimento fluía era o indiví­
duo. Com Hegel, o ponto fixo se dissipa. O indivíduo também é parte e resultado do 
processo de conhecimento. Assim, conhecendo o mundo, criamos não somente um 
mundo cognoscível, mas também um Eu cognoscente. Mas se não existe ponto fixo, 
como é possível alcançar o conhecimento? Quem será a medida de todas as coisas, 
senão o indivíduo? Hegel responde a essa pergunta dizendo que não estamos sozi­
nhos no mundo. O indivíduo participa de uma sociedade comunicativa com outras 
pessoas. O mundo criado através do conhecimento é portanto fundamentaimente co­
letivo, e o indivíduo não é sua causa, mas um dos seus efeitos.
Assim, através das complexas e freqüentemente obscuras formulações de Hegel, 
vemos emergir o princípio do coletivismo metodológico - a idéia de que a sociedade 
é mais fundamental do que o indivíduo. A visão oposta, o individualismo metodoló­
gico, segue Kant e tem seu ponto de partida na pessoa individual. Mesmo hoje, essas 
posições estão relatívamente bem definidas na antropologia. Com H egel no entanto, 
o coletivismo alcança seu apogeu. Hegel descreve um Weltgeist, um “espírito do 
mundo” que evolui independentemente dos indivíduos mas que também se manifes­
ta através deles. O Geist tem seus centros e periferias, e se propaga segundo leis evo­
lucionárias específicas. Com essa idéia, sugeriu Geana (1995), Hegel foi o primeiro 
filósofo a antever uma humanidade verdadeiramente global.
1. Inícios 25
Estão lançados a essa altura os fundamentos epistemológicos da teoria social 
moderna. Se o conhecimento é um processo coletivo, que cria um mundo coletivo 
que pode ser conhecido por indivíduos, toma-se possível visualizar esse mundo num 
padrão de comunicação mais ou menos sistemático entre pessoas. Posteriormente, os 
teóricos descreveram esse padrão de diversos modos, com conceitos como estrutura, 
função, solidariedade, poder, sistema e agregado. O próprio Hegel estava interessado 
no desenvolvimento do Weltgeist e descreveu seu desdobramento como um processo 
dialético de conflito e síntese que levava a sociedade a novos estágios evolucioná­
rios. Não obstante, embora a dialética tenha mais tarde alcançado proeminência en­
tre teóricos sociais inspirados por Marx, a “construção social da realidade” continua 
sendo a idéia mais importante que a ciência social herdou de Hegel e Kant.
Mas essa idéia também combinava perfeitamente com os movimentos naciona­
listas inspirados por Herder, os quais haviam se difundido por toda a Europa nas dé­
cadas seguintes a 1800. Nações eram precisamente essas realidades e sociedades co­
municativas socialmente construídas como Hegel havia descrito, cada uma com seu 
estilo e caráter únicos. Idealmente, a nação era uma coletividade de pessoas, gover­
nada pelas pessoas, de acordo com os anseios e necessidades coletivos mais profun­
dos das pessoas. Assim, o nacionalismo tem sua inspiração na filosofia romântica, 
mas foi também produto de processos históricos subjacentes: as conturbações políti­
cas na seqüência das guerras napoleônicas, a alienação produzida pela industrializa­
ção e a difusão dos ideais revolucionários de liberdade, igualdade e fraternidade,
Foi nesse mundo agitado e em transição que a antropologia começou a ser consi­
derada como disciplina acadêmica. Uma precondição importante para que isso se 
concretizasse foi a criação dos primeiros museus etnográficos. Coleções de artefatos 
exóticos existiam havia muito tempo nas cortes européias. Uma das primeiras, reuni­
da pelo rei dinamarquês Frederico III, data de 1650 e mais tarde se tomaria a base do 
Museu Nacional Dinamarquês. Mas a coleta sistemática de objetos etnográficos só 
começou nos anos1800. Grandes museus nacionais foram criados em Londres 
(1753), Paris (1801) e Washington, DC ( 1843), e todos eies desenvolveriam departa­
mentos etnográficos influentes. Ainda assim, os primeiros museus etnográficos es­
pecializados foram criados em áreas de língua alemã, especialmente Viena (1806), 
Munique (1859) e Berlim (1868). Isso pode surpreender, pois a Alemanha e a Áustria 
não possuíam colônias. No entanto, acadêmicos alemães, seguindo o programa de 
Herder, haviam começado a realizar estudos empíricos sobre os costumes “do povo”. 
Eles coletavam dados sobre a vida camponesa - sobre contos populares e lendas, 
vestuário e dança, ofícios e habilidades. Assim, os primeiros museus interessa­
vam-se principalmente pelo Võlkskunde (o estudo de culturas camponesas domésti-
26 História da Antropologia
cas) mais do que pelo Völkerkunde (o estudo de povos remotos). De qualquer modo, 
devemos observar que a institucionalização da antropologia começou em áreas de 
língua alemã, e não na França ou na Inglaterra - um fato que muitas vezes é negligen­
ciado nos relatos históricos da antropologia.
Como o próximo capítulo mostrará, a contribuição alemã à antropologia conti­
nuou importante no decorrer de todo o século dezenove, concomitantemente ao de­
senvolvimento de uma antropologia “vitoriana” peculiar na Grã-Bretanha.

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