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19 - história da música erudita brasileira

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4
M Ú S I C A
E R U D I T A
BRASILEIRA
5
Escrever um panorama da História da MúsicaErudita ou de Concerto no Brasil é umdesafio há muito acalentado. Diferente
de outras produções artísticas brasileiras,
a música ainda carece de estudos
organizados com o objetivo de contar sua
história e, principalmente, contextualizá-la
perante o repertório consagrado da música
ocidental. Essa vertente da produção musical
brasileira por muitos é considerada como
o último tesouro ainda por ser descoberto
e verdadeiramente explorado da cultura
do país. À exceção do célebre Villa-Lobos,
e também de Camargo Guarnieri, pouco
se conhece a respeito dessa imensa produção
musical. Isso se dá tanto nos meios
internacionais como, espantosamente, entre
os próprios músicos brasileiros, que bastante
sabem e executam Mozart, Beethoven
e Brahms, mas que pouca informação
têm de compositores brasileiros
contemporâneos e mesmo de outros períodos.
6
Por outro lado, enquanto a denominada MPB ou
Música Popular Brasileira é consagrada pelos meios
de comunicação e conhecida internacionalmente como
símbolo da produção musical do Brasil do século XX,
a música erudita ou de concerto ainda é um território
inexplorado, quer pelos estrangeiros, quer pelos
próprios músicos brasileiros. Diferentemente
da produção de MPB, que abrange dos últimos anos
do século XIX aos dias atuais, a música “clássica”
no Brasil está ligada diretamente ao início da
colonização pelos portugueses e perpassa pelos cinco
séculos de transformações e adaptações culturais
ocorridas no país.
A respeito de como interagem na cultura brasileira
essas duas realidades musicais complementares,
citamos artigo do jornalista Irineu Franco Perpétuo1
que bem exemplifica essa situação:
“É que parece cada vez mais que, no Brasil, falar
de música brasileira corresponde a falar de música
“popular” brasileira. Claro que a supremacia, em
termos de difusão, da música popular sobre a música
de concerto é um fenômeno mundial. O que torna
o caso do Brasil específico é que os principais autores
e intérpretes de nossa música popular desfrutam
do status não apenas do carinho das massas, mas o afago
da “inteligentsia”, desalojando a música “clássica”
da posição hegemônica mesmo entre as elites. Para
o bem ou para o mal, os intelectuais orgânicos
brasileiros, na área de música, são gente como Chico
Buarque, Caetano Veloso e Milton Nascimento − não
Almeida Prado, Edino Krieger ou Gilberto Mendes,
por mais que possamos admirar e respeitar o talento
desses compositores. As idéias dos astros da MPB é
que são levadas a sério, debatidas e discutidas pelos
formadores de opinião pública. Quando acontece um
fato de comoção nacional, e a imprensa quer saber
a opinião de um músico a respeito, vai perguntar para
o Chico. A intenção de voto de Caetano a cada eleição
presidencial é sempre repercutida pela imprensa com
estardalhaço, mas ninguém vai averiguar em quem
Nelson Freire ou Antonio Meneses vão votar.
Não se trata aqui de atacar a música popular
brasileira, mas apenas lamentar o deslocamento sofrido
pela música brasileira de concerto.”
Ao procurarmos os vários fatores a que se deve
a atual situação de desconhecimento da história e da
produção da música de concerto no Brasil, deparamo-
nos com dois principais, que são a falta de programas
editorais eficazes para a publicação de obras compostas
no Brasil desde o século XVIII e o próprio
desincentivo ou mesmo desinteresse das corporações
musicais em conhecer e programar esse repertório em
seus concertos. Diante desse quadro, nada mais
oportuno que escrever, ainda que despretensiosamente,
esta História da Música Erudita no Brasil, de modo
multidisciplinar e em formato de revista.
Para esta publicação elaboramos uma pauta onde
subdividimos os assuntos em três grandes períodos
históricos: do Descobrimento à Independência, do
Império ao Estado Novo e da Segunda Guerra aos dias
atuais, sendo a subdivisão interna de cada fase formada
por artigos de diferentes características. Há os artigos
contextualizantes de um período histórico e que vêem
a produção musical no âmbito sociológico, e há os que
exploram a biografia dos principais compositores de
cada período, tornando-se importantes verbetes para
uma compreensão mais objetiva da biografia e
produção de cada compositor ou período estético
abrangido. Esse formato, uma vez que esta é uma
revista de divulgação de cultura brasileira no exterior,
tem como objetivo possibilitar que o leitor, mesmo que
jamais tenha ouvido falar a respeito dos assuntos
abordados, possa ter uma ambientação histórica
e social na qual essa música foi produzida.
Acessíveis e interessantes para músicos,
ou somente interessados em saber mais sobre essa
produção musical, os artigos foram escritos por alguns
dos mais atuantes especialistas de cada subdivisão do
assunto, entre jornalistas, acadêmicos e musicistas.
A presença do CD anexo, assim como as bibliografias
e discografias sugeridas, servem como ilustração a cada
assunto abordado nos artigos. Desse modo,
pretendemos tornar a revista ainda mais dinâmica,
possibilitando que a mesma possa ser utilizada como
um guia referencial para aqueles que pretendem
começar a se enveredar pelo tema, e até servir como
base bibliográfica para a elaboração de pequenas aulas.
Dentre as publicações mais importantes de História
7
da Música no Brasil, sendo escritas cada qual por
somente um autor, podemos citar as de Vicente
Cernicchiaro, Renato de Almeida e Mário de Andrade,
ainda nas décadas de 1920 e 30, passando por Luiz
Heitor Corrêa de Azevedo nos anos 60, Bruno Kieffer
nos anos 70 e Vasco Mariz em dias atuais.
Nesta Textos do Brasil, por sua característica
multidisciplinar unindo conhecimentos específicos
para cada assunto abordado, pretendemos contribuir
para incrementar e dar nova visão sobre essa não
vasta, porém importante, bibliografia existente
a respeito do tema.
O primeiro texto da revista, “Música e sociedade
no Brasil colonial”, assinado por Rogério Budasz, trata
inicialmente da música composta e utilizada pelos
jesuítas com o objetivo de catequizar os povos
indígenas brasileiros durantes os dois primeiros séculos
da colonização. Apesar de não existir documentação
musical remanescente do período, o pesquisador faz
uma minuciosa e aprofundada pesquisa sobre esse
processo, tendo como fonte o trabalho realizado
pelo emblemático Padre José de Anchieta, buscando
em suas notas as informações necessárias para
a reconstituição provável desse material. No mesmo
artigo, Budasz trata da produção musical para os versos
do ilustre poeta da Província da Bahia ainda no século
XVII, Gregório de Matos, podendo ser uma das
primeiras informações a respeito de uma prática de
música não-litúrgica ou profana em nosso território.
Desta também não restou documentação musical
específica, porém é também possível realizar um
processo comparativo e de reconstituição baseado
em manuscritos musicais existentes em Portugal, a que
são feitas referências em documentos da época.
Ainda no século XVII e início do XVIII temos,
para não deixar de citar, o caso da música composta
na região das Missões Jesuíticas dos Índios Guaranis −
hoje pertencentes ao território brasileiro no Sul
do país, mas que no período pertenciam à Coroa
espanhola −, sendo sua produção artística e musical
mais diretamente ligada à arte barroca praticada
em países como Argentina, Paraguai e Bolívia.
Para conhecermos mais a respeito desta produção,
basta que conheçamos os trabalhos editoriais
e de partituras, assim como os registros musicais em
discos e sobre música barroca hispano-americana.
Tratando a pauta com respeito a uma ordem
cronológica e contextual passamos, a seguir, a tratar da
música sacra no Brasil, sobretudo na segunda metade
do século XVIII e primeira metade do XIX.
Neste segundo artigo, “A Música no Brasil Colônia
anterior à chegada da Cortede D. João VI”, assinado
por Harry Crowl, é abordado um aspecto mais
difundido, porém também pouco conhecido da
produção musical do Brasil colônia, que é a música
sacra composta pelos mestres-de-capela nas sedes de
Bispados e a atuação dos músicos junto às Irmandades
leigas, sobretudo nas províncias das Minas Gerais, São
Paulo, Bahia e Pernambuco.
Esse artigo trata justamente da música a partir
do primeiro documento musical encontrado, que é um
recitativo e ária da Bahia datado de 1759, e contextualiza
as produções nordestinas do mesmo período para,
aí sim, dar total ênfase à mais importante escola
de compositores do período colonial, que é a das Minas
Gerais da segunda metade do século XVIII. É um texto
bastante completo, que contempla a produção de vários
nomes importantes do período, como Emerico Lobo de
Mesquita, Francisco Gomes da Rocha, Marcos Coelho
Neto, João de Deus de Castro Lobo, entre outros.
Nesta nossa introdução não podemos deixar
de explicar, mesmo que brevemente, como esse estilo
musical se estabeleceu no Brasil colonial,
principalmente nos séculos XVIII e XIX. Essa
A música “clássica”
no Brasil está ligada
diretamente ao início da
colonização pelos portugueses e
perpassa pelos cinco séculos de
transformações e adaptações
culturais ocorridos no país
8
linguagem musical eminentemente italiana tem uma
trajetória interessante: D. João V de Portugal, a partir
da década de 1710, manda jovens compositores
portugueses estudar na Itália como bolsistas, sobretudo
em Roma e Nápoles, a fim de absorver o estilo musical
italiano, que era o predominante na época, e trazê-lo
para Lisboa. Do mesmo modo, compositores italianos
como Domenico Scarlatti são levados a Portugal para
dirigir a música na Sé e na corte lisboeta. Como
a mais importante colônia do império português
do período, o Brasil tem uma grande atividade musical
e está em estreito contato com as novidades vindas
da metrópole, passando também a ter sua produção
musical nos mesmos moldes de Portugal. Com a
descoberta do ouro, sobretudo na província das Minas
Gerais, outros importantes centros urbanos como Vila
Rica surgem para, além das tradicionais grandes
cidades como Salvador e Rio de Janeiro, possuírem
intensa atividade musical, que caracterizará um dos
mais profícuos momentos da história musical brasileira.
No entanto, não há parâmetro para as
transformações nas atividades culturais e mesmo sociais
do Brasil como o deslocamento da Corte de D. João VI
de Portugal para o Rio de Janeiro, que teve o fim de
salvaguardar a alta administração portuguesa da
invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas em 1808.
O artigo que se segue, “Música na Corte do Brasil:
Entre Apolo e Dionísio 1808-1821”, assinado pelo
musicólogo e historiador Maurício Monteiro, começa
justamente a falar das grandes mudanças sociológicas
e estilístico-musicais que se seguem após este
importante momento da História do Brasil.
Com o objetivo de finalizar essa primeira sessão,
segue, por nós assinado, artigo a respeito do mais
representativo compositor desse período colonial
brasileiro, que é o carioca José Maurício Nunes Garcia
(1767 –1830). Esse texto, “José Maurício Nunes
Garcia e a Real Capela de D. João VI no Rio
de Janeiro”, trata de sua interessante biografia
e de como suas obras sobreviveram através do tempo.
Por ser um compositor que trabalhou sempre no Rio
de Janeiro, sendo sua primeira obra datada de 1783
e a última de 1826, sua música também reflete
as transformações que essa cidade, como capital
da colônia, sofreu em sua música e relações sociais.
Esses anos foram intensos também para as artes
plásticas no Brasil, com a vinda da Missão Artística
Francesa de 1817 e de músicos como o compositor
austríaco Sigismund Neukomm – que veio na missão
diplomática do Duque de Luxemburgo a serviço
de Luís XVIII de França – e que permaneceu no
Rio de Janeiro por cinco anos, sofisticando a produção
de música instrumental na corte como música para
piano, de câmara e até mesmo sinfônica. Graças
à presença desse compositor, os músicos atuantes na
cidade puderam travar contato com o que havia de
mais relevante da produção musical centro-européia,
como a Missa de Réquiem de Mozart, regida por José
Maurício em 1819, e os oratórios As Estações
e A Criação de Joseph Haydn, este último também
comprovadamente regido por José Maurício em 1821.
Nos anos que seguiram ao processo de
Independência do Brasil de Portugal, ocorrida em
1822, as atividades culturais sofreram um grande
declínio em comparação aos faustos anos da presença
da corte portuguesa no Rio de Janeiro. O início de uma
longa reestruturação se inicia com a criação do
Imperial Conservatório de Música, atual Escola de
Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que
teve como seu primeiro diretor o autor do Hino
Nacional Brasileiro, Francisco Manoel da Silva,
que durante o tempo de José Maurício esteve entre
seus alunos diletos.
Esse período se caracterizou por uma certa
desestruturação da Real Capela de Música,
transformada em Imperial Capela, e seus músicos –
entre eles seus mestres-de-capela José Maurício Nunes
Garcia e Marcos Portugal – sofreram sérias dificuldades
financeiras. Essa época coincidiu também com
a ascensão de Rossini nos teatros do mundo todo,
passando a ser um novo parâmetro para a produção
operística italiana. As óperas de Rossini fizeram tanto
sucesso no Brasil que, mesmo durante a estada do Rei
D. João VI no Rio de Janeiro, várias de suas óperas
foram encenadas. Entre elas, sobretudo, Il Barbiere di
Seviglia e La Cenerentola, com diferenças por vezes de
poucos meses em relação às estréias européias. Essa
modificação no gosto serviu de modelo para a criação
Música
e sociedade
no Brasil
colonial
Carlos Julião. Cortejo da Rainha Negra
na Festa de Reis. Aquarela colorida
do livro “Riscos illuminados de figurinos
de brancos e negros dos uzos
do Rio de Janeiro e Serro Frio”.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –
DIVISÃO DE ICONOGRAFIA
ROGÉRIO BUDASZ
14
Sem levar em conta alguns casos isolados de portuguesese franceses fixando-se na costa brasileira, por livrevontade ou não, durante as primeiras décadas do séculoXVI, a colonização e o efetivo povoamento dessa
região por europeus e seus descendentes tiveram início
apenas na década de 1530. Missionários religiosos
também começaram a se estabelecer nessa época,
sendo o grupo mais importante a Companhia de Jesus,
que chegou em 1549 e fundou vários colégios ao longo
da costa brasileira.
O povoamento da costa brasileira nos dois
primeiros séculos após a descoberta pelos portugueses
foi condicionado pelos ciclos econômicos do pau-brasil
e da cana-de-açúcar, esse último marcando também
o início da presença negra no Brasil. Os colonos eram
invariavelmente homens que estabeleciam
propriedades rurais e, geralmente, amasiavam-se
com as nativas, originando um novo tipo étnico,
o mameluco, que se tornaria o principal responsável
pela expansão territorial da colônia. A colonização foi
marcada por iniciativas e regulamentações
contraditórias, que, enquanto estimulavam a vinda
de colonos, reprimiam o desenvolvimento de uma
identidade brasileira por proibir o surgimento de casas
impressoras, periódicos e universidades.
Para o colono, a única forma de literatura era
muitas vezes aquela transmitida oralmente, nos
romances populares ibéricos de teor histórico ou
moral. Muitos desses romances, geralmente cantados
sobre melodias simples para não dificultar
a inteligibilidade da narrativa, permanecem vivos até
hoje na tradição popular tanto em Portugal como
no Brasil, e sofrendo poucas transformações nesses
quinhentos anos, como é o caso de Conde Claros,
A Bela Infanta, Gerineldo, e tantos outros.
Além desses, o repertório musical dos primeiros
colonos e seus descendentes incluiria também cantos
de trabalho para acompanhar ações rotineiras,
15
16
acalantose cantigas, tanto em português como em tupi.
A primeira geração de brasileiros crescia, assim,
ouvindo romances, cantigas e ritmos ibéricos cantados
e tocados na viola pelo pai, enquanto era embalada
pelos acalantos da mãe tupi em seu idioma. Quer fosse
pelo seu conteúdo considerado “lascivo” ou pela sua
associação com os cultos nativos, algumas daquelas
cantigas, tanto ibéricas como tupis, escandalizaram
os missionários, induzindo-os a comporem versões
pias, ou “divinizadas”. José de Anchieta era mestre
nessa transmutação e ensinava também as doutrinas,
orações e hinos católicos no idioma tupi.
Fora do contexto missionário, também eram
comuns as bandas de corporações militares ou de
escravos, mantidas pelos latifundiários mais destacados
como aparato de ostentação e demonstração de poder,
ao realizarem entradas pomposas nas vilas ao som dos
clarins, ou para impressionar visitantes. Promovidas
pelas autoridades seculares e religiosas, várias festas,
como as de Corpus Christi e da Visitação de Santa
Isabel, incluíam procissões, música e danças, trazendo
alegorias, mascarados e coreografias de índios e negros.
Para o acompanhamento costumavam ser usados
tambores, pandeiros, gaitas de fole, pífanos
e charamelas — termo esse que poderia incluir tanto
instrumentos de palheta, como a chirimia ibérica,
quanto instrumentos de bocal, como as cornetas,
sacabuxas, trompas e outros. Além disso, nas festas
e outros congraçamentos ao ar livre poderíamos,
tal como hoje em dia, encontrar cantores repentistas,
numa tradição que remonta aos segréis
da Idade Média.
Tais festas e procissões, tal qual em Portugal,
muitas vezes funcionavam como pretexto para
a socialização e diversão, como satirizaria o poeta
Gregório de Mattos no final do século XVII. Contudo,
a despeito de várias regulamentações repressoras e das
opiniões de alguns moralistas, o congraçamento entre
escravos era geralmente tolerado “para evitar males
maiores”, no dizer de Antonil, pois a mistura de raças
também dificultava a identificação étnica de escravos
de várias nações e crenças, diminuindo o perigo
de insurreição. Já a mistura entre negros e branco, era
insistentemente reprimida pelas autoridades — e isso
até o início do século XX —, o que não parece jamais
ter surtido o efeito desejado, como o comprovam não
só as descrições de viajantes como também o fato
de terem sido reprisadas várias vezes no decorrer dos
séculos as prescrições contra o ajuntamento de brancos
e escravos nas festas.
Quanto à música oficial do Estado e da Igreja,
nota-se já no século XVI a tentativa de reproduzir
em miniatura o estabelecimento musical português.
Existiam, no entanto, algumas diferenças fundamentais
que dificultavam essa reprodução, ao mesmo tempo
em que moldavam novas maneiras de fazer e usar
a música: se Portugal era pequeno e densamente
povoado, o inverso valia para o Brasil nos dois
sentidos. A rarefação populacional tornava inviáveis
certas práticas musicais e inúteis outras.
MÚSICA NO ESPAÇO DOMÉSTICO
A maior parte das vilas fundadas durante o primeiro
século da colonização formava-se ao redor de alguns
fortes militares e escolas jesuíticas. Enquanto isso,
o grosso da população habitava as propriedades rurais,
que cresceram muito — em número e tamanho — nas
últimas décadas do século XVI, passando
a especializar-se no cultivo da cana de açúcar
e na produção de seus derivados, açúcar e aguardente,
assim como no cultivo da mandioca e na produção
da farinha.
Distante dos centros urbanos — numa época em
que eram poucos os que se destacavam —, o engenho
ficava assim definido como a principal unidade de
produção e povoamento, enquanto a Casa Grande
era o seu centro administrativo e religioso, na verdade
o principal espaço de sociabilidade. Ali era promovida
17
E era por isso que a prática musical também fazia
parte da instrução dos filhos e afilhados do senhor
de engenho. Formação diferente, e para cumprir tarefas
diferentes, teriam os músicos escravos — cantores
e charameleiros — que participariam do aparato
de propaganda e demonstração de poder do senhor
de engenho, sendo muitas vezes emprestados às Igrejas
e vilas por ocasião de festas religiosas e cívicas.
Os primeiros que se dedicaram ao ensino
da música foram os missionários, que, a princípio,
concentravam-se nos nativos e usavam a música como
instrumento auxiliar na conversão e catequese. Depois
deles, representando oficialmente o estabelecimento
musical da Igreja, aparecem os mestres de capela,
enviados de Portugal para organizar a atividade
musical de determinada região mas que também
exerciam a função de instrutores da arte da música
para quem pudesse pagar. Mais tarde, também passam
a exercer essa função, embora de forma limitada,
os cantores e instrumentistas mais destacados
dentre os índios, negros e mulatos instruídos
na música européia pelos missionários e mestres
de capela, com o objetivo principal de interpretarem
Alexadre Rodrigues Ferreira.
Desenho aquarelado.
Viola que tocam os pretos.
Desenho aquarelado do livro
Viagem filosófica às Capitanias
do Grão-Pará, Rio Negro, Cuiabá.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO
DE ICONOGRAFIA
as composições por eles preparadas.
Evidentemente, o filho de um senhor de engenho
não entraria numa relação mestre-aprendiz com o
mestre de capela local. Esperava-se que tomasse conta
dos negócios do pai, fosse estudar em Portugal ou
seguisse a carreira eclesiástica — podendo, neste último
caso desenvolver suas habilidades musicais de maneira
mais aprofundada. Este tipo de interesse musical não
profissional era bastante comum entre a aristocracia e
burguesia abastada portuguesa, a ponto de vários
nobres, incluindo reis e príncipes, tornarem-se
compositores competentes.
Sendo o profissionalismo musical indicativo de
baixa estatura social, isso talvez explicasse o porquê da
quase inexistência de compositores brancos nas Minas
Gerais do século XVIII (com exceção dos portugueses
enviados com a expressa finalidade de servirem como
mestres-de-capela), numa época em que, após a
descoberta do ouro, multiplicavam-se os centros
urbanos no interior da colônia, multiplicando-se
também as oportunidades de trabalho de cantores,
instrumentistas e compositores.
Todavia, para a elite brasileira dos séculos XVII
e XVIII, mesmo desdenhando o profissionalismo
musical, o diletantismo na música era qualidade
apreciável. A habilidade como compositor é colocada
por historiógrafos e bibliógrafos portugueses
e brasileiros em pé de igualdade com a produção
literária, e a proficiência na execução à viola
ou à harpa equivaleria aos dotes poéticos e à instrução
nas assim chamadas artes liberais. De fato, inventários
a educação civil e religiosa, bem
como os encontros sociais, por
ocasião de batizados, de casamentos,
e da hospedagem de visitantes.
Nesse contexto, a música era
cultivada como auxiliar no fluir
das atividades sociais, como
passatempo na intimidade
do lar, acompanhando momentos
de devoção religiosa ou como
demonstração de civilidade e poder
para os olhos e ouvidos externos.
18
da época comprovam que o mobiliário das casas
grandes costumava incluir harpas, violas e cítaras, além
de dispor de aposentos usados como escolas, onde
os filhos eram instruídos em aritmética, gramática,
retórica, religião e música.
Na Nobiliarchia Paulistana, Pedro Taques de
Almeida Prado menciona, entre a aristocracia
paulistana de séculos passados, além de harpistas
e tocadores de “vários instrumentos”, dois tocadores
de viola. Frei Plácido, “eminente na prenda de tanger
viola”, tomou o hábito em Alcobaça e teria tocado para
o rei D. Pedro II de Portugal. Francisco Rodrigues
Penteado, pernambucano, demonstrava tal “mimo”
na mesma arte que em 1648, voltando de Lisboa, foi
convidado por Salvador Correia de Sá e Benevides
a instruir “nos instrumentos músicos” suas filhas e seu
filho Martim Correia.Evidentemente, em se tratando
das famílias aristocráticas brasileiras, os dotes musicais
não poderiam ser utilizados como forma permanente
de sustento: são práticas socialmente distintas o cultivo
da música como profissão ou como “elemento de
civilidade”, usando a expressão da época. À época
do convite de Sá e Benevides, Penteado encontrava-se
desprovido de recursos, pois havia esbanjado a fortuna
paterna em Lisboa, e a solução encontrada, enquanto
buscava formas mais nobres de aquisição de capital,
seria remediar-se instruindo os filhos do mais poderoso
brasileiro de seu tempo. Algum tempo depois,
Penteado se estabeleceria em São Paulo, após casar-se
com a filha de um latifundiário.
Fora do contexto religioso, além da citação de
Almeida Prado, a harpa aparece também em um
poema de Gregório de Mattos, animando uma festa.
Mesmo utilizada como principal acompanhante das
funções religiosas pelo interior do Brasil até as
primeiras décadas do século XVIII, a harpa não parece
ter-se difundido muito como instrumento doméstico.
Nem mesmo o cravo parece ter exercido essa função
em larga escala, permanecendo neste papel a viola
até ser sobrepujada pelo piano no século XIX.
Principal acompanhador dos romances, cantigas,
tonos e modinhas, além de ótimo veículo para a música
solo, a viola de mão era instrumento de versatilidade
incontestável. Suas variantes no século XVI incluíam
um instrumento de quatro ordens de cordas (a guitarra
renascentista), de seis ordens (conhecida na Espanha
como vihuela), e, no século seguinte, de cinco ordens
(muitas vezes chamada guitarra barroca). Este último
instrumento originaria mais tarde a viola caipira
brasileira, as diversas violas regionais portuguesas,
e a guitarra espanhola, ou violão. Nomes de tocadores
que se especializaram na viola de cinco ordens, como
Felipe Nery da Trindade, Manuel de Almeida Botelho
e João de Lima aparecem com destaque na obra de
Domingos do Loreto Couto, historiógrafo
pernambucano do século XVIII.
Além de chantre da catedral de Salvador por
vários anos, João de Lima — conhecido do poeta
Gregório de Mattos — foi pedagogo e compositor,
deixando obras de música sacra e profana
e dominando a execução musical em vários
instrumentos. Manuel de Almeida Botelho passou
vários anos em Portugal, protegido do patriarca
de Lisboa e do Marquês de Marialva. Loreto Couto
atesta que, além de muita música sacra, Botelho teria
composto “sonatas e tocatas tanto para viola como
para cravo”, além de música de salão, como
minuetes e tonos.
Forma de canção erudita bastante difundida na
Península Ibérica e América Latina, o tono humano
geralmente apresenta temática árcade, forma estrófica
com refrão, e textura a uma ou duas vozes agudas
contra um baixo, constituindo-se assim num ancestral
da modinha portuguesa. Quanto aos tonos de Botelho,
talvez se assemelhassem àqueles compostos pelo
português Antônio Marques Lésbio, com
acompanhamento à viola, ou mesmo com a peça
Matais de Incêndios, integrante dos manuscritos
19
de Mogi (da década de 1720 ou 1730), e trazidos
novamente à tona graças às pesquisas de Jaelson
Trindade, embora ainda reste alguma dúvida quanto
a se esta peça é um tono humano, como sugerido
por Trindade, ou um vilancico natalino, conforme
estudo de Paulo Castagna.
Embora não tenhamos notícia da sobrevivência
de peças compostas por aqueles violistas
pernambucanos e paulistas, podemos ter uma idéia
bastante aproximada do que tocavam, através das
fontes portuguesas do início do século XVIII, para
a viola de cinco ordens contendo o repertório-padrão
para a formação do instrumentista luso-brasileiro
daquela época: danças italianas, francesas, ibéricas
e de influência afro-brasileira como o canário, o vilão,
o arromba, o cumbé e o cubanco, além de muitas
fantasias e rojões.
É importante lembrar que o repertório popular
ibérico e latino-americano era muito menos
heterogêneo no século XVII do que em nossos dias.
Portugal havia reconquistado sua independência da
Espanha apenas em 1640. Naquela época, durante
a infância e juventude de Gregório de Mattos, os
elementos que ajudariam a definir a brasilidade apenas
começavam a tomar forma. Muita poesia tanto no
Brasil como em Portugal ainda era escrita em espanhol,
e, enquanto peças de Calderón e Lope de Vega eram
representadas em Salvador, autores brasileiros também
escreviam teatro naquele idioma. Naturalmente,
a música desse período também pareceria a nossos
ouvidos bastante espanhola, tratando-se menos de uma
influência nacional específica do que da evidência de
um estilo compartilhado e generalizado por toda
a Península Ibérica e América Latina, como o atestam,
por exemplo, os vilancicos e tonos de Gaspar
Fernandes e Antonio Marques Lésbio, bem como
o repertório português para viola e teclado.
Na ausência de documentos musicais, uma ótima
fonte de informações sobre a música não-religiosa
tocada e cantada no Brasil seiscentista é a obra poética
de Gregório de Mattos (1636-1696). Além de descrever
funções musicais e teatrais, de mencionar
instrumentistas e cantores e de citar peças instrumentais
comuns tanto em Portugal como na Espanha e América
Latina, Mattos usa vários tonos humanos espanhóis
como refrão ou base para glosas de sua autoria. Em
outros casos, Mattos usa modas profanas em português,
ou, no dizer dele próprio, canções que os “chulos”
cantavam. Religiosos e moralistas continuavam
encarando com suspeita esse repertório, sendo célebre
a condenação de Nuno Marques Pereira, atribuindo
aquelas modas à invenção do demônio — o qual, conta
Pereira, era exímio tocador de viola.
Na segunda metade do século XVIII, o repertório
musical que passa a difundir-se pela colônia é, por um
lado, o de danças afrancesadas como o minuete
e a contradança — as principais coreografias de salão no
Brasil até o início do século XIX — e, por outro lado, as
canções simples — as modas — agora influenciadas pelo
estilo galante da ópera e música sacra napolitanas, com
melodias e harmonias ainda mais simples e adocicadas,
despretensiosamente denominadas “modinhas”.
Se a princípio estas apresentavam uma temática
pastoril árcade, vinculada ao gosto poético da época,
o estilo é gradativamente influenciado pelo contexto
afro-brasileiro, tanto na maneira de falar como nos
ritmos e harmonias do lundu — aquela dança que tanto
escandalizou viajantes do norte da Europa —
originando assim a modinha brasileira, que acabaria
voltando para Portugal nas obras de poetas
e compositores como Domingos Caldas Barbosa
e Joaquim Manuel da Câmara.
Felizmente, foi preservada muita música desse
período, sendo notáveis as peças coletadas pelos
viajantes austríacos Spix e Martius, as modinhas
brasileiras preservadas na Biblioteca da Ajuda
e na Biblioteca Nacional de Lisboa, e as peças
instrumentais contidas no livro de saltério
de Antônio Vieira dos Santos, compilado no início
20
do século XIX. Há ainda uma única peça para
teclado do século XVIII, a chamada Sonata Sabará,
cuja autoria ainda permanece cercada de dúvidas.
Finalmente, os duetos concertantes para dois violinos
de Gabriel Fernandes da Trindade, da segunda
década do século XIX, nos dão uma idéia
do estiloda música de câmara para cordas
composta nos últimos tempos do Brasil-colônia.
CASAS DE ÓPERA E ACADEMIAS
Uma espécie de teatro moral com intervenções
musicais já se encontra presente no primeiro século
da colonização, nos autos preparados por José
de Anchieta e Manuel da Nóbrega. Tal como
na Europa, a finalidade didática do teatro jesuítico
era óbvia, e os números musicais cumpriam a função
de tornar mais atraente a mensagem de submissão
à igreja e ao rei. É evidente também a filiação desse
teatro aos autos ibéricos seiscentistas, em especial
os de Gil Vicente, sempre intercalando enredos leves
e cômicos com danças, canções e romances populares.
Nos séculos seguintes, os modelos passariam
a serLope de Vega e Calderón.
São bastante numerosos os relatos sobre
a representação de comédias musicadas nas casas
abastadas das cidades, ou mesmo ao ar livre, como
aquelas para as quais o pernambucano Antônio da
Silva Alcântara compôs a música em 1752. É quase
certo que tais comédias — a grande maioria escrita em
idioma espanhol — seguissem o modelo da zarzuela de
Antonio de Literes e Sebastián Durón, com árias, coros
e alguns recitados alternando com diálogos falados.
Durante o século XVII, não se tem notícia na
colônia da apresentação de óperas no sentido moderno
do termo, ou seja, a encenação de um enredo
integralmente posto em música. Mesmo no século
XVIII, além do modelo das óperas de Antônio José da
Silva, com diálogos falados e poucos números musicais,
não era incomum encenarem-se libretos operísticos
sem qualquer emprego da música, funções que eram
mesmo assim denominadas “óperas”.
Sendo o teatro e a ópera — nas suas variadas
acepções — desde cedo explorados no Brasil como
instrumentos de doutrinação ideológica, não tardariam
a aparecer, patrocinadas pelo poder público, casas
especificamente destinadas à representação de dramas,
comédias e entremezes em música — as casas de ópera
— que visavam promover uma educação cívica paralela
à educação religiosa da Igreja. No decorrer do século
XVIII, toda vila de maior porte passa a possuir,
além da igreja, uma casa de ópera, aparecendo
as duas muitas vezes lado a lado. Seguindo a marcha
de povoamento do interior que se sucede à descoberta
Romances Populares:
TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron
Discos; faixa 5: Romance da Nau Catarineta
DO ROMANCE AO GALOPE NORDESTINO. Quinteto Armorial.
Discos Marcus Pereira. Romance da Bela Infanta
José de Anchieta:
TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron
Discos; faixa 8: Quién te visitó, Isabel?; faixa 9: Mira Nero
A MÚSICA NA FESTA. Integrante do livro Festa: Cultura
e Sociabilidade na América Portuguesa; faixa 6: Venid a sospirar
con Jesu amado (Companhia Papagalia)
Marinícolas:
HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA: PERÍODO COLONIAL II. Ricardo Kanji.
Estúdio Eldorado; faixa 2
TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron
Discos; faixa 12
Matais de Incêndios:
HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA: PERÍODO COLONIAL I. Ricardo Kanji.
Estúdio Eldorado; faixa 36
A MÚSICA NA FESTA. Integrante do livro Festa: Cultura
e Sociabilidade na América Portuguesa; faixa 15 (Klepsidra)
Sonata ‘Sabará’:
NINGUÉM MORRA DE CIÚME. Collegium Musicum de Minas. Prod.
independente, faixa 5
Modinhas:
MARÍLIA DE DIRCEU. Ana Maria Kiefer, Edelton Gloeden e Gisela
Nogueira. Estúdio Eldorado.
MODINHAS E LUNDUS DOS SÉCULOS XVIII E XIX. Manuel Morais
e Segréis de Lisboa. Movieplay; faixa 8: Eu nasci sem coração;
faixa 13: Ganinha, minha Ganinha; faixa 19: Menina, você que
tem?
Coleção de Spix e Martius:
VIAGEM PELO BRASIL. Ana Maria Kiefer, Edelton Gloeden e Gisela
Nogueira. Estúdio Eldorado
Recitativo e Ária:
HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA: PERÍODO COLONIAL II. Ricardo Kanji.
Estúdio Eldorado; faixas 11 e 12
Duetos concertantes:
GABRIEL FERNANDES DA TRINDADE: DUETOS CONCERTANTES. Maria Ester
Brandão, Koiti Watanabe. Paulus
DISCOGRAFIA
21
do ouro, encontramos casas de ópera em várias
localidades das Minas Gerais, de Goiás
e tão longe quanto em Cuiabá, no centro
geográfico da América do Sul.
O repertório das casas de ópera no século XVIII
e boa parte do XIX incluía principalmente dramas
de Metastasio, como Ezio in Roma e Didone abbandonata,
que, além de transmitir alguma lição moral, retratavam
o herói como líder firme, sábio e magnânimo, mas
usando de disciplina quando necessário. Os libretos
escolhidos eram bastante convenientes para
a finalidade proposta, pois a platéia fatalmente
identificaria o herói com o soberano português.
Embora o musicólogo Francisco Curt Lange tenha
compilado uma lista impressionante de óperas
representadas no Brasil durante o século XVIII,
apenas algumas páginas de partituras sobreviveram,
impossibilitando qualquer tentativa de reconstituição.
Do período joanino, restam de Bernardo José de Souza
Queiroz a música de cena para uma peça teatral
de 1813, dois entremezes e uma ópera, Zaíra, composta
no Rio de Janeiro antes de 1816, além de alguns
números avulsos de óperas do baiano Damião Barbosa
de Araújo. Além disso, muita pesquisa resta a ser
realizada sobre as óperas de autores europeus —
Marcos Portugal e Pedro Antônio Avondano, para
citar os mais importantes — representadas em casas
de ópera brasileiras.
Por volta do final do século XVIII, devido
à escassez do ouro e ao fim do patrocínio público, as
casas de ópera desaparecem ou passam a ser definidas
mais e mais como espaços daqueles que podem pagar
e dos que, à custa de muita bajulação, conseguem um
lugar ao lado daqueles. Já os atores, cantores
e instrumentistas sempre foram na sua maior parte
mulatos e negros, cuja instrução teria sido provida
ou pelos mestres de capela locais ou, de maneira mais
informal, pelos diretores musicais dos regimentos
militares ou das bandas de músicos dos engenhos
e minas. Algumas vezes, tais artistas conseguiam ir bem
além da casa de ópera local, como foi o caso da
cantora mulata Joaquina Maria da Conceição Lapinha,
que apresentou-se com sucesso em teatros portugueses.
Não se colocando na posição subserviente de
músico ou ator profissional, o rico e o letrado teriam
restritas possibilidades de demonstração de suas
habilidades performáticas, fossem elas de poeta,
intérprete ou mesmo compositor. Além do espaço
doméstico, havia a academia, um misto de clube
literário e sociedade secreta que se difundiria pelos
principais centros urbanos do Brasil a partir da segunda
metade do século XVIII. É no contexto das academias,
ligadas à estética árcade, que surgem nomes como os
de Tomás Antônio Gonzaga (cujas poesias foram depois
musicadas na série de modinhas do ciclo de Marília
de Dirceu) e Domingos Caldas Barbosa (cristalizador
da modinha brasileira), e de obras como a cantata
Herói, egrégio, douto, peregrino, mais conhecida como
Recitativo e Ária para José Mascarenhas, composta
em Salvador em 1759.
Não sobreviveu até nossos dias o repertório
de música de câmara que talvez fizesse parte das
reuniões daqueles acadêmicos. Alguns deles possuíam
instrumentos de arco, como ficou registrado nos autos
de devassa da Inconfidência Mineira. Além disso,
comprovando a prática da música de câmara européia
no interior do Brasil, há o relato de Spix e Martius,
sobre um mineiro que intercepta os viajantes
no interior da mata e os convida a irem à sua casa,
onde, com instrumentos e partituras cedidas pelo
anfitrião, executam um quarteto de Pleyel.
ROGÉRIO BUDASZ
Doutor em musicologia (Phd) pela Universidade do Sul da Califórnia, mestre em musicologia pela Universidade de São Paulo
e professor da Universidade Federal do Paraná.
HARRY CROWL
A música no
Brasil Colonial
anterior à
chegada da
Corte de
D. João VI
22
OS AVANÇOS DOS ESTUDOS MUSICOLÓGICOS NOS
ÚLTIMOS ANOS, NA ÁREA DA MÚSICA PRODUZIDA
NO BRASIL NA ÉPOCA DA COLÔNIA, TÊM APONTADO
SEMPRE PARA UM FATO QUE JÁ NOS PARECE
IRREVERSÍVEL – DESCONHECE-SE TODA A MÚSICA
PRODUZIDA EM TERRAS BRASILEIRAS EM PERÍODO
ANTERIOR À SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII.
ASSIM COMO TAMBÉM DESCONHECEMOS A MAIOR
PARTE DO QUE SE PRODUZIU NAS REGIÕES NORTE
E NORDESTE EM TODA A ÉPOCA COLONIAL.
23
24
Em Recife, encontramos o nome de Luís Álvares
Pinto (1719-1789). Esse compositor, regente, poeta e
professor viajou, por volta de 1740, para Lisboa, onde
estudou com Henrique da Silva Negrão, organista da
catedral de Lisboa, e que foi discípulo de Duarte Lobo.
Na época em que viveu na capital portuguesa, ele
compunha, tocava violoncelo na Capela real, faziacópias de música e dava aulas em casas de nobres.
Na relação de músicos portugueses publicada por
José Mazza, em 1799, ele informa o seguinte sobre
esse compositor: “Luis Alvares Pinto natural
de Pernambuco, excelente Poeta Português e Latino,
muito inteligente na língua Francesa, e Italiana;
acompanhava muito bem rabecão, viola, rabeca veio
a Lxa aprender contraponto com célebre Henrique da
Silva, tem composto infinitas obras com muito acerto
principalmente eclesiásticas; compôs (ultimat.e humas
exequias) à morte do Senhor Rey D. José o primeiro
a quatro coros, e ainda em composições profanas tem
escrito com muito aserto” (sic).
Em 1761 já estava de volta a Pernambuco,
profissionalmente atuante. Nesse mesmo ano escreveu
a Arte de Solfejar, cujo manuscrito encontra-se
na Biblioteca Nacional de Lisboa. Foi responsável
pela formação de vários músicos e mestres-de-capela.
L. A. Pinto foi também militar, tendo tido a patente
de capitão do regimento de milícia confirmada
também em 1766.
Luís Álvares Pinto foi também um dos primeiros
comediógrafos nascidos no Brasil. Sua peça teatral em
três atos, Amor Mal Correspondido, foi encenada em 1780.
Em 1782, por ocasião da inauguração da igreja
de São Pedro dos Clérigos, foi confirmado na função
de mestre-de-capela, cargo que já desempenhava desde
1778 e que ocupou até 1789, ano de seu falecimento.
De suas poucas composições que alcançaram
os nossos dias restaram apenas um Te Deum alternado,
cuja orquestração perdeu-se, e um Salve Regina para três
vozes mistas, violinos I e II e baixo contínuo. Consta
ainda ter composto três hinos a Nossa Senhora da
Penha, um hino a Nossa Senhora do Carmo, um hino
a Nossa Senhora Mãe do Povo, um Ofício da Paixão,
matinas de São Pedro, matinas de Santo Antônio,
novenas, ladainhas e sonatas.
Oconjunto da produção musical encontrado na capitania-geral das Minas Gerais, na época do ciclo do ouro,tornou-se a referência mais antiga da produção musicalartística no Brasil. Salvo alguns poucos exemplos
isolados de manuscritos encontrados em outras regiões
do país, a produção mineira consistiu-se no primeiro
grande conjunto de obras musicais disponíveis para
o desenvolvimento de um estudo mais aprofundado
sobre a expressão musical no país.
Apesar do deslocamento do eixo econômico para
a região das Minas Gerais, é nas capitanias-gerais da
Bahia e Pernambuco que encontraremos as referências
musicais comprovadamente mais antigas do Brasil.
Considerando que as descobertas de Mogi-das-Cruzes
na década de 1980 apontam para as práticas
polifônicas portuguesas anteriores ao século XVIII,
somos obrigados a retomar a antiga capital da colônia,
Salvador, como ponto de partida para qualquer
consideração que queiramos fazer sobre a música
exclusivamente escrita no Brasil, na época anterior
à independência política. Sendo a região por onde
iniciou-se a colonização, a Bahia apresenta nessa
época uma sociedade já relativamente sedimentada,
se comparada com as demais regiões da Colônia.
Poderíamos acrescentar a Capitania de Pernambuco
como a segunda região mais importante do ponto
de vista sócio-cultural e econômico. Nesse sentido,
o achado mais importante até agora é uma obra
de caráter profano, anônima, composta em 1759,
denominada Recitativo e Ária. Esse manuscrito para
soprano, violinos I e II, e baixo contínuo, datado de
2/7/1759, está dedicado a José Mascarenhas Pacheco
Pereira de Mello, um importante magistrado da
“Casa de Suplicação”, a suprema Corte de Justiça
de Portugal, na época. Essa composição, que está
baseada num texto vernáculo, também de autoria
desconhecida, é uma laudatória em homenagem
ao referido magistrado, que estava ligado à “Academia
Brasílica dos Renascidos”, uma sociedade intelectual
semelhante à “Arcádia Romana”. O referido
magistrado estava recém-restabelecido de uma longa
enfermidade e, ao que parece, o Recitativo e Ária
foi composto especialmente para recebê-lo numa
das reuniões da “Academia”.
25
Se Luis Álvares Pinto foi o único compositor
nascido no Brasil que teve a oportunidade de estudar
em Lisboa — de acordo com a documentação
conhecida até o momento —, por outro lado,
o português André da Silva Gomes (Lisboa, 1752 —
São Paulo, 1844) foi um músico enviado pela
metrópole, no século XVIII, para ocupar a função
de mestre-de-capela numa vila importante da colônia.
Pouco se sabe sobre sua formação musical, apenas que
foi discípulo de José Joaquim dos Santos (ca. 1747 —
1801?), compositor português aluno do napolitano
David Perez (1711 — 1778), importante músico que
sistematizou o ensino musical em Portugal, cujas obras
foram amplamente difundidas inclusive no Brasil.
André da Silva Gomes nasceu em Lisboa em 1752 e
veio para o Brasil em março de 1774. Assim que
chegou, foi contratado para ocupar o cargo de mestre-
de-capela da Sé de São Paulo, tornando-se o quarto
ocupante da função. Suas atividades foram intensas,
pois, ao que parece, havia uma necessidade
de reorganização dos serviços musicais da Sé. Desde
sua chegada até 1801, foi também o responsável pela
música nas festas reais anuais da Câmara de São Paulo.
Silva Gomes teve vários discípulos e agregados, entre
eles futuros mestres-de-capela e organistas, como foi
o caso de Bernadino José de Sena, que foi seu agregado
em 1776 e mais tarde, desempenhou o cargo
de organista na vila de Nossa Senhora do Rosário
de Pernaguá, atual Paranaguá, PR.
Como já acontecia nas demais partes da colônia,
o compositor precisou atuar em outras profissões para
poder sobreviver. Após requerer algumas funções que
lhe permitiriam independência econômica em relação
à capela da música da Sé, foi nomeado interinamente,
em 1797, para o cargo de professor régio de gramática
latina da cidade de São Paulo, tendo sido efetivado por
D. Maria I no cargo de professor de latim em 1801.
André da Silva Gomes abandonou todos os serviços
Apesar do deslocamento do eixo econômico
para a região das Minas Gerais, é nas capitanias gerais
da Bahia e Pernambuco que encontraremos as referências
musicais comprovadamente mais antigas do Brasil.
 J. J. Emerico Lobo
de Mesquita.
Tércio (1783).
Fotografia
do original
autógrafo.
FUNARTE
26
musicais além da Sé, de cujo salário abriu mão
em benefício da capela de música da catedral, que não
deixou por solicitação expressa do bispo. As primeiras
composições de A. da Silva Gomes, datadas e
assinadas, remontam ao ano de sua chegada
a São Paulo, 1774. Trazidas de Portugal ou copiadas
aqui por ele, existem diversas obras de compositores
portugueses e italianos, na maioria salmos. Compôs
mais de uma centena de obras. Muitas delas foram
recopiadas posteriormente por outros, sem que se
transcrevesse o nome de seu autor. Suas composições
mais notáveis são a Missa a 8 vozes e instrumentos
e a Missa a 5 vozes. Sua última composição foi uma
Missa de Natal, 1823, composta para ser executada na
Matriz da Freguesia de Acutia (atual Cotia, SP), ao que
parece, uma adaptação de outra obra bem anterior.
No último quartel do século XVIII aparece ainda
o nome de Theodoro Cyro de Souza como mestre-de-
capela na catedral da Bahia. Esse é o ultimo caso de
nomeação direta de Portugal para o cargo em Salvador,
e é também o primeiro compositor a atuar na região
do qual encontramos exemplos musicais concretos.
Nascido em Caldas da Rainha, Portugal, em 1766,
Theodoro Cyro de Souza recebeu sua formação
musical no Seminário Patriarcal em Lisboa,
provavelmente sob a orientação de José Joaquim dos
Santos. Em 1781, partiu de Lisboa para Salvador, onde
assumiria a função de mestre-de-capela, com
o patrocínio de D. Pedro III, da mesma maneira como
ocorrera com André da Silva Gomes, em São Paulo.
A obra de Theodoro Cyro de Souza parece ter
gozado de considerável reputação em toda a região,
pois sua única composição encontrada no Brasil até
o momento, os Motetos para os passos da Procissão do
Senhor, é uma cópiado final do século XIX realizada
em Alagoinhas − BA, que foi localizada numa coleção
de música para a Semana Santa, anônima, proveniente
de Propriá − SE, divulgada numa primeira transcrição
por Alexandre Bispo.
MÚSICA NAS MINAS GERAIS
O isolamento imposto pela Coroa portuguesa, assim
como o próprio afastamento geográfico da região da
Capitania-Geral das Minas Gerais, fará com que toda a
organização da vida cotidiana, religiosa e cultural dessa
parte do Brasil torne-se um tanto peculiar, necessitando,
assim, de critérios específicos para sua avaliação.
A descoberta do ouro trouxe enormes benefícios
para a Coroa portuguesa, como já se sabe. A partir
de 1696, a grande movimentação humana em direção
ao interior do continente fez com que as autoridades
portuguesas regulamentassem a ocupação dessas
regiões. Preocupados com o contrabando de riquezas,
a Coroa viu-se forçada a proibir a entrada de ordens
monásticas nas regiões recém-ocupadas. Devido
ao fato de que o Estado português e a Igreja Católica
formavam uma espécie de unidade corporativa desde
o século XVI, a inviolabilidade dos mosteiros
e conventos era uma realidade aparentemente
irreversível. Portanto, ao mesmo tempo em que
a autoridade eclesiástica representava o Estado, ela
também possibilitava o contrabando de ouro e pedras
preciosas diante das autoridades civis, sem que essas
pudessem fazer muito a respeito. Diante de tal situação,
muito comum nas regiões do Nordeste brasileiro,
determinou-se que toda a vida religiosa na região
das minas fosse organizada por ordens leigas,
ou irmandades formadas por homens comuns,
que deveriam contratar todos os serviços relativos
ao “bom desempenho das funções religiosas”.
Na verdade, o denominativo “pardo” foi criado
pelos portugueses para não haver distinção entre
negros forros, mulatos ou mesmo brancos
nativos sem posses ou posição social.
27
Essas irmandades eram denominadas também
como ordens terceiras, confrarias e arquiconfrarias,
de acordo com sua importância na comunidade.
Eram distribuídas por etnias, ou seja, homens brancos,
pardos ou negros. O Estado colonial incentivava
a rivalidade entre essas agremiações, que cuidavam
de desde a construção da igreja até a contratação
de artistas para a realização da decoração interna,
talha, escultura e pintura, assim como a contratação
de músicos para a criação e interpretação da música
que deveria ser usada nas cerimônias. A maior parte
dos músicos e artistas atuantes na região era “parda”,
ou seja, de sangue mestiço de brancos e negros.
Na verdade, o denominativo “pardo” foi criado pelos
portugueses para não haver distinção entre negros
forros, mulatos ou mesmo brancos nativos sem posses
ou posição social.
A informação mais antiga que temos a respeito
de um compositor ou regente ou organista, na antiga
Vila Rica, é a de que Bernardo Antônio recebeu
a soma de 200 oitavas de ouro pela música anual
de 1715. Esse dado consta no livro de receitas e
despesas da Irmandade de Santo Antônio. Ainda na
primeira metade do século XVIII, encontramos os
nomes de Francisco Mexia e de Antônio de Souza
Lobo, em Vila Rica, assim como o do Mestre Antônio
do Carmo, em São João del Rei. Todas as notícias
relativas à música em Minas no século XVIII estão
restritas aos livros manuscritos de receitas e despesas
das irmandades. Não há registros de nomeações
ou informações impressas sobre os compositores, pois
a imprensa inexistia na colônia. O cargo de mestre-de-
capela era um privilégio das sedes de bispado, portanto
somente a vila de Mariana contava com nomeações
para essa função. Nas demais vilas encontramos
a denominação de “responsável pela música”, o que
não implicava um cargo permanente, pois um músico
responsável pelo serviço em um ano determinado
poderia ser substituído no ano seguinte.
A documentação musical propriamente dita
encontrada até o momento concentra-se numa
produção posterior a 1770. Na condição de capital
da capitania, Vila Rica, atual Ouro Preto, foi local
de atividade mais intensa durante o período de final
do século XVIII até por volta de 1850.
O compositor mais antigo cuja obra é parcialmente
conhecida é Ignácio Parreiras Neves (ca. 1730—1794?).
A alusão mais remota ao seu nome é a de seu ingresso
na Irmandade de São José dos Homens Pardos,
em 16/4/1752. A partir daí, seu nome aparece como
regente-compositor e cantor (tenor), em várias ocasiões
até 1793, atuante em quase todas as Irmandades
e Ordens 3as de Vila Rica. De sua obra, conhecemos
apenas três exemplos bem distintos entre si. São eles:
o Credo em Ré maior, a Antífona de Nossa Senhora — Salve
Regina e a Oratória ao Menino Deus na Noite de Natal.
Nenhuma dessas obras está datada. A mais curiosa
de todas é a Oratória. Trata-se de uma composição
sobre texto vernáculo em português. É a única
do gênero encontrada até agora no Brasil. No período
em que Parreiras Neves atuou como cantor, dois outros
músicos importantes foram seus colegas no conjunto
vocal. São eles: Francisco Gomes da Rocha e Florêncio
José Ferreira Coutinho. Considerando o fato de que
esses músicos eram mais novos e que atuaram juntos
por mais de 15 anos, acreditamos que esses dois
tenham sido discípulos de I. P. Neves. Não há qualquer
indicação de como esses músicos que viveram na
região das minas aprenderam a arte da solfa. Não
há menção em qualquer documento da existência
de alguma escola de música. Portanto, a resposta mais
razoável seria a de que eles se desenvolveram num
processo de iniciação que seguia o modelo de relação
mestre/discípulo, como no caso dos artistas plásticos,
Luís Álvares
de Azevedo Pinto.
Te Deum Laudamus.
Secretaria
de Educação
e Cultura de
Pernambuco, 1968.
Restauração
do Padre Jaime Diniz.
FUNARTE
28
como já pode ser constatado.
Francisco Gomes da Rocha (1754?—1808) ingressou
na Irmandade da Boa Morte da Matriz de Nossa
Senhora da Conceição, na Freguesia de Antônio Dias,
em julho de 1766, e na Irmandade de São José dos
homens Pardos, em junho de 1768.
Em todas essas confrarias, ocupou cargos
importantes, como o de escrivão e tesoureiro.
Apresentou-se como regente e contralto em inúmeras
festividades, durante longo período da segunda metade
do séuclo XVIII. Foi também timbaleiro da tropa de
linha, segundo o recenseamento de 1804. Nesse mesmo
recenseamento consta que Gomes da Rocha contava
com 50 anos na época do mesmo, tendo, portanto,
nascido em 1754. De sua produção, conhecemos
apenas uma parte mínima, que são as obras
Invitatório a 4 para 4 vozes, 2 trompas, violinos I
e II, e baixo contínuo; Novena de Nossa Senhora do Pilar,
de 1789, para 4 vozes, 2 trompas, vln. I e II, viola
e baixo contínuo; Spiritus Domine, de 1795, para
2 coros, 2 oboés, 2 trompas, vln. I e II, viola e baixo
contínuo. Há ainda uma obra incompleta,
as Matinas do Espírito Santo, também de 1795.
Florêncio José Ferreira Coutinho (1750—1820) foi
regente, cantor (baixo) e trombeteiro do Regimento
de Cavalaria Regular. Por três vezes foi contemplado
com a contratação para a realização do serviço anual
das festas oficiais do Senado da Câmara de Vila Rica.
Em 1770, entrou para a Irmandade de São José
dos Homens Pardos, que lhe registrou
o falecimento em 10/06/1820.
Outros três compositores de Vila Rica que
mencionaremos são Marcos Coelho Neto (1746?—
1806), Jerônimo de Souza Queiroz (17..—1826?)
e o Pe. João de Deus de Castro Lobo (Vila Rica,
1794 — Mariana, 1832).
Coelho Neto, que era trompista, clarinista
(trompetista), timbaleiro do 9º Regimento, além
de compositor e regente, exerceu ainda, segundo
documento localizado no cartório do 1º ofício de Ouro
Preto pelo professor Ivo Porto de Menezes, o ofício de
alfaiate. Em 1785 foi designado pelo Governador-Geral
Luís da Cunha Menezes para reger a música de três
óperas e dois dramas reais, por ocasião dos festejos
LUÍS ÁLVARES PINTO: TE DEUM
MANOEL DIAS DE OLIVEIRA: MISERERE EMAGNIFICAT
IGNÁCIO PARREIRAS NEVES: SALVE REGINA
Negro Spirituals au Brésil Baroque
Direction: Jean-Christophe Frisch. K617113 - França
LUÍS ÁLVARES PINTO: TE DEUM
Camerata Antiqua de Curitiba
Regência: Roberto de Regina. PAULUS 11563-0 - Brasil
IGNÁCIO PARREIRAS NEVES:
ORATÓRIA AO MENINO DEUS NA NOITE DE NATAL
Americantiga Coro e Orquestra de Câmara
Direção: Ricardo Bernardes.
AMERICANTIGA PLCD51837 - Brasil
ANDRÉ DA SILVA GOMES:
MISSA A 8 VOZES E INSTRUMENTOS
Orquestra Barroca do 14º Festival Internacional de Música
Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora
Direção: Luís Otávio Santos
CD 14º Festival - PRÓ-MÚSICA/ Juiz de Fora, MG - Brasil
VENI SANCTE SPIRITU
Americantiga Coro e Orquestra de Câmara
Direção: Ricardo Bernardes
AMERICANTIGA, Vol. I PLCD51837 - Brasil
JOSÉ JOAQUIM EMERICO LOBO DE MESQUITA:
MISSA EM MI BEMOL MAIOR
Orquestra Barroca do 12º Festival Internacional de Música
Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora
Direção: Luís Otávio Santos
CD 12º Festival - PRÓ-MÚSICA/ Juiz de Fora, MG - Brasil
MATINAS PARA QUINTA-FEIRA SANTA
Orquestra Barroca do 11º Festival Internacional de Música
Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora
Direção: Luís Otávio Santos
CD 11o.Festival - PRÓ-MÚSICA/ Juiz de Fora, MG - Brasil
MATINAS DE SÁBADO SANTO
Calíope
Direção: Júlio Moretzsohn
Museu da Música da Mariana III (CD - MMM III). Mariana, MG -
Brasil
MISSA PARA 4a FEIRA DE CINZAS
Calíope
Direção: Júlio Moretzsohn. CAL-001 Rio de Janeiro, RJ - Brasil
PE. JOÃO DE DEUS DE CASTRO LOBO:
MATINAS DE NATAL
Coral Porto Alegre e Orquestra
Regência: Ernani Aguiar
CD - FUNPROARTE, Prefeitura de Porto Alegre. Porto Alegre,
RS - Brasil
DISCOGRAFIA
29
do casamento dos infantes D. João e Mariana Vitória.
Em 1804, ano do recenseamento geral de Vila Rica,
o compositor declara contar com 58 anos, tendo
nascido, portanto, em 1746. De sua obra, podemos citar
o hino Maria Mater Gratiae, de 1787, o Salve Regina
de 1796, e a Ladainha em Ré Maior, denominada
em alguns manuscritos como Ladainha das Trompas.
Seu filho, também chamado Marcos Coelho Neto,
foi trompista e trombeteiro do 19º Regimento.
Em 1804, ele declarou ter 28 anos. Faleceu em 1823.
Acreditamos que as obras que levam o nome
de Marcos Coelho Neto são da autoria do pai, pois
apresentam características formais muito semelhantes
entre si, e o filho seria demasiadamente jovem quando
o hino Maria Mater Gratiae foi composto.
Jerônimo de Souza Queiroz foi organista
e organeiro. Era filho do português Jerônimo de Souza
Lobo Lisboa e Anna Maria Queiroz Coimbra.
Seu nome tem sido freqüentemente confundido com
o de seu pai, pois Souza Lobo foi, igualmente, um
importante músico em Vila Rica. Souza Queiroz atuou
na Irmandade do Santíssimo Sacramento do Pilar entre
1798 e 1801. Em 1826, compôs a Missa e Credo
a 4 vozes com acompanhamento “d’órgão”. A data
exata do seu falecimento é ainda ignorada, não tendo o
seu nome aparecido em qualquer referência após 1826.
De sua obra, dispomos hoje de uma coleção
aproximada de 20 manuscritos. Suas composições
mais importantes são: Credo em Ré Maior; Missa e Credo
a 4 para coro e órgão (1826); Zelus Domus Tuae
(Ofício de 4a feira santa); Astiterunt Reges Terrae (Ofício
de 5a feira santa); In Pace (Ofício de 6a feira santa).
O último grande compositor ativo em Vila Rica
foi, sem dúvida, o Pe. João de Deus de Castro Lobo
(1794-1832). As primeiras notícias da atividade musical
do Pe. João de Deus datam de 1810, quando seu nome
aparece como o responsável pela regência da
temporada de Ópera em Vila Rica. De 1817 a 1823,
atuou como organista da Ordem 3a do Carmo,
alternadamente, a partir de 1819, com sua formação
sacerdotal no Seminário de Mariana, que se
completará em 1821. Apesar de ter falecido bastante
jovem, em 1832, o Pe. João de Deus foi um dos
compositores mais “ousados” de sua época, escrevendo
obras de grande dificuldade técnica tanto para as vozes
quanto para os instrumentos. Pe. João de Deus deixou
variada obra litúrgica, além da Abertura em Ré-Maior,
que é o único exemplar de música puramente
instrumental encontrado em Minas pelo autor
do presente texto.
Suas principais composições são: Missa e Credo
a 8 vozes e orquestra; Missa a 4 vozes em Ré maior; Matinas
de Natal; Matinas de Nossa Senhora da Conceição; Te Deum
(1822); 6 Responsórios Fúnebres (1832).
O compositor faleceu em Mariana, aos 38 anos
de idade, em 1832.
Antes do Pe. João de Deus, Mariana, como
sede do bispado, foi um centro musical de grande
importância, sendo que a função de mestre-de-capela
foi criada pelo primeiro bispo D. Frei Manoel da Cruz.
Ainda na década de 1750, chega à Sé de Mariana
o Órgão Arp Schnitger, fabricado em Hamburgo,
no norte da Alemanha, originalmente para servir
em Lisboa. Esse instrumento foi uma doação do rei
ao bispado e é considerado, hoje, como o órgão Arp
Schnitger mais importante fora da Europa.
Ainda na década de 1750, chega à Sé de Mariana
o Órgão Arp Schnitger, fabricado em Hamburgo, no norte
da Alemanha (...) Esse instrumento foi uma doação
do rei ao bispado e é considerado, hoje como o órgão
Arp Schnitger mais importante fora da Europa.
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Outro compositor importante que provavelmente
atuou em Mariana foi Francisco Barreto Falcão,
procedente da Vila de Sabará. Algumas de suas obras
encontram-se em manuscritos, no Museu da Música
de Mariana.
Da avaliação que se pode fazer até o momento
da produção musical de Vila Rica de Nossa Senhora
da Conceição do Sabarabussu, atual Sabará,
percebemos que a produção musical de lá foi
igualmente intensa, porém a perda da documentação
musical foi ainda maior que em outros lugares.
Além de Francisco Barreto Falcão, que atuou em
Mariana, encontramos Manuel Júlião da Silva Ramos
(1763-1824), que foi descoberto pelo musicólogo Régis
Duprat. O compositor Manuel Júlião aparece
exercendo funções musicais na Vila de Atibaia, SP,
em 1808. É autor de um Credo, cuja linguagem está
bem próxima da dos demais compositores.
As Vilas de São José e São João del-Rei
desempenharam também um importante papel na
produção musical do período. O compositor de maior
destaque da região é, sem dúvida, Manuel Dias
de Oliveira (1735 − 1813). Organista e regente, esse
compositor jamais atuou fora de sua região, onde
foi organista na Matriz de Santo Antônio de São José
del-Rei (atual Tiradentes).
A maior parte das obras atribuídas a Manuel Dias
de Oliveira apresenta, às vezes, estilos muito diferentes
entre si, fazendo com que coloquemos em dúvida boa
parte do conjunto de obras que hoje conhecemos.
Em São João del-Rei, os compositores mais
importantes são Antônio dos Santos Cunha,
Pe. Manuel Camelo, João José das Chagas, Francisco
Martiniano de Paula Miranda e Lourenço José
Fernandes Braziel.
Santos Cunha representa, juntamente como
Pe. João de Deus, o início das influências românticas
na música produzida na região das minas. Esse
compositor atuou em São João entre 1815 e 1825;
ignoram-se as datas de seu nascimento e morte.
A primeira notícia escrita de atividade musical
em São João del-Rei data de 1717, quando o
Governador da Capitania de Minas Gerais, Dom Pedro
de Almeida e Portugal, conde de Assumar, fez uma
visita à antiga vila.
O manuscrito de Samuel Soares de Almeida relata
minuciosamente a recepção, descrevendo desde
a marcha de entrada da comitiva na vila até a
solenidade na Igreja Matriz, “ao som de música
organizada pelo mestre Antônio do Carmo”. Na Igreja
foi entoado o Te Deum, “que foi seguido por todo
o clero e música”, o que provavelmente indica uma
forma alternada de canto em polifonia com os padres
cantando um verso gregoriano e o conjunto musical
respondendo com um verso musical, tal como se faz,
ainda hoje, na cidade.
Daí em diante, o mestre Antônio do Carmo
responsabiliza-sepela parte musical de importantes
festas realizadas na vila. Em 1724 dirigiu a música na
solenidade de benção da nova Matriz. Quatro anos
depois, organizou a música para a festa de São João
Batista, promovida pelo Senado da Câmara, e, em
1730, os “desponsórios dos Sereníssimos Príncipes
Nossos Senhores”. Pe. Manuel Camelo parece ser
o compositor mais antigo do qual conhecemos algum
exemplo musical. Trata-se de uma Antífona:
Flos Carmeli. Lourenço José Fernandes Braziel atuou
em fins do século XVIII e início do XIX, sendo que
o inventário de seus bens nos dá uma visão bastante
ampla do tipo de repertório que era conhecido pelos
A maior parte das obras atribuídas a Manuel Dias
de Oliveira apresenta, às vezes, estilos muito diferentes
entre si, fazendo com que coloquemos em dúvida
boa parte do conjunto de obras que hoje conhecemos.
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compositores mineiros da época. João José das Chagas
e Francisco Martiniano de Paula Miranda são
compositores também representativos da música
do início do século XIX.
Na Vila de Tamanduá (atual Itapecerica) aparece
o nome de José Rodrigues Dominguez de Meireles
como músico. Em época ignorada, esse compositor
transferiu-se para a Vila de Nossa Senhora da Piedade
(atual Pitangui). De sua obra, a referência mais antiga
que temos é uma página de rosto existente no Museu
da Música de Mariana; trata-se de uma Antífona
de Santo Antônio, de 1797, que se encontra perdida.
Existe ainda, no Museu da Música, uma Antífona
Portuguesa a Sta. Rita. As demais obras encontradas
são: Ofício de Domingo de Ramos (1810); Ofício de 4a feira
de Trevas “Zelus Domus” (1811); Ofício de 5a feira
“Astiterunt” (1811); Ofício de Finados, todas completas.
Todas essas obras estão no Arquivo Curt Lange,
em Ouro Preto. Consta no arquivo que pertenceu
ao Maestro Vespasiano Santos, em Belo Horizonte,
a ária a solo Oh Lingua Benedicta, de 1815.
Em 1985, foram descobertas pelo autor deste texto,
uma Trezena de Santo Antônio e um Domine
ad Adjuvandum de Dominguez de Meireles.
Outro importante compositor é Joaquim de Paula
Souza, o “Bonsucesso”, de Prados, que deixou uma
Missa em Sol Maior e outra em Dó Maior. Na região
diamantina, ou seja, da Vila do Príncipe do Serro
do Frio (atual Serro) e do Arraial do Tejuco (atual
Diamantina), atuaram José Joaquim Emerico Lobo
de Mesquita (1746?−1805), José de Paiva Quintanilha
(século XVIII/XIX) e Alberto Fernandes de Azevedo
(século XVIII/XIX).
Lobo de Mesquita atuou como organista
e compositor na Vila do Príncipe até por volta de 1775,
quando se transferiu por motivos desconhecidos para
o Arraial do Tejuco. Sua obra datada mais antiga que
conhecemos é a Missa para Quarta-feira de Cinzas,
de 1778, para 4 vozes, violoncelo obligatto e órgão
(baixo contínuo), o que mostra que o compositor,
muito provavelmente, já atuava como organista
nessa época. Em 1792, encarregou-se de compor um
Oratório para a Semana Santa, que se encontra perdido.
Em 1795 abandonou o Carmo e em 1798, o Arraial
do Tejuco, por problemas financeiros, indo instalar-se
em Vila Rica, onde viveu por um ano e meio. Com
a decadência da Vila e a falta de melhor remuneração
para o seu trabalho, Lobo de Mesquita abandona
Vila Rica em 1800, passando o cargo que ocupava na
Ordem 3a do Carmo para Francisco Gomes da Rocha.
A partir de dezembro de 1801 até a morte, tocava nas
missas da igreja da Ordem 3a do Carmo, no Rio
de Janeiro, em troca de 40 mil réis. O compositor
faleceu em 1805. Como todos os outros compositores
de sua época, a maioria de sua obra se perdeu.
Algo em torno de 60 manuscritos chegaram
até os nossos dias.
José de Paiva Quintanilha atuou na Vila do
Príncipe durante toda a sua vida e, ao que parece, pelo
estilo de sua Missa em Sol Maior, foi discípulo de Lobo
de Mesquita. Desse mestre, no momento, pouco
podemos dizer além de que recebeu, da Irmandade do
Santíssimo Sacramento da Vila do Príncipe, para
compor a música da Semana Santa de 1790, 1792, 1807
e 1808, e que seu nome figura numa relação de
músicos da Irmandade de Santa Cecília no período
de 1817 a 1838.
O nome de Alberto Fernandes de Azevedo
aparece no período de 1804−1805 na Capela das
Mercês do Tejuco, tendo entrado para esta Irmandade,
segundo Curt Lange, em 24/9/1799. Em 1818 e 1819
foi encarregado de compor a música para cravo para
a Semana Santa para a Irmandade do Santíssimo
Sacramento da Matriz de Santo Antônio, no Tejuco.
Apenas duas obras suas chegaram até os nossos dias:
Gradual Veni Sancte Spiritus para quatro vozes, violino
I e II, viola, trompas e baixo; e uma Encomendação
para quatro vozes e baixo.
HARRY CROWL
Compositor e musicólogo. Tem obras apresentadas no Brasil e em vários países. Prof. da Escola de Música e Belas Artes do Paraná.
Diretor artístico da Orquetra Filarmônica Juvenil da Universidade Federal do Paraná.
Produtor de programas da Rádio Educativa do Paraná e da Rádio MEC. Presidente da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea (2002−2005).
MÚSICA NA CORTE DO BRASIL
O
PROF. DR. MAURÍCIO MONTEIRO
1808-1821
Entre
Apolo e Dionísio
s projetos de transferência da Corte somente se
concretizaram no período em que as incursões
napoleônicas ameaçaram o Estado de Portugal
e a continuidade da casa de Bragança. Nos inícios
do século XIX, diante do medo e das ameaças que
levariam à perda do poder e de partes do território
português, as opiniões sobre a retirada da Família Real
e dos cortesãos para o Brasil não foram unânimes.
Para alguns se tratava de uma traição; para outros,
estratégia. Podia ser, em outras palavras, tanto
o abandono do povo e do trono, como o único recurso
capaz de manter a casa monárquica, tendo em vista as
ameaças de Napoleão. O marquês de Alorna já havia
alertado, paradoxalmente, à Corte portuguesa para
os perigos de permanência da Corte em Portugal, na
iminência do ataque francês, e para os benefícios que
Na página ao lado: Henrique Bernardelli.
José Maurício tocando para D. João VI.
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL
33
34
essa mesma retirada estratégica poderia gerar. Para
o marquês de Alorna, foi estratégica e importante
a vinda de D. João VI e da Família Real para o Brasil,
porque daqui, como um imperador em um vasto
território, os domínios poderiam expandir-se
e o monarca poderia conquistar facilmente “as colônias
espanholas e aterrar em pouco tempo as de todas as
potências da Europa”1. As recomendações do marquês
de Alorna não foram novidades nos inícios do século
XIX em Portugal. Não foi também a primeira vez que
os franceses incomodaram a monarquia portuguesa,
e muito menos era nova a aliança com os ingleses.
Desde os tempos de D. João III, depois nos reinados
de D. João IV e de D. Luíza de Gusmão, a monarquia
já admitia um projeto de se instalar fora das mediações
de Portugal e se estabelecer em algum lugar
do ultramar. Ou porque temia as interferências dos
estrangeiros – como no caso dos franceses na primeira
metade do século XVII e na derradeira expansão
napoleônica nos inícios do século XIX, ou porque
realmente confiavam no potencial econômico
do Brasil, a Corte portuguesa pretendeu, durante
quatro séculos, retirar-se de Portugal2. Se pensarmos
como pensou o marquês de Alorna, a emotividade com
que a carta foi escrita e a estratégia que ela propunha,
a retirada da Família Real para o Brasil era necessária
havia muito tempo e inevitável, diante as ameaças
de Junot. Não bastava somente uma retirada nem
as lembranças de uma terra promissora, que por direito
de conquista deveria acolher o príncipe e sua família.
Foi preciso ainda reforçar, nesse caso como
um atrativo para a retirada, as dimensões da colônia
e a possibilidade da conquista de territórios vizinhos.
Como estratégia política ou como reação que
previa a expansão francesa, o príncipe regente, sua
mãe debilitada, a princesa Carlota Joaquina e seus
filhos, vieram para o Brasil e aqui se estabeleceram por
13 anos, comseus costumes e suas práticas. A primeira
mudança foi acolher um número estimado de reinóis
entre 10.000 e 15.000 indivíduos; a segunda, já
no plano das perdas e da autoridade, começou nos
despejos. Para toda população que tinha uma das
residências “das mais excelentes”, ou pelo menos
habitável, estaria sujeita, mais por obrigação
que por espontaneidade, a ceder sua residência
aos portugueses. As autoridades coloniais mandaram
marcar nessas casas as iniciais P. R. impressas nas
portas das casas; seriam para uns, “Príncipe Regente”,
para outros, “Ponha-se na Rua”3. Com a instalação
da Corte e com as medidas tomadas por D. João, as
relações com os estrangeiros foram mais abrangentes.
Spix e Martius mostram que vários países vendiam
produtos para o Brasil: da Inglaterra vinham algodão,
chitas, panos finos, porcelana e cerveja; de Gibraltar,
vinhos espanhóis; da França, artigos de luxo, jóias,
móveis, licores finos, pinturas e gravuras; da Holanda,
cerveja, objetos de vidro e tecidos de linho; da Áustria,
relógios, pianos e espingardas; e vários outros produtos
da Alemanha, Rússia, Suécia, Estados Unidos, Guiné,
Moçambique, Angola e Bengala4. O produto interno,
a manufatura e a indústria, que ainda começavam
a crescer no Brasil, não eram competitivos, nem
em termos de gosto nem em termos de tecnologia
da civilização, com os da Europa. Os hábitos
estrangeiros foram, dessa forma, assimilados pelos
cariocas, seja pela observação do outro, seja pela
imitação de seu comportamento.
Durante todo o período joanino, houve no Rio
de Janeiro uma intensa atividade musical, distribuída
basicamente em dois setores, o da Corte, onde
a qualidade era imprescindível, e o de fora da Corte,
em que a funcionalidade era festiva e mítica. É
importante pensar nisto, numa complexidade que
surge no momento em que negros e mestiços são
Os músicos diletantes ou
amadores dividiam-se entre
os negros e mestiços, com seus
lundus, modinhas e batuques, e
brancos pobres que normalmente
tinham uma outra ocupação,
que lhes assegurava o sustento.
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chamados para tocar em festas religiosas, muitas vezes
com seus instrumentos típicos e com suas próprias
interpretações. Arregimentar músicos, pintores e outros
artífices para algum trabalho ou para abrilhantar
alguma festa em caráter de urgência foi uma medida
comum nos tempos de D. João VI. Na verdade era
necessário atender um desejo de manter a pompa,
a ostentação e a visibilidade de um gosto; mas para isso
era necessário que houvesse mão-de-obra suficiente.
Muitas vezes não era possível. Em algumas situações,
criava-se, literalmente, o artífice e artesão,
normalmente uma maioria de negros, mestiços
e brancos pobres, cujo desejo e habilidade eram
formulados pela ordem e obediência. Em algumas
circunstâncias, para atender à demanda musical,
ou de outra atividade artesanal, o que valia era o poder
de um sobre o outro. O caso dos músicos pobres,
dos diletantes que estavam à mercê dessas relações
de poder, não foi diferente. Robert Southey chega
a falar de “devotos músicos” que eram chamados
para as festas das igrejas “muitas vezes por água”5 .
Os músicos diletantes ou amadores dividiam-se entre
os negros e mestiços, com seus lundus, modinhas
e batuques, e brancos pobres que normalmente tinham
uma outra ocupação, que lhes assegurava o sustento.
Entre esses diletantes, encontrava-se ainda alguns
professores, mecânicos e “barbeiros-cirurgiões”.
No Rio de Janeiro já existia uma vida musical
significativa para aqueles tempos históricos, com
compositores ativos e importantes, como Lobo
de Mesquita, que saiu de Minas e foi para o Rio, morto
em 1806; José Maurício Nunes Garcia, mestre-de-
capela, compositor e organista que se tornou uma
das maiores expressões da História da Música no
Brasil, e Gabriel Fernandes da Trindade, violinista
e compositor, um dos mais prolíficos instrumentistas da
Colônia e do Brasil Reino. Além desses ilustres, tem-se
ainda o vasto universo dos anônimos. A vinda da
Família Real para o Brasil, juntamente com alguns
dos compositores e intérpretes portugueses que
serviram a Corte em Portugal, influenciou o estilo
e as práticas desses músicos coloniais, “construindo”
uma nova percepção do gosto e uma nova maneira
de observar o mundo das artes. O surgimento de
instituições de corte, como a Capela e Câmara Reais,
favoreceu a expansão da atividade musical, criou mais
Neukomm, Sigismund. Retrato de autoria de Ary Scheffer.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
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oportunidades de trabalho e redefiniu a hierarquia
entre os músicos. As famílias aristocráticas que vieram
com D. João VI, ou que aqui se aproximaram dele,
contribuíram com seus comportamentos e hábitos
de ouvir música em saraus e reuniões sociais. Em tudo
isso pode-se somar ainda a circulação de viajantes
e negociantes estrangeiros, a freqüência e a pompa que
as festividades adquiriram e, sobretudo, a construção
do Real Teatro de São João, palco ideal para
as representações dramáticas. Se os homens vão e vêm,
com eles circulam também as idéias.
A circulação de músicos estrangeiros no Rio de
Janeiro joanino foi importante para o estabelecimento
de uma prática de corte, para sustentar a demanda de
música e, sobretudo, ajudar a construir um novo gosto,
baseado em práticas cortesãs. A vinda dos cantores
castrados, o serviço prestado por Marcos Portugal e em
seguida a vinda de Neukomm foram acontecimentos
importantes que transformaram a idéia da criação e da
recepção musical. Todas essas mudanças ocorridas nos
níveis sociais, culturais, administrativos e, sobretudo,
mentais, criaram um outro espaço e uma outra forma
de audiência das obras no período joanino. Classicismo
e italianismo vieram, respectivamente, com Sigismund
Neukomm e Marcos Portugal. O que aconteceu nesse
período em que a Família Real esteve no Brasil foi
exatamente uma articulação desses estilos. Se a música
vocal se firmou no virtuosismo italiano, a música
instrumental se baseou nos modelos do classicismo
vienense. As relações da Casa de Bragança com
as cortes da Europa, sobretudo com a Casa da Áustria,
se reforçavam cada vez mais, através de questões
políticas e conveniências matrimoniais.
Acontecimentos como a vinda da Missão Artística
em 1816 e o casamento da arquiduquesa D. Leopoldina
com D. Pedro I aproximavam os portugueses dos
costumes e hábitos europeus.
O que aqui denominamos por “classicismo”
conviveu com o “italianismo” e com o “colonialismo”.
Um se refere à estilística tipicamente germânica
e austríaca; outro, como diz o próprio termo que
o define, a uma maneira de dramatizar e interpretar
em termos de técnica desenvolvida na Itália e, por fim,
uma situação político-administrativa, o “colonialismo”
português no Brasil do tempo de D. João VI. Esse
último termo tem significado histórico e prático. Na
verdade, pode-se sugerir a intensa e larga dependência
do Brasil com Portugal. Mesmo depois da instalação
da Corte, da elevação a Reino Unido, da coroação do
Príncipe Regente, a situação dos trópicos não mudou
muito nas suas relações externas. Classicismo, com
Haydn (através das relações Brasil-Áustria e a vinda
de Neukomm), Mozart e Beethoven e o italianismo
operístico, com as obras de Piccini, Cimarosa, David
Perez, Salieri, Scarlatti, Rossini e a transferência de
Marcos Portugal, estiveram na colônia, absorvidos por
José Maurício. Essas relações são importantes para
a compreensão de uma estilística resultante de práticas
coloniais, de um novo gosto, que foi mantido com
a Família Real no Rio de Janeiro e aos poucos foi
sendo construído no Brasil. O gosto pela ópera clássica
era cultivado pela Família Real portuguesa, sobretudo
pelo Príncipe Regente e depois rei do Reino Unido
de Portugal, Brasil e Algarves, D. João VI. A ópera
italiana do final do século XVIII e da primeira metade
do século seguinte reservava o caráter virtuosístico

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