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4
M Ú S I C A
E R U D I T A
BRASILEIRA
5
Escrever um panorama da História da MúsicaErudita ou de Concerto no Brasil é umdesafio há muito acalentado. Diferente
de outras produções artísticas brasileiras,
a música ainda carece de estudos
organizados com o objetivo de contar sua
história e, principalmente, contextualizá-la
perante o repertório consagrado da música
ocidental. Essa vertente da produção musical
brasileira por muitos é considerada como
o último tesouro ainda por ser descoberto
e verdadeiramente explorado da cultura
do país. À exceção do célebre Villa-Lobos,
e também de Camargo Guarnieri, pouco
se conhece a respeito dessa imensa produção
musical. Isso se dá tanto nos meios
internacionais como, espantosamente, entre
os próprios músicos brasileiros, que bastante
sabem e executam Mozart, Beethoven
e Brahms, mas que pouca informação
têm de compositores brasileiros
contemporâneos e mesmo de outros períodos.
6
Por outro lado, enquanto a denominada MPB ou
Música Popular Brasileira é consagrada pelos meios
de comunicação e conhecida internacionalmente como
símbolo da produção musical do Brasil do século XX,
a música erudita ou de concerto ainda é um território
inexplorado, quer pelos estrangeiros, quer pelos
próprios músicos brasileiros. Diferentemente
da produção de MPB, que abrange dos últimos anos
do século XIX aos dias atuais, a música “clássica”
no Brasil está ligada diretamente ao início da
colonização pelos portugueses e perpassa pelos cinco
séculos de transformações e adaptações culturais
ocorridas no país.
A respeito de como interagem na cultura brasileira
essas duas realidades musicais complementares,
citamos artigo do jornalista Irineu Franco Perpétuo1
que bem exemplifica essa situação:
“É que parece cada vez mais que, no Brasil, falar
de música brasileira corresponde a falar de música
“popular” brasileira. Claro que a supremacia, em
termos de difusão, da música popular sobre a música
de concerto é um fenômeno mundial. O que torna
o caso do Brasil específico é que os principais autores
e intérpretes de nossa música popular desfrutam
do status não apenas do carinho das massas, mas o afago
da “inteligentsia”, desalojando a música “clássica”
da posição hegemônica mesmo entre as elites. Para
o bem ou para o mal, os intelectuais orgânicos
brasileiros, na área de música, são gente como Chico
Buarque, Caetano Veloso e Milton Nascimento − não
Almeida Prado, Edino Krieger ou Gilberto Mendes,
por mais que possamos admirar e respeitar o talento
desses compositores. As idéias dos astros da MPB é
que são levadas a sério, debatidas e discutidas pelos
formadores de opinião pública. Quando acontece um
fato de comoção nacional, e a imprensa quer saber
a opinião de um músico a respeito, vai perguntar para
o Chico. A intenção de voto de Caetano a cada eleição
presidencial é sempre repercutida pela imprensa com
estardalhaço, mas ninguém vai averiguar em quem
Nelson Freire ou Antonio Meneses vão votar.
Não se trata aqui de atacar a música popular
brasileira, mas apenas lamentar o deslocamento sofrido
pela música brasileira de concerto.”
Ao procurarmos os vários fatores a que se deve
a atual situação de desconhecimento da história e da
produção da música de concerto no Brasil, deparamo-
nos com dois principais, que são a falta de programas
editorais eficazes para a publicação de obras compostas
no Brasil desde o século XVIII e o próprio
desincentivo ou mesmo desinteresse das corporações
musicais em conhecer e programar esse repertório em
seus concertos. Diante desse quadro, nada mais
oportuno que escrever, ainda que despretensiosamente,
esta História da Música Erudita no Brasil, de modo
multidisciplinar e em formato de revista.
Para esta publicação elaboramos uma pauta onde
subdividimos os assuntos em três grandes períodos
históricos: do Descobrimento à Independência, do
Império ao Estado Novo e da Segunda Guerra aos dias
atuais, sendo a subdivisão interna de cada fase formada
por artigos de diferentes características. Há os artigos
contextualizantes de um período histórico e que vêem
a produção musical no âmbito sociológico, e há os que
exploram a biografia dos principais compositores de
cada período, tornando-se importantes verbetes para
uma compreensão mais objetiva da biografia e
produção de cada compositor ou período estético
abrangido. Esse formato, uma vez que esta é uma
revista de divulgação de cultura brasileira no exterior,
tem como objetivo possibilitar que o leitor, mesmo que
jamais tenha ouvido falar a respeito dos assuntos
abordados, possa ter uma ambientação histórica
e social na qual essa música foi produzida.
Acessíveis e interessantes para músicos,
ou somente interessados em saber mais sobre essa
produção musical, os artigos foram escritos por alguns
dos mais atuantes especialistas de cada subdivisão do
assunto, entre jornalistas, acadêmicos e musicistas.
A presença do CD anexo, assim como as bibliografias
e discografias sugeridas, servem como ilustração a cada
assunto abordado nos artigos. Desse modo,
pretendemos tornar a revista ainda mais dinâmica,
possibilitando que a mesma possa ser utilizada como
um guia referencial para aqueles que pretendem
começar a se enveredar pelo tema, e até servir como
base bibliográfica para a elaboração de pequenas aulas.
Dentre as publicações mais importantes de História
7
da Música no Brasil, sendo escritas cada qual por
somente um autor, podemos citar as de Vicente
Cernicchiaro, Renato de Almeida e Mário de Andrade,
ainda nas décadas de 1920 e 30, passando por Luiz
Heitor Corrêa de Azevedo nos anos 60, Bruno Kieffer
nos anos 70 e Vasco Mariz em dias atuais.
Nesta Textos do Brasil, por sua característica
multidisciplinar unindo conhecimentos específicos
para cada assunto abordado, pretendemos contribuir
para incrementar e dar nova visão sobre essa não
vasta, porém importante, bibliografia existente
a respeito do tema.
O primeiro texto da revista, “Música e sociedade
no Brasil colonial”, assinado por Rogério Budasz, trata
inicialmente da música composta e utilizada pelos
jesuítas com o objetivo de catequizar os povos
indígenas brasileiros durantes os dois primeiros séculos
da colonização. Apesar de não existir documentação
musical remanescente do período, o pesquisador faz
uma minuciosa e aprofundada pesquisa sobre esse
processo, tendo como fonte o trabalho realizado
pelo emblemático Padre José de Anchieta, buscando
em suas notas as informações necessárias para
a reconstituição provável desse material. No mesmo
artigo, Budasz trata da produção musical para os versos
do ilustre poeta da Província da Bahia ainda no século
XVII, Gregório de Matos, podendo ser uma das
primeiras informações a respeito de uma prática de
música não-litúrgica ou profana em nosso território.
Desta também não restou documentação musical
específica, porém é também possível realizar um
processo comparativo e de reconstituição baseado
em manuscritos musicais existentes em Portugal, a que
são feitas referências em documentos da época.
Ainda no século XVII e início do XVIII temos,
para não deixar de citar, o caso da música composta
na região das Missões Jesuíticas dos Índios Guaranis −
hoje pertencentes ao território brasileiro no Sul
do país, mas que no período pertenciam à Coroa
espanhola −, sendo sua produção artística e musical
mais diretamente ligada à arte barroca praticada
em países como Argentina, Paraguai e Bolívia.
Para conhecermos mais a respeito desta produção,
basta que conheçamos os trabalhos editoriais
e de partituras, assim como os registros musicais em
discos e sobre música barroca hispano-americana.
Tratando a pauta com respeito a uma ordem
cronológica e contextual passamos, a seguir, a tratar da
música sacra no Brasil, sobretudo na segunda metade
do século XVIII e primeira metade do XIX.
Neste segundo artigo, “A Música no Brasil Colônia
anterior à chegada da Cortede D. João VI”, assinado
por Harry Crowl, é abordado um aspecto mais
difundido, porém também pouco conhecido da
produção musical do Brasil colônia, que é a música
sacra composta pelos mestres-de-capela nas sedes de
Bispados e a atuação dos músicos junto às Irmandades
leigas, sobretudo nas províncias das Minas Gerais, São
Paulo, Bahia e Pernambuco.
Esse artigo trata justamente da música a partir
do primeiro documento musical encontrado, que é um
recitativo e ária da Bahia datado de 1759, e contextualiza
as produções nordestinas do mesmo período para,
aí sim, dar total ênfase à mais importante escola
de compositores do período colonial, que é a das Minas
Gerais da segunda metade do século XVIII. É um texto
bastante completo, que contempla a produção de vários
nomes importantes do período, como Emerico Lobo de
Mesquita, Francisco Gomes da Rocha, Marcos Coelho
Neto, João de Deus de Castro Lobo, entre outros.
Nesta nossa introdução não podemos deixar
de explicar, mesmo que brevemente, como esse estilo
musical se estabeleceu no Brasil colonial,
principalmente nos séculos XVIII e XIX. Essa
A música “clássica”
no Brasil está ligada
diretamente ao início da
colonização pelos portugueses e
perpassa pelos cinco séculos de
transformações e adaptações
culturais ocorridos no país
8
linguagem musical eminentemente italiana tem uma
trajetória interessante: D. João V de Portugal, a partir
da década de 1710, manda jovens compositores
portugueses estudar na Itália como bolsistas, sobretudo
em Roma e Nápoles, a fim de absorver o estilo musical
italiano, que era o predominante na época, e trazê-lo
para Lisboa. Do mesmo modo, compositores italianos
como Domenico Scarlatti são levados a Portugal para
dirigir a música na Sé e na corte lisboeta. Como
a mais importante colônia do império português
do período, o Brasil tem uma grande atividade musical
e está em estreito contato com as novidades vindas
da metrópole, passando também a ter sua produção
musical nos mesmos moldes de Portugal. Com a
descoberta do ouro, sobretudo na província das Minas
Gerais, outros importantes centros urbanos como Vila
Rica surgem para, além das tradicionais grandes
cidades como Salvador e Rio de Janeiro, possuírem
intensa atividade musical, que caracterizará um dos
mais profícuos momentos da história musical brasileira.
No entanto, não há parâmetro para as
transformações nas atividades culturais e mesmo sociais
do Brasil como o deslocamento da Corte de D. João VI
de Portugal para o Rio de Janeiro, que teve o fim de
salvaguardar a alta administração portuguesa da
invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas em 1808.
O artigo que se segue, “Música na Corte do Brasil:
Entre Apolo e Dionísio 1808-1821”, assinado pelo
musicólogo e historiador Maurício Monteiro, começa
justamente a falar das grandes mudanças sociológicas
e estilístico-musicais que se seguem após este
importante momento da História do Brasil.
Com o objetivo de finalizar essa primeira sessão,
segue, por nós assinado, artigo a respeito do mais
representativo compositor desse período colonial
brasileiro, que é o carioca José Maurício Nunes Garcia
(1767 –1830). Esse texto, “José Maurício Nunes
Garcia e a Real Capela de D. João VI no Rio
de Janeiro”, trata de sua interessante biografia
e de como suas obras sobreviveram através do tempo.
Por ser um compositor que trabalhou sempre no Rio
de Janeiro, sendo sua primeira obra datada de 1783
e a última de 1826, sua música também reflete
as transformações que essa cidade, como capital
da colônia, sofreu em sua música e relações sociais.
Esses anos foram intensos também para as artes
plásticas no Brasil, com a vinda da Missão Artística
Francesa de 1817 e de músicos como o compositor
austríaco Sigismund Neukomm – que veio na missão
diplomática do Duque de Luxemburgo a serviço
de Luís XVIII de França – e que permaneceu no
Rio de Janeiro por cinco anos, sofisticando a produção
de música instrumental na corte como música para
piano, de câmara e até mesmo sinfônica. Graças
à presença desse compositor, os músicos atuantes na
cidade puderam travar contato com o que havia de
mais relevante da produção musical centro-européia,
como a Missa de Réquiem de Mozart, regida por José
Maurício em 1819, e os oratórios As Estações
e A Criação de Joseph Haydn, este último também
comprovadamente regido por José Maurício em 1821.
Nos anos que seguiram ao processo de
Independência do Brasil de Portugal, ocorrida em
1822, as atividades culturais sofreram um grande
declínio em comparação aos faustos anos da presença
da corte portuguesa no Rio de Janeiro. O início de uma
longa reestruturação se inicia com a criação do
Imperial Conservatório de Música, atual Escola de
Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que
teve como seu primeiro diretor o autor do Hino
Nacional Brasileiro, Francisco Manoel da Silva,
que durante o tempo de José Maurício esteve entre
seus alunos diletos.
Esse período se caracterizou por uma certa
desestruturação da Real Capela de Música,
transformada em Imperial Capela, e seus músicos –
entre eles seus mestres-de-capela José Maurício Nunes
Garcia e Marcos Portugal – sofreram sérias dificuldades
financeiras. Essa época coincidiu também com
a ascensão de Rossini nos teatros do mundo todo,
passando a ser um novo parâmetro para a produção
operística italiana. As óperas de Rossini fizeram tanto
sucesso no Brasil que, mesmo durante a estada do Rei
D. João VI no Rio de Janeiro, várias de suas óperas
foram encenadas. Entre elas, sobretudo, Il Barbiere di
Seviglia e La Cenerentola, com diferenças por vezes de
poucos meses em relação às estréias européias. Essa
modificação no gosto serviu de modelo para a criação
Música
e sociedade
no Brasil
colonial
Carlos Julião. Cortejo da Rainha Negra
na Festa de Reis. Aquarela colorida
do livro “Riscos illuminados de figurinos
de brancos e negros dos uzos
do Rio de Janeiro e Serro Frio”.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –
DIVISÃO DE ICONOGRAFIA
ROGÉRIO BUDASZ
14
Sem levar em conta alguns casos isolados de portuguesese franceses fixando-se na costa brasileira, por livrevontade ou não, durante as primeiras décadas do séculoXVI, a colonização e o efetivo povoamento dessa
região por europeus e seus descendentes tiveram início
apenas na década de 1530. Missionários religiosos
também começaram a se estabelecer nessa época,
sendo o grupo mais importante a Companhia de Jesus,
que chegou em 1549 e fundou vários colégios ao longo
da costa brasileira.
O povoamento da costa brasileira nos dois
primeiros séculos após a descoberta pelos portugueses
foi condicionado pelos ciclos econômicos do pau-brasil
e da cana-de-açúcar, esse último marcando também
o início da presença negra no Brasil. Os colonos eram
invariavelmente homens que estabeleciam
propriedades rurais e, geralmente, amasiavam-se
com as nativas, originando um novo tipo étnico,
o mameluco, que se tornaria o principal responsável
pela expansão territorial da colônia. A colonização foi
marcada por iniciativas e regulamentações
contraditórias, que, enquanto estimulavam a vinda
de colonos, reprimiam o desenvolvimento de uma
identidade brasileira por proibir o surgimento de casas
impressoras, periódicos e universidades.
Para o colono, a única forma de literatura era
muitas vezes aquela transmitida oralmente, nos
romances populares ibéricos de teor histórico ou
moral. Muitos desses romances, geralmente cantados
sobre melodias simples para não dificultar
a inteligibilidade da narrativa, permanecem vivos até
hoje na tradição popular tanto em Portugal como
no Brasil, e sofrendo poucas transformações nesses
quinhentos anos, como é o caso de Conde Claros,
A Bela Infanta, Gerineldo, e tantos outros.
Além desses, o repertório musical dos primeiros
colonos e seus descendentes incluiria também cantos
de trabalho para acompanhar ações rotineiras,
15
16
acalantose cantigas, tanto em português como em tupi.
A primeira geração de brasileiros crescia, assim,
ouvindo romances, cantigas e ritmos ibéricos cantados
e tocados na viola pelo pai, enquanto era embalada
pelos acalantos da mãe tupi em seu idioma. Quer fosse
pelo seu conteúdo considerado “lascivo” ou pela sua
associação com os cultos nativos, algumas daquelas
cantigas, tanto ibéricas como tupis, escandalizaram
os missionários, induzindo-os a comporem versões
pias, ou “divinizadas”. José de Anchieta era mestre
nessa transmutação e ensinava também as doutrinas,
orações e hinos católicos no idioma tupi.
Fora do contexto missionário, também eram
comuns as bandas de corporações militares ou de
escravos, mantidas pelos latifundiários mais destacados
como aparato de ostentação e demonstração de poder,
ao realizarem entradas pomposas nas vilas ao som dos
clarins, ou para impressionar visitantes. Promovidas
pelas autoridades seculares e religiosas, várias festas,
como as de Corpus Christi e da Visitação de Santa
Isabel, incluíam procissões, música e danças, trazendo
alegorias, mascarados e coreografias de índios e negros.
Para o acompanhamento costumavam ser usados
tambores, pandeiros, gaitas de fole, pífanos
e charamelas — termo esse que poderia incluir tanto
instrumentos de palheta, como a chirimia ibérica,
quanto instrumentos de bocal, como as cornetas,
sacabuxas, trompas e outros. Além disso, nas festas
e outros congraçamentos ao ar livre poderíamos,
tal como hoje em dia, encontrar cantores repentistas,
numa tradição que remonta aos segréis
da Idade Média.
Tais festas e procissões, tal qual em Portugal,
muitas vezes funcionavam como pretexto para
a socialização e diversão, como satirizaria o poeta
Gregório de Mattos no final do século XVII. Contudo,
a despeito de várias regulamentações repressoras e das
opiniões de alguns moralistas, o congraçamento entre
escravos era geralmente tolerado “para evitar males
maiores”, no dizer de Antonil, pois a mistura de raças
também dificultava a identificação étnica de escravos
de várias nações e crenças, diminuindo o perigo
de insurreição. Já a mistura entre negros e branco, era
insistentemente reprimida pelas autoridades — e isso
até o início do século XX —, o que não parece jamais
ter surtido o efeito desejado, como o comprovam não
só as descrições de viajantes como também o fato
de terem sido reprisadas várias vezes no decorrer dos
séculos as prescrições contra o ajuntamento de brancos
e escravos nas festas.
Quanto à música oficial do Estado e da Igreja,
nota-se já no século XVI a tentativa de reproduzir
em miniatura o estabelecimento musical português.
Existiam, no entanto, algumas diferenças fundamentais
que dificultavam essa reprodução, ao mesmo tempo
em que moldavam novas maneiras de fazer e usar
a música: se Portugal era pequeno e densamente
povoado, o inverso valia para o Brasil nos dois
sentidos. A rarefação populacional tornava inviáveis
certas práticas musicais e inúteis outras.
MÚSICA NO ESPAÇO DOMÉSTICO
A maior parte das vilas fundadas durante o primeiro
século da colonização formava-se ao redor de alguns
fortes militares e escolas jesuíticas. Enquanto isso,
o grosso da população habitava as propriedades rurais,
que cresceram muito — em número e tamanho — nas
últimas décadas do século XVI, passando
a especializar-se no cultivo da cana de açúcar
e na produção de seus derivados, açúcar e aguardente,
assim como no cultivo da mandioca e na produção
da farinha.
Distante dos centros urbanos — numa época em
que eram poucos os que se destacavam —, o engenho
ficava assim definido como a principal unidade de
produção e povoamento, enquanto a Casa Grande
era o seu centro administrativo e religioso, na verdade
o principal espaço de sociabilidade. Ali era promovida
17
E era por isso que a prática musical também fazia
parte da instrução dos filhos e afilhados do senhor
de engenho. Formação diferente, e para cumprir tarefas
diferentes, teriam os músicos escravos — cantores
e charameleiros — que participariam do aparato
de propaganda e demonstração de poder do senhor
de engenho, sendo muitas vezes emprestados às Igrejas
e vilas por ocasião de festas religiosas e cívicas.
Os primeiros que se dedicaram ao ensino
da música foram os missionários, que, a princípio,
concentravam-se nos nativos e usavam a música como
instrumento auxiliar na conversão e catequese. Depois
deles, representando oficialmente o estabelecimento
musical da Igreja, aparecem os mestres de capela,
enviados de Portugal para organizar a atividade
musical de determinada região mas que também
exerciam a função de instrutores da arte da música
para quem pudesse pagar. Mais tarde, também passam
a exercer essa função, embora de forma limitada,
os cantores e instrumentistas mais destacados
dentre os índios, negros e mulatos instruídos
na música européia pelos missionários e mestres
de capela, com o objetivo principal de interpretarem
Alexadre Rodrigues Ferreira.
Desenho aquarelado.
Viola que tocam os pretos.
Desenho aquarelado do livro
Viagem filosófica às Capitanias
do Grão-Pará, Rio Negro, Cuiabá.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO
DE ICONOGRAFIA
as composições por eles preparadas.
Evidentemente, o filho de um senhor de engenho
não entraria numa relação mestre-aprendiz com o
mestre de capela local. Esperava-se que tomasse conta
dos negócios do pai, fosse estudar em Portugal ou
seguisse a carreira eclesiástica — podendo, neste último
caso desenvolver suas habilidades musicais de maneira
mais aprofundada. Este tipo de interesse musical não
profissional era bastante comum entre a aristocracia e
burguesia abastada portuguesa, a ponto de vários
nobres, incluindo reis e príncipes, tornarem-se
compositores competentes.
Sendo o profissionalismo musical indicativo de
baixa estatura social, isso talvez explicasse o porquê da
quase inexistência de compositores brancos nas Minas
Gerais do século XVIII (com exceção dos portugueses
enviados com a expressa finalidade de servirem como
mestres-de-capela), numa época em que, após a
descoberta do ouro, multiplicavam-se os centros
urbanos no interior da colônia, multiplicando-se
também as oportunidades de trabalho de cantores,
instrumentistas e compositores.
Todavia, para a elite brasileira dos séculos XVII
e XVIII, mesmo desdenhando o profissionalismo
musical, o diletantismo na música era qualidade
apreciável. A habilidade como compositor é colocada
por historiógrafos e bibliógrafos portugueses
e brasileiros em pé de igualdade com a produção
literária, e a proficiência na execução à viola
ou à harpa equivaleria aos dotes poéticos e à instrução
nas assim chamadas artes liberais. De fato, inventários
a educação civil e religiosa, bem
como os encontros sociais, por
ocasião de batizados, de casamentos,
e da hospedagem de visitantes.
Nesse contexto, a música era
cultivada como auxiliar no fluir
das atividades sociais, como
passatempo na intimidade
do lar, acompanhando momentos
de devoção religiosa ou como
demonstração de civilidade e poder
para os olhos e ouvidos externos.
18
da época comprovam que o mobiliário das casas
grandes costumava incluir harpas, violas e cítaras, além
de dispor de aposentos usados como escolas, onde
os filhos eram instruídos em aritmética, gramática,
retórica, religião e música.
Na Nobiliarchia Paulistana, Pedro Taques de
Almeida Prado menciona, entre a aristocracia
paulistana de séculos passados, além de harpistas
e tocadores de “vários instrumentos”, dois tocadores
de viola. Frei Plácido, “eminente na prenda de tanger
viola”, tomou o hábito em Alcobaça e teria tocado para
o rei D. Pedro II de Portugal. Francisco Rodrigues
Penteado, pernambucano, demonstrava tal “mimo”
na mesma arte que em 1648, voltando de Lisboa, foi
convidado por Salvador Correia de Sá e Benevides
a instruir “nos instrumentos músicos” suas filhas e seu
filho Martim Correia.Evidentemente, em se tratando
das famílias aristocráticas brasileiras, os dotes musicais
não poderiam ser utilizados como forma permanente
de sustento: são práticas socialmente distintas o cultivo
da música como profissão ou como “elemento de
civilidade”, usando a expressão da época. À época
do convite de Sá e Benevides, Penteado encontrava-se
desprovido de recursos, pois havia esbanjado a fortuna
paterna em Lisboa, e a solução encontrada, enquanto
buscava formas mais nobres de aquisição de capital,
seria remediar-se instruindo os filhos do mais poderoso
brasileiro de seu tempo. Algum tempo depois,
Penteado se estabeleceria em São Paulo, após casar-se
com a filha de um latifundiário.
Fora do contexto religioso, além da citação de
Almeida Prado, a harpa aparece também em um
poema de Gregório de Mattos, animando uma festa.
Mesmo utilizada como principal acompanhante das
funções religiosas pelo interior do Brasil até as
primeiras décadas do século XVIII, a harpa não parece
ter-se difundido muito como instrumento doméstico.
Nem mesmo o cravo parece ter exercido essa função
em larga escala, permanecendo neste papel a viola
até ser sobrepujada pelo piano no século XIX.
Principal acompanhador dos romances, cantigas,
tonos e modinhas, além de ótimo veículo para a música
solo, a viola de mão era instrumento de versatilidade
incontestável. Suas variantes no século XVI incluíam
um instrumento de quatro ordens de cordas (a guitarra
renascentista), de seis ordens (conhecida na Espanha
como vihuela), e, no século seguinte, de cinco ordens
(muitas vezes chamada guitarra barroca). Este último
instrumento originaria mais tarde a viola caipira
brasileira, as diversas violas regionais portuguesas,
e a guitarra espanhola, ou violão. Nomes de tocadores
que se especializaram na viola de cinco ordens, como
Felipe Nery da Trindade, Manuel de Almeida Botelho
e João de Lima aparecem com destaque na obra de
Domingos do Loreto Couto, historiógrafo
pernambucano do século XVIII.
Além de chantre da catedral de Salvador por
vários anos, João de Lima — conhecido do poeta
Gregório de Mattos — foi pedagogo e compositor,
deixando obras de música sacra e profana
e dominando a execução musical em vários
instrumentos. Manuel de Almeida Botelho passou
vários anos em Portugal, protegido do patriarca
de Lisboa e do Marquês de Marialva. Loreto Couto
atesta que, além de muita música sacra, Botelho teria
composto “sonatas e tocatas tanto para viola como
para cravo”, além de música de salão, como
minuetes e tonos.
Forma de canção erudita bastante difundida na
Península Ibérica e América Latina, o tono humano
geralmente apresenta temática árcade, forma estrófica
com refrão, e textura a uma ou duas vozes agudas
contra um baixo, constituindo-se assim num ancestral
da modinha portuguesa. Quanto aos tonos de Botelho,
talvez se assemelhassem àqueles compostos pelo
português Antônio Marques Lésbio, com
acompanhamento à viola, ou mesmo com a peça
Matais de Incêndios, integrante dos manuscritos
19
de Mogi (da década de 1720 ou 1730), e trazidos
novamente à tona graças às pesquisas de Jaelson
Trindade, embora ainda reste alguma dúvida quanto
a se esta peça é um tono humano, como sugerido
por Trindade, ou um vilancico natalino, conforme
estudo de Paulo Castagna.
Embora não tenhamos notícia da sobrevivência
de peças compostas por aqueles violistas
pernambucanos e paulistas, podemos ter uma idéia
bastante aproximada do que tocavam, através das
fontes portuguesas do início do século XVIII, para
a viola de cinco ordens contendo o repertório-padrão
para a formação do instrumentista luso-brasileiro
daquela época: danças italianas, francesas, ibéricas
e de influência afro-brasileira como o canário, o vilão,
o arromba, o cumbé e o cubanco, além de muitas
fantasias e rojões.
É importante lembrar que o repertório popular
ibérico e latino-americano era muito menos
heterogêneo no século XVII do que em nossos dias.
Portugal havia reconquistado sua independência da
Espanha apenas em 1640. Naquela época, durante
a infância e juventude de Gregório de Mattos, os
elementos que ajudariam a definir a brasilidade apenas
começavam a tomar forma. Muita poesia tanto no
Brasil como em Portugal ainda era escrita em espanhol,
e, enquanto peças de Calderón e Lope de Vega eram
representadas em Salvador, autores brasileiros também
escreviam teatro naquele idioma. Naturalmente,
a música desse período também pareceria a nossos
ouvidos bastante espanhola, tratando-se menos de uma
influência nacional específica do que da evidência de
um estilo compartilhado e generalizado por toda
a Península Ibérica e América Latina, como o atestam,
por exemplo, os vilancicos e tonos de Gaspar
Fernandes e Antonio Marques Lésbio, bem como
o repertório português para viola e teclado.
Na ausência de documentos musicais, uma ótima
fonte de informações sobre a música não-religiosa
tocada e cantada no Brasil seiscentista é a obra poética
de Gregório de Mattos (1636-1696). Além de descrever
funções musicais e teatrais, de mencionar
instrumentistas e cantores e de citar peças instrumentais
comuns tanto em Portugal como na Espanha e América
Latina, Mattos usa vários tonos humanos espanhóis
como refrão ou base para glosas de sua autoria. Em
outros casos, Mattos usa modas profanas em português,
ou, no dizer dele próprio, canções que os “chulos”
cantavam. Religiosos e moralistas continuavam
encarando com suspeita esse repertório, sendo célebre
a condenação de Nuno Marques Pereira, atribuindo
aquelas modas à invenção do demônio — o qual, conta
Pereira, era exímio tocador de viola.
Na segunda metade do século XVIII, o repertório
musical que passa a difundir-se pela colônia é, por um
lado, o de danças afrancesadas como o minuete
e a contradança — as principais coreografias de salão no
Brasil até o início do século XIX — e, por outro lado, as
canções simples — as modas — agora influenciadas pelo
estilo galante da ópera e música sacra napolitanas, com
melodias e harmonias ainda mais simples e adocicadas,
despretensiosamente denominadas “modinhas”.
Se a princípio estas apresentavam uma temática
pastoril árcade, vinculada ao gosto poético da época,
o estilo é gradativamente influenciado pelo contexto
afro-brasileiro, tanto na maneira de falar como nos
ritmos e harmonias do lundu — aquela dança que tanto
escandalizou viajantes do norte da Europa —
originando assim a modinha brasileira, que acabaria
voltando para Portugal nas obras de poetas
e compositores como Domingos Caldas Barbosa
e Joaquim Manuel da Câmara.
Felizmente, foi preservada muita música desse
período, sendo notáveis as peças coletadas pelos
viajantes austríacos Spix e Martius, as modinhas
brasileiras preservadas na Biblioteca da Ajuda
e na Biblioteca Nacional de Lisboa, e as peças
instrumentais contidas no livro de saltério
de Antônio Vieira dos Santos, compilado no início
20
do século XIX. Há ainda uma única peça para
teclado do século XVIII, a chamada Sonata Sabará,
cuja autoria ainda permanece cercada de dúvidas.
Finalmente, os duetos concertantes para dois violinos
de Gabriel Fernandes da Trindade, da segunda
década do século XIX, nos dão uma idéia
do estiloda música de câmara para cordas
composta nos últimos tempos do Brasil-colônia.
CASAS DE ÓPERA E ACADEMIAS
Uma espécie de teatro moral com intervenções
musicais já se encontra presente no primeiro século
da colonização, nos autos preparados por José
de Anchieta e Manuel da Nóbrega. Tal como
na Europa, a finalidade didática do teatro jesuítico
era óbvia, e os números musicais cumpriam a função
de tornar mais atraente a mensagem de submissão
à igreja e ao rei. É evidente também a filiação desse
teatro aos autos ibéricos seiscentistas, em especial
os de Gil Vicente, sempre intercalando enredos leves
e cômicos com danças, canções e romances populares.
Nos séculos seguintes, os modelos passariam
a serLope de Vega e Calderón.
São bastante numerosos os relatos sobre
a representação de comédias musicadas nas casas
abastadas das cidades, ou mesmo ao ar livre, como
aquelas para as quais o pernambucano Antônio da
Silva Alcântara compôs a música em 1752. É quase
certo que tais comédias — a grande maioria escrita em
idioma espanhol — seguissem o modelo da zarzuela de
Antonio de Literes e Sebastián Durón, com árias, coros
e alguns recitados alternando com diálogos falados.
Durante o século XVII, não se tem notícia na
colônia da apresentação de óperas no sentido moderno
do termo, ou seja, a encenação de um enredo
integralmente posto em música. Mesmo no século
XVIII, além do modelo das óperas de Antônio José da
Silva, com diálogos falados e poucos números musicais,
não era incomum encenarem-se libretos operísticos
sem qualquer emprego da música, funções que eram
mesmo assim denominadas “óperas”.
Sendo o teatro e a ópera — nas suas variadas
acepções — desde cedo explorados no Brasil como
instrumentos de doutrinação ideológica, não tardariam
a aparecer, patrocinadas pelo poder público, casas
especificamente destinadas à representação de dramas,
comédias e entremezes em música — as casas de ópera
— que visavam promover uma educação cívica paralela
à educação religiosa da Igreja. No decorrer do século
XVIII, toda vila de maior porte passa a possuir,
além da igreja, uma casa de ópera, aparecendo
as duas muitas vezes lado a lado. Seguindo a marcha
de povoamento do interior que se sucede à descoberta
Romances Populares:
TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron
Discos; faixa 5: Romance da Nau Catarineta
DO ROMANCE AO GALOPE NORDESTINO. Quinteto Armorial.
Discos Marcus Pereira. Romance da Bela Infanta
José de Anchieta:
TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron
Discos; faixa 8: Quién te visitó, Isabel?; faixa 9: Mira Nero
A MÚSICA NA FESTA. Integrante do livro Festa: Cultura
e Sociabilidade na América Portuguesa; faixa 6: Venid a sospirar
con Jesu amado (Companhia Papagalia)
Marinícolas:
HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA: PERÍODO COLONIAL II. Ricardo Kanji.
Estúdio Eldorado; faixa 2
TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron
Discos; faixa 12
Matais de Incêndios:
HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA: PERÍODO COLONIAL I. Ricardo Kanji.
Estúdio Eldorado; faixa 36
A MÚSICA NA FESTA. Integrante do livro Festa: Cultura
e Sociabilidade na América Portuguesa; faixa 15 (Klepsidra)
Sonata ‘Sabará’:
NINGUÉM MORRA DE CIÚME. Collegium Musicum de Minas. Prod.
independente, faixa 5
Modinhas:
MARÍLIA DE DIRCEU. Ana Maria Kiefer, Edelton Gloeden e Gisela
Nogueira. Estúdio Eldorado.
MODINHAS E LUNDUS DOS SÉCULOS XVIII E XIX. Manuel Morais
e Segréis de Lisboa. Movieplay; faixa 8: Eu nasci sem coração;
faixa 13: Ganinha, minha Ganinha; faixa 19: Menina, você que
tem?
Coleção de Spix e Martius:
VIAGEM PELO BRASIL. Ana Maria Kiefer, Edelton Gloeden e Gisela
Nogueira. Estúdio Eldorado
Recitativo e Ária:
HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA: PERÍODO COLONIAL II. Ricardo Kanji.
Estúdio Eldorado; faixas 11 e 12
Duetos concertantes:
GABRIEL FERNANDES DA TRINDADE: DUETOS CONCERTANTES. Maria Ester
Brandão, Koiti Watanabe. Paulus
DISCOGRAFIA
21
do ouro, encontramos casas de ópera em várias
localidades das Minas Gerais, de Goiás
e tão longe quanto em Cuiabá, no centro
geográfico da América do Sul.
O repertório das casas de ópera no século XVIII
e boa parte do XIX incluía principalmente dramas
de Metastasio, como Ezio in Roma e Didone abbandonata,
que, além de transmitir alguma lição moral, retratavam
o herói como líder firme, sábio e magnânimo, mas
usando de disciplina quando necessário. Os libretos
escolhidos eram bastante convenientes para
a finalidade proposta, pois a platéia fatalmente
identificaria o herói com o soberano português.
Embora o musicólogo Francisco Curt Lange tenha
compilado uma lista impressionante de óperas
representadas no Brasil durante o século XVIII,
apenas algumas páginas de partituras sobreviveram,
impossibilitando qualquer tentativa de reconstituição.
Do período joanino, restam de Bernardo José de Souza
Queiroz a música de cena para uma peça teatral
de 1813, dois entremezes e uma ópera, Zaíra, composta
no Rio de Janeiro antes de 1816, além de alguns
números avulsos de óperas do baiano Damião Barbosa
de Araújo. Além disso, muita pesquisa resta a ser
realizada sobre as óperas de autores europeus —
Marcos Portugal e Pedro Antônio Avondano, para
citar os mais importantes — representadas em casas
de ópera brasileiras.
Por volta do final do século XVIII, devido
à escassez do ouro e ao fim do patrocínio público, as
casas de ópera desaparecem ou passam a ser definidas
mais e mais como espaços daqueles que podem pagar
e dos que, à custa de muita bajulação, conseguem um
lugar ao lado daqueles. Já os atores, cantores
e instrumentistas sempre foram na sua maior parte
mulatos e negros, cuja instrução teria sido provida
ou pelos mestres de capela locais ou, de maneira mais
informal, pelos diretores musicais dos regimentos
militares ou das bandas de músicos dos engenhos
e minas. Algumas vezes, tais artistas conseguiam ir bem
além da casa de ópera local, como foi o caso da
cantora mulata Joaquina Maria da Conceição Lapinha,
que apresentou-se com sucesso em teatros portugueses.
Não se colocando na posição subserviente de
músico ou ator profissional, o rico e o letrado teriam
restritas possibilidades de demonstração de suas
habilidades performáticas, fossem elas de poeta,
intérprete ou mesmo compositor. Além do espaço
doméstico, havia a academia, um misto de clube
literário e sociedade secreta que se difundiria pelos
principais centros urbanos do Brasil a partir da segunda
metade do século XVIII. É no contexto das academias,
ligadas à estética árcade, que surgem nomes como os
de Tomás Antônio Gonzaga (cujas poesias foram depois
musicadas na série de modinhas do ciclo de Marília
de Dirceu) e Domingos Caldas Barbosa (cristalizador
da modinha brasileira), e de obras como a cantata
Herói, egrégio, douto, peregrino, mais conhecida como
Recitativo e Ária para José Mascarenhas, composta
em Salvador em 1759.
Não sobreviveu até nossos dias o repertório
de música de câmara que talvez fizesse parte das
reuniões daqueles acadêmicos. Alguns deles possuíam
instrumentos de arco, como ficou registrado nos autos
de devassa da Inconfidência Mineira. Além disso,
comprovando a prática da música de câmara européia
no interior do Brasil, há o relato de Spix e Martius,
sobre um mineiro que intercepta os viajantes
no interior da mata e os convida a irem à sua casa,
onde, com instrumentos e partituras cedidas pelo
anfitrião, executam um quarteto de Pleyel.
ROGÉRIO BUDASZ
Doutor em musicologia (Phd) pela Universidade do Sul da Califórnia, mestre em musicologia pela Universidade de São Paulo
e professor da Universidade Federal do Paraná.
HARRY CROWL
A música no
Brasil Colonial
anterior à
chegada da
Corte de
D. João VI
22
OS AVANÇOS DOS ESTUDOS MUSICOLÓGICOS NOS
ÚLTIMOS ANOS, NA ÁREA DA MÚSICA PRODUZIDA
NO BRASIL NA ÉPOCA DA COLÔNIA, TÊM APONTADO
SEMPRE PARA UM FATO QUE JÁ NOS PARECE
IRREVERSÍVEL – DESCONHECE-SE TODA A MÚSICA
PRODUZIDA EM TERRAS BRASILEIRAS EM PERÍODO
ANTERIOR À SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII.
ASSIM COMO TAMBÉM DESCONHECEMOS A MAIOR
PARTE DO QUE SE PRODUZIU NAS REGIÕES NORTE
E NORDESTE EM TODA A ÉPOCA COLONIAL.
23
24
Em Recife, encontramos o nome de Luís Álvares
Pinto (1719-1789). Esse compositor, regente, poeta e
professor viajou, por volta de 1740, para Lisboa, onde
estudou com Henrique da Silva Negrão, organista da
catedral de Lisboa, e que foi discípulo de Duarte Lobo.
Na época em que viveu na capital portuguesa, ele
compunha, tocava violoncelo na Capela real, faziacópias de música e dava aulas em casas de nobres.
Na relação de músicos portugueses publicada por
José Mazza, em 1799, ele informa o seguinte sobre
esse compositor: “Luis Alvares Pinto natural
de Pernambuco, excelente Poeta Português e Latino,
muito inteligente na língua Francesa, e Italiana;
acompanhava muito bem rabecão, viola, rabeca veio
a Lxa aprender contraponto com célebre Henrique da
Silva, tem composto infinitas obras com muito acerto
principalmente eclesiásticas; compôs (ultimat.e humas
exequias) à morte do Senhor Rey D. José o primeiro
a quatro coros, e ainda em composições profanas tem
escrito com muito aserto” (sic).
Em 1761 já estava de volta a Pernambuco,
profissionalmente atuante. Nesse mesmo ano escreveu
a Arte de Solfejar, cujo manuscrito encontra-se
na Biblioteca Nacional de Lisboa. Foi responsável
pela formação de vários músicos e mestres-de-capela.
L. A. Pinto foi também militar, tendo tido a patente
de capitão do regimento de milícia confirmada
também em 1766.
Luís Álvares Pinto foi também um dos primeiros
comediógrafos nascidos no Brasil. Sua peça teatral em
três atos, Amor Mal Correspondido, foi encenada em 1780.
Em 1782, por ocasião da inauguração da igreja
de São Pedro dos Clérigos, foi confirmado na função
de mestre-de-capela, cargo que já desempenhava desde
1778 e que ocupou até 1789, ano de seu falecimento.
De suas poucas composições que alcançaram
os nossos dias restaram apenas um Te Deum alternado,
cuja orquestração perdeu-se, e um Salve Regina para três
vozes mistas, violinos I e II e baixo contínuo. Consta
ainda ter composto três hinos a Nossa Senhora da
Penha, um hino a Nossa Senhora do Carmo, um hino
a Nossa Senhora Mãe do Povo, um Ofício da Paixão,
matinas de São Pedro, matinas de Santo Antônio,
novenas, ladainhas e sonatas.
Oconjunto da produção musical encontrado na capitania-geral das Minas Gerais, na época do ciclo do ouro,tornou-se a referência mais antiga da produção musicalartística no Brasil. Salvo alguns poucos exemplos
isolados de manuscritos encontrados em outras regiões
do país, a produção mineira consistiu-se no primeiro
grande conjunto de obras musicais disponíveis para
o desenvolvimento de um estudo mais aprofundado
sobre a expressão musical no país.
Apesar do deslocamento do eixo econômico para
a região das Minas Gerais, é nas capitanias-gerais da
Bahia e Pernambuco que encontraremos as referências
musicais comprovadamente mais antigas do Brasil.
Considerando que as descobertas de Mogi-das-Cruzes
na década de 1980 apontam para as práticas
polifônicas portuguesas anteriores ao século XVIII,
somos obrigados a retomar a antiga capital da colônia,
Salvador, como ponto de partida para qualquer
consideração que queiramos fazer sobre a música
exclusivamente escrita no Brasil, na época anterior
à independência política. Sendo a região por onde
iniciou-se a colonização, a Bahia apresenta nessa
época uma sociedade já relativamente sedimentada,
se comparada com as demais regiões da Colônia.
Poderíamos acrescentar a Capitania de Pernambuco
como a segunda região mais importante do ponto
de vista sócio-cultural e econômico. Nesse sentido,
o achado mais importante até agora é uma obra
de caráter profano, anônima, composta em 1759,
denominada Recitativo e Ária. Esse manuscrito para
soprano, violinos I e II, e baixo contínuo, datado de
2/7/1759, está dedicado a José Mascarenhas Pacheco
Pereira de Mello, um importante magistrado da
“Casa de Suplicação”, a suprema Corte de Justiça
de Portugal, na época. Essa composição, que está
baseada num texto vernáculo, também de autoria
desconhecida, é uma laudatória em homenagem
ao referido magistrado, que estava ligado à “Academia
Brasílica dos Renascidos”, uma sociedade intelectual
semelhante à “Arcádia Romana”. O referido
magistrado estava recém-restabelecido de uma longa
enfermidade e, ao que parece, o Recitativo e Ária
foi composto especialmente para recebê-lo numa
das reuniões da “Academia”.
25
Se Luis Álvares Pinto foi o único compositor
nascido no Brasil que teve a oportunidade de estudar
em Lisboa — de acordo com a documentação
conhecida até o momento —, por outro lado,
o português André da Silva Gomes (Lisboa, 1752 —
São Paulo, 1844) foi um músico enviado pela
metrópole, no século XVIII, para ocupar a função
de mestre-de-capela numa vila importante da colônia.
Pouco se sabe sobre sua formação musical, apenas que
foi discípulo de José Joaquim dos Santos (ca. 1747 —
1801?), compositor português aluno do napolitano
David Perez (1711 — 1778), importante músico que
sistematizou o ensino musical em Portugal, cujas obras
foram amplamente difundidas inclusive no Brasil.
André da Silva Gomes nasceu em Lisboa em 1752 e
veio para o Brasil em março de 1774. Assim que
chegou, foi contratado para ocupar o cargo de mestre-
de-capela da Sé de São Paulo, tornando-se o quarto
ocupante da função. Suas atividades foram intensas,
pois, ao que parece, havia uma necessidade
de reorganização dos serviços musicais da Sé. Desde
sua chegada até 1801, foi também o responsável pela
música nas festas reais anuais da Câmara de São Paulo.
Silva Gomes teve vários discípulos e agregados, entre
eles futuros mestres-de-capela e organistas, como foi
o caso de Bernadino José de Sena, que foi seu agregado
em 1776 e mais tarde, desempenhou o cargo
de organista na vila de Nossa Senhora do Rosário
de Pernaguá, atual Paranaguá, PR.
Como já acontecia nas demais partes da colônia,
o compositor precisou atuar em outras profissões para
poder sobreviver. Após requerer algumas funções que
lhe permitiriam independência econômica em relação
à capela da música da Sé, foi nomeado interinamente,
em 1797, para o cargo de professor régio de gramática
latina da cidade de São Paulo, tendo sido efetivado por
D. Maria I no cargo de professor de latim em 1801.
André da Silva Gomes abandonou todos os serviços
Apesar do deslocamento do eixo econômico
para a região das Minas Gerais, é nas capitanias gerais
da Bahia e Pernambuco que encontraremos as referências
musicais comprovadamente mais antigas do Brasil.
 J. J. Emerico Lobo
de Mesquita.
Tércio (1783).
Fotografia
do original
autógrafo.
FUNARTE
26
musicais além da Sé, de cujo salário abriu mão
em benefício da capela de música da catedral, que não
deixou por solicitação expressa do bispo. As primeiras
composições de A. da Silva Gomes, datadas e
assinadas, remontam ao ano de sua chegada
a São Paulo, 1774. Trazidas de Portugal ou copiadas
aqui por ele, existem diversas obras de compositores
portugueses e italianos, na maioria salmos. Compôs
mais de uma centena de obras. Muitas delas foram
recopiadas posteriormente por outros, sem que se
transcrevesse o nome de seu autor. Suas composições
mais notáveis são a Missa a 8 vozes e instrumentos
e a Missa a 5 vozes. Sua última composição foi uma
Missa de Natal, 1823, composta para ser executada na
Matriz da Freguesia de Acutia (atual Cotia, SP), ao que
parece, uma adaptação de outra obra bem anterior.
No último quartel do século XVIII aparece ainda
o nome de Theodoro Cyro de Souza como mestre-de-
capela na catedral da Bahia. Esse é o ultimo caso de
nomeação direta de Portugal para o cargo em Salvador,
e é também o primeiro compositor a atuar na região
do qual encontramos exemplos musicais concretos.
Nascido em Caldas da Rainha, Portugal, em 1766,
Theodoro Cyro de Souza recebeu sua formação
musical no Seminário Patriarcal em Lisboa,
provavelmente sob a orientação de José Joaquim dos
Santos. Em 1781, partiu de Lisboa para Salvador, onde
assumiria a função de mestre-de-capela, com
o patrocínio de D. Pedro III, da mesma maneira como
ocorrera com André da Silva Gomes, em São Paulo.
A obra de Theodoro Cyro de Souza parece ter
gozado de considerável reputação em toda a região,
pois sua única composição encontrada no Brasil até
o momento, os Motetos para os passos da Procissão do
Senhor, é uma cópiado final do século XIX realizada
em Alagoinhas − BA, que foi localizada numa coleção
de música para a Semana Santa, anônima, proveniente
de Propriá − SE, divulgada numa primeira transcrição
por Alexandre Bispo.
MÚSICA NAS MINAS GERAIS
O isolamento imposto pela Coroa portuguesa, assim
como o próprio afastamento geográfico da região da
Capitania-Geral das Minas Gerais, fará com que toda a
organização da vida cotidiana, religiosa e cultural dessa
parte do Brasil torne-se um tanto peculiar, necessitando,
assim, de critérios específicos para sua avaliação.
A descoberta do ouro trouxe enormes benefícios
para a Coroa portuguesa, como já se sabe. A partir
de 1696, a grande movimentação humana em direção
ao interior do continente fez com que as autoridades
portuguesas regulamentassem a ocupação dessas
regiões. Preocupados com o contrabando de riquezas,
a Coroa viu-se forçada a proibir a entrada de ordens
monásticas nas regiões recém-ocupadas. Devido
ao fato de que o Estado português e a Igreja Católica
formavam uma espécie de unidade corporativa desde
o século XVI, a inviolabilidade dos mosteiros
e conventos era uma realidade aparentemente
irreversível. Portanto, ao mesmo tempo em que
a autoridade eclesiástica representava o Estado, ela
também possibilitava o contrabando de ouro e pedras
preciosas diante das autoridades civis, sem que essas
pudessem fazer muito a respeito. Diante de tal situação,
muito comum nas regiões do Nordeste brasileiro,
determinou-se que toda a vida religiosa na região
das minas fosse organizada por ordens leigas,
ou irmandades formadas por homens comuns,
que deveriam contratar todos os serviços relativos
ao “bom desempenho das funções religiosas”.
Na verdade, o denominativo “pardo” foi criado
pelos portugueses para não haver distinção entre
negros forros, mulatos ou mesmo brancos
nativos sem posses ou posição social.
27
Essas irmandades eram denominadas também
como ordens terceiras, confrarias e arquiconfrarias,
de acordo com sua importância na comunidade.
Eram distribuídas por etnias, ou seja, homens brancos,
pardos ou negros. O Estado colonial incentivava
a rivalidade entre essas agremiações, que cuidavam
de desde a construção da igreja até a contratação
de artistas para a realização da decoração interna,
talha, escultura e pintura, assim como a contratação
de músicos para a criação e interpretação da música
que deveria ser usada nas cerimônias. A maior parte
dos músicos e artistas atuantes na região era “parda”,
ou seja, de sangue mestiço de brancos e negros.
Na verdade, o denominativo “pardo” foi criado pelos
portugueses para não haver distinção entre negros
forros, mulatos ou mesmo brancos nativos sem posses
ou posição social.
A informação mais antiga que temos a respeito
de um compositor ou regente ou organista, na antiga
Vila Rica, é a de que Bernardo Antônio recebeu
a soma de 200 oitavas de ouro pela música anual
de 1715. Esse dado consta no livro de receitas e
despesas da Irmandade de Santo Antônio. Ainda na
primeira metade do século XVIII, encontramos os
nomes de Francisco Mexia e de Antônio de Souza
Lobo, em Vila Rica, assim como o do Mestre Antônio
do Carmo, em São João del Rei. Todas as notícias
relativas à música em Minas no século XVIII estão
restritas aos livros manuscritos de receitas e despesas
das irmandades. Não há registros de nomeações
ou informações impressas sobre os compositores, pois
a imprensa inexistia na colônia. O cargo de mestre-de-
capela era um privilégio das sedes de bispado, portanto
somente a vila de Mariana contava com nomeações
para essa função. Nas demais vilas encontramos
a denominação de “responsável pela música”, o que
não implicava um cargo permanente, pois um músico
responsável pelo serviço em um ano determinado
poderia ser substituído no ano seguinte.
A documentação musical propriamente dita
encontrada até o momento concentra-se numa
produção posterior a 1770. Na condição de capital
da capitania, Vila Rica, atual Ouro Preto, foi local
de atividade mais intensa durante o período de final
do século XVIII até por volta de 1850.
O compositor mais antigo cuja obra é parcialmente
conhecida é Ignácio Parreiras Neves (ca. 1730—1794?).
A alusão mais remota ao seu nome é a de seu ingresso
na Irmandade de São José dos Homens Pardos,
em 16/4/1752. A partir daí, seu nome aparece como
regente-compositor e cantor (tenor), em várias ocasiões
até 1793, atuante em quase todas as Irmandades
e Ordens 3as de Vila Rica. De sua obra, conhecemos
apenas três exemplos bem distintos entre si. São eles:
o Credo em Ré maior, a Antífona de Nossa Senhora — Salve
Regina e a Oratória ao Menino Deus na Noite de Natal.
Nenhuma dessas obras está datada. A mais curiosa
de todas é a Oratória. Trata-se de uma composição
sobre texto vernáculo em português. É a única
do gênero encontrada até agora no Brasil. No período
em que Parreiras Neves atuou como cantor, dois outros
músicos importantes foram seus colegas no conjunto
vocal. São eles: Francisco Gomes da Rocha e Florêncio
José Ferreira Coutinho. Considerando o fato de que
esses músicos eram mais novos e que atuaram juntos
por mais de 15 anos, acreditamos que esses dois
tenham sido discípulos de I. P. Neves. Não há qualquer
indicação de como esses músicos que viveram na
região das minas aprenderam a arte da solfa. Não
há menção em qualquer documento da existência
de alguma escola de música. Portanto, a resposta mais
razoável seria a de que eles se desenvolveram num
processo de iniciação que seguia o modelo de relação
mestre/discípulo, como no caso dos artistas plásticos,
Luís Álvares
de Azevedo Pinto.
Te Deum Laudamus.
Secretaria
de Educação
e Cultura de
Pernambuco, 1968.
Restauração
do Padre Jaime Diniz.
FUNARTE
28
como já pode ser constatado.
Francisco Gomes da Rocha (1754?—1808) ingressou
na Irmandade da Boa Morte da Matriz de Nossa
Senhora da Conceição, na Freguesia de Antônio Dias,
em julho de 1766, e na Irmandade de São José dos
homens Pardos, em junho de 1768.
Em todas essas confrarias, ocupou cargos
importantes, como o de escrivão e tesoureiro.
Apresentou-se como regente e contralto em inúmeras
festividades, durante longo período da segunda metade
do séuclo XVIII. Foi também timbaleiro da tropa de
linha, segundo o recenseamento de 1804. Nesse mesmo
recenseamento consta que Gomes da Rocha contava
com 50 anos na época do mesmo, tendo, portanto,
nascido em 1754. De sua produção, conhecemos
apenas uma parte mínima, que são as obras
Invitatório a 4 para 4 vozes, 2 trompas, violinos I
e II, e baixo contínuo; Novena de Nossa Senhora do Pilar,
de 1789, para 4 vozes, 2 trompas, vln. I e II, viola
e baixo contínuo; Spiritus Domine, de 1795, para
2 coros, 2 oboés, 2 trompas, vln. I e II, viola e baixo
contínuo. Há ainda uma obra incompleta,
as Matinas do Espírito Santo, também de 1795.
Florêncio José Ferreira Coutinho (1750—1820) foi
regente, cantor (baixo) e trombeteiro do Regimento
de Cavalaria Regular. Por três vezes foi contemplado
com a contratação para a realização do serviço anual
das festas oficiais do Senado da Câmara de Vila Rica.
Em 1770, entrou para a Irmandade de São José
dos Homens Pardos, que lhe registrou
o falecimento em 10/06/1820.
Outros três compositores de Vila Rica que
mencionaremos são Marcos Coelho Neto (1746?—
1806), Jerônimo de Souza Queiroz (17..—1826?)
e o Pe. João de Deus de Castro Lobo (Vila Rica,
1794 — Mariana, 1832).
Coelho Neto, que era trompista, clarinista
(trompetista), timbaleiro do 9º Regimento, além
de compositor e regente, exerceu ainda, segundo
documento localizado no cartório do 1º ofício de Ouro
Preto pelo professor Ivo Porto de Menezes, o ofício de
alfaiate. Em 1785 foi designado pelo Governador-Geral
Luís da Cunha Menezes para reger a música de três
óperas e dois dramas reais, por ocasião dos festejos
LUÍS ÁLVARES PINTO: TE DEUM
MANOEL DIAS DE OLIVEIRA: MISERERE EMAGNIFICAT
IGNÁCIO PARREIRAS NEVES: SALVE REGINA
Negro Spirituals au Brésil Baroque
Direction: Jean-Christophe Frisch. K617113 - França
LUÍS ÁLVARES PINTO: TE DEUM
Camerata Antiqua de Curitiba
Regência: Roberto de Regina. PAULUS 11563-0 - Brasil
IGNÁCIO PARREIRAS NEVES:
ORATÓRIA AO MENINO DEUS NA NOITE DE NATAL
Americantiga Coro e Orquestra de Câmara
Direção: Ricardo Bernardes.
AMERICANTIGA PLCD51837 - Brasil
ANDRÉ DA SILVA GOMES:
MISSA A 8 VOZES E INSTRUMENTOS
Orquestra Barroca do 14º Festival Internacional de Música
Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora
Direção: Luís Otávio Santos
CD 14º Festival - PRÓ-MÚSICA/ Juiz de Fora, MG - Brasil
VENI SANCTE SPIRITU
Americantiga Coro e Orquestra de Câmara
Direção: Ricardo Bernardes
AMERICANTIGA, Vol. I PLCD51837 - Brasil
JOSÉ JOAQUIM EMERICO LOBO DE MESQUITA:
MISSA EM MI BEMOL MAIOR
Orquestra Barroca do 12º Festival Internacional de Música
Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora
Direção: Luís Otávio Santos
CD 12º Festival - PRÓ-MÚSICA/ Juiz de Fora, MG - Brasil
MATINAS PARA QUINTA-FEIRA SANTA
Orquestra Barroca do 11º Festival Internacional de Música
Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora
Direção: Luís Otávio Santos
CD 11o.Festival - PRÓ-MÚSICA/ Juiz de Fora, MG - Brasil
MATINAS DE SÁBADO SANTO
Calíope
Direção: Júlio Moretzsohn
Museu da Música da Mariana III (CD - MMM III). Mariana, MG -
Brasil
MISSA PARA 4a FEIRA DE CINZAS
Calíope
Direção: Júlio Moretzsohn. CAL-001 Rio de Janeiro, RJ - Brasil
PE. JOÃO DE DEUS DE CASTRO LOBO:
MATINAS DE NATAL
Coral Porto Alegre e Orquestra
Regência: Ernani Aguiar
CD - FUNPROARTE, Prefeitura de Porto Alegre. Porto Alegre,
RS - Brasil
DISCOGRAFIA
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do casamento dos infantes D. João e Mariana Vitória.
Em 1804, ano do recenseamento geral de Vila Rica,
o compositor declara contar com 58 anos, tendo
nascido, portanto, em 1746. De sua obra, podemos citar
o hino Maria Mater Gratiae, de 1787, o Salve Regina
de 1796, e a Ladainha em Ré Maior, denominada
em alguns manuscritos como Ladainha das Trompas.
Seu filho, também chamado Marcos Coelho Neto,
foi trompista e trombeteiro do 19º Regimento.
Em 1804, ele declarou ter 28 anos. Faleceu em 1823.
Acreditamos que as obras que levam o nome
de Marcos Coelho Neto são da autoria do pai, pois
apresentam características formais muito semelhantes
entre si, e o filho seria demasiadamente jovem quando
o hino Maria Mater Gratiae foi composto.
Jerônimo de Souza Queiroz foi organista
e organeiro. Era filho do português Jerônimo de Souza
Lobo Lisboa e Anna Maria Queiroz Coimbra.
Seu nome tem sido freqüentemente confundido com
o de seu pai, pois Souza Lobo foi, igualmente, um
importante músico em Vila Rica. Souza Queiroz atuou
na Irmandade do Santíssimo Sacramento do Pilar entre
1798 e 1801. Em 1826, compôs a Missa e Credo
a 4 vozes com acompanhamento “d’órgão”. A data
exata do seu falecimento é ainda ignorada, não tendo o
seu nome aparecido em qualquer referência após 1826.
De sua obra, dispomos hoje de uma coleção
aproximada de 20 manuscritos. Suas composições
mais importantes são: Credo em Ré Maior; Missa e Credo
a 4 para coro e órgão (1826); Zelus Domus Tuae
(Ofício de 4a feira santa); Astiterunt Reges Terrae (Ofício
de 5a feira santa); In Pace (Ofício de 6a feira santa).
O último grande compositor ativo em Vila Rica
foi, sem dúvida, o Pe. João de Deus de Castro Lobo
(1794-1832). As primeiras notícias da atividade musical
do Pe. João de Deus datam de 1810, quando seu nome
aparece como o responsável pela regência da
temporada de Ópera em Vila Rica. De 1817 a 1823,
atuou como organista da Ordem 3a do Carmo,
alternadamente, a partir de 1819, com sua formação
sacerdotal no Seminário de Mariana, que se
completará em 1821. Apesar de ter falecido bastante
jovem, em 1832, o Pe. João de Deus foi um dos
compositores mais “ousados” de sua época, escrevendo
obras de grande dificuldade técnica tanto para as vozes
quanto para os instrumentos. Pe. João de Deus deixou
variada obra litúrgica, além da Abertura em Ré-Maior,
que é o único exemplar de música puramente
instrumental encontrado em Minas pelo autor
do presente texto.
Suas principais composições são: Missa e Credo
a 8 vozes e orquestra; Missa a 4 vozes em Ré maior; Matinas
de Natal; Matinas de Nossa Senhora da Conceição; Te Deum
(1822); 6 Responsórios Fúnebres (1832).
O compositor faleceu em Mariana, aos 38 anos
de idade, em 1832.
Antes do Pe. João de Deus, Mariana, como
sede do bispado, foi um centro musical de grande
importância, sendo que a função de mestre-de-capela
foi criada pelo primeiro bispo D. Frei Manoel da Cruz.
Ainda na década de 1750, chega à Sé de Mariana
o Órgão Arp Schnitger, fabricado em Hamburgo,
no norte da Alemanha, originalmente para servir
em Lisboa. Esse instrumento foi uma doação do rei
ao bispado e é considerado, hoje, como o órgão Arp
Schnitger mais importante fora da Europa.
Ainda na década de 1750, chega à Sé de Mariana
o Órgão Arp Schnitger, fabricado em Hamburgo, no norte
da Alemanha (...) Esse instrumento foi uma doação
do rei ao bispado e é considerado, hoje como o órgão
Arp Schnitger mais importante fora da Europa.
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Outro compositor importante que provavelmente
atuou em Mariana foi Francisco Barreto Falcão,
procedente da Vila de Sabará. Algumas de suas obras
encontram-se em manuscritos, no Museu da Música
de Mariana.
Da avaliação que se pode fazer até o momento
da produção musical de Vila Rica de Nossa Senhora
da Conceição do Sabarabussu, atual Sabará,
percebemos que a produção musical de lá foi
igualmente intensa, porém a perda da documentação
musical foi ainda maior que em outros lugares.
Além de Francisco Barreto Falcão, que atuou em
Mariana, encontramos Manuel Júlião da Silva Ramos
(1763-1824), que foi descoberto pelo musicólogo Régis
Duprat. O compositor Manuel Júlião aparece
exercendo funções musicais na Vila de Atibaia, SP,
em 1808. É autor de um Credo, cuja linguagem está
bem próxima da dos demais compositores.
As Vilas de São José e São João del-Rei
desempenharam também um importante papel na
produção musical do período. O compositor de maior
destaque da região é, sem dúvida, Manuel Dias
de Oliveira (1735 − 1813). Organista e regente, esse
compositor jamais atuou fora de sua região, onde
foi organista na Matriz de Santo Antônio de São José
del-Rei (atual Tiradentes).
A maior parte das obras atribuídas a Manuel Dias
de Oliveira apresenta, às vezes, estilos muito diferentes
entre si, fazendo com que coloquemos em dúvida boa
parte do conjunto de obras que hoje conhecemos.
Em São João del-Rei, os compositores mais
importantes são Antônio dos Santos Cunha,
Pe. Manuel Camelo, João José das Chagas, Francisco
Martiniano de Paula Miranda e Lourenço José
Fernandes Braziel.
Santos Cunha representa, juntamente como
Pe. João de Deus, o início das influências românticas
na música produzida na região das minas. Esse
compositor atuou em São João entre 1815 e 1825;
ignoram-se as datas de seu nascimento e morte.
A primeira notícia escrita de atividade musical
em São João del-Rei data de 1717, quando o
Governador da Capitania de Minas Gerais, Dom Pedro
de Almeida e Portugal, conde de Assumar, fez uma
visita à antiga vila.
O manuscrito de Samuel Soares de Almeida relata
minuciosamente a recepção, descrevendo desde
a marcha de entrada da comitiva na vila até a
solenidade na Igreja Matriz, “ao som de música
organizada pelo mestre Antônio do Carmo”. Na Igreja
foi entoado o Te Deum, “que foi seguido por todo
o clero e música”, o que provavelmente indica uma
forma alternada de canto em polifonia com os padres
cantando um verso gregoriano e o conjunto musical
respondendo com um verso musical, tal como se faz,
ainda hoje, na cidade.
Daí em diante, o mestre Antônio do Carmo
responsabiliza-sepela parte musical de importantes
festas realizadas na vila. Em 1724 dirigiu a música na
solenidade de benção da nova Matriz. Quatro anos
depois, organizou a música para a festa de São João
Batista, promovida pelo Senado da Câmara, e, em
1730, os “desponsórios dos Sereníssimos Príncipes
Nossos Senhores”. Pe. Manuel Camelo parece ser
o compositor mais antigo do qual conhecemos algum
exemplo musical. Trata-se de uma Antífona:
Flos Carmeli. Lourenço José Fernandes Braziel atuou
em fins do século XVIII e início do XIX, sendo que
o inventário de seus bens nos dá uma visão bastante
ampla do tipo de repertório que era conhecido pelos
A maior parte das obras atribuídas a Manuel Dias
de Oliveira apresenta, às vezes, estilos muito diferentes
entre si, fazendo com que coloquemos em dúvida
boa parte do conjunto de obras que hoje conhecemos.
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compositores mineiros da época. João José das Chagas
e Francisco Martiniano de Paula Miranda são
compositores também representativos da música
do início do século XIX.
Na Vila de Tamanduá (atual Itapecerica) aparece
o nome de José Rodrigues Dominguez de Meireles
como músico. Em época ignorada, esse compositor
transferiu-se para a Vila de Nossa Senhora da Piedade
(atual Pitangui). De sua obra, a referência mais antiga
que temos é uma página de rosto existente no Museu
da Música de Mariana; trata-se de uma Antífona
de Santo Antônio, de 1797, que se encontra perdida.
Existe ainda, no Museu da Música, uma Antífona
Portuguesa a Sta. Rita. As demais obras encontradas
são: Ofício de Domingo de Ramos (1810); Ofício de 4a feira
de Trevas “Zelus Domus” (1811); Ofício de 5a feira
“Astiterunt” (1811); Ofício de Finados, todas completas.
Todas essas obras estão no Arquivo Curt Lange,
em Ouro Preto. Consta no arquivo que pertenceu
ao Maestro Vespasiano Santos, em Belo Horizonte,
a ária a solo Oh Lingua Benedicta, de 1815.
Em 1985, foram descobertas pelo autor deste texto,
uma Trezena de Santo Antônio e um Domine
ad Adjuvandum de Dominguez de Meireles.
Outro importante compositor é Joaquim de Paula
Souza, o “Bonsucesso”, de Prados, que deixou uma
Missa em Sol Maior e outra em Dó Maior. Na região
diamantina, ou seja, da Vila do Príncipe do Serro
do Frio (atual Serro) e do Arraial do Tejuco (atual
Diamantina), atuaram José Joaquim Emerico Lobo
de Mesquita (1746?−1805), José de Paiva Quintanilha
(século XVIII/XIX) e Alberto Fernandes de Azevedo
(século XVIII/XIX).
Lobo de Mesquita atuou como organista
e compositor na Vila do Príncipe até por volta de 1775,
quando se transferiu por motivos desconhecidos para
o Arraial do Tejuco. Sua obra datada mais antiga que
conhecemos é a Missa para Quarta-feira de Cinzas,
de 1778, para 4 vozes, violoncelo obligatto e órgão
(baixo contínuo), o que mostra que o compositor,
muito provavelmente, já atuava como organista
nessa época. Em 1792, encarregou-se de compor um
Oratório para a Semana Santa, que se encontra perdido.
Em 1795 abandonou o Carmo e em 1798, o Arraial
do Tejuco, por problemas financeiros, indo instalar-se
em Vila Rica, onde viveu por um ano e meio. Com
a decadência da Vila e a falta de melhor remuneração
para o seu trabalho, Lobo de Mesquita abandona
Vila Rica em 1800, passando o cargo que ocupava na
Ordem 3a do Carmo para Francisco Gomes da Rocha.
A partir de dezembro de 1801 até a morte, tocava nas
missas da igreja da Ordem 3a do Carmo, no Rio
de Janeiro, em troca de 40 mil réis. O compositor
faleceu em 1805. Como todos os outros compositores
de sua época, a maioria de sua obra se perdeu.
Algo em torno de 60 manuscritos chegaram
até os nossos dias.
José de Paiva Quintanilha atuou na Vila do
Príncipe durante toda a sua vida e, ao que parece, pelo
estilo de sua Missa em Sol Maior, foi discípulo de Lobo
de Mesquita. Desse mestre, no momento, pouco
podemos dizer além de que recebeu, da Irmandade do
Santíssimo Sacramento da Vila do Príncipe, para
compor a música da Semana Santa de 1790, 1792, 1807
e 1808, e que seu nome figura numa relação de
músicos da Irmandade de Santa Cecília no período
de 1817 a 1838.
O nome de Alberto Fernandes de Azevedo
aparece no período de 1804−1805 na Capela das
Mercês do Tejuco, tendo entrado para esta Irmandade,
segundo Curt Lange, em 24/9/1799. Em 1818 e 1819
foi encarregado de compor a música para cravo para
a Semana Santa para a Irmandade do Santíssimo
Sacramento da Matriz de Santo Antônio, no Tejuco.
Apenas duas obras suas chegaram até os nossos dias:
Gradual Veni Sancte Spiritus para quatro vozes, violino
I e II, viola, trompas e baixo; e uma Encomendação
para quatro vozes e baixo.
HARRY CROWL
Compositor e musicólogo. Tem obras apresentadas no Brasil e em vários países. Prof. da Escola de Música e Belas Artes do Paraná.
Diretor artístico da Orquetra Filarmônica Juvenil da Universidade Federal do Paraná.
Produtor de programas da Rádio Educativa do Paraná e da Rádio MEC. Presidente da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea (2002−2005).
MÚSICA NA CORTE DO BRASIL
O
PROF. DR. MAURÍCIO MONTEIRO
1808-1821
Entre
Apolo e Dionísio
s projetos de transferência da Corte somente se
concretizaram no período em que as incursões
napoleônicas ameaçaram o Estado de Portugal
e a continuidade da casa de Bragança. Nos inícios
do século XIX, diante do medo e das ameaças que
levariam à perda do poder e de partes do território
português, as opiniões sobre a retirada da Família Real
e dos cortesãos para o Brasil não foram unânimes.
Para alguns se tratava de uma traição; para outros,
estratégia. Podia ser, em outras palavras, tanto
o abandono do povo e do trono, como o único recurso
capaz de manter a casa monárquica, tendo em vista as
ameaças de Napoleão. O marquês de Alorna já havia
alertado, paradoxalmente, à Corte portuguesa para
os perigos de permanência da Corte em Portugal, na
iminência do ataque francês, e para os benefícios que
Na página ao lado: Henrique Bernardelli.
José Maurício tocando para D. João VI.
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL
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essa mesma retirada estratégica poderia gerar. Para
o marquês de Alorna, foi estratégica e importante
a vinda de D. João VI e da Família Real para o Brasil,
porque daqui, como um imperador em um vasto
território, os domínios poderiam expandir-se
e o monarca poderia conquistar facilmente “as colônias
espanholas e aterrar em pouco tempo as de todas as
potências da Europa”1. As recomendações do marquês
de Alorna não foram novidades nos inícios do século
XIX em Portugal. Não foi também a primeira vez que
os franceses incomodaram a monarquia portuguesa,
e muito menos era nova a aliança com os ingleses.
Desde os tempos de D. João III, depois nos reinados
de D. João IV e de D. Luíza de Gusmão, a monarquia
já admitia um projeto de se instalar fora das mediações
de Portugal e se estabelecer em algum lugar
do ultramar. Ou porque temia as interferências dos
estrangeiros – como no caso dos franceses na primeira
metade do século XVII e na derradeira expansão
napoleônica nos inícios do século XIX, ou porque
realmente confiavam no potencial econômico
do Brasil, a Corte portuguesa pretendeu, durante
quatro séculos, retirar-se de Portugal2. Se pensarmos
como pensou o marquês de Alorna, a emotividade com
que a carta foi escrita e a estratégia que ela propunha,
a retirada da Família Real para o Brasil era necessária
havia muito tempo e inevitável, diante as ameaças
de Junot. Não bastava somente uma retirada nem
as lembranças de uma terra promissora, que por direito
de conquista deveria acolher o príncipe e sua família.
Foi preciso ainda reforçar, nesse caso como
um atrativo para a retirada, as dimensões da colônia
e a possibilidade da conquista de territórios vizinhos.
Como estratégia política ou como reação que
previa a expansão francesa, o príncipe regente, sua
mãe debilitada, a princesa Carlota Joaquina e seus
filhos, vieram para o Brasil e aqui se estabeleceram por
13 anos, comseus costumes e suas práticas. A primeira
mudança foi acolher um número estimado de reinóis
entre 10.000 e 15.000 indivíduos; a segunda, já
no plano das perdas e da autoridade, começou nos
despejos. Para toda população que tinha uma das
residências “das mais excelentes”, ou pelo menos
habitável, estaria sujeita, mais por obrigação
que por espontaneidade, a ceder sua residência
aos portugueses. As autoridades coloniais mandaram
marcar nessas casas as iniciais P. R. impressas nas
portas das casas; seriam para uns, “Príncipe Regente”,
para outros, “Ponha-se na Rua”3. Com a instalação
da Corte e com as medidas tomadas por D. João, as
relações com os estrangeiros foram mais abrangentes.
Spix e Martius mostram que vários países vendiam
produtos para o Brasil: da Inglaterra vinham algodão,
chitas, panos finos, porcelana e cerveja; de Gibraltar,
vinhos espanhóis; da França, artigos de luxo, jóias,
móveis, licores finos, pinturas e gravuras; da Holanda,
cerveja, objetos de vidro e tecidos de linho; da Áustria,
relógios, pianos e espingardas; e vários outros produtos
da Alemanha, Rússia, Suécia, Estados Unidos, Guiné,
Moçambique, Angola e Bengala4. O produto interno,
a manufatura e a indústria, que ainda começavam
a crescer no Brasil, não eram competitivos, nem
em termos de gosto nem em termos de tecnologia
da civilização, com os da Europa. Os hábitos
estrangeiros foram, dessa forma, assimilados pelos
cariocas, seja pela observação do outro, seja pela
imitação de seu comportamento.
Durante todo o período joanino, houve no Rio
de Janeiro uma intensa atividade musical, distribuída
basicamente em dois setores, o da Corte, onde
a qualidade era imprescindível, e o de fora da Corte,
em que a funcionalidade era festiva e mítica. É
importante pensar nisto, numa complexidade que
surge no momento em que negros e mestiços são
Os músicos diletantes ou
amadores dividiam-se entre
os negros e mestiços, com seus
lundus, modinhas e batuques, e
brancos pobres que normalmente
tinham uma outra ocupação,
que lhes assegurava o sustento.
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chamados para tocar em festas religiosas, muitas vezes
com seus instrumentos típicos e com suas próprias
interpretações. Arregimentar músicos, pintores e outros
artífices para algum trabalho ou para abrilhantar
alguma festa em caráter de urgência foi uma medida
comum nos tempos de D. João VI. Na verdade era
necessário atender um desejo de manter a pompa,
a ostentação e a visibilidade de um gosto; mas para isso
era necessário que houvesse mão-de-obra suficiente.
Muitas vezes não era possível. Em algumas situações,
criava-se, literalmente, o artífice e artesão,
normalmente uma maioria de negros, mestiços
e brancos pobres, cujo desejo e habilidade eram
formulados pela ordem e obediência. Em algumas
circunstâncias, para atender à demanda musical,
ou de outra atividade artesanal, o que valia era o poder
de um sobre o outro. O caso dos músicos pobres,
dos diletantes que estavam à mercê dessas relações
de poder, não foi diferente. Robert Southey chega
a falar de “devotos músicos” que eram chamados
para as festas das igrejas “muitas vezes por água”5 .
Os músicos diletantes ou amadores dividiam-se entre
os negros e mestiços, com seus lundus, modinhas
e batuques, e brancos pobres que normalmente tinham
uma outra ocupação, que lhes assegurava o sustento.
Entre esses diletantes, encontrava-se ainda alguns
professores, mecânicos e “barbeiros-cirurgiões”.
No Rio de Janeiro já existia uma vida musical
significativa para aqueles tempos históricos, com
compositores ativos e importantes, como Lobo
de Mesquita, que saiu de Minas e foi para o Rio, morto
em 1806; José Maurício Nunes Garcia, mestre-de-
capela, compositor e organista que se tornou uma
das maiores expressões da História da Música no
Brasil, e Gabriel Fernandes da Trindade, violinista
e compositor, um dos mais prolíficos instrumentistas da
Colônia e do Brasil Reino. Além desses ilustres, tem-se
ainda o vasto universo dos anônimos. A vinda da
Família Real para o Brasil, juntamente com alguns
dos compositores e intérpretes portugueses que
serviram a Corte em Portugal, influenciou o estilo
e as práticas desses músicos coloniais, “construindo”
uma nova percepção do gosto e uma nova maneira
de observar o mundo das artes. O surgimento de
instituições de corte, como a Capela e Câmara Reais,
favoreceu a expansão da atividade musical, criou mais
Neukomm, Sigismund. Retrato de autoria de Ary Scheffer.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
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oportunidades de trabalho e redefiniu a hierarquia
entre os músicos. As famílias aristocráticas que vieram
com D. João VI, ou que aqui se aproximaram dele,
contribuíram com seus comportamentos e hábitos
de ouvir música em saraus e reuniões sociais. Em tudo
isso pode-se somar ainda a circulação de viajantes
e negociantes estrangeiros, a freqüência e a pompa que
as festividades adquiriram e, sobretudo, a construção
do Real Teatro de São João, palco ideal para
as representações dramáticas. Se os homens vão e vêm,
com eles circulam também as idéias.
A circulação de músicos estrangeiros no Rio de
Janeiro joanino foi importante para o estabelecimento
de uma prática de corte, para sustentar a demanda de
música e, sobretudo, ajudar a construir um novo gosto,
baseado em práticas cortesãs. A vinda dos cantores
castrados, o serviço prestado por Marcos Portugal e em
seguida a vinda de Neukomm foram acontecimentos
importantes que transformaram a idéia da criação e da
recepção musical. Todas essas mudanças ocorridas nos
níveis sociais, culturais, administrativos e, sobretudo,
mentais, criaram um outro espaço e uma outra forma
de audiência das obras no período joanino. Classicismo
e italianismo vieram, respectivamente, com Sigismund
Neukomm e Marcos Portugal. O que aconteceu nesse
período em que a Família Real esteve no Brasil foi
exatamente uma articulação desses estilos. Se a música
vocal se firmou no virtuosismo italiano, a música
instrumental se baseou nos modelos do classicismo
vienense. As relações da Casa de Bragança com
as cortes da Europa, sobretudo com a Casa da Áustria,
se reforçavam cada vez mais, através de questões
políticas e conveniências matrimoniais.
Acontecimentos como a vinda da Missão Artística
em 1816 e o casamento da arquiduquesa D. Leopoldina
com D. Pedro I aproximavam os portugueses dos
costumes e hábitos europeus.
O que aqui denominamos por “classicismo”
conviveu com o “italianismo” e com o “colonialismo”.
Um se refere à estilística tipicamente germânica
e austríaca; outro, como diz o próprio termo que
o define, a uma maneira de dramatizar e interpretar
em termos de técnica desenvolvida na Itália e, por fim,
uma situação político-administrativa, o “colonialismo”
português no Brasil do tempo de D. João VI. Esse
último termo tem significado histórico e prático. Na
verdade, pode-se sugerir a intensa e larga dependência
do Brasil com Portugal. Mesmo depois da instalação
da Corte, da elevação a Reino Unido, da coroação do
Príncipe Regente, a situação dos trópicos não mudou
muito nas suas relações externas. Classicismo, com
Haydn (através das relações Brasil-Áustria e a vinda
de Neukomm), Mozart e Beethoven e o italianismo
operístico, com as obras de Piccini, Cimarosa, David
Perez, Salieri, Scarlatti, Rossini e a transferência de
Marcos Portugal, estiveram na colônia, absorvidos por
José Maurício. Essas relações são importantes para
a compreensão de uma estilística resultante de práticas
coloniais, de um novo gosto, que foi mantido com
a Família Real no Rio de Janeiro e aos poucos foi
sendo construído no Brasil. O gosto pela ópera clássica
era cultivado pela Família Real portuguesa, sobretudo
pelo Príncipe Regente e depois rei do Reino Unido
de Portugal, Brasil e Algarves, D. João VI. A ópera
italiana do final do século XVIII e da primeira metade
do século seguinte reservava o caráter virtuosísticopredominantemente aos cantores castratti. Como uma
extensão desse gosto, D. João VI incentivou a vinda
desses cantores para a colônia, transportando,
da melhor maneira possível, o cenário da prática
musical da Corte de Lisboa para o Rio de Janeiro.
A circulação de músicos
estrangeiros no Rio de Janeiro
joanino foi importante para
o estabelecimento de uma prática
de corte, para sustentar a
demanda de música e, sobretudo,
ajudar a construir um novo gosto,
baseado em práticas cortesãs.
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A imaginação individual era canalizada
estritamente de acordo com o gosto dos patronos.
No Brasil Colonial, a religião, através das irmandades,
e por vezes o poder político, através dos Senados e das
Câmaras, ou de seus representantes mais ilustres,
ditavam o gosto. Era preciso que o compositor tivesse
como princípio a funcionalidade da sua obra e a devida
correspondência com os aspectos morais e espirituais
permitidos ou em uso no seu espaço social. A situação
social do músico e a conseqüente estilística tomaram,
a partir dos fins do século XVIII, um outro caminho:
o interesse da coletividade cedeu lugar ao indivíduo
e o fim paulatino do anonimato consagrou a estética
e o artista, agora com nome, endereço e personalidade.
Na Áustria, Haydn passou quase a vida toda a serviço
de príncipes, Mozart enfrentou-os e conquistou sua
liberdade; Beethoven, aceito pela aristocracia, fez com
que os príncipes admirassem sua arte; Neukomm
desapontou a todos, aristocráticos e burgueses,
e, embora tivesse a proteção de Charles Maurice de
Talleyrand, preferiu uma vida mais ou menos nômade.
No Brasil joanino, ser músico da Corte ainda era
uma situação favorável, por três motivos básicos:
melhores oportunidades de mostrar sua arte, de tomar
contato com músicos estrangeiros e linguagens
modernas e, por fim, de garantir um status social
e financeiro em parte suficiente para viver em colônias.
A música praticada fora do círculo cortesão foi tão
multifacetada quanto a própria sociedade; e, ainda
mais, pode-se dizer que foi uma mistura de tradição
e novidade. Costumes e práticas de várias culturas
conviveram no Brasil joanino. Negros e índios
compartilharam, de uma forma ou de outra, da cultura
do branco, imitaram-na, transformaram-na e, em alguns
momentos, procuram até se afastar dela. Nos tempos de
D. Maria I e D. João, como foi em toda a vida colonial,
os europeus tiveram de articular seus costumes
e hábitos com práticas autóctones ou que aqui se
estabeleceram. Europeus eram dominadores, donos de
colônias, e por isso mesmo tiveram um sentimento
de cultura superior, de força e de retórica. Seu modo
de ver o mundo era melhor de que todos os outros, seu
Jean-Baptiste Debret. Vista interior da Capela Real, desenhada do degrau superior do altar-mor, olhando para o lado da entrada da Igreja.
A orquestra de músicos ocupa toda a parte superior do fundo. Do livro Voyage Pittoresque et Historique au Brésil.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE ICONOGRAFIA
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O MÉTODO DE PIANOFORTE DO PADRE JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA.
Rio de Janeiro, UNIRIO, 1998, CD 002. Ruth Serrão (piano)
MODINHAS DE JOAQUIM MANOEL DA CÂMARA E SIGSMUND NEUKOMM
Rio de Janeiro, 1998, Independente. Pedro Persone
(fortepiano). Luiza Sawaya (canto)
GABRIEL FERNANDES DA TRINDADE: DUETOS CONCERTANTES
São Paulo, PAULUS, 1995, CD 11100-7. Maria Ester Brandão
e Koiti Watanabe (violinos)
MÚSICA PORTUGUESA E BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII PARA CRAVO
Rio de Janeiro, Brascan, 1990. Marcelo Fagerlande (cravo)
MATINAS DE FINADOS. JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA
Rio de janeiro, Funarte, 1980, CD 07.Associação de Canto
Coral. Direção: Cleofe Person de Matos
MISSA DE SANTA CECILIA. JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA
Rio de Janeiro, Funarte, 1980. Associação de Canto Coral
Orquestra Sinfônica Brasileira
Direção: Edoardo de Guarnieri. 2v
VENENO DE AGRADAR. MODINHAS
Lisboa, 1998, CD LS-9801. Luiza Sawaya (canto)
Achille Picchi (piano)
MUSICA BARROCA BRASILEIRA
Caracas, Centro de Estudios Brasileños, 1992, CD 2.72.0440
Camerata Barroca de Caracas. Direção Isabel Palacios
DISCOGRAFIA
Deus era uno, trino e onipotente, e também por isso,
mais verdadeiro que os dos outros. Entretanto, tratamos
aqui de formas culturais, cada uma com sua força e
tradição, mas que, sustentada por indivíduos diferentes,
entrecruzavam-se todas. Nesse sentido, seria oportuno
pensar em um mundo apolíneo nos domínios
de Dionísio, e que é nada mais que uma cultura escrita,
normatizada, programada e cheia de sanções morais
em um ambiente onde ela era mais espontânea.
As concepções de Nietzsche sobre os mitos de
Apolo e Dionísio podem se tornar úteis para introduzir
temas de culturas variadas nesses espaços comuns6.
Numa outra dimensão da idéia que caracteriza
os personagens, a música de Apolo é européia,
encontra-se cultivada fora das camadas populares,
levada para o ultramar como pressuposto
de modernidade e civilização, como um dispositivo
importante de uma cultura que cristianizou e sustentou
o absolutismo de reis, príncipes e cortes. A música
de Dionisio é indígena, africana ou afro-ameríndia;
encontra-se nas manifestações das culturas de tradição
oral. No Brasil colonial, Apolo e Dionísio
se entrecruzaram entre lundus, modinhas, batuques,
práticas de feitiçarias, alegorias e Te Deuns.
Entretanto, em alguns momentos da vida social
da colônia, as ruas, praças, templos religiosos e, por
algumas vezes, os estabelecimentos de espetáculos se
tornavam espaços comuns. Neles, os vários estamentos
e grupos étnicos se reuniram para comemorar alguma
data ou reverenciar algum nobre ou príncipe
e, de forma estratégica, esses encontros de todos
serviram, mesmo que momentaneamente, para atenuar
as diferenças sociais. Tudo que não estava na Corte,
que não estava sujeito às regras de etiqueta e civilidade,
que não seguia determinadas normas de tocar, cantar,
compor e dançar, estava, conseqüentemente, sujeito
a ponderações muitas vezes preconceituosas.
Ao contrário das práticas de corte, as manifestações
de características populares ou étnicas, como aquelas
encontradas entre os brancos pobres, africanos
e indígenas, estiveram sujeitas a um outro tipo
de determinismo: a espontaneidade. Essas práticas,
no caso de indígenas e africanos, estavam atreladas
a cultos de deidades negras e a rituais animistas.
A dos brancos pobres, os excluídos do processo
de corte, estavam sujeitas àquilo que chamamos aqui
de uma ‘articulação’ de culturas; pode-se dizer que elas
absorveram elementos de todas as outras, em menor
escala, dos indígenas. Os negros também absorveram,
através do catolicismo, formas miscigenadas
das práticas européias e deram uma outra roupagem
às suas tradições; preservaram-nas, fizeram com
que elas sobrevivessem numa corte pitoresca que
procurava se impor7.
Tudo isso era um espetáculo, uma mistura
de catolicismo com atividades autóctones, própria
de negros, índios e mestiços. Um espetáculo à parte
daquilo que acontecia na Corte, ou dentro dos templos,
nos teatros ou nas casas mais abastadas. Tinha tanto
de sincrético quanto de propriedade. A palavra
sincretismo vem designar não a simples e inevitável
mistura, ou absorção de uma cultura pela outra, como
uma forma em que as culturas não européias deveriam
aceitar a cultura do outro. Em propostas mais
abrangentes, sincretismo significa aqui uma maneira
de preservar a própria cultura em detrimento das
39
1. “...É preciso que Vossa Alteza mande armar com toda pressa
os seus navios de guerra e de todos os de transporte que se
acharem na praça de Lisboa, que meta neles a princesa, seus
filhos e os seus tesouros(...), podemos cobrir a retirada
de Vossa Alteza e a nação portuguesa sempre ficará sendo
nação portuguesa. (...) Porque ainda que essas cinco províncias
padeçam algum tempo debaixo do jugo estrangeiro,
Vossa Alteza poderá criar tal poder que lhe seja fácil resgatá-las, mandando aqui um socorro, que junto ao amor nacional
as liberte e de todo. Dizem que é mal visto todo homem que
aconselha tudo isto a Vossa Alteza”.
Carta do Marquês de Alorna a D. João VI. 30 de maio de 1801.
Cf.: NORTON, Luis. A Corte de Portugal no Brasil. São Paulo,
Companhia Editora Nacional, 1938, p. 54.
2. Cf.: MATOSO, Antonio G. História de Portugal. Lisboa:
Livraria Sá da Costa Editora, 1939, p. 439.
ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do império. Porto: Edições
Afrontamento, 1993, p. 837.
3. Cf.: LIMA, Manoel de Oliveira. D. João VI o Brasil. Rio de
Janeiro: Topbooks, 1996, p. 790.
4. Cf.: SPIX, J.B. & MARTIUS, C.F.P. Viagem pelo Brasil. 3 v.
Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981, p. 67.
5. Cf.: SOUTHEY, Robert. História do Brasil. Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981, p. 435.
6. Cf.: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A origem da tragédia.
Tradução: Álvaro Ribeiro. Lisboa: Guimarães Editores, 1958,
p. 179 p. As concepções aqui são tomadas em relação ao que
é europeu e não europeu. Apolo é europeu, Dionísio
é africano e indígena, e em certa medida, colonial.
7. Cf.: KLEIN, Herbert S. A Escravidão Africana - América Latina
e Caribe. São Paulo: Brasiliense, 1987.
interferências e das imposições das culturas européias.
Nessa forma de observar o sincretismo, os negros,
sobretudo, preservaram, da maneira possível, suas
raízes e a absorção inevitável da cultura do branco
se tornou um matiz para a preservação de sua própria
cultura. Numa sociedade escravista e preconceituosa
em tudo, esse sincretismo era a única forma possível
de preservar o que é seu sem cair nas malhas da
vigilância e das sanções do Estado e da Igreja. Foram
nos círculos populares, nas casas, nas senzalas, nas
tribos e nas regiões rurais que as manifestações se
tornaram mais autênticas que nas cidades, que nas
áreas onde a vigilância obrigava demonstrações da
cultura européia. Preservar a cultura afro-americana
ou indígena, assim como impor por meios diversos
a cultura européia, era uma articulação viável que,
ao mesmo tempo, preservava uma e absorvia outra.
Surgem dois territórios onde as formas de cultura
se contracenam: um público e outro privado.
Fez-se a festa. Falou-se alto. A vida fora da Corte
vinha de uma observação que era inversa à de um
mundo proposto em um mundo diferente. Em toda
essa sociedade, sobretudo nas vilas e cidades litorâneas
onde as trocas com elementos externos aconteciam
primeiro, era de se esperar que existissem formas
de convivência. Em outras palavras, pode-se dizer que
existiram momentos em que as diversas formas
MAURÍCIO MONTEIRO
Prof. Dr. em História pela USP, leciona na Universidade Anhembi-Morumbi e membro do Conselho Curador da Fundação Pe. Anchieta.
de culturas – as autóctones, as européias e africanas
– manifestaram-se isoladamente, e em outras
oportunidades fundiram-se numa só, permitindo
a existência de vários elementos se entrecruzando.
Essas ocasiões poderiam acontecer em espaços
originais, na sua própria origem, como no caso dos
índios, ou podiam ser ainda preparadas para o formato
dos rituais, do entretenimento ou da demonstração
de poder. Se na igreja ouvia-se os Te Deuns, nas ruas,
ao lado da imagem da santa, tocava-se gaitas típicas,
flautas e tambores. Fora das festas de caráter cristão,
existiu a convivência com negros que andavam
pelas ruas tocando suas calimbas e berimbaus.
Os índios, talvez por estarem menos expostos
à cultura urbana, participaram em menor escala desse
processo de troca. Eles apareceram menos nas cidades
e sumiram mais rapidamente do litoral. Mas é possível
também imaginar os índios descritos pelo príncipe
Maximiliano Wied-Neuwied dançando lundus
ou batuques, ou o índio que era padre e fugiu
nu pela floresta. De qualquer forma, o Brasil,
e mais particularmente o Rio de Janeiro, se tornou
uma sociedade que tinha pajés, reis do congo,
D. Maria I e D. João VI; transformou-se em um espaço
de ritos, onde deuses de várias naturezas disputavam
as almas tropicais. Criou-se um círculo de articulações
e um espaço de tolerâncias.
José Maurício Nunes Garcia
e a Real Capela
de D. João VI
no Rio de Janeiro
RICARDO BERNARDES
José Maurício Nunes Garcia (1767–1830) é um dos maissignificativos compositores da América colonial no quediz respeito à quantidade de composições, à qualidadeestética e à definição de uma linguagem própria,
facilmente perceptível. Esse perfil o individualiza
e o destaca dos compositores mineiros ou hispano-
americanos do século XVIII, que podemos identificar,
respectivamente, dentro de uma “escola” ou estilo
comum de composição. É também o único compositor
colonial cuja obra e biografia não foram esquecidas
ao longo destes dois séculos, pois contou com árduos
defensores, desde seus contemporâneos Manuel
de Araújo Porto Alegre e Bento das Mercês, até
o Visconde de Taunay, que conseguiu fazer com que,
em fins do século XIX, o governo brasileiro adquirisse
as principais obras de José Maurício, reunidas
e conservadas, em coleção, por Bento das Mercês1,
e editasse com Alberto Nepomuceno, em 1897,
o famoso Réquiem de 1816, numa versão reduzida para
canto e piano ou órgão2.
Em 1930, o filho de Taunay, Affonso de E. Taunay,
reuniu os escritos do pai a respeito de José Maurício
e Carlos Gomes, organizando-os no livro “Dous
Artistas Máximos: José Maurício e Carlos Gomes”3 ,
contribuindo assim para a imagem que o século XX
tem de José Maurício, das personagens e dos fatos que
o cercaram. Essa visão foi bastante difundida durante
os primórdios da República, quando se buscava criar
a idéia de um “herói brasileiro”, que fizesse frente
ao “vilão luso”, na busca desenfreada por uma
identidade nacional.
Ainda, durante o século XIX e o início do XX,
outras iniciativas foram tomadas, por compositores
como Leopoldo Miguez e Alberto Nepomuceno,
visando recuperar a obra do padre mestre, através de
sua restauração e execução, como no caso da
reinauguração da Igreja da Candelária, em 1900,
ocasião em que foi executada a Missa em Si bemol
de 1801, com reorquestração de Nepomuceno.
Louis Claude Desausles Freycinet.
Teatro São João, do livro Voyage autour du monde, entrepris
par ordre du roi... Execute sur les cervettes de S. M. l’Urane
et la Physicienne, pendant les années 1819 et 1820.
Paris, Pillet Ainé, 1824.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE OBRAS RARAS
41
42
o que os subentende escravos. O Dr. Nunes Garcia
Júnior, único filho legitimado de José Maurício,
descreve seus avós paternos como mulatos claros
“de cabelos finos e soltos”. Manoel de Araújo Porto
Alegre, em seus “Apontamentos sôbre a vida e obras
do Padre J. M. N. G.”8, indica a freguesia de Nossa
Senhora da Ajuda, na Ilha do Governador,
Rio de Janeiro, como local de seu nascimento.
José Maurício tem sua formação musical com
Salvador José de Almeida e Faria, “o pardo”, amigo
da família e natural de Vila Rica, Minas Gerais. Desde
os doze anos já é professor de música e em 1783, aos 16
anos, compõe sua primeira obra, Tota Pulchra es Maria.
É ordenado padre em 1792 e, em 1798, é designado
para assumir a função de mestre-de-capela9 da Sé
do Rio de Janeiro, que então funcionava na Igreja
da Irmandade do Rosário e S. Benedicto. No entanto,
José Maurício já compunha para essa instituição
mesmo antes de sua nomeação, como comprovam
os autógrafos das Vésperas de Nossa Senhora, de 1797,
também se reflete sobre a vida musical da cidade,
através da construção de um Teatro de Ópera
e, principalmente, da criação de uma Real Capela de
Música, nos moldes da Real Capela lisboeta.10
Quando do desembarque da Corte, a 8 de março
de 1808, todas as festividades de recepção estavam
preparadas na Igreja de Nossa Senhora do Monte do
Carmo, por ser a mais rica e ornamentada da cidade.
Porém, D. João desejava que se celebrasse um Te Deum,
em agradecimento pela boa viagem e chegada, na Sé,
cujo conjuntomusical, dirigido por José Maurício,
contava com um grupo vocal formado por cantores
meninos, nas vozes de soprano e contralto, e adultos,
como tenores e baixos. Contava ainda com um
pequeno grupo de instrumentistas, que segundo
a prática de orquestração de suas obras até então,
provavelmente consistiam em: cordas, flautas,
ocasionalmente clarinetes, trompas e baixo contínuo,
realizado por órgão, fagote e contrabaixo. Este
é o primeiro contato que o príncipe regente trava com
O tempo de José
Maurício à frente
da Real Capela
é claramente um
período de transição
estilística entre suas
duas práticas
Pe. José Maurício Nunes Garcia.
Litogravura.
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO
Foi a partir da década de 1940,
porém, que a vida e a obra de José
Maurício Nunes Garcia contaram
com um estudo bastante sério
e profundo, realizado pela regente
e musicóloga Cleofe Person de
Mattos, que, além de transcrever
e promover a execução de suas
obras, editou o “Catálogo temático
das obras do padre José Maurício
Nunes Garcia”4 , obra fundamental
para o conhecimento da produção
mauriciana. Na década de 1980,
a pesquisadora editou ainda 10
partituras, reunidas em 8 volumes5 ;
em 1994, o Réquiem de 1816, na
versão completa de orquestra6 , e sua
biografia mauriciana7 .
A 22 de setembro de 1767, nasce
José Maurício Nunes Garcia, filho
de Apolinário Nunes Garcia,
(segundo registros) de raça branca,
e de Victória Maria da Cruz, de
ascendentes imediatos “da Guiné”,
dedicados ao conjunto da Sé.
Em 1808, fugindo das tropas
napoleônicas sob o comando de
Junot, D. Maria I, o príncipe regente
D. João, a real família, parte da
Corte e da alta administração do
reino português deslocam-se para
a capital da colônia com o objetivo,
ímpar na história da colonização
do Brasil e das Américas, de lá
se instalarem e fazerem da cidade
a nova capital do reino,
aproximando-se da metrópole sob
todos os aspectos.
Um choque de urbanidade
então se impõe sobre o Rio de
Janeiro, que – por esforços pessoais
do ainda príncipe regente, a ser
coroado D. João VI apenas em 1818
– vai gradualmente se tornando uma
capital nos moldes europeus, com
a vinda da imprensa, a abertura dos
portos ao livre comércio, a criação
da Biblioteca Real. A modernização
43
A partir desse ano começam a chegar
ao Rio de Janeiro os cantores vindos da Capela Real
de Lisboa, e, no início de 1810, os instrumentistas.
Os músicos são atraídos pelas possibilidades
de trabalho propiciadas pela instalação permanente
da Corte na cidade e pela construção, em andamento,
do Teatro de Ópera.
Todos esses acontecimentos, que propiciam um
meio musical bastante rico e intenso, aliados às novas
obras que começam a circular na colônia, trazidas por
D. João11, serão os responsáveis pelas transformações
na linguagem musical de José Maurício.
O tempo de José Maurício à frente da Real Capela
é claramente um período de transição estilística entre
suas duas práticas, desde há muito estabelecidas pelos
pesquisadores de sua obra: antes e depois da chegada
da Corte. Se, antes, escrevia para grupos pequenos e
possivelmente com limitações técnicas, vê-se obrigado,
a partir de então, a escrever uma música mais brilhante
e virtuosística, com o objetivo de se aproximar
arranjado sobre um tema cantado por D. João, e o
moteto Judas Mercator Pessimus, os três últimos de 1809.
Ainda em 1810, compõe um Ecce Sacerdos a 8 vozes
e o Magnificat das Vésperas de S. José, em 1811, a Missa
Pastoril para a Noite de Natal, a Missa em Mi bemol para
coro e órgão e um Te Deum em dó maior.
No entanto, a grande obra do período de José
Maurício à frente da Real Capela é a Missa de Nossa
Senhora da Conceição para 8 de dezembro de 1810.
É, sem dúvida, a obra mais complexa e grandiloqüente
das que havia composto até então e uma das mais
sofisticadas de toda a sua carreira, composta num
momento de plena maturidade: José Maurício tinha,
então, 43 anos.
Era um momento cheio de esperanças e alegrias
para o compositor – por passar a trabalhar à frente de
um grupo através do qual poderia mostrar todas as suas
potencialidades como músico e artista –, mas também
de sofrimentos causados pelo preconceito, por sua
condição de brasileiro, mulato, e por ter tido uma
a música do compositor carioca.
No mesmo mês, D. João terá ainda
várias oportunidades de avaliar
a qualificação musical do conjunto
da Sé e, especificamente,
a qualidade do nível de criação
de seu mestre-de-capela, o padre
José Maurício.
O claro objetivo de D. João era
montar uma capela musical no Rio
de Janeiro nos moldes daquela que
havia em Lisboa, tanto no formato
quanto na fixação de um estilo
musical para as obras que para
lá seriam compostas. Designa
então José Maurício para dirigir
as atividades da recém-criada
instituição, formada por músicos já
atuantes na cidade e alguns vindos
com D. João. Numa demonstração
de apreço e admiração por seus
talentos musicais, D. João
concede-lhe o Hábito da Ordem
de Cristo, em 1809.
do “estilo da Capela Real”.
O que justamente caracteriza
esse período como de transição
é a síntese através da qual José
Maurício adapta sua música
e sua linguagem, obtendo um estilo
híbrido em sua criação, ainda com
resquícios fortes da primeira fase,
mas já alçando vôos em direção
ao estilo que iria caracterizar
sua segunda fase: mais madura
e moderna.
O período de 1808 a 1811
é extremamente fecundo: José
Maurício compõe cerca de setenta
obras visando atender à extensa
série de solenidades. Entre as mais
importantes, comprovadamente
do período e que sobreviveram até
nossos tempos, destacam-se: a Missa
São Pedro de Alcântara de 1808,
e outra Missa São Pedro de Alcântara
de 1809, um Te Deum para as Matinas
de São Pedro, um Stabat Mater,
José Maurício tem
a oportunidade
de estrear obras como
o Réquiem de Mozart,
em dezembro de 1819,
e o oratório A Criação
de Haydn, em 1821.
Marcos Portugal.
Litogravura assinada por Rodrigues.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E
ARQUIVO SONORO
44
formação musical, em muitos
aspectos, autodidata.
A composição da Missa
da Conceição para 8 de dezembro
daquele ano pode ter sido uma
comprovação aos músicos e ao
príncipe de que José Maurício podia
se adaptar ao novo gosto. Essa missa
figura entre suas obras mais
importantes, ao lado do Ofício e
Missa de Réquiem, de 1816, da Missa de
Nossa Senhora do Carmo, de 1818,
e da Missa de Santa Cecília, de 1826.
Em 1811, a chegada de Marcos
Portugal, o mais afamado
compositor português de sua época,
encerra o período de Nunes Garcia
como diretor e compositor da Real
Capela. De renome internacional,
Portugal vem assumir na cidade
as funções de Diretor do Teatro
1. Esse acervo encontra-se, hoje, na Biblioteca Alberto
Nepomuceno da Escola Nacional de Música da UFRJ.
2. GARCIA, José Maurício Nunes. Missa de Réquiem 1816.
Rio de Janeiro/São Paulo: Bevilacqua, 1897.
3. TAUNAY, Visconde de. Dous artistas máximos: José Maurício
e Carlos Gomes I. São Paulo: Companhia Melhoramentos/
Rio de Janeiro: Cayeiras, 1930.
4. MATTOS, Cleofe Person de. Catálogo temático das obras do padre
José Maurício Nunes Garcia. Rio de Janeiro: Conselho Federal de
Cultura/MEC, 1970.
5. Referências: Gradual de São Sebastião. Rio de Janeiro: Funarte/
INM/Pro-Memus, 1981; Tota pulchra es Maria. Rio de Janeiro:
Funarte/INM/Pro-Memus, 1983; Gradual Dies Sanctificatus. Rio
de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus, 1981; Missa pastoril para
Noite de Natal 1811. Rio de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus,
1982; Ofício 1816. Rio de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus,
1982; Aberturas Zemira e Abertura em Ré. Rio de Janeiro: Funarte/
INM/Pro-Memus, 1982; Salmos Laudate Pueri e Laudate Dominum.
Rio de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus, 1981.
6. GARCIA, José Maurício Nunes. Requiem in D (CV 23.008/01,
edited by Cleofe Person de Mattos) Stuttgart: CarusVerlag, 1994.
7. MATTOS, Cleofe Person de. José Maurício Nunes Garcia –
biografia. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca nacional/
Departamento Nacional do Livro, 1994.
8. Cf.: MURICY, José Cândido de Andrade (org.). Estudos
mauricianos. Rio de Janeiro: Funarte, 1983.
9. Mestre-de-capela: pessoa responsável pela preparação
das músicas destinadas às cerimônias religiosas.
10. A tradição das capelas reais portuguesas, como grupos
de excelência na criação e execução musical para as festividades
em 1816, no intuito de retomar
relações diplomáticas com a Corte
portuguesa –, José Maurício tem
a oportunidade de estrear obras
como o Réquiem de Mozart, em
dezembro de 1819, e o oratório
A Criação de Haydn, em 1821.
O padre mestre compõe, no mesmo
ano, dois salmos, Laudate Dominum
e Laudate Puerum, que, segundo o
punho do próprio compositor, foram
“arranjados sobre temas da Creação
do Mundo do immortal Haydn”14.
Podem ser observadas, ainda,
citações do oratório As estações,
do mesmo Haydn, em obras mais
tardias, como no Qui Tollis da Missa
Abreviada, de 1823.
Sua última obra e legado
é a Missa de Santa Cecília,
encomendada pela ordem
de Ópera de São João e de mestre compositor
da Real Capela. José Maurício continua, todavia,
compondo ocasionalmente para a instituição
a pedido de D. João, que o tem em grande estima.13
Através da amizade com o compositor austríaco
Sigismund Neukomm (1778–1858), discípulo de Joseph
Haydn – que veio ao Brasil em uma missão
diplomática promovida por Luís XVIII de França
Jean-Baptiste Debret. D. João VI. Do livro
Voyage pitoresque et historique au Brésil.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –
DIVISÃO DE ICONOGRAFIA
homônima, em 1826. É sua obra maior, que pode
ser posta ao lado das grandes obras, compostas
durante o mesmo período, dentro da história
da música ocidental.
Em 1830, morre em extrema miséria. Sua obra,
contudo, tem sido cada vez mais objeto de estudo
e interesse por músicos e pesquisadores
brasileiros e estrangeiros.
45
religiosas, inicia-se em 1713, no reinado de D João V, graças às
grandes riquezas proporcionadas pela descoberta de ouro em
Minas Gerais. Uma das principais capelas principescas da
Europa, a Real Capela Portuguesa, desde o princípio, mantém
estreitos contatos com a prática musical e litúrgica italiana,
principalmente a Romana, ligada ao Vaticano. No mesmo
período, é criado o Seminário da Sé Patriarcal em Lisboa,
importante centro de formação de músicos portugueses em todo
o século XVIII, tendo, vários deles, a oportunidade de estudar
em Roma ou Nápoles. Durante o reinado de D. João V,
destacam-se os nomes de Antônio Teixeira (1707 – ca.1759), João
Rodrigues Esteves (ca.1700 – depois de 1751) e Francisco Antônio
de Almeida (ca.1702 – 1755). Seus sucessores, como D. José I,
mantiveram essa prática, concedendo estudos a João de Sousa
Carvalho (1745 – 1798), Marcos Portugal (1762–1830), Antônio
Leal Moreira (1758 – 1819) e João Domingos Bomtempo
(1775 – 1842). Nessa mesma política de aproximação, D. José
manteve contato com importantes compositores italianos da
época, como os napolitanos Davide Perez (1711 – 1778) e Nicolò
Jommelli (1714 – 1774), encomendando óperas e música religiosa,
tendo este último, em 1766, enviado cópias de todas suas obras
religiosas à Corte portuguesa, a pedido do rei de Portugal.
“[...] D. João V cria o Seminário Patriarcal de Lisboa, em 1713, e,
à maneira de outras cortes européias, italianiza o gosto musical,
iniciando o envio de compositores portugueses para estudar nos
principais centros de produção musical cortesã da época: Nápoles
e Roma. Ainda de maior importância é a contratação do
compositor napolitano Davide Perez como mestre da Capela
Real de Música da corte de D. José I de Portugal, de 1752 a 1778.
Perez, assim como Jommelli, compositor napolitano que também
serviu a corte de Lisboa, era um dos compositores mais
importantes ligados à aristocracia européia na segunda metade do
século XVIII.” (FERRAZ, Sílvio e DOTTORI, Maurício.
“Manoel Dias de Oliveira e Davide Perez. Uma aproximação
entre o barroco mineiro e a ópera italiana.” In: Ciência e Cultura,
nº 42 (9). São Paulo: Escola de Comunicações e Artes da USP,
setembro de 1990, p. 662-669).
11. Os arquivos musicais que vieram com a corte em 1808
pertenciam à Biblioteca da Capela Real d’Ajuda, justamente a
capela que se destacava por ser a de repertório mais virtuosístico.
12. MATTOS, Cleofe Person. José Maurício Nunes Garcia – uma
biografia. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional /
Departamento Nacional do Livro, 1997, p. 67.
13. “Marcos Portugal toma logo de assalto a vida musical da
Corte... e o seu reino é incontestado. Aliás, o que ele encontra
à sua frente? Cantores italianos vindos de Lisboa, certos cantores
brasileiros, dos quais alguns eram notáveis mas que se integravam
na vida musical da corte e que não podiam prejudicá-lo, enfim,
músicos vindos de Lisboa e que tinham testemunhado a sua
glória naquela cidade. Ou, pelo menos, quase. Havia uma sombra
na imagem. Era o Padre José Maurício, compositor brasileiro de
real talento, fundador da Irmandade de Santa Cecília, no Rio de
Janeiro, organista da Capela Real desde 26 de novembro de 1808
e mestre de música a partir daquela data. Marcos Portugal, de um
orgulho incomensurável e que os escrúpulos não ajudavam a
abafar, tomou o seu lugar como mestre de capela e foi, ainda por
cima, perfeitamente desagradável e desdenhoso para com ele.
Procurou afastá-lo de todas as maneiras. Teve a sorte de o Padre
José Maurício ser um homem pacífico, bom e apagado, numa
palavra, pouco talhado para a luta; isso permitiu-lhe levar avante
os seus planos com facilidade. Deve, no entanto, dizer-se que o
Príncipe Regente não foi cego a suas manobras e que tentou
reparar o melhor que pôde a injustiça que acabara de cometer.
Mas a sua admiração por Marcos Portugal foi mais forte e, se não
afastou o Padre José Maurício, não lhe atribuiu contudo mais que
um papel secundário. No fundo, o Príncipe Regente via em
Marcos Portugal o músico célebre que ele era sem dúvida, o
autor capaz de compor uma música pela qual sentia uma atração
segura e à qual estava já habituado. Pensava ter ao seu serviço (e,
de certa maneira, tinha razão) uma vedeta de primeiríssimo
plano. Tinha de pagar o preço, mesmo que se tratasse de uma
injustiça.” In: SARRAUTE, Jean Paul. Marcos Portugal – Ensaios.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979, p. 121 e 122.
14. MONTEIRO, Maurício Mário. “A construção do gosto: um
estudo sobre as práticas musicais na corte de D. João VI” In:
Anais do Simpósio Latino-Americano de Musicologia. Org.: Elisabeth
Seraphim Prosser e Paulo Castagna. Curitiba : Fundação Cultural
de Curitiba, 1999, p. 397.
OFFICIUM 1816
Camerata Novo Horizonte de São Paulo
Regência: Graham Griffiths. PAULUS - Brasil
LAUDATE DOMINUM
DOMINE JESU
TE CHRISTE SOLUM NOVIMUS
TE DEUM (1799?)
Americantiga Coro e Orquestra de Câmara
Direção: Ricardo Bernardes. AMERICANTIGA, Vol. I - Brasil
TE DEUM (1801)
Americantiga Coro e Orquestra de Câmara
Direção: Ricardo Bernardes. AMERICANTIGA, Série Relações
Musicais, Vol.II - Brasil
MOTETOS PARA SEMANA SANTA
CALÍOPE
Direção: Júlio Moretzohn
CALÍOPE
MISSA PASTORIL PARA A NOITE DE NATAL
LAUDATE DOMINUM
DIES SANCTIFICATUS
JUSTUS CUM CECIDERIT
LAUDATE PUERI
Ensemble Turicum. Direção: Luís Alves da Silva. K617 - França
DISCOGRAFIA
RICARDO BERNARDES
Regente e pesquisador especializado em música antiga luso-brasileira e autor da coleção Música no Brasil nos séculos XVIII e XIX, Funarte 2001.
Diretor artístico da Américantiga História e Cultura.
C
A MODINHA
E O LUNDU
NO BRASIL
om crescimento populacional que vinha se acentuando
desde o início do século XVIII e a formação de centros
urbanos (tais como Salvador, Ouro Preto, Rio
de Janeiro, dentre outros), a demanda por um certo
tipo deentretenimento por parte de uma classe média
emergente era condição imperiosa para a manutenção
de um modelo de cultura que a metrópole, no caso
Portugal, vinha impondo à colônia.
Antes dos concertos públicos, que só viriam
a acontecer no início do século XIX em Portugal (Nery,
1991) e mais tardiamente no Brasil, o lazer era
praticado de diversas maneiras, tanto na Corte quanto
na colônia: as óperas, encenadas desde o século XVIII;
as festas profanas, tais como aniversários de cidades,
membros da família real ou alguma figura importante
pertencente à classe dominante; as festas religiosas,
que também tinham funções sociais.
Uma outra forma de entretenimento que vinha
sendo praticada no Brasil desde meados do século
XVIII era a música patrocinada por proprietários
de posses, que mantinham orquestra formada por
escravos negros especialmente treinados para
executarem os mais diversos instrumentos (violinos,
viola, teclado, charamelas, dentre outros).
As músicas que interpretavam eram os sucessos
europeus que nos chegavam às mãos (Kiefer, 1982).
Porém, tais eventos ocorriam em recintos fechados
e para convidados especiais.
As primeiras manifestações da
música popular urbana no Brasil
EDILSON VICENTE DE LIMA
Página ao lado: Domingos Caldas Barbosa.
1ª edição da obra Viola de Lereno. Lisboa.
Na Officina Nunesiana.
Anno 1798.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE OBRAS RARAS
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48
Os saraus praticados pelas elites, entre os séculos
XVIII e XIX, também foram formas de lazer, e, por
conseguinte, de divulgação da música cultivada pela
classe média em sua vida cotidiana. Era o local onde
músicos amadores e profissionais podiam se irmanar,
tocando ou cantando suas peças preferidas.
Era também a oportunidade para as moças das finas
famílias exibirem seus dotes ao teclado, ou sua
encantadora voz acompanhada pela delicadeza
do dedilhado na guitarra (Nery, 1994).
Portanto, o gosto pela música e, por conseqüência,
pelo canto, parece ser uma constante na cultura dos
europeus vindos para o Brasil. O negro, por sua vez
e mesmo em condições sub-humanas, sempre cultivou
a música, seja em sua forma ritualística longe dos olhos
ocidentais, ou como divertimento nos terreiros e praças
públicas. Desta forma, sem querer adentrar
as discussões sociológicas quanto às condições sociais
das diversas camadas que residiam no Brasil
em meados do século XVIII, ainda que altamente
europeizada, a colônia, aos poucos, foi construindo
seu próprio caminho musical à medida que as vilas
se desenvolviam.
É nesse ambiente e condições sociais que, nos
últimos anos do século XVIII, surge a modinha,
um tipo especial de canção que será cultivada tanto em
Portugal quanto no Brasil. Esta designa um tipo de
canção lírica, singela e de duração reduzida, composta
para uma ou duas vozes acompanhadas por guitarra
ou teclado. Cultivada, inicialmente, pelas classes mais
abastadas, aos poucos, vai se popularizando, até tornar-
se, pouco a pouco, um veículo para a expressividade
musical, tanto portuguesa quanto brasileira.
As discussões pela definição da paternidade da
modinha parecem infrutíferas já que, a despeito da sua
origem e seu surgimento, vai ser adotada pelas duas
pátrias como filha legítima. Mais do que o local
de nascimento, é a trajetória e a aceitação por uma
determinada nação que definem uma nacionalidade.
Porém, a origem da modinha está intimamente
relacionada com a moda portuguesa, sua antecessora,
que em meados do século XVIII, designava,
genericamente, qualquer tipo de canção e era praticada
nos salões de Lisboa pelas classes mais favorecidas
(Araújo, 1963). No Brasil, a palavra moda assume duas
acepções diferentes: qualquer tipo de canção, como em
Portugal; e moda de viola, gênero de canção muito
praticada em São Paulo e Minas Gerais (idem, 1963).
Ao absorver dessa última as características formais
e melódicas, a modinha se configura de maneira muito
rica, não assumindo uma forma específica.
Caracteriza-se, também, por ser mais curta, mais
singela, delicada e, sobretudo, pelo tema amoroso.
Mário de Andrade, no texto introdutório de sua
antológica publicação de 1930, Modinhas Imperiais,
defende que o diminutivo “modinha” está intimamente
relacionado com as características “acarinhantes” tão
presentes na cultura luso-brasileira: “Chamam-lhe
Modinhas por serem delicadas” (Andrade, 1980). Esta
característica, por sua vez, é descrita com muita graça
no refrão da modinha “Quando a gente está com
a gente”, de Domingos Schiopetta, músico que atuou
em Lisboa entre o século XVIII e XIX: “Nós, lá no
Brasil, com nossa ternura/ Açúcar nos sobe com tanta
Álbum de Modinhas, da coleção de modinhas imperiais da Divisão
de Música e Arquivo Sonoro da FBN. Neste número, Despedida,
de José Lino de Almeida Fleming. Narciso e Cia. s/d.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
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doçura/ Já fui à Bahia, já passei no mar,/ Coisinhas que
vi me fazem babar”.
No final do setecentos, literatos e cronistas
portugueses diferenciavam a modinha portuguesa
da brasileira e atribuíam a esta características próprias
advindas da colônia, no caso, o Brasil. O pesquisador
português Manuel Morais descreve algumas delas:
melodia ondulante, cromatismos melódicos
e acompanhamento singelo (Morais, 2000). Poderíamos
acrescentar: melodias entrecortadas e compostas
de motivos sincopados, ora em retardo, ora em
antecipação, abuso de cadências femininas, porém,
sempre primando por uma certa delicadeza
(Lima, 2001).
O etnomusicólogo Gerard Béhague, em seu
pioneiro artigo sobre o manuscrito Modinhas do Brasil,
que se encontra na Biblioteca da Ajuda em Lisboa
(Béhague, 1968), destaca ainda aspectos poéticos que
considera característicos do estilo brasileiro
e, sobretudo, de Caldas Barbosa. Identifica dois
poemas utilizados nas modinhas desta coleção como
sendo de sua autoria: Eu nasci sem coração e Homens
errados e loucos. Domingos Caldas Barbosa, padre,
também conhecido pelo nome árcade de Lereno
Selinuntino, foi poeta, cantor de modinhas, exímio
improvisador e, naturalmente, tangia sua própria
viola-de-arame. Migrou para Lisboa e lá viveu
no último quartel do século XVIII até sua morte.
Tornou-se muito popular na corte por sua atuação
como poeta e cantor de modinhas.
Seu livro, Viola de Lereno, uma coletânea
de poemas em dois volumes, sugere letras de modinhas
e lundus de sua própria lavra. Teve várias publicações
em Lisboa entre 1798 e 1823 e uma na Bahia, em 1813.
Nele, podemos encontrar o estilo que Caldas Barbosa
utilizou em seus poemas e que muito se assemelham
ao estilo de vários textos encontrados no manuscrito
Modinhas do Brasil acima citado: neologismos
afro-brasileiros, como “mugangueirinha”, além
de diminutivos como “enfadadinha” e “negrinho”;
também os vocábulos “sinhá” e “nhanhá”, tratamento
que os escravos dispensavam às senhoras e senhoritas
nessa época, bem ao gosto do vocabulário popular
praticado na colônia. Caldas Barbosa gozou de grande
sucesso no período em que viveu na corte onde era
muito comum apresentar-se acompanhado por sua
viola e cantando modinhas.
Com base na análise poético-musical efetuada no
manuscrito da Biblioteca da Ajuda e da obra de Caldas
Barbosa, Béhague sugere que, se não todas
as modinhas da coleção, grande parte delas é de
Domingos Caldas Barbosa. Destaca as características
musicais consideradas brasileiras presentes em muitas
modinhas desse manuscrito, sobretudo a frase
sincopada, que no caso dessas peças, aparece
totalmente incorporada ao estilo musical, indicando
uma prática adquirida naturalmente, ou seja,
pela convivência, e não pelo resultado de estudos
técnico-analíticos.
No estágio em que se encontram as pesquisas
sobre a modinha e o lundu, tanto no Brasil quanto
em Portugal, encontramos vários poemas de Domingos
Caldas Barbosa musicados por compositores de
renome, tais como MarcosPortugal (1762-1830),
compositor lisboeta que se transferiu para o Brasil
em 1811 e aqui permaneceu até sua morte;
e Antônio Leal Moreira (1758-1819), outro músico
português de renome em Lisboa no final do século
XVIII, só para citar alguns nomes. Outras tantas
modinhas sobre poemas seus, não trazem assinatura
do compositor da melodia, porém é muito provável
que Caldas Barbosa compusesse música de “ouvido”,
e por isso não tivesse o hábito de assinar suas
composições, pois consta que não era iniciado
nos cânones musicais (Sandroni, 2001).
Fato é que, na documentação pesquisada até
o presente momento, há uma grande quantidade
de modinhas que se destacam por possuir uma
musicalidade muito própria: melodias sinuosas de
poucos compassos e compostas por pequenos motivos,
a presença da síncopa melódica, o acompanhamento
em arpejos de quatro colcheias, parafraseando
as batidas do nosso atual pandeiro ou ganzá. Insisto
nestas características pois elas serão associadas
ao universo afro-brasileiro e estão na base de gêneros
como o choro, o maxixe e samba (Béhague, 1968).
Neste aspecto, o manuscrito Modinhas do Brasil
é de fundamental importância, pois, das trinta
modinhas que compõem a coleção, várias trazem
marcadamente estas características (Lima, 2001).
Não afirmamos com isso que a musicalidade brasileira
se resume aos aspectos acima destacados. Herdamos,
com certeza, o gosto pela melodia que nos foi trazida
pelos portugueses e todas as influências italianas
incorporadas no decorrer do século XVIII; mas,
certamente, a frase sincopada, como ela se apresenta
em várias modinhas desse manuscrito, associada
ao staccato monótono da viola ou guitarra, confere
a elas um caráter muito particular, antecipando em
aproximadamente um século as características musicais
que vão ser associadas ao choro, ao maxixe
e, posteriormente ao samba, como ficou dito acima.
A partir dessas afirmações, podemos concluir que,
apesar de nossa dependência política, certas
características musicais e poéticas reputadas ao Brasil,
inclusive por portugueses já no último quartel do
setecentos, apontam para um direcionamento próprio,
pelo menos no que tange à produção musical.
Neste momento não podemos deixar de falar
do lundu, dança popular brasileira introduzida
no Brasil, provavelmente, pelos escravos angolanos,
muito popular em meados do século XVIII (Andrade,
1989). José Ramos Tinhorão descreve essa dança
já como um resultado da confluência de elementos
da cultura negra, portuguesa e espanhola e praticada
por negros e mestiços no decorrer do século XVIII
e XIX (Tinhorão, 1991). O lundu-dança foi descrito
por Tomás Antônio Gonzaga, um de nossos maiores
poetas inconfidentes, em uma de suas Cartas Chilenas,
atestando ainda mais a sua popularidade na época.
O lundu era dançado, tendo como
acompanhamento o batuque dos negros e
instrumentos já ocidentais, como a viola. Tornou-se
popular por seus elementos coreográficos: a famosa
umbigada, o sensual requebrado das ancas e os trejeitos
das mãos e estalidos dos dedos, elemento que Tinhorão
associa ao fandango Espanhol/ Português (idem, 1991).
A convivência entre negros livres e cativos, a classe
média e a corte, possibilitada pelos centros urbanos
emergentes, aproximou, seguramente, o lundu da
modinha e vice-versa. Essa convivência vizinha fez
com que a modinha absorvesse o estilo sincopado do
batuque do sensual lundu e este, por sua vez, as formas
musicais da recatada modinha, dando origem ao
lundu-canção. Estes lundus quase modinhas, ou estas
modinhas quase lundus, como destaca Mozart de
Araújo em seu importantíssimo trabalho A modinha
e o lundu no século XVIII (1963), são o maior exemplo
da fusão ocorrida, já no século XVIII, entre elementos
da cultura da classe média européia e da cultura
popular afro-brasileira.
É importante frisar que o lundu-dança foi utilizado,
já no século XVIII, em espetáculos para divertir
cortesãos e membros da classe média, tanto no Brasil
quanto nos salões de Lisboa. Isso torna evidente que,
apesar de seu caráter “licencioso”, como queriam
alguns, foi cultivado pelas classes mais favorecidas,
mesmo que em forma de espetáculo e mais estilizado,
e, certamente, influenciou músicos e poetas que não
poderiam ficar imunes aos seus feitiços.
Portanto, podemos caracterizar o lundu-canção,
doravante chamada apenas de lundu, como sendo peça
50
Domingos Caldas Barbosa.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE OBRAS RARAS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Itatiania, 1989.
________________. Modinhas Imperiais. Belo Horizonte: Itatiaia,
1980.
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BÉHAGUE, G. “Biblioteca da Ajuda (Lisbon) Mss. 1595/1596:
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Anuário do Instituto Interamericano de pesquisa musical, vol. IV,
1968.
KIEFER, B. História da Música Brasileira: dos primórdios ao início
do século XX. Porto Alegre: Editora Movimento, 1982.
_________ . A modinha e o lundu: duas raízes da música popular
EDILSON VICENTE DE LIMA
Musicólogo, autor do livro “As modinhas do Brasil” - Edusp 2001. Mestre em musicologia pela Universidade do Estado de São Paulo.
Professor de História de Música e coordenador do curso de música da Unicsul.
MODINHA E LUNDU: BAHIA MUSICAL, SÉC. XVIII E XIX. BAHIA: Copene, s/d.
CANTARES D’AQUÉM E D’ALÉM MAR. SÃO PAULO: 1989
COMPOSITORES BRASILEIROS, PORTUGUESES E ITALIANOS DO SÉC. XVIII,
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MODINHAS FORA DE MODA. São Paulo: Festa, s/d
MODINHAS E LUNDUNS DOS SÉCULOS XVIII E XIX.Lisboa. Movieplay, 1997
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HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA (II). São Paulo: Eldorado, s/d
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20 MODINHAS DE JOAQUIM MANOEL DA CÂMARA/Sigismund Neukomm.
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Ed. UFRJ 2001.
TINHORÃO, J.R. Pequena história da música popular. São Paulo:
Art. Editora, 1991.
para voz solista ou a duas vozes, em compasso binário
simples, predominância da tonalidade maior, linha
melódica sincopada e geralmente composta por
fragmentos curtos e o esquema formal variado. Com
relação ao texto, há predominância do uso da quadra
com versos em redondilha maior e uso de refrão
(Kiefer, 1986). O tema, na maioria dos casos, continua
amoroso, porém no caso do lundu, há uma tendência
para a comicidade e a sensualidade (Sandroni, 2001).
No século XIX, encontramos lundus estilizados,
escritos em compasso binário composto, antecipando,
ou já dentro de uma tradição romântica.
Durante o século XIX, a modinha e o lundu, já
autônomos em suas manifestações musicais, tornam-se
verdadeiros meios da expressividade musical tanto
popular quanto erudita. Foi cultivado por músicos
como José Maurício e Marcos Portugal; também por
Carlos Gomes e, numa fase mais adiantada, por Villa-
Lobos, já com sentimentos nostálgicos nas primeiras
décadas do século XX. Na vertente popular, serviram
de suporte para músicos como Xisto Bahia
e a maestrina Chiquinha Gonzaga e porque não dizer,
de Tom Jobim e Chico Buarque. Ainda no século XIX,
incorporaram-se ao repertório de espetáculos
populares e serviramde crônicas à sociedade
de então, como no famoso lundu Lá no largo da
sé velha, que tece uma saborosa crítica à corrupção
51
e aos desmandos econômicos da época.
Finalizando, não obstante a origem aristocrática
da modinha, praticada, inicialmente, nos salões
cortesãos e nas casas dos senhores mais abastados,
aos poucos e numa convivência nem sempre tranqüila,
foi absorvendo características musicais e poéticas
das manifestações advindas das classes
econômicas menos privilegiadas, irmanando-se
ao seu parceiro inseparável, o lundu. Ainda nesse
caminho rumo a aceitação de todos, ambos,
a modinha e o lundu, folclorizam-se, talvez num último
passo para diluir-se na alma!
F
LUIZ AGUIAR
ora a honrosa exceção do livro “A Força Indômita” de
Marcus Góes, editado em 1996, ainda não se fez um
estudo minucioso sobre a vida de Carlos Gomes.
Apesar da existência de uma série de livros, biografias
e citações em diversas enciclopédias universais, o que
se tem visto e lido é um amontoado de informações
baseadas sempre nas mesmas superficialidades, nas
mesmas fontes e, o que é pior, uma repetição constante
de equívocos que vão se sedimentando...
Esses equívocos vão desde a data do nascimento
de Carlos Gomes até suas origens. Muitas dessas
informações se baseiam no livro escrito por sua filha,
Itala Gomes Vaz de Carvalho que, romanticamente,
descreve seu pai como de origem espanhola,
descendente dos Gomez de Pamplona e por aí vai...
Na verdade Antônio Carlos Gomes (com S e não
com Z) é filho de Manoel José Gomes, mulato, que por
sua vez era filho de português com negra. A mãe
de Carlos Gomes, Fabiana Maria Jaguari Cardoso, era
filha de branco com índia. Nenhum traço espanhol,
pois, em sua descendência.
Outro equívoco que se perpetua e continua sendo
divulgado – o fato de Carlos Gomes ser um imitador
de Verdi – o que aliás, não seria nenhum demérito.
Na verdade, Carlos Gomes sempre teve uma grande
CONSIDERAÇÕES SOBRE
veneração pelo Mestre de Le Roncole. Uma veneração
artística, veneração pessoal, vizinha da adoração. Em
seu critério e escalonamento, Carlos Gomes colocava
Verdi logo abaixo de Deus e, em seguida, vinha sua
família. Neste particular é bastante conhecida
a narrativa de Luiz Guimarães Júnior sobre a primeira
grande emoção que a música de Verdi provocou
no jovem Carlos Gomes. Famosa, também, a história
de seu primeiro contato com um “spartito” de
Il Trovatore, em 1853, ainda em Campinas, meses após
a estréia da ópera. Desta emoção surgiu a composição
da Parada e Dobrado sobre motivo de Il Trovatore para
banda. Esta partitura foi – em 1976 – recuperada,
revisada e reescrita por nós. É obra interessantíssima,
em que o jovem Carlos Gomes, então com 17 anos,
compõe para os instrumentos que dispunha na Banda
em que seu pai era o regente. Um tema, de autoria do
próprio Carlos Gomes, dá início à Parada (Desfile) e em
seguida surge o tema do Dobrado (cabaleta – “Di tale
amor” que sucede à belíssima ária “Tacea la notte
placida”). Solos alternados de trompete e clarineta.
Estranhamente esta Parada e Dobrado termina em
compasso ternário, quase uma valsa.
Que Verdi foi o grande ídolo e modelo de Carlos
Gomes, não resta a menor dúvida. Mas não podemos
54
esquecer – isto é muito importante – da influência
francesa de Gounod, no detalhe orquestral e, muito
especialmente, de Meyerbeer, na grandiloqüência
da “Grand Opera”.
Carlos Gomes chega a Milão no ano da morte
de Meyerbeer (1864). Bellini e Donizetti já haviam
falecido em 1835 e 1848, respectivamente, e o “bel
canto” já dava sinal de envelhecimento... agonizava.
Rossini, que viverá até 1868, encontrava-se afastado da
cena lírica, em ócio voluntário. Verdi domina a cena!!!
Senão vejamos: Temporada 1864/1865 – “Teatro
Alla Scala”:
02/janeiro – I Lombardi – Verdi
19/janeiro – Ginevra di Scorzia – Rota
02/fevereiro – I Vespri Siciliani – Verdi
23/fevereiro – Gli Ugonotti – Meyerbeer
(em italiano, bem se vê)
10/março – Le Aquille Romane – Chélard
26/dezembro – La contessa d’Amalfi – Petrella
31/dezembro – Norma – Bellini
A temporada prossegue pelo ano de 1865 com
Faust (Gounod), em italiano – Rigolleto (Verdi) –
Favorita (Donizetti) e L’Ebrea de Halévy (em italiano),
do original La Juive. Sabemos, também, que o próprio
Verdi, por motivos diversos, se auto exilara em Paris,
somente voltando a compor em 1871 (Aída), e em 1874
(Messa da Requiem). Neste período de aparente ócio,
Verdi, após Don Carlos em francês – (1867), revisava
suas óperas anteriores (Macbeth, I Lombardi, Simon
Boccanegra, Forza del Destino...). Mas, ao mesmo
tempo, Verdi se preparava e se reciclava para sua volta
à ópera com o Otello em 1887 e Falstaff em 1893.
Verdi sabia que não tinha o menor sentido continuar
escrevendo outras óperas no mesmo estilo e que
a ópera estava prestes a sofrer uma renovação.
Paralelamente a este momento, a este auto-exílio
de quase 17 anos, eclode o movimento dos
“scapigliati”. Na verdade Carlos Gomes nunca foi um
“scapigliato” na acepção da palavra. Mas era simpático
ao movimento de renovação da ópera e das artes em
geral. Conviveu, com toda certeza, com Boito, Faccio,
Praga, Mariani e freqüentou os salões da Condessa
Carlos Gomes.
Figurinos da ópera Lo Schiavo.
Assinado por Luigi Bartezago.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL
 – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
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Maffei. Dessa convivência surgiram influências mútuas.
É possível que Carlos Gomes tenha influenciado,
com sua verve tropical, seu exotismo, sua originalidade
melódica, harmônica e rítmica, aos compositores
contemporâneos daquele movimento.
Na verdade, a noite de 19 de março de 1870
(estréia de Il Guarany no Teatro “Alla Scala”) marca
uma época na história da ópera. O autor, jovem
maestro brasileiro, vindo de um país desconhecido.
O libreto, baseado em romance de outro brasileiro
desconhecido – José de Alencar. O tema, o amor
de uma branca por um índio. Lutas de tribos rivais,
presença de um cacique aimoré, antropófago e que,
também, se apaixona pela moça branca, filha de um
fidalgo português. Era muito exotismo junto. Tudo
bastante estranho; e o 3º ato – Campo dos Aimorés –
com suas danças, evocações a Tupã, utilização de
instrumentos exóticos e inusitados – inubias, maracás...
Tudo isto aliado a uma música que já prenunciava
novos caminhos: tendência à melodia infinita;
abandono gradativo do esquema de árias, duetos, trios,
quartetos, alternando com recitativos; música mais
adequada ao texto, num desenvolvimento natural
e espontâneo; nada de “belcantismo”, ao contrário,
uma forte tendência na criação de situações dramáticas
com a utilização de temas recorrentes e caracterizantes
de uma determinada personagem ou situação; temas
musicais com grandes saltos melódicos ascendentes
e descendentes realçando uma certa virilidade em seus
meandros e arroubos harmônicos; tendência acentuada
ao cromatismo; uso deliberado dos intervalos de
quintas e sétimas, principalmente os chamados quinta
aumentada e sétima diminuída, modulando com
elegância e beleza; uso atrevido de nonas. Mas
o grande progresso, rumo à personalíssima
caracterização melódico-rítmico-harmônica de Carlos
Gomes se daria em 1873 com a ópera Fosca, verdadeira
obra-prima. Antecedendo 2 anos à Carmen de Bizet
(1875) e de 3 anos à Gioconda de Ponchielli (1876),
a ópera Fosca é um grito de alerta de uma nova
tendência lítero musical – o “verismo”. E, na Fosca,
Carlos Gomes está perfeitamente seguro de si. Nem
uma nota a mais, nem uma nota a menos. Tudo em
dose certa. Melodia, harmonia, ritmo se unem para
a mais perfeita e bela ópera de Carlos Gomes. Tudo
que havia se evidenciado, de forma discreta,
em Il Guarany (1870), atinge seu apogeu com
o enriquecimento de novas combinações tímbricas
na orquestra, resultando uma instrumentação plena
de matizes. Tratamento objetivo do libreto, excelente
por sinal, de autoria de Ghislanzoni, semdivagações
e repetições desnecessárias. O final da ópera, a partir
da frase “Non m’abborrir... compiagimi tu” é um dos
mais belos momentos líricos de toda a história da
ópera. “Fosca”, que fracassou na estréia em 1873,
conheceu o sucesso em 1878, já reformulada.
É muito importante realçar que Carlos Gomes não
é somente o autor de Il Guarany, que muitos acreditam
ser apenas os dez minutos orquestrais da abertura,
impropriamente chamada de protofonia. Por que não
nos referimos a esta abertura com o seu título original –
sinfonia – como Carlos Gomes a denominou e como
Carlos Gomes.
Caricatura publicada na Revista Illustrada, Anno 5, 1880
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE PERIÓDICOSIA
Página ao lado: Carlos Gomes. O Guarany. Imprensa Nacional. Rio
de Janeiro, 1986. Desenho de Álvaro M. Seth.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE ICONOGRAFIA
58
era uso corrente naquela época? O caso do prelúdio
primitivo (da estréia em 19 de março de 1870) é uma
outra história.
Outras pessoas, entretanto, acrescentam que Carlos
Gomes é, também, o autor da modinha Quem sabe?
com versos de Bittencourt Sampaio (“Tão longe, de
mim distante...”). Mas param por aí.
Carlos Gome é muito mais. Mesmo fora do Brasil,
a partir de 1864, ele participou e viveu os problemas
sociais e políticos brasileiros. Embora não se deva
confundir conscientização com engajamento.
Monarquista convicto e declarado, grande admirador
de D. Pedro II e da família imperial era, entretanto,
a favor da causa abolicionista. Possuidor de um
temperamento difícil, irascível, meticuloso, detalhista
(que o digam suas cartas) era sensível, nobre, generoso.
Jamais um mesquinho.
Romântico por natureza, mas suas óperas estão
apoiadas no realismo, na corrente naturalista que
desembocaria no “verismo” (de vero = verdade).
As personagens das óperas de Carlos Gomes são
humanas, de carne e osso. Nada de deuses, ninfas,
mitos ou coisas que tais. Ouçamos, com atenção
a Fosca (1873) – a Maria Tudor (1879) – Lo Schiavo (1889)
e, principalmente, Condor (pronuncia-se Côndor),
de 1891. Esta última, inclusive, surge num momento de
“crise universal”da ópera: quando o gênero lírico não
era mais o centro do mundo musical. A Itália, também,
volvia seus olhos e ouvidos à música instrumental.
É nestas águas que Carlos Gomes, também, foi se
banhar. Compõe a Sonata para quinteto de cordas que,
em última análise, é um quarteto de cordas com
o acréscimo do contrabaixo. Não se trata de uma
sonata nos moldes clássicos e tradicionais. Mas
é música inspirada, espontânea, bem escrita e seu
último movimento – “vivace” leva o sub-título de
Burrico de Pau. Música descritiva, não resta dúvida.
O romantismo musical brasileiro encontra, de fato,
sua expressão mais ampla em Carlos Gomes e Zito
Batista Filho chega a afirmar que “genialidade
é fenômeno irreprimível e seu primeiro sintoma é o
desafio ao horizonte”. Assim foi com Carlos Gomes:
De Campinas (então São Carlos) para São Paulo, numa
fuga arquitetada, bem pensada e concretizada em 1859.
De São Paulo ao Rio de Janeiro, uma distância
considerável por terra e mar. A chegada na corte
imperial, a Condessa de Barral, o imperador D. Pedro
II, seu ídolo, Francisco Manuel da Silva (autor do Hino
Nacional Brasileiro e diretor do Conservatório Imperial
de Música), D. José Amat (diretor da Ópera Nacional).
Vieram logo as perseguições, invejas e intrigas...
As duas primeiras composições importantes,
as cantatas Salve dia de ventura e A Última Hora
do Calvário, ambas de 1860, estrearam em 15 de março
e 16 de agosto, respectivamente.
Seguem-se suas duas primeiras óperas, também em
IL GUARANY
Plácido Domingo
Verónica Villarroel
Carlos Álvarez
Chor und extrachor der Oper Stadt Bonn
Orchester der Beethovenhalle Bonn. Regência: John Neschling
Sony SK66273 / 2 CDs
COLOMBO
Inacio de Nonno
Carol Mc Davit
Fernando Portari
Maurício Luz
Coros e Orquestra Sinfônica da Escola de Música da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Reg.: Ernani Aguiar
UFRJ MUSICA - emufrj - 004
ABERTURAS E PRELÚDIOS
Orquestra Sinfônica Brasileira
Reg.: Yeruham Scharovsky. OSBCD0001/98
SONATA PARA CORDAS ”BURRICO DE PAU”
Orquestra de Câmara de Londrina. ETU 112
Videos VHS e CDs
FOSCA
Gail Gilmore
Krassimira Stoyanova
Roumen Doykov
Orquestra, Coro e Solistas da Ópera Nacional de Sófia
Reg.: Luís Fernando Malheiro
FUNARTE / São Paulo Imagem Data / Sudameris 1997
MARIA TUDOR
Eliane Coelho
Kostadin Andreev
Elena Chavdarova-Isa
Orquestra, Coro e solistas da Ópera Nacional de Sófia
Reg.: Luís Fernando Malheiro
FUNARTE / São Paulo Imagem Data 1998
DISCOGRAFIA
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LUIZ AGUIAR
Pianista, maestro, compositor, pesquisador, restaurador e revisor da obra de Carlos Gomes.
1) Óperas completas, estreadas e muitas
vezes apresentadas: 9
a) em português – A Noite do Castelo –
1861
Joana de Flandres – 1863
b) em italiano – Il Guarany –1870
Fosca –1873
Salvator Rosa –1874
Maria Tudor –1879
Lo Schiavo –1889
Condor –1891
Colombo –1892 (na verdade um poema
vocal – sinfônico mas claramente
pensado como ópera)
2) Revistas musicais (vizinhas das
operetas), estreadas e inúmeras vezes
encenadas: 2
Se sa minga –1867
Nella luna –1868
3) música vocal de câmara: 47 (5 em
português, 2 em francês, 1 em dialeto
veneziano e 39 em italiano)
4) Missas: 3 (Brevis – 2 e Solemnis –1)
a) São Sebastião – 1856
b) Nossa Senhora da Conceição – 1859
c) Sem título específico – 1852
5) Partes avulsas de missas (inacabadas
(?) - perdidas as demais partes (?)
a) Kyrie – 1865
b) Qui tollis – ?
c) Credo – ?
6) Música instrumental de câmara: 4
a) Aria para clarineta e piano – 1857
b) Al chiaro di luna (para bandolim ou
violino e piano) – ?
c) Sonata para quinteto de cordas
(Burrico de Pau) – 1894
d) Variações para bandolim (Vem cá,
Bitu) – ?
7) Música para piano: 36 (32 para piono
solo e 4 para piano a 4 mãos)
8) Cantatas para coro masculino: 2
a) La fanciulla delle Asturie – 1866
(coro e piano)
b) Sacra bandiera – 1895 (coro e piano)
9) Arias avulsas para vozes e orquestra: 4
a) Aria do cozinheiro (Eis-me aqui
nesta cidade) – 1855
b) Aria do alfaiate (Senhor mestre,
veja lá) – ? (na verdade um dueto)
c) Aria de Teresa (Ogni brivido... ogni
rumor) 1872
d) Mama dice (anteriormente composta
para canto e piano – 1882
e em 1892 orquestrada pelo próprio
compositor)
10) Coro “a capella” : 6
a) Fugas tonais – 1866
b) Fugas reais – 1866
11) Música orquestral: 3
a) Variações sobre o tema do romance
Alta Noite – 1859
b) Lalalayu (anteriormente compsota
para piano – 1866 e em 1867
orquestrada pelo prórpio autor)
c) Eva (valsa) – 1871
12) Música para banda: 4
a) Parada e dobrado sobre motivo da
ópera “O Trovador”- 1856
b) “L’Oriuolo” (galope) composta em
1888, posteriormente instrumentada
para banda por Giuseppe Mariani –
1891
c) Ao Ceará Livre – 1884
d) Cruzador Escola “Benjamin
Constant” – 1893
13) Música para coro e banda: 2
a) Inno Marcia (Al fianco abbiam l’acciar)
– 1883
b) A Camões ( O teu dia irromperá da
história) – 1880
14) Música para coro, banda e orquestra: 3
a) Il Saluto del Brasile (Salve glorioso
suol) – 1876
b) Inno Alpino (In alto... in alto) – 1884
c) Coro triunfal – também conhecido
como Hino Progresso (Pela estrada de
flores repleta) – 1885
15) Voz “a capella” (O Vos omnis) − ?
16) Óperas inacabadas: 2
a) I Moschettieri (Gabriella di Blossac) −
1871 (2 atos completos somente para
canto e piano)
b) Morena – 1887 (idem)
Num balanço sucinto, a “vol d’oiseau”, podemos registrar, como finalização destas considerações,
que a obra de Carlos Gomes se apóia no resumo abaixo:
português: A Noite do Castelo (1861) e Joana de Flandres
(1863). Do Rio de Janeiro (8 de dezembro de 1863)
a Milão (1864), passando por Portugal e França, em
busca de conhecimento, de glória, numsonho que lhe
trará o reconhecimento e a imortalidade. Trajetória de
luminosidade crescente, com momentos de escuridão,
depressão, dúvidas, sacrifícios e angústias, mas que,
certamente, constitui uma página das mais belas
da História do Brasil.
Funerais do
maestro Carlos
Gomes.
Fotografia
assinada por
Fidanza. 1896.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA
NACIONAL – DIVISÃO DE
MÚSICA E ARQUIVO
SONORO
T
ALEXANDRE PAVAN
CHOPIN CARIOCA
Obra do compositor Ernesto Nazareth mistura o refinamento
técnico da música de concerto com elementos populares
Ernesto Nazareth em
São Paulo em 1926.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA
NACIONAL – DIVISÃO
DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
odas as 229 composições de Ernesto Nazareth foram
escritas para piano. Porém, ele só foi ter um
instrumento decente aos 63 anos, doado por amigos
de São Paulo, depois de uma temporada na cidade.
Até então, os pianos que usava eram de amigos, alunos
ou de lojas de música onde trabalhava.
Nascido no Morro do Pinto, no Rio de Janeiro,
em 1863, Ernesto Júlio de Nazareth era filho de um
despachante aduaneiro e de uma pianista amadora,
de quem herdou o gosto pela música de Chopin e pelo
virtuosismo no instrumento. Aos dez anos de idade,
ficou órfão de mãe e, na mesma época, sofreu uma
queda que provocou hemorragia no ouvido direito,
causando problemas auditivos que o acompanhariam
pelo resto da vida.
Aos 14 anos, escreveu sua primeira composição,
a polca-lundu Você Bem Sabe, que já revelava seu grande
interesse pelos gêneros populares. A riqueza rítmica
da peça fez com que fosse publicada e, daí por diante,
Nazareth tornou-se músico profissional. A intenção
do pai era enviar o filho à Europa para aperfeiçoar
os estudos pianísticos, mas por falta de recursos
o projeto foi cancelado.
A falta de dinheiro foi constante na vida de
Nazareth. Já adulto, era obrigado a executar acrobacias
mais virtuosas que suas peças musicais para poder
sobreviver. Além de professor de piano, se apresentava
em clubes que detestava e acabou arriscando até
mesmo o serviço público – em 1907, conseguiu ser
nomeado escriturário do Tesouro Nacional, mas não foi
efetivado no cargo por não dominar o idioma inglês.
Apesar das dificuldades financeiras, Nazareth
continuava compondo. Mesmo sem o merecido
reconhecimento, ia cristalizando a linguagem urbana
da música brasileira. “Nazareth imprimiu à rítmica
incipiente das polcas-lundus um caráter tão preciso,
sistematizando e enriquecendo-a com uma tão grande
variedade de fórmulas, empregou nas suas
composições uma ciência rítmica, uma beleza
harmônica e uma tal riqueza de invenção melódica
que o tornam de fato o expoente máximo da
música popular brasileira e um autêntico precursor
60
as peças com pouco valor como obras de concerto.
Durante um bom período, garantiu o aluguel
como pianista da sala de espera do Cine Odeon,
na Avenida Rio Branco. Como de costume na época,
os espectadores se dirigiam ao cinema cerca
de uma hora antes do filme começar para ouvirem
os instrumentistas tocarem. No Odeon, também
se apresentava a pequena orquestra do maestro
Andreozzi, da qual Heitor Villa-Lobos
era violoncelista.
Esse trabalho inspirou Nazareth em uma de suas
peças mais conhecidas, intitulada Odeon. Outras obras
de referência são Tenebroso, Apanhei-te, Cavaquinho
e Fon-Fon. O compositor transitou pela valsa, marcha,
choro e tango. O nome tango foi usado no Brasil antes
da Argentina, porém as peças de Ernesto Nazareth
classificadas desta forma nada têm a ver com a música
portenha. Era apenas uma denominação mais
aceitável, sob a qual o autor escondia as afinidades
de sua obra com os gêneros populares – como
o maxixe, uma espécie de pai do samba –, aumentando
as chances de ela ser editada. Alguns tangos de
Nazareth tiveram relativo sucesso, o que não quer dizer
que tenham lhe rendido muito dinheiro. Segundo
a praxe da época, quando as editoras compravam
as peças, ficavam desobrigadas de repassar o lucro
das vendas para os compositores.
Em 1917, o diplomata Paul Claudel (irmão
da escultora Camille Claudel) transferiu-se para
a embaixada francesa no Brasil e trouxe como
acompanhante o compositor Darius Milhaud. Embora
SEMPRE NAZARETH (Kuarup),
de Maria Teresa Madeira (piano) e Pedro Amorim (bandolim)
ERNESTO NAZARETH − 2 VOLUMES (Sonhos e Sons − Série Mestres
Brasileiros), de Maria Teresa Madeira (piano), Marcus Viana
(violino) e Sebastião Vianna (flauta)
ARTHUR MOREIRA LIMA INTERPRETA ERNESTO NAZARETH − 2 VOLUMES
(Marcus Pereira), de Arthur Moreira Lima (piano)
RADAMÉS & AÍDA INTERPRETAM NAZARETH E GNATTALI (Kuarup),
de Radamés e Aída Gnattali (piano)
Inclui obras de Radamés Ganattali
DISCOGRAFIA
ALEXANDRE PAVAN
Jornalista, co-autor com Irineu Franco Perpétuo do livro “Populares e Eruditos” e colaborador da revista Carta Capital.
tenha sido apresentado aos ilustres
autores brasileiros da época,
Milhaud surpreendeu-se mais com
os sons da rua do que com aqueles
das salas de concerto. “Seria de
desejar que os músicos brasileiros
compreendessem a importância
dos compositores de tangos,
de maxixes, de sambas
e de cateretês, como (Marcelo)
da nossa música erudita de caráter
nacional”, escreveu o musicólogo
Brasílio Itiberê.
Essa característica da obra
de Ernesto Nazareth trouxe mais
problemas do que dividendos ao
autor: o povo não gostava muito
de suas composições, porque não
eram dançáveis, e os estudiosos
torciam o nariz por considerarem
Tupinambá ou o genial Nazareth”, anotou o francês.
Realmente, o pianista carioca deve tê-lo
impressionado, afinal, anos mais tarde, trechos
dos tangos brasileiros Brejeiro e Escovado seriam
aproveitados por Milhaud em sua suíte Le Bœuf Sur
Le Toit. Pena que o francês tenha se esquecido de
mencionar na partitura o nome de Nazareth, que mais
uma vez não lucrou nada com a história.
Em seus últimos anos, Ernesto Nazareth teve
o problema de audição agravado, mas, por motivos
econômicos, não pôde parar de tocar. Quando se
sentava ao piano, era obrigado a debruçar-se sobre
o teclado para tentar capturar o som das notas que lhe
fugiam. Em 1932, durante uma turnê no Uruguai,
começou a apresentar os primeiros sinais de distúrbios
mentais. De volta ao Rio, passou por vários períodos
de internação. Às vésperas do carnaval de 1934,
escapou do manicômio e ficou desaparecido por 3 dias.
Foi encontrado morto – por afogamento – próximo
a uma cachoeira.
Ernesto Nazareth. Cavaquinho porque choras?Editora.
Mangione (SP -1926) e Casa Carlos Gomes (SP-s/d).
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –
DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
61
O Modernismo
62
O
LUIZ GUILHERME DURO GOLDBERG
objetivo deste artigo é retratar a geração
de compositores brasileiros ativos durante a Primeira
República até o limiar da década de 1920.
Tradicionalmente considerados românticos − como
Leopoldo Miguez (1850-1902), Henrique Oswald
(1852-1913) e Glauco Velásquez (1884-1914) − ou,
alguns mais afortunados, precursores do nacionalismo
musical − entre eles Brasílio Itiberê da Cunha
(1846-1913), Alexandre Levy (1864-1892), Alberto
Nepomuceno (1864-1920) e Ernesto Nazareth (1863-
1934) − essas caracterizações remetem a um ponto de
referência: a Semana de Arte Moderna. Esse
acontecimento, que ocorreu entre os dias 13 e 17
de fevereiro de 1922 no Teatro Municipal de São
Paulo, “passou à história da cultura no Brasil como
evento que inaugura simbolicamente o modernismo”.
(Travassos, 2000; 17). Em outras palavras,
a (des)qualificação desses compositores se dava pela
maior ou menor proximidade de suas obras com
os ideais desse marco zero, dividindo os períodos
históricos em antes e depois da Semana.
Os critérios utilizados para as definições
de modernidade foram “a ênfase na atualização estética
e na luta contra o ‘passadismo’, representado a grosso
modo pelo romantismo, na música, e pelo
parnasianismo, na poesia” (Travassos,2000; 19)
e no modernismo nacionalista.
Com base nesses critérios, os escritos tratavam
de um digladiar entre o novo e o velho, o progressista
e o ultrapassado, entre o independente e o
subserviente. Em suma, entre o nativo original
e o estrangeiro transplantado ao exotismo dos trópicos.
De acordo com essa concepção, os artistas
da Semana de 22 seriam não só os profetas do porvir
mas os próprios agentes messiânicos dos novos tempos,
levando a frente um projeto estético e ideológico cujo
objetivo era transfigurar a identidade e o centro
ideológico e cultural do Brasil, tendo São Paulo como
o centro irradiador.
Assim escreveu Menotti del Picchia (1892-1988),
um dos ideólogos e porta-voz do movimento
modernista de 1922:
“Rinchem de inveja as outras ‘capitanias do país’,
entretanto, em matéria de arte e de política, São Paulo
continua e continuará com a batuta e liderança [...]”.
(Picchia apud Brito, 1971; 171)
Na mesma linha, Guilherme de Almeida (1890-
1969) se refere que “São Paulo devia, par droit de
conquête et naissance, ser também, no Brasil, o berço da
libertação intelectual”. (Almeida apud Brito, 1971; 178).
Como resultado, aos compositores da geração
anterior seriam passadistas, copiadores da Europa,
tributários a uma estética que não mais representaria
a sociedade de então, colaboradores na perpetuação
de valores já ultrapassados. Entre esses compositores,
alguns mereceram a qualificação de precursores, já que
não podiam ser de todo desqualificados. Quanto aos
demais, permaneceriam presos ao romantismo ou, na
melhor das hipóteses, ao romantismo tardio.
Dessa forma, as forças antagônicas estavam postas
e os inimigos identificados. Seguindo o seu destino
bandeirante, desbravador, os paulistas fizeram
a “batalha sem sangue da Semana de Arte Moderna”
(Brito, 1971; 172) e saíram-se vencedores.
Página ao lado: caricatura de Alberto Nepomuceno
por Enrico Caruso. Rio de Janeiro, 1917.
COLEÇÃO PARTICULAR: SÉRGIO NEPOMUCENO
Musical Brasileiro
63
64
No entanto, por mais significativos e escandalosos
que tenham sido os resultados obtidos no evento
paulista, os programas musicais apresentados não
se mostraram de todo inovadores. Wisnik já se
manifestara a esse respeito ao diagnosticar que existiria
“uma certa defasagem entre as idéias (alardeadas)
e as obras (apresentadas)” (Wisnik, 1977; 66), além de
a própria formação desses modernistas estar vinculada
ao “passado”.
Em outras palavras, os resultados apresentados
durante a Semana de 22 não se deram por um processo
de “geração espontânea”, e sim já eram gestados
e amadurecidos por compositores como Brasílio Itiberê
da Cunha, Alexandre Levy, Alberto Nepomuceno,
Francisco Braga (1868-1945), Glauco Velásquez, entre
outros. Pode-se afirmar que estes compositores foram
os “bandeirantes” que abriram o caminho para
os artistas da Semana, que sobre seus ombros
e conquistas os “novos modernos” tiveram êxito.
Ainda segundo Wisnik, os modernos da Semana
de 22 manifestavam uma “preocupação febril
de atualização com referência às vanguardas européias
e, portanto, de afastamento da tradição” (Wisnik, 1977;
66), de onde se interpreta que um compositor como
Nepomuceno estava comprometido com a tradição,
cabendo aos “novos modernos” os louros
da atualização e do progresso.
Tal afirmação pode ser contestada por artigo
de Darius Milhaud (1892-1977), que viveu no Rio
de Janeiro entre 1917-1918, para Le Revue Musicale
e também citado por Wisnik. Segundo Milhaud,
Alberto Nepomuceno e Henrique Oswald mantinham
a biblioteca do Instituto Nacional de Música atualizada
com partituras de música contemporânea. Entretanto,
cita somente os compositores e associações francesas,
como C. Debussy, V. D’Indy, C. Koechlin, E. Satie,
a Société Musical Independante e a Schola Cantorum,
entre outros.
A atualização do meio musical carioca era tal que,
ainda de acordo com Milhaud, “eles (Oswaldo
e Nininha Guerra) me iniciaram na música de Satie
que eu conhecia até então muito imperfeitamente
e eu a percorri com Nininha, que lia excepcionalmente
bem toda a música contemporânea” (Milhaud apud
Wisnik, 1977; 40).
Dois outros relatos se referem a essa ênfase
contemporânea patrocinada por Nepomuceno. Trata-se
da série de 26 concertos realizados durante a Exposição
Nacional de 1908, comemorativos ao centenário da
abertura dos portos às nações amigas, por Dom João VI.
Conforme Luiz Heitor Correa de Azevedo, “pode-se
dizer que, em música, foi essa a nossa entrada oficial no
século XX” (Azevedo, 1956; 171).
De acordo com José Rodrigues Barbosa, “Houve
um momento em que as circunstâncias permitiram
a Nepomuceno uma série brilhantíssima de concertos
sinfônicos em que ele fez ouvir as produções dos
nossos compositores e uma série luminosa da mais
moderna literatura musical estrangeira”.
(Barbosa, 1940; 28).
A abrangência do repertório apresentado
demonstrou que a relação de compositores estrangeiros
Alexandre Levy. Diploma da Premiação pelo Júri da Comissão
Colombiana Mundial junto à Exposição Internacional de Chicago,
1893. Edição da Sociedade Brasileira de Musicologia. São Paulo.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
65
dada a conhecer ao público brasileiro não se restringia
aos franceses, como descrito por Milhaud alguns
anos mais tarde, mas também incluía russos
e alemães, além de brasileiros.
Entre os estrangeiros, foram ouvidos Paul Dukas
(1865–1935), Claude Debussy (1862-1918), Alexander
Glazunov (1865-1936), Albert Roussel (1869-1937),
Rimsky-Korsakov (1844–1908), entre outros.
Já entre os brasileiros figuraram Araújo Vianna
(1871-1916), Barroso Neto (1881-1941), Ernesto
Ronchini (1863-1931), Henrique Braga (1845-1917),
Henrique Oswald, Carlos Gomes (1836-1896),
Leopoldo Miguez, Alberto Nepomuceno, entre outros.
Com base na relação de compositores
apresentados durante os concertos da Exposição
Nacional, pode-se concluir que se tratava de um evento
onde a intolerância estética não teria espaço. Assim,
Carlos Gomes, compositor representativo do período
imperial, vinculado à escola operística italiana, figurava
ao lado de republicanos românticos e modernos,
adeptos das escolas germânica e francesa. Daí
vislumbra-se, também, que a formação do público
de concerto estava entre os seus objetivos.
Reforça essa conclusão a respeito da atualização
do modo de recepção o relato do pianista português
José Viana da Mota (1868-1948), sobre a série de
Concertos Populares, ocorridos em 1896 e 1897, e regidos
por Nepomuceno. Esse pianista se manifesta que eram
“os preços acessíveis a (sic) todas as bolsas, afim (sic)
de espalhar o mais possível o gôsto (sic) pela
música [...]”. (Melo, 1947; 290).
A modernização pretendida no meio musical
carioca se refletiu também na formação musical. Coube
a Leopoldo Miguez realizar uma avaliação crítica das
principais escolas de música européias, culminando
com a publicação do relatório Organização dos
Conservatórios de Música na Europa, com o objetivo
de criar o Instituto Nacional de Música, fato que se deu
pelo Decreto nº 143, de 12 de janeiro de 1890.
A qualidade e o grau de seriedade de seus professores
e alunos era tal que, ainda de acordo com Viana da
Mota, “o que bem mostra a riqueza de elementos
artísticos de que dispõe o Rio é que a associação
[de Concertos Populares] não tem dificuldade
nenhuma em variar os artistas em seus concêrtos (sic)”.
(Melo, 1947; 291).
Ainda sobre a ênfase na atualização estética, alguns
exemplos da música de Alberto Nepomuceno
mostram-se sintomáticos e demonstram sua tendência
modernizadora. Nas Variações sobre um Tema Original
op. 29, para piano, Nepomuceno utiliza politonalismo,
escala hexatônica, escala pentatônica, entre outros
procedimentos modernos. Também seguem a mesma
trilha a sua ópera Abul, bem como o ciclo de canções
Le Miracle de la Semence, sobre texto do simbolista
JacquesD’Avray (Senador Freitas Valle).
Merecem citação à parte as considerações
a respeito do Trio em fá sustenido menor,
de Nepomuceno. Avelino Pereira relata que
“Em setembro [de 1916], o trio de piano, violino
e violoncelo formado por Barroso Netto, Nicolino
Milano e Alfredo Gomes estreava no salão do Jornal
do Commercio o Trio em fá sustenido menor de
Nepomuceno, obra dedicada àquele conjunto musical
e saudada por Luiz de Castro como o produto
de um compositor que se tornou completamente moderno”
[grifo nosso] (Pereira, 1995; 304).
Pereira ainda relata o fato de que os compositores
franceses André Messager (1853-1929) e Xavier Leroux
(1863-1919), recém chegados de Buenos Aires,
compareceram a esse concerto de 1916. Ao final,
ao ouvir o Trio, Messager dirigiu-se à Nepomuceno
declarando Vous avez débuté par un coup de maître!
(Pereira, op. cit.; 304). Em audição posterior do Trio de
Luciano Gallet.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
66
de a formação de muitos desses compositores
brasileiros ter-se dado no velho continente, seguindo,
na maioria das vezes, escolas progressistas.
Assim, para citar alguns dos mais conhecidos
compositores do período, observa-se que Leopoldo
Miguez estudou em Portugal e na Bélgica; Henrique
Oswald, na Itália; Alexandre Levy esteve na Itália
e na França; enquanto Alberto Nepomuceno teve
a sua formação na Itália, na Alemanha e na França.
(Uma boa panorâmica sobre esse assunto pode
ser encontrada no artigo Compositores românticos
brasileiros: estudos na Europa, de Maria Alice Volpe).
a música brasileira da escola alemã,
considerada moderna, afastando-a do
lirismo excessivo da escola italiana.
Assim, Brahms e Wagner foram
modelos em detrimento de Rossini
e Verdi. No entanto, os programas
musicais se mantiveram ecléticos.
Em um futuro não distante, Debussy,
Fauré, Sant-Säens, entre outros,
seriam somados a esse grupo.
As trocas com a Europa também
moldaram o crescente nacionalismo
musical brasileiro. Não podemos
perder de vista que, na época, a visão
européia sobre o Brasil afirmava
a “impossibilidade de uma nação
Nepomuceno, Messager declarou
que a obra colocava o autor entre os
melhores da música moderna (Pereira,
op. cit.; 305). Darius Milhaud
concordava com essas considerações
e estava desejoso da publicação do
Trio para levá-lo para a Europa
(Pereira, op. cit.; 308).
Após essas considerações, pode-
se questionar a pretensão
atualizadora, anti-passadista, dos
“novos modernos”. A geração de
compositores da Primeira República
já se ocupava em manter-se
atualizada, já que as trocas com
a Europa eram freqüentes, além
civilizada nos trópicos e ainda por cima miscigenada”.
(Odália apud Reis, 2002; 94). Logo, nada mais natural
que, no princípio, os brasileiros imitassem os europeus
para mostrarem que também eram capazes e, portanto,
civilizados. Como exemplo temos José Maurício Nunes
Garcia (1767-1830), que compôs, entre outras tantas
obras, uma Missa de Réquiem considerada obra-prima.
Em uma etapa posterior, utilizaram-se temas nativos
com roupagem européia. O exemplo clássico são
as óperas O Guarani e O Escravo, de Antônio Carlos
Gomes (1836-1896). Após, a inspiração viria da música
popular urbana, eventualmente da popular rural
ou folclórica, representada pela Série
Brasileira ou o prelúdio O Garatuja,
de Alberto Nepomuceno e pelos
Tangos, Polcas e Valsas, de Ernesto
Nazareth. Um grande passo nesse
caminho nacionalista foi a odisséia
nepomucena de escrever canções
sobre poemas em português, feito que
ainda sequer havia se concretizado em
Portugal, segundo Viana da Mota.
Continuando a migração dos pólos,
chega-se ao extremo oposto, onde
a música brasileira se vestiria de
acordo com a sua sonoridade nativa,
independente da citação folclórica.
Foi um dos caminhos trilhados por
Para se ter em conta o espírito
desbravador desses compositores, vale
lembrar que até por volta de 1880,
ópera e bel canto eram sinônimos
de música no Brasil – e no restante
da América. Foi a partir dessa década
que se deu efetivamente a introdução
da música sinfônica e camerística nos
eventos musicais brasileiros, tendo
Miguez, Oswald e Nepomuceno
como grandes divulgadores.
As mudanças de meios de
expressão e gosto pretendidos não
visaram a substituição da ópera pela
música sinfônica ou de câmera.
Tinham como objetivo aproximar
Alexandre Levy, Sinfonia.
Edição da Sociedade Brasileira
de Musicologia. São Paulo.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –
DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
Leopoldo Miguez. Desenho assinado
por Henrique Bernardelli em 1903.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –
DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
67
Villa-Lobos (1887-1959) em obras como os Choros para
orquestra ou nas obras Uirapuru e Amazonas.
Essa dinâmica de concepções nacionalistas não se
coloca como pré, proto, ou qualquer outro prefixo tão
comum nas categorizações. São simplesmente visões
distintas de nacionalismo, de acordo com o permitido
pelas dinâmicas sociais de cada período histórico.
Daí as afirmações do tipo “preocupação nacionalista”,
para os compositores do período aqui tratado,
apresentarem-se plenas de preconceito e presas
ao dogma do “futurismo” defendido na Semana de 22.
Pela mesma razão, o juízo de que faltaria à
Nepomuceno, Levy e Brasílio Itiberê da Cunha maior
intimidade com a música brasileira mostra-se
não procedente.
Parafraseando Mário da Silva Brito, poderão
parecer, ao público de hoje, tímidas e, por vezes,
desajeitadas as realizações musicais desses
compositores brasileiros, mais acadêmicas do que
revolucionárias, mas, ao seu tempo, repercutiam
perturbadoramente, eram objeto de discussão
e poderiam causar algum escândalo. Mas foi, através
delas, que novas perspectivas puderam ser abertas
e processos mais amplos para a expressão musical
foram conquistados.
Portanto, o período da Primeira República, mostra-
LUIZ GUILHERME DURO GOLDBERG
Professor de piano no Conservatório de Música da Universidade Federal de Pelotas (RS).
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Música, Musicologia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZEVEDO, Luiz Heitor Corrêa de. 150 anos de música no Brasil.
Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1956.
BARBOSA, José Rodrigues. Alberto Nepomuceno. Revista Brasileira
de Música. Rio de Janeiro, v.7, n.1, 1940. p.19-39.
BRITO, Mário da Silva. História do modernismo brasileiro:
antecedentes da Semana de Arte Moderna. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1971.
CHAVES, Celso G. Loureiro. Literatura e Música. História da
Literatura Brasileira. Vol.3. Lisboa: Alfa, 2000.
MELO, Guilherme de. A música no Brasil: desde os tempos coloniais
até o primeiro decênio da República. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1947.
PEREIRA, Avelino Romero Simões. Música, sociedade e política:
NEPOMUCENO, Alberto − TRIO EM FÁ SUSTENIDO MENOR,
PARA VIOLINO, VIOLONCELO E PIANO. Trio Dell’Arte, 1995
Sony Music Entertainment
NEPOMUCENO, Alberto − SÉRIE BRASILEIRA. Orquestra Sinfônica
Brasileira/Souza Lima. Festa − Polygram, 1981
MIGUEZ, Leopoldo − SONATA OP.14, PARA VIOLINO E PIANO. VL. −
Paulo Bosísio; Pno. − Lilian Barreto. 1998
OSWALD, Henrique − TRIO EM SOL MENOR OP.9. VL
Elisa Fukuda; Vc. − Antônio Del Claro; Pno. − José Eduardo
Martins. FUNARTE. 1998
LEVY, Alexandre − SUÍTE BRASILEIRA. Orquestra Sinfônica Brasileira/
Souza Lima. Festa
BRAGA, Francisco − TRIO PARA VIOLINO, VIOLONCELO E PIANO
Trio da Rádio MEC. Funarte ProMeMus
DISCOGRAFIA
se uma época muito rica para a música brasileira.
A eterna atualização estética junto com a afirmação
da identidade brasileira, pelo auto-conhecimento
de suas músicas nativas (urbanas ou rurais), refletem
um “período mágico”, onde “reside a essência do
verdadeiro e breve modernismo musical brasileiro”.
(Chaves, 2000; 140). Na mesmalinha reflexiva de
Celso Loureiro Chaves, o modernismo musical
brasileiro pós Semana de Arte Moderna dogmatizou-se
e virou Nacionalismo Musical Brasileiro.
Alberto Nepomuceno e a República Musical do Rio de Janeiro (1864-
1920). Dissertação (Mestrado em História Social). Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de
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REIS, José Carlos. As Identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC.
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TRAVASSOS, Elizabeth. Modernismo e música brasileira. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
VOLPE, Maria Alice. Compositores românticos brasileiros: estudos na
Europa. Revista Brasileira de Música. Rio de Janeiro, v.21, 1994/
95. p.51-76
WISNIK, José Miguel. O Coro dos Contrários – A Música em torno
da Semana de 22. São Paulo: Duas Cidades, 1977.

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