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4 M Ú S I C A E R U D I T A BRASILEIRA 5 Escrever um panorama da História da MúsicaErudita ou de Concerto no Brasil é umdesafio há muito acalentado. Diferente de outras produções artísticas brasileiras, a música ainda carece de estudos organizados com o objetivo de contar sua história e, principalmente, contextualizá-la perante o repertório consagrado da música ocidental. Essa vertente da produção musical brasileira por muitos é considerada como o último tesouro ainda por ser descoberto e verdadeiramente explorado da cultura do país. À exceção do célebre Villa-Lobos, e também de Camargo Guarnieri, pouco se conhece a respeito dessa imensa produção musical. Isso se dá tanto nos meios internacionais como, espantosamente, entre os próprios músicos brasileiros, que bastante sabem e executam Mozart, Beethoven e Brahms, mas que pouca informação têm de compositores brasileiros contemporâneos e mesmo de outros períodos. 6 Por outro lado, enquanto a denominada MPB ou Música Popular Brasileira é consagrada pelos meios de comunicação e conhecida internacionalmente como símbolo da produção musical do Brasil do século XX, a música erudita ou de concerto ainda é um território inexplorado, quer pelos estrangeiros, quer pelos próprios músicos brasileiros. Diferentemente da produção de MPB, que abrange dos últimos anos do século XIX aos dias atuais, a música “clássica” no Brasil está ligada diretamente ao início da colonização pelos portugueses e perpassa pelos cinco séculos de transformações e adaptações culturais ocorridas no país. A respeito de como interagem na cultura brasileira essas duas realidades musicais complementares, citamos artigo do jornalista Irineu Franco Perpétuo1 que bem exemplifica essa situação: “É que parece cada vez mais que, no Brasil, falar de música brasileira corresponde a falar de música “popular” brasileira. Claro que a supremacia, em termos de difusão, da música popular sobre a música de concerto é um fenômeno mundial. O que torna o caso do Brasil específico é que os principais autores e intérpretes de nossa música popular desfrutam do status não apenas do carinho das massas, mas o afago da “inteligentsia”, desalojando a música “clássica” da posição hegemônica mesmo entre as elites. Para o bem ou para o mal, os intelectuais orgânicos brasileiros, na área de música, são gente como Chico Buarque, Caetano Veloso e Milton Nascimento − não Almeida Prado, Edino Krieger ou Gilberto Mendes, por mais que possamos admirar e respeitar o talento desses compositores. As idéias dos astros da MPB é que são levadas a sério, debatidas e discutidas pelos formadores de opinião pública. Quando acontece um fato de comoção nacional, e a imprensa quer saber a opinião de um músico a respeito, vai perguntar para o Chico. A intenção de voto de Caetano a cada eleição presidencial é sempre repercutida pela imprensa com estardalhaço, mas ninguém vai averiguar em quem Nelson Freire ou Antonio Meneses vão votar. Não se trata aqui de atacar a música popular brasileira, mas apenas lamentar o deslocamento sofrido pela música brasileira de concerto.” Ao procurarmos os vários fatores a que se deve a atual situação de desconhecimento da história e da produção da música de concerto no Brasil, deparamo- nos com dois principais, que são a falta de programas editorais eficazes para a publicação de obras compostas no Brasil desde o século XVIII e o próprio desincentivo ou mesmo desinteresse das corporações musicais em conhecer e programar esse repertório em seus concertos. Diante desse quadro, nada mais oportuno que escrever, ainda que despretensiosamente, esta História da Música Erudita no Brasil, de modo multidisciplinar e em formato de revista. Para esta publicação elaboramos uma pauta onde subdividimos os assuntos em três grandes períodos históricos: do Descobrimento à Independência, do Império ao Estado Novo e da Segunda Guerra aos dias atuais, sendo a subdivisão interna de cada fase formada por artigos de diferentes características. Há os artigos contextualizantes de um período histórico e que vêem a produção musical no âmbito sociológico, e há os que exploram a biografia dos principais compositores de cada período, tornando-se importantes verbetes para uma compreensão mais objetiva da biografia e produção de cada compositor ou período estético abrangido. Esse formato, uma vez que esta é uma revista de divulgação de cultura brasileira no exterior, tem como objetivo possibilitar que o leitor, mesmo que jamais tenha ouvido falar a respeito dos assuntos abordados, possa ter uma ambientação histórica e social na qual essa música foi produzida. Acessíveis e interessantes para músicos, ou somente interessados em saber mais sobre essa produção musical, os artigos foram escritos por alguns dos mais atuantes especialistas de cada subdivisão do assunto, entre jornalistas, acadêmicos e musicistas. A presença do CD anexo, assim como as bibliografias e discografias sugeridas, servem como ilustração a cada assunto abordado nos artigos. Desse modo, pretendemos tornar a revista ainda mais dinâmica, possibilitando que a mesma possa ser utilizada como um guia referencial para aqueles que pretendem começar a se enveredar pelo tema, e até servir como base bibliográfica para a elaboração de pequenas aulas. Dentre as publicações mais importantes de História 7 da Música no Brasil, sendo escritas cada qual por somente um autor, podemos citar as de Vicente Cernicchiaro, Renato de Almeida e Mário de Andrade, ainda nas décadas de 1920 e 30, passando por Luiz Heitor Corrêa de Azevedo nos anos 60, Bruno Kieffer nos anos 70 e Vasco Mariz em dias atuais. Nesta Textos do Brasil, por sua característica multidisciplinar unindo conhecimentos específicos para cada assunto abordado, pretendemos contribuir para incrementar e dar nova visão sobre essa não vasta, porém importante, bibliografia existente a respeito do tema. O primeiro texto da revista, “Música e sociedade no Brasil colonial”, assinado por Rogério Budasz, trata inicialmente da música composta e utilizada pelos jesuítas com o objetivo de catequizar os povos indígenas brasileiros durantes os dois primeiros séculos da colonização. Apesar de não existir documentação musical remanescente do período, o pesquisador faz uma minuciosa e aprofundada pesquisa sobre esse processo, tendo como fonte o trabalho realizado pelo emblemático Padre José de Anchieta, buscando em suas notas as informações necessárias para a reconstituição provável desse material. No mesmo artigo, Budasz trata da produção musical para os versos do ilustre poeta da Província da Bahia ainda no século XVII, Gregório de Matos, podendo ser uma das primeiras informações a respeito de uma prática de música não-litúrgica ou profana em nosso território. Desta também não restou documentação musical específica, porém é também possível realizar um processo comparativo e de reconstituição baseado em manuscritos musicais existentes em Portugal, a que são feitas referências em documentos da época. Ainda no século XVII e início do XVIII temos, para não deixar de citar, o caso da música composta na região das Missões Jesuíticas dos Índios Guaranis − hoje pertencentes ao território brasileiro no Sul do país, mas que no período pertenciam à Coroa espanhola −, sendo sua produção artística e musical mais diretamente ligada à arte barroca praticada em países como Argentina, Paraguai e Bolívia. Para conhecermos mais a respeito desta produção, basta que conheçamos os trabalhos editoriais e de partituras, assim como os registros musicais em discos e sobre música barroca hispano-americana. Tratando a pauta com respeito a uma ordem cronológica e contextual passamos, a seguir, a tratar da música sacra no Brasil, sobretudo na segunda metade do século XVIII e primeira metade do XIX. Neste segundo artigo, “A Música no Brasil Colônia anterior à chegada da Cortede D. João VI”, assinado por Harry Crowl, é abordado um aspecto mais difundido, porém também pouco conhecido da produção musical do Brasil colônia, que é a música sacra composta pelos mestres-de-capela nas sedes de Bispados e a atuação dos músicos junto às Irmandades leigas, sobretudo nas províncias das Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Pernambuco. Esse artigo trata justamente da música a partir do primeiro documento musical encontrado, que é um recitativo e ária da Bahia datado de 1759, e contextualiza as produções nordestinas do mesmo período para, aí sim, dar total ênfase à mais importante escola de compositores do período colonial, que é a das Minas Gerais da segunda metade do século XVIII. É um texto bastante completo, que contempla a produção de vários nomes importantes do período, como Emerico Lobo de Mesquita, Francisco Gomes da Rocha, Marcos Coelho Neto, João de Deus de Castro Lobo, entre outros. Nesta nossa introdução não podemos deixar de explicar, mesmo que brevemente, como esse estilo musical se estabeleceu no Brasil colonial, principalmente nos séculos XVIII e XIX. Essa A música “clássica” no Brasil está ligada diretamente ao início da colonização pelos portugueses e perpassa pelos cinco séculos de transformações e adaptações culturais ocorridos no país 8 linguagem musical eminentemente italiana tem uma trajetória interessante: D. João V de Portugal, a partir da década de 1710, manda jovens compositores portugueses estudar na Itália como bolsistas, sobretudo em Roma e Nápoles, a fim de absorver o estilo musical italiano, que era o predominante na época, e trazê-lo para Lisboa. Do mesmo modo, compositores italianos como Domenico Scarlatti são levados a Portugal para dirigir a música na Sé e na corte lisboeta. Como a mais importante colônia do império português do período, o Brasil tem uma grande atividade musical e está em estreito contato com as novidades vindas da metrópole, passando também a ter sua produção musical nos mesmos moldes de Portugal. Com a descoberta do ouro, sobretudo na província das Minas Gerais, outros importantes centros urbanos como Vila Rica surgem para, além das tradicionais grandes cidades como Salvador e Rio de Janeiro, possuírem intensa atividade musical, que caracterizará um dos mais profícuos momentos da história musical brasileira. No entanto, não há parâmetro para as transformações nas atividades culturais e mesmo sociais do Brasil como o deslocamento da Corte de D. João VI de Portugal para o Rio de Janeiro, que teve o fim de salvaguardar a alta administração portuguesa da invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas em 1808. O artigo que se segue, “Música na Corte do Brasil: Entre Apolo e Dionísio 1808-1821”, assinado pelo musicólogo e historiador Maurício Monteiro, começa justamente a falar das grandes mudanças sociológicas e estilístico-musicais que se seguem após este importante momento da História do Brasil. Com o objetivo de finalizar essa primeira sessão, segue, por nós assinado, artigo a respeito do mais representativo compositor desse período colonial brasileiro, que é o carioca José Maurício Nunes Garcia (1767 –1830). Esse texto, “José Maurício Nunes Garcia e a Real Capela de D. João VI no Rio de Janeiro”, trata de sua interessante biografia e de como suas obras sobreviveram através do tempo. Por ser um compositor que trabalhou sempre no Rio de Janeiro, sendo sua primeira obra datada de 1783 e a última de 1826, sua música também reflete as transformações que essa cidade, como capital da colônia, sofreu em sua música e relações sociais. Esses anos foram intensos também para as artes plásticas no Brasil, com a vinda da Missão Artística Francesa de 1817 e de músicos como o compositor austríaco Sigismund Neukomm – que veio na missão diplomática do Duque de Luxemburgo a serviço de Luís XVIII de França – e que permaneceu no Rio de Janeiro por cinco anos, sofisticando a produção de música instrumental na corte como música para piano, de câmara e até mesmo sinfônica. Graças à presença desse compositor, os músicos atuantes na cidade puderam travar contato com o que havia de mais relevante da produção musical centro-européia, como a Missa de Réquiem de Mozart, regida por José Maurício em 1819, e os oratórios As Estações e A Criação de Joseph Haydn, este último também comprovadamente regido por José Maurício em 1821. Nos anos que seguiram ao processo de Independência do Brasil de Portugal, ocorrida em 1822, as atividades culturais sofreram um grande declínio em comparação aos faustos anos da presença da corte portuguesa no Rio de Janeiro. O início de uma longa reestruturação se inicia com a criação do Imperial Conservatório de Música, atual Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que teve como seu primeiro diretor o autor do Hino Nacional Brasileiro, Francisco Manoel da Silva, que durante o tempo de José Maurício esteve entre seus alunos diletos. Esse período se caracterizou por uma certa desestruturação da Real Capela de Música, transformada em Imperial Capela, e seus músicos – entre eles seus mestres-de-capela José Maurício Nunes Garcia e Marcos Portugal – sofreram sérias dificuldades financeiras. Essa época coincidiu também com a ascensão de Rossini nos teatros do mundo todo, passando a ser um novo parâmetro para a produção operística italiana. As óperas de Rossini fizeram tanto sucesso no Brasil que, mesmo durante a estada do Rei D. João VI no Rio de Janeiro, várias de suas óperas foram encenadas. Entre elas, sobretudo, Il Barbiere di Seviglia e La Cenerentola, com diferenças por vezes de poucos meses em relação às estréias européias. Essa modificação no gosto serviu de modelo para a criação Música e sociedade no Brasil colonial Carlos Julião. Cortejo da Rainha Negra na Festa de Reis. Aquarela colorida do livro “Riscos illuminados de figurinos de brancos e negros dos uzos do Rio de Janeiro e Serro Frio”. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE ICONOGRAFIA ROGÉRIO BUDASZ 14 Sem levar em conta alguns casos isolados de portuguesese franceses fixando-se na costa brasileira, por livrevontade ou não, durante as primeiras décadas do séculoXVI, a colonização e o efetivo povoamento dessa região por europeus e seus descendentes tiveram início apenas na década de 1530. Missionários religiosos também começaram a se estabelecer nessa época, sendo o grupo mais importante a Companhia de Jesus, que chegou em 1549 e fundou vários colégios ao longo da costa brasileira. O povoamento da costa brasileira nos dois primeiros séculos após a descoberta pelos portugueses foi condicionado pelos ciclos econômicos do pau-brasil e da cana-de-açúcar, esse último marcando também o início da presença negra no Brasil. Os colonos eram invariavelmente homens que estabeleciam propriedades rurais e, geralmente, amasiavam-se com as nativas, originando um novo tipo étnico, o mameluco, que se tornaria o principal responsável pela expansão territorial da colônia. A colonização foi marcada por iniciativas e regulamentações contraditórias, que, enquanto estimulavam a vinda de colonos, reprimiam o desenvolvimento de uma identidade brasileira por proibir o surgimento de casas impressoras, periódicos e universidades. Para o colono, a única forma de literatura era muitas vezes aquela transmitida oralmente, nos romances populares ibéricos de teor histórico ou moral. Muitos desses romances, geralmente cantados sobre melodias simples para não dificultar a inteligibilidade da narrativa, permanecem vivos até hoje na tradição popular tanto em Portugal como no Brasil, e sofrendo poucas transformações nesses quinhentos anos, como é o caso de Conde Claros, A Bela Infanta, Gerineldo, e tantos outros. Além desses, o repertório musical dos primeiros colonos e seus descendentes incluiria também cantos de trabalho para acompanhar ações rotineiras, 15 16 acalantose cantigas, tanto em português como em tupi. A primeira geração de brasileiros crescia, assim, ouvindo romances, cantigas e ritmos ibéricos cantados e tocados na viola pelo pai, enquanto era embalada pelos acalantos da mãe tupi em seu idioma. Quer fosse pelo seu conteúdo considerado “lascivo” ou pela sua associação com os cultos nativos, algumas daquelas cantigas, tanto ibéricas como tupis, escandalizaram os missionários, induzindo-os a comporem versões pias, ou “divinizadas”. José de Anchieta era mestre nessa transmutação e ensinava também as doutrinas, orações e hinos católicos no idioma tupi. Fora do contexto missionário, também eram comuns as bandas de corporações militares ou de escravos, mantidas pelos latifundiários mais destacados como aparato de ostentação e demonstração de poder, ao realizarem entradas pomposas nas vilas ao som dos clarins, ou para impressionar visitantes. Promovidas pelas autoridades seculares e religiosas, várias festas, como as de Corpus Christi e da Visitação de Santa Isabel, incluíam procissões, música e danças, trazendo alegorias, mascarados e coreografias de índios e negros. Para o acompanhamento costumavam ser usados tambores, pandeiros, gaitas de fole, pífanos e charamelas — termo esse que poderia incluir tanto instrumentos de palheta, como a chirimia ibérica, quanto instrumentos de bocal, como as cornetas, sacabuxas, trompas e outros. Além disso, nas festas e outros congraçamentos ao ar livre poderíamos, tal como hoje em dia, encontrar cantores repentistas, numa tradição que remonta aos segréis da Idade Média. Tais festas e procissões, tal qual em Portugal, muitas vezes funcionavam como pretexto para a socialização e diversão, como satirizaria o poeta Gregório de Mattos no final do século XVII. Contudo, a despeito de várias regulamentações repressoras e das opiniões de alguns moralistas, o congraçamento entre escravos era geralmente tolerado “para evitar males maiores”, no dizer de Antonil, pois a mistura de raças também dificultava a identificação étnica de escravos de várias nações e crenças, diminuindo o perigo de insurreição. Já a mistura entre negros e branco, era insistentemente reprimida pelas autoridades — e isso até o início do século XX —, o que não parece jamais ter surtido o efeito desejado, como o comprovam não só as descrições de viajantes como também o fato de terem sido reprisadas várias vezes no decorrer dos séculos as prescrições contra o ajuntamento de brancos e escravos nas festas. Quanto à música oficial do Estado e da Igreja, nota-se já no século XVI a tentativa de reproduzir em miniatura o estabelecimento musical português. Existiam, no entanto, algumas diferenças fundamentais que dificultavam essa reprodução, ao mesmo tempo em que moldavam novas maneiras de fazer e usar a música: se Portugal era pequeno e densamente povoado, o inverso valia para o Brasil nos dois sentidos. A rarefação populacional tornava inviáveis certas práticas musicais e inúteis outras. MÚSICA NO ESPAÇO DOMÉSTICO A maior parte das vilas fundadas durante o primeiro século da colonização formava-se ao redor de alguns fortes militares e escolas jesuíticas. Enquanto isso, o grosso da população habitava as propriedades rurais, que cresceram muito — em número e tamanho — nas últimas décadas do século XVI, passando a especializar-se no cultivo da cana de açúcar e na produção de seus derivados, açúcar e aguardente, assim como no cultivo da mandioca e na produção da farinha. Distante dos centros urbanos — numa época em que eram poucos os que se destacavam —, o engenho ficava assim definido como a principal unidade de produção e povoamento, enquanto a Casa Grande era o seu centro administrativo e religioso, na verdade o principal espaço de sociabilidade. Ali era promovida 17 E era por isso que a prática musical também fazia parte da instrução dos filhos e afilhados do senhor de engenho. Formação diferente, e para cumprir tarefas diferentes, teriam os músicos escravos — cantores e charameleiros — que participariam do aparato de propaganda e demonstração de poder do senhor de engenho, sendo muitas vezes emprestados às Igrejas e vilas por ocasião de festas religiosas e cívicas. Os primeiros que se dedicaram ao ensino da música foram os missionários, que, a princípio, concentravam-se nos nativos e usavam a música como instrumento auxiliar na conversão e catequese. Depois deles, representando oficialmente o estabelecimento musical da Igreja, aparecem os mestres de capela, enviados de Portugal para organizar a atividade musical de determinada região mas que também exerciam a função de instrutores da arte da música para quem pudesse pagar. Mais tarde, também passam a exercer essa função, embora de forma limitada, os cantores e instrumentistas mais destacados dentre os índios, negros e mulatos instruídos na música européia pelos missionários e mestres de capela, com o objetivo principal de interpretarem Alexadre Rodrigues Ferreira. Desenho aquarelado. Viola que tocam os pretos. Desenho aquarelado do livro Viagem filosófica às Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Cuiabá. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE ICONOGRAFIA as composições por eles preparadas. Evidentemente, o filho de um senhor de engenho não entraria numa relação mestre-aprendiz com o mestre de capela local. Esperava-se que tomasse conta dos negócios do pai, fosse estudar em Portugal ou seguisse a carreira eclesiástica — podendo, neste último caso desenvolver suas habilidades musicais de maneira mais aprofundada. Este tipo de interesse musical não profissional era bastante comum entre a aristocracia e burguesia abastada portuguesa, a ponto de vários nobres, incluindo reis e príncipes, tornarem-se compositores competentes. Sendo o profissionalismo musical indicativo de baixa estatura social, isso talvez explicasse o porquê da quase inexistência de compositores brancos nas Minas Gerais do século XVIII (com exceção dos portugueses enviados com a expressa finalidade de servirem como mestres-de-capela), numa época em que, após a descoberta do ouro, multiplicavam-se os centros urbanos no interior da colônia, multiplicando-se também as oportunidades de trabalho de cantores, instrumentistas e compositores. Todavia, para a elite brasileira dos séculos XVII e XVIII, mesmo desdenhando o profissionalismo musical, o diletantismo na música era qualidade apreciável. A habilidade como compositor é colocada por historiógrafos e bibliógrafos portugueses e brasileiros em pé de igualdade com a produção literária, e a proficiência na execução à viola ou à harpa equivaleria aos dotes poéticos e à instrução nas assim chamadas artes liberais. De fato, inventários a educação civil e religiosa, bem como os encontros sociais, por ocasião de batizados, de casamentos, e da hospedagem de visitantes. Nesse contexto, a música era cultivada como auxiliar no fluir das atividades sociais, como passatempo na intimidade do lar, acompanhando momentos de devoção religiosa ou como demonstração de civilidade e poder para os olhos e ouvidos externos. 18 da época comprovam que o mobiliário das casas grandes costumava incluir harpas, violas e cítaras, além de dispor de aposentos usados como escolas, onde os filhos eram instruídos em aritmética, gramática, retórica, religião e música. Na Nobiliarchia Paulistana, Pedro Taques de Almeida Prado menciona, entre a aristocracia paulistana de séculos passados, além de harpistas e tocadores de “vários instrumentos”, dois tocadores de viola. Frei Plácido, “eminente na prenda de tanger viola”, tomou o hábito em Alcobaça e teria tocado para o rei D. Pedro II de Portugal. Francisco Rodrigues Penteado, pernambucano, demonstrava tal “mimo” na mesma arte que em 1648, voltando de Lisboa, foi convidado por Salvador Correia de Sá e Benevides a instruir “nos instrumentos músicos” suas filhas e seu filho Martim Correia.Evidentemente, em se tratando das famílias aristocráticas brasileiras, os dotes musicais não poderiam ser utilizados como forma permanente de sustento: são práticas socialmente distintas o cultivo da música como profissão ou como “elemento de civilidade”, usando a expressão da época. À época do convite de Sá e Benevides, Penteado encontrava-se desprovido de recursos, pois havia esbanjado a fortuna paterna em Lisboa, e a solução encontrada, enquanto buscava formas mais nobres de aquisição de capital, seria remediar-se instruindo os filhos do mais poderoso brasileiro de seu tempo. Algum tempo depois, Penteado se estabeleceria em São Paulo, após casar-se com a filha de um latifundiário. Fora do contexto religioso, além da citação de Almeida Prado, a harpa aparece também em um poema de Gregório de Mattos, animando uma festa. Mesmo utilizada como principal acompanhante das funções religiosas pelo interior do Brasil até as primeiras décadas do século XVIII, a harpa não parece ter-se difundido muito como instrumento doméstico. Nem mesmo o cravo parece ter exercido essa função em larga escala, permanecendo neste papel a viola até ser sobrepujada pelo piano no século XIX. Principal acompanhador dos romances, cantigas, tonos e modinhas, além de ótimo veículo para a música solo, a viola de mão era instrumento de versatilidade incontestável. Suas variantes no século XVI incluíam um instrumento de quatro ordens de cordas (a guitarra renascentista), de seis ordens (conhecida na Espanha como vihuela), e, no século seguinte, de cinco ordens (muitas vezes chamada guitarra barroca). Este último instrumento originaria mais tarde a viola caipira brasileira, as diversas violas regionais portuguesas, e a guitarra espanhola, ou violão. Nomes de tocadores que se especializaram na viola de cinco ordens, como Felipe Nery da Trindade, Manuel de Almeida Botelho e João de Lima aparecem com destaque na obra de Domingos do Loreto Couto, historiógrafo pernambucano do século XVIII. Além de chantre da catedral de Salvador por vários anos, João de Lima — conhecido do poeta Gregório de Mattos — foi pedagogo e compositor, deixando obras de música sacra e profana e dominando a execução musical em vários instrumentos. Manuel de Almeida Botelho passou vários anos em Portugal, protegido do patriarca de Lisboa e do Marquês de Marialva. Loreto Couto atesta que, além de muita música sacra, Botelho teria composto “sonatas e tocatas tanto para viola como para cravo”, além de música de salão, como minuetes e tonos. Forma de canção erudita bastante difundida na Península Ibérica e América Latina, o tono humano geralmente apresenta temática árcade, forma estrófica com refrão, e textura a uma ou duas vozes agudas contra um baixo, constituindo-se assim num ancestral da modinha portuguesa. Quanto aos tonos de Botelho, talvez se assemelhassem àqueles compostos pelo português Antônio Marques Lésbio, com acompanhamento à viola, ou mesmo com a peça Matais de Incêndios, integrante dos manuscritos 19 de Mogi (da década de 1720 ou 1730), e trazidos novamente à tona graças às pesquisas de Jaelson Trindade, embora ainda reste alguma dúvida quanto a se esta peça é um tono humano, como sugerido por Trindade, ou um vilancico natalino, conforme estudo de Paulo Castagna. Embora não tenhamos notícia da sobrevivência de peças compostas por aqueles violistas pernambucanos e paulistas, podemos ter uma idéia bastante aproximada do que tocavam, através das fontes portuguesas do início do século XVIII, para a viola de cinco ordens contendo o repertório-padrão para a formação do instrumentista luso-brasileiro daquela época: danças italianas, francesas, ibéricas e de influência afro-brasileira como o canário, o vilão, o arromba, o cumbé e o cubanco, além de muitas fantasias e rojões. É importante lembrar que o repertório popular ibérico e latino-americano era muito menos heterogêneo no século XVII do que em nossos dias. Portugal havia reconquistado sua independência da Espanha apenas em 1640. Naquela época, durante a infância e juventude de Gregório de Mattos, os elementos que ajudariam a definir a brasilidade apenas começavam a tomar forma. Muita poesia tanto no Brasil como em Portugal ainda era escrita em espanhol, e, enquanto peças de Calderón e Lope de Vega eram representadas em Salvador, autores brasileiros também escreviam teatro naquele idioma. Naturalmente, a música desse período também pareceria a nossos ouvidos bastante espanhola, tratando-se menos de uma influência nacional específica do que da evidência de um estilo compartilhado e generalizado por toda a Península Ibérica e América Latina, como o atestam, por exemplo, os vilancicos e tonos de Gaspar Fernandes e Antonio Marques Lésbio, bem como o repertório português para viola e teclado. Na ausência de documentos musicais, uma ótima fonte de informações sobre a música não-religiosa tocada e cantada no Brasil seiscentista é a obra poética de Gregório de Mattos (1636-1696). Além de descrever funções musicais e teatrais, de mencionar instrumentistas e cantores e de citar peças instrumentais comuns tanto em Portugal como na Espanha e América Latina, Mattos usa vários tonos humanos espanhóis como refrão ou base para glosas de sua autoria. Em outros casos, Mattos usa modas profanas em português, ou, no dizer dele próprio, canções que os “chulos” cantavam. Religiosos e moralistas continuavam encarando com suspeita esse repertório, sendo célebre a condenação de Nuno Marques Pereira, atribuindo aquelas modas à invenção do demônio — o qual, conta Pereira, era exímio tocador de viola. Na segunda metade do século XVIII, o repertório musical que passa a difundir-se pela colônia é, por um lado, o de danças afrancesadas como o minuete e a contradança — as principais coreografias de salão no Brasil até o início do século XIX — e, por outro lado, as canções simples — as modas — agora influenciadas pelo estilo galante da ópera e música sacra napolitanas, com melodias e harmonias ainda mais simples e adocicadas, despretensiosamente denominadas “modinhas”. Se a princípio estas apresentavam uma temática pastoril árcade, vinculada ao gosto poético da época, o estilo é gradativamente influenciado pelo contexto afro-brasileiro, tanto na maneira de falar como nos ritmos e harmonias do lundu — aquela dança que tanto escandalizou viajantes do norte da Europa — originando assim a modinha brasileira, que acabaria voltando para Portugal nas obras de poetas e compositores como Domingos Caldas Barbosa e Joaquim Manuel da Câmara. Felizmente, foi preservada muita música desse período, sendo notáveis as peças coletadas pelos viajantes austríacos Spix e Martius, as modinhas brasileiras preservadas na Biblioteca da Ajuda e na Biblioteca Nacional de Lisboa, e as peças instrumentais contidas no livro de saltério de Antônio Vieira dos Santos, compilado no início 20 do século XIX. Há ainda uma única peça para teclado do século XVIII, a chamada Sonata Sabará, cuja autoria ainda permanece cercada de dúvidas. Finalmente, os duetos concertantes para dois violinos de Gabriel Fernandes da Trindade, da segunda década do século XIX, nos dão uma idéia do estiloda música de câmara para cordas composta nos últimos tempos do Brasil-colônia. CASAS DE ÓPERA E ACADEMIAS Uma espécie de teatro moral com intervenções musicais já se encontra presente no primeiro século da colonização, nos autos preparados por José de Anchieta e Manuel da Nóbrega. Tal como na Europa, a finalidade didática do teatro jesuítico era óbvia, e os números musicais cumpriam a função de tornar mais atraente a mensagem de submissão à igreja e ao rei. É evidente também a filiação desse teatro aos autos ibéricos seiscentistas, em especial os de Gil Vicente, sempre intercalando enredos leves e cômicos com danças, canções e romances populares. Nos séculos seguintes, os modelos passariam a serLope de Vega e Calderón. São bastante numerosos os relatos sobre a representação de comédias musicadas nas casas abastadas das cidades, ou mesmo ao ar livre, como aquelas para as quais o pernambucano Antônio da Silva Alcântara compôs a música em 1752. É quase certo que tais comédias — a grande maioria escrita em idioma espanhol — seguissem o modelo da zarzuela de Antonio de Literes e Sebastián Durón, com árias, coros e alguns recitados alternando com diálogos falados. Durante o século XVII, não se tem notícia na colônia da apresentação de óperas no sentido moderno do termo, ou seja, a encenação de um enredo integralmente posto em música. Mesmo no século XVIII, além do modelo das óperas de Antônio José da Silva, com diálogos falados e poucos números musicais, não era incomum encenarem-se libretos operísticos sem qualquer emprego da música, funções que eram mesmo assim denominadas “óperas”. Sendo o teatro e a ópera — nas suas variadas acepções — desde cedo explorados no Brasil como instrumentos de doutrinação ideológica, não tardariam a aparecer, patrocinadas pelo poder público, casas especificamente destinadas à representação de dramas, comédias e entremezes em música — as casas de ópera — que visavam promover uma educação cívica paralela à educação religiosa da Igreja. No decorrer do século XVIII, toda vila de maior porte passa a possuir, além da igreja, uma casa de ópera, aparecendo as duas muitas vezes lado a lado. Seguindo a marcha de povoamento do interior que se sucede à descoberta Romances Populares: TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron Discos; faixa 5: Romance da Nau Catarineta DO ROMANCE AO GALOPE NORDESTINO. Quinteto Armorial. Discos Marcus Pereira. Romance da Bela Infanta José de Anchieta: TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron Discos; faixa 8: Quién te visitó, Isabel?; faixa 9: Mira Nero A MÚSICA NA FESTA. Integrante do livro Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa; faixa 6: Venid a sospirar con Jesu amado (Companhia Papagalia) Marinícolas: HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA: PERÍODO COLONIAL II. Ricardo Kanji. Estúdio Eldorado; faixa 2 TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron Discos; faixa 12 Matais de Incêndios: HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA: PERÍODO COLONIAL I. Ricardo Kanji. Estúdio Eldorado; faixa 36 A MÚSICA NA FESTA. Integrante do livro Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa; faixa 15 (Klepsidra) Sonata ‘Sabará’: NINGUÉM MORRA DE CIÚME. Collegium Musicum de Minas. Prod. independente, faixa 5 Modinhas: MARÍLIA DE DIRCEU. Ana Maria Kiefer, Edelton Gloeden e Gisela Nogueira. Estúdio Eldorado. MODINHAS E LUNDUS DOS SÉCULOS XVIII E XIX. Manuel Morais e Segréis de Lisboa. Movieplay; faixa 8: Eu nasci sem coração; faixa 13: Ganinha, minha Ganinha; faixa 19: Menina, você que tem? Coleção de Spix e Martius: VIAGEM PELO BRASIL. Ana Maria Kiefer, Edelton Gloeden e Gisela Nogueira. Estúdio Eldorado Recitativo e Ária: HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA: PERÍODO COLONIAL II. Ricardo Kanji. Estúdio Eldorado; faixas 11 e 12 Duetos concertantes: GABRIEL FERNANDES DA TRINDADE: DUETOS CONCERTANTES. Maria Ester Brandão, Koiti Watanabe. Paulus DISCOGRAFIA 21 do ouro, encontramos casas de ópera em várias localidades das Minas Gerais, de Goiás e tão longe quanto em Cuiabá, no centro geográfico da América do Sul. O repertório das casas de ópera no século XVIII e boa parte do XIX incluía principalmente dramas de Metastasio, como Ezio in Roma e Didone abbandonata, que, além de transmitir alguma lição moral, retratavam o herói como líder firme, sábio e magnânimo, mas usando de disciplina quando necessário. Os libretos escolhidos eram bastante convenientes para a finalidade proposta, pois a platéia fatalmente identificaria o herói com o soberano português. Embora o musicólogo Francisco Curt Lange tenha compilado uma lista impressionante de óperas representadas no Brasil durante o século XVIII, apenas algumas páginas de partituras sobreviveram, impossibilitando qualquer tentativa de reconstituição. Do período joanino, restam de Bernardo José de Souza Queiroz a música de cena para uma peça teatral de 1813, dois entremezes e uma ópera, Zaíra, composta no Rio de Janeiro antes de 1816, além de alguns números avulsos de óperas do baiano Damião Barbosa de Araújo. Além disso, muita pesquisa resta a ser realizada sobre as óperas de autores europeus — Marcos Portugal e Pedro Antônio Avondano, para citar os mais importantes — representadas em casas de ópera brasileiras. Por volta do final do século XVIII, devido à escassez do ouro e ao fim do patrocínio público, as casas de ópera desaparecem ou passam a ser definidas mais e mais como espaços daqueles que podem pagar e dos que, à custa de muita bajulação, conseguem um lugar ao lado daqueles. Já os atores, cantores e instrumentistas sempre foram na sua maior parte mulatos e negros, cuja instrução teria sido provida ou pelos mestres de capela locais ou, de maneira mais informal, pelos diretores musicais dos regimentos militares ou das bandas de músicos dos engenhos e minas. Algumas vezes, tais artistas conseguiam ir bem além da casa de ópera local, como foi o caso da cantora mulata Joaquina Maria da Conceição Lapinha, que apresentou-se com sucesso em teatros portugueses. Não se colocando na posição subserviente de músico ou ator profissional, o rico e o letrado teriam restritas possibilidades de demonstração de suas habilidades performáticas, fossem elas de poeta, intérprete ou mesmo compositor. Além do espaço doméstico, havia a academia, um misto de clube literário e sociedade secreta que se difundiria pelos principais centros urbanos do Brasil a partir da segunda metade do século XVIII. É no contexto das academias, ligadas à estética árcade, que surgem nomes como os de Tomás Antônio Gonzaga (cujas poesias foram depois musicadas na série de modinhas do ciclo de Marília de Dirceu) e Domingos Caldas Barbosa (cristalizador da modinha brasileira), e de obras como a cantata Herói, egrégio, douto, peregrino, mais conhecida como Recitativo e Ária para José Mascarenhas, composta em Salvador em 1759. Não sobreviveu até nossos dias o repertório de música de câmara que talvez fizesse parte das reuniões daqueles acadêmicos. Alguns deles possuíam instrumentos de arco, como ficou registrado nos autos de devassa da Inconfidência Mineira. Além disso, comprovando a prática da música de câmara européia no interior do Brasil, há o relato de Spix e Martius, sobre um mineiro que intercepta os viajantes no interior da mata e os convida a irem à sua casa, onde, com instrumentos e partituras cedidas pelo anfitrião, executam um quarteto de Pleyel. ROGÉRIO BUDASZ Doutor em musicologia (Phd) pela Universidade do Sul da Califórnia, mestre em musicologia pela Universidade de São Paulo e professor da Universidade Federal do Paraná. HARRY CROWL A música no Brasil Colonial anterior à chegada da Corte de D. João VI 22 OS AVANÇOS DOS ESTUDOS MUSICOLÓGICOS NOS ÚLTIMOS ANOS, NA ÁREA DA MÚSICA PRODUZIDA NO BRASIL NA ÉPOCA DA COLÔNIA, TÊM APONTADO SEMPRE PARA UM FATO QUE JÁ NOS PARECE IRREVERSÍVEL – DESCONHECE-SE TODA A MÚSICA PRODUZIDA EM TERRAS BRASILEIRAS EM PERÍODO ANTERIOR À SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII. ASSIM COMO TAMBÉM DESCONHECEMOS A MAIOR PARTE DO QUE SE PRODUZIU NAS REGIÕES NORTE E NORDESTE EM TODA A ÉPOCA COLONIAL. 23 24 Em Recife, encontramos o nome de Luís Álvares Pinto (1719-1789). Esse compositor, regente, poeta e professor viajou, por volta de 1740, para Lisboa, onde estudou com Henrique da Silva Negrão, organista da catedral de Lisboa, e que foi discípulo de Duarte Lobo. Na época em que viveu na capital portuguesa, ele compunha, tocava violoncelo na Capela real, faziacópias de música e dava aulas em casas de nobres. Na relação de músicos portugueses publicada por José Mazza, em 1799, ele informa o seguinte sobre esse compositor: “Luis Alvares Pinto natural de Pernambuco, excelente Poeta Português e Latino, muito inteligente na língua Francesa, e Italiana; acompanhava muito bem rabecão, viola, rabeca veio a Lxa aprender contraponto com célebre Henrique da Silva, tem composto infinitas obras com muito acerto principalmente eclesiásticas; compôs (ultimat.e humas exequias) à morte do Senhor Rey D. José o primeiro a quatro coros, e ainda em composições profanas tem escrito com muito aserto” (sic). Em 1761 já estava de volta a Pernambuco, profissionalmente atuante. Nesse mesmo ano escreveu a Arte de Solfejar, cujo manuscrito encontra-se na Biblioteca Nacional de Lisboa. Foi responsável pela formação de vários músicos e mestres-de-capela. L. A. Pinto foi também militar, tendo tido a patente de capitão do regimento de milícia confirmada também em 1766. Luís Álvares Pinto foi também um dos primeiros comediógrafos nascidos no Brasil. Sua peça teatral em três atos, Amor Mal Correspondido, foi encenada em 1780. Em 1782, por ocasião da inauguração da igreja de São Pedro dos Clérigos, foi confirmado na função de mestre-de-capela, cargo que já desempenhava desde 1778 e que ocupou até 1789, ano de seu falecimento. De suas poucas composições que alcançaram os nossos dias restaram apenas um Te Deum alternado, cuja orquestração perdeu-se, e um Salve Regina para três vozes mistas, violinos I e II e baixo contínuo. Consta ainda ter composto três hinos a Nossa Senhora da Penha, um hino a Nossa Senhora do Carmo, um hino a Nossa Senhora Mãe do Povo, um Ofício da Paixão, matinas de São Pedro, matinas de Santo Antônio, novenas, ladainhas e sonatas. Oconjunto da produção musical encontrado na capitania-geral das Minas Gerais, na época do ciclo do ouro,tornou-se a referência mais antiga da produção musicalartística no Brasil. Salvo alguns poucos exemplos isolados de manuscritos encontrados em outras regiões do país, a produção mineira consistiu-se no primeiro grande conjunto de obras musicais disponíveis para o desenvolvimento de um estudo mais aprofundado sobre a expressão musical no país. Apesar do deslocamento do eixo econômico para a região das Minas Gerais, é nas capitanias-gerais da Bahia e Pernambuco que encontraremos as referências musicais comprovadamente mais antigas do Brasil. Considerando que as descobertas de Mogi-das-Cruzes na década de 1980 apontam para as práticas polifônicas portuguesas anteriores ao século XVIII, somos obrigados a retomar a antiga capital da colônia, Salvador, como ponto de partida para qualquer consideração que queiramos fazer sobre a música exclusivamente escrita no Brasil, na época anterior à independência política. Sendo a região por onde iniciou-se a colonização, a Bahia apresenta nessa época uma sociedade já relativamente sedimentada, se comparada com as demais regiões da Colônia. Poderíamos acrescentar a Capitania de Pernambuco como a segunda região mais importante do ponto de vista sócio-cultural e econômico. Nesse sentido, o achado mais importante até agora é uma obra de caráter profano, anônima, composta em 1759, denominada Recitativo e Ária. Esse manuscrito para soprano, violinos I e II, e baixo contínuo, datado de 2/7/1759, está dedicado a José Mascarenhas Pacheco Pereira de Mello, um importante magistrado da “Casa de Suplicação”, a suprema Corte de Justiça de Portugal, na época. Essa composição, que está baseada num texto vernáculo, também de autoria desconhecida, é uma laudatória em homenagem ao referido magistrado, que estava ligado à “Academia Brasílica dos Renascidos”, uma sociedade intelectual semelhante à “Arcádia Romana”. O referido magistrado estava recém-restabelecido de uma longa enfermidade e, ao que parece, o Recitativo e Ária foi composto especialmente para recebê-lo numa das reuniões da “Academia”. 25 Se Luis Álvares Pinto foi o único compositor nascido no Brasil que teve a oportunidade de estudar em Lisboa — de acordo com a documentação conhecida até o momento —, por outro lado, o português André da Silva Gomes (Lisboa, 1752 — São Paulo, 1844) foi um músico enviado pela metrópole, no século XVIII, para ocupar a função de mestre-de-capela numa vila importante da colônia. Pouco se sabe sobre sua formação musical, apenas que foi discípulo de José Joaquim dos Santos (ca. 1747 — 1801?), compositor português aluno do napolitano David Perez (1711 — 1778), importante músico que sistematizou o ensino musical em Portugal, cujas obras foram amplamente difundidas inclusive no Brasil. André da Silva Gomes nasceu em Lisboa em 1752 e veio para o Brasil em março de 1774. Assim que chegou, foi contratado para ocupar o cargo de mestre- de-capela da Sé de São Paulo, tornando-se o quarto ocupante da função. Suas atividades foram intensas, pois, ao que parece, havia uma necessidade de reorganização dos serviços musicais da Sé. Desde sua chegada até 1801, foi também o responsável pela música nas festas reais anuais da Câmara de São Paulo. Silva Gomes teve vários discípulos e agregados, entre eles futuros mestres-de-capela e organistas, como foi o caso de Bernadino José de Sena, que foi seu agregado em 1776 e mais tarde, desempenhou o cargo de organista na vila de Nossa Senhora do Rosário de Pernaguá, atual Paranaguá, PR. Como já acontecia nas demais partes da colônia, o compositor precisou atuar em outras profissões para poder sobreviver. Após requerer algumas funções que lhe permitiriam independência econômica em relação à capela da música da Sé, foi nomeado interinamente, em 1797, para o cargo de professor régio de gramática latina da cidade de São Paulo, tendo sido efetivado por D. Maria I no cargo de professor de latim em 1801. André da Silva Gomes abandonou todos os serviços Apesar do deslocamento do eixo econômico para a região das Minas Gerais, é nas capitanias gerais da Bahia e Pernambuco que encontraremos as referências musicais comprovadamente mais antigas do Brasil. J. J. Emerico Lobo de Mesquita. Tércio (1783). Fotografia do original autógrafo. FUNARTE 26 musicais além da Sé, de cujo salário abriu mão em benefício da capela de música da catedral, que não deixou por solicitação expressa do bispo. As primeiras composições de A. da Silva Gomes, datadas e assinadas, remontam ao ano de sua chegada a São Paulo, 1774. Trazidas de Portugal ou copiadas aqui por ele, existem diversas obras de compositores portugueses e italianos, na maioria salmos. Compôs mais de uma centena de obras. Muitas delas foram recopiadas posteriormente por outros, sem que se transcrevesse o nome de seu autor. Suas composições mais notáveis são a Missa a 8 vozes e instrumentos e a Missa a 5 vozes. Sua última composição foi uma Missa de Natal, 1823, composta para ser executada na Matriz da Freguesia de Acutia (atual Cotia, SP), ao que parece, uma adaptação de outra obra bem anterior. No último quartel do século XVIII aparece ainda o nome de Theodoro Cyro de Souza como mestre-de- capela na catedral da Bahia. Esse é o ultimo caso de nomeação direta de Portugal para o cargo em Salvador, e é também o primeiro compositor a atuar na região do qual encontramos exemplos musicais concretos. Nascido em Caldas da Rainha, Portugal, em 1766, Theodoro Cyro de Souza recebeu sua formação musical no Seminário Patriarcal em Lisboa, provavelmente sob a orientação de José Joaquim dos Santos. Em 1781, partiu de Lisboa para Salvador, onde assumiria a função de mestre-de-capela, com o patrocínio de D. Pedro III, da mesma maneira como ocorrera com André da Silva Gomes, em São Paulo. A obra de Theodoro Cyro de Souza parece ter gozado de considerável reputação em toda a região, pois sua única composição encontrada no Brasil até o momento, os Motetos para os passos da Procissão do Senhor, é uma cópiado final do século XIX realizada em Alagoinhas − BA, que foi localizada numa coleção de música para a Semana Santa, anônima, proveniente de Propriá − SE, divulgada numa primeira transcrição por Alexandre Bispo. MÚSICA NAS MINAS GERAIS O isolamento imposto pela Coroa portuguesa, assim como o próprio afastamento geográfico da região da Capitania-Geral das Minas Gerais, fará com que toda a organização da vida cotidiana, religiosa e cultural dessa parte do Brasil torne-se um tanto peculiar, necessitando, assim, de critérios específicos para sua avaliação. A descoberta do ouro trouxe enormes benefícios para a Coroa portuguesa, como já se sabe. A partir de 1696, a grande movimentação humana em direção ao interior do continente fez com que as autoridades portuguesas regulamentassem a ocupação dessas regiões. Preocupados com o contrabando de riquezas, a Coroa viu-se forçada a proibir a entrada de ordens monásticas nas regiões recém-ocupadas. Devido ao fato de que o Estado português e a Igreja Católica formavam uma espécie de unidade corporativa desde o século XVI, a inviolabilidade dos mosteiros e conventos era uma realidade aparentemente irreversível. Portanto, ao mesmo tempo em que a autoridade eclesiástica representava o Estado, ela também possibilitava o contrabando de ouro e pedras preciosas diante das autoridades civis, sem que essas pudessem fazer muito a respeito. Diante de tal situação, muito comum nas regiões do Nordeste brasileiro, determinou-se que toda a vida religiosa na região das minas fosse organizada por ordens leigas, ou irmandades formadas por homens comuns, que deveriam contratar todos os serviços relativos ao “bom desempenho das funções religiosas”. Na verdade, o denominativo “pardo” foi criado pelos portugueses para não haver distinção entre negros forros, mulatos ou mesmo brancos nativos sem posses ou posição social. 27 Essas irmandades eram denominadas também como ordens terceiras, confrarias e arquiconfrarias, de acordo com sua importância na comunidade. Eram distribuídas por etnias, ou seja, homens brancos, pardos ou negros. O Estado colonial incentivava a rivalidade entre essas agremiações, que cuidavam de desde a construção da igreja até a contratação de artistas para a realização da decoração interna, talha, escultura e pintura, assim como a contratação de músicos para a criação e interpretação da música que deveria ser usada nas cerimônias. A maior parte dos músicos e artistas atuantes na região era “parda”, ou seja, de sangue mestiço de brancos e negros. Na verdade, o denominativo “pardo” foi criado pelos portugueses para não haver distinção entre negros forros, mulatos ou mesmo brancos nativos sem posses ou posição social. A informação mais antiga que temos a respeito de um compositor ou regente ou organista, na antiga Vila Rica, é a de que Bernardo Antônio recebeu a soma de 200 oitavas de ouro pela música anual de 1715. Esse dado consta no livro de receitas e despesas da Irmandade de Santo Antônio. Ainda na primeira metade do século XVIII, encontramos os nomes de Francisco Mexia e de Antônio de Souza Lobo, em Vila Rica, assim como o do Mestre Antônio do Carmo, em São João del Rei. Todas as notícias relativas à música em Minas no século XVIII estão restritas aos livros manuscritos de receitas e despesas das irmandades. Não há registros de nomeações ou informações impressas sobre os compositores, pois a imprensa inexistia na colônia. O cargo de mestre-de- capela era um privilégio das sedes de bispado, portanto somente a vila de Mariana contava com nomeações para essa função. Nas demais vilas encontramos a denominação de “responsável pela música”, o que não implicava um cargo permanente, pois um músico responsável pelo serviço em um ano determinado poderia ser substituído no ano seguinte. A documentação musical propriamente dita encontrada até o momento concentra-se numa produção posterior a 1770. Na condição de capital da capitania, Vila Rica, atual Ouro Preto, foi local de atividade mais intensa durante o período de final do século XVIII até por volta de 1850. O compositor mais antigo cuja obra é parcialmente conhecida é Ignácio Parreiras Neves (ca. 1730—1794?). A alusão mais remota ao seu nome é a de seu ingresso na Irmandade de São José dos Homens Pardos, em 16/4/1752. A partir daí, seu nome aparece como regente-compositor e cantor (tenor), em várias ocasiões até 1793, atuante em quase todas as Irmandades e Ordens 3as de Vila Rica. De sua obra, conhecemos apenas três exemplos bem distintos entre si. São eles: o Credo em Ré maior, a Antífona de Nossa Senhora — Salve Regina e a Oratória ao Menino Deus na Noite de Natal. Nenhuma dessas obras está datada. A mais curiosa de todas é a Oratória. Trata-se de uma composição sobre texto vernáculo em português. É a única do gênero encontrada até agora no Brasil. No período em que Parreiras Neves atuou como cantor, dois outros músicos importantes foram seus colegas no conjunto vocal. São eles: Francisco Gomes da Rocha e Florêncio José Ferreira Coutinho. Considerando o fato de que esses músicos eram mais novos e que atuaram juntos por mais de 15 anos, acreditamos que esses dois tenham sido discípulos de I. P. Neves. Não há qualquer indicação de como esses músicos que viveram na região das minas aprenderam a arte da solfa. Não há menção em qualquer documento da existência de alguma escola de música. Portanto, a resposta mais razoável seria a de que eles se desenvolveram num processo de iniciação que seguia o modelo de relação mestre/discípulo, como no caso dos artistas plásticos, Luís Álvares de Azevedo Pinto. Te Deum Laudamus. Secretaria de Educação e Cultura de Pernambuco, 1968. Restauração do Padre Jaime Diniz. FUNARTE 28 como já pode ser constatado. Francisco Gomes da Rocha (1754?—1808) ingressou na Irmandade da Boa Morte da Matriz de Nossa Senhora da Conceição, na Freguesia de Antônio Dias, em julho de 1766, e na Irmandade de São José dos homens Pardos, em junho de 1768. Em todas essas confrarias, ocupou cargos importantes, como o de escrivão e tesoureiro. Apresentou-se como regente e contralto em inúmeras festividades, durante longo período da segunda metade do séuclo XVIII. Foi também timbaleiro da tropa de linha, segundo o recenseamento de 1804. Nesse mesmo recenseamento consta que Gomes da Rocha contava com 50 anos na época do mesmo, tendo, portanto, nascido em 1754. De sua produção, conhecemos apenas uma parte mínima, que são as obras Invitatório a 4 para 4 vozes, 2 trompas, violinos I e II, e baixo contínuo; Novena de Nossa Senhora do Pilar, de 1789, para 4 vozes, 2 trompas, vln. I e II, viola e baixo contínuo; Spiritus Domine, de 1795, para 2 coros, 2 oboés, 2 trompas, vln. I e II, viola e baixo contínuo. Há ainda uma obra incompleta, as Matinas do Espírito Santo, também de 1795. Florêncio José Ferreira Coutinho (1750—1820) foi regente, cantor (baixo) e trombeteiro do Regimento de Cavalaria Regular. Por três vezes foi contemplado com a contratação para a realização do serviço anual das festas oficiais do Senado da Câmara de Vila Rica. Em 1770, entrou para a Irmandade de São José dos Homens Pardos, que lhe registrou o falecimento em 10/06/1820. Outros três compositores de Vila Rica que mencionaremos são Marcos Coelho Neto (1746?— 1806), Jerônimo de Souza Queiroz (17..—1826?) e o Pe. João de Deus de Castro Lobo (Vila Rica, 1794 — Mariana, 1832). Coelho Neto, que era trompista, clarinista (trompetista), timbaleiro do 9º Regimento, além de compositor e regente, exerceu ainda, segundo documento localizado no cartório do 1º ofício de Ouro Preto pelo professor Ivo Porto de Menezes, o ofício de alfaiate. Em 1785 foi designado pelo Governador-Geral Luís da Cunha Menezes para reger a música de três óperas e dois dramas reais, por ocasião dos festejos LUÍS ÁLVARES PINTO: TE DEUM MANOEL DIAS DE OLIVEIRA: MISERERE EMAGNIFICAT IGNÁCIO PARREIRAS NEVES: SALVE REGINA Negro Spirituals au Brésil Baroque Direction: Jean-Christophe Frisch. K617113 - França LUÍS ÁLVARES PINTO: TE DEUM Camerata Antiqua de Curitiba Regência: Roberto de Regina. PAULUS 11563-0 - Brasil IGNÁCIO PARREIRAS NEVES: ORATÓRIA AO MENINO DEUS NA NOITE DE NATAL Americantiga Coro e Orquestra de Câmara Direção: Ricardo Bernardes. AMERICANTIGA PLCD51837 - Brasil ANDRÉ DA SILVA GOMES: MISSA A 8 VOZES E INSTRUMENTOS Orquestra Barroca do 14º Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora Direção: Luís Otávio Santos CD 14º Festival - PRÓ-MÚSICA/ Juiz de Fora, MG - Brasil VENI SANCTE SPIRITU Americantiga Coro e Orquestra de Câmara Direção: Ricardo Bernardes AMERICANTIGA, Vol. I PLCD51837 - Brasil JOSÉ JOAQUIM EMERICO LOBO DE MESQUITA: MISSA EM MI BEMOL MAIOR Orquestra Barroca do 12º Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora Direção: Luís Otávio Santos CD 12º Festival - PRÓ-MÚSICA/ Juiz de Fora, MG - Brasil MATINAS PARA QUINTA-FEIRA SANTA Orquestra Barroca do 11º Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora Direção: Luís Otávio Santos CD 11o.Festival - PRÓ-MÚSICA/ Juiz de Fora, MG - Brasil MATINAS DE SÁBADO SANTO Calíope Direção: Júlio Moretzsohn Museu da Música da Mariana III (CD - MMM III). Mariana, MG - Brasil MISSA PARA 4a FEIRA DE CINZAS Calíope Direção: Júlio Moretzsohn. CAL-001 Rio de Janeiro, RJ - Brasil PE. JOÃO DE DEUS DE CASTRO LOBO: MATINAS DE NATAL Coral Porto Alegre e Orquestra Regência: Ernani Aguiar CD - FUNPROARTE, Prefeitura de Porto Alegre. Porto Alegre, RS - Brasil DISCOGRAFIA 29 do casamento dos infantes D. João e Mariana Vitória. Em 1804, ano do recenseamento geral de Vila Rica, o compositor declara contar com 58 anos, tendo nascido, portanto, em 1746. De sua obra, podemos citar o hino Maria Mater Gratiae, de 1787, o Salve Regina de 1796, e a Ladainha em Ré Maior, denominada em alguns manuscritos como Ladainha das Trompas. Seu filho, também chamado Marcos Coelho Neto, foi trompista e trombeteiro do 19º Regimento. Em 1804, ele declarou ter 28 anos. Faleceu em 1823. Acreditamos que as obras que levam o nome de Marcos Coelho Neto são da autoria do pai, pois apresentam características formais muito semelhantes entre si, e o filho seria demasiadamente jovem quando o hino Maria Mater Gratiae foi composto. Jerônimo de Souza Queiroz foi organista e organeiro. Era filho do português Jerônimo de Souza Lobo Lisboa e Anna Maria Queiroz Coimbra. Seu nome tem sido freqüentemente confundido com o de seu pai, pois Souza Lobo foi, igualmente, um importante músico em Vila Rica. Souza Queiroz atuou na Irmandade do Santíssimo Sacramento do Pilar entre 1798 e 1801. Em 1826, compôs a Missa e Credo a 4 vozes com acompanhamento “d’órgão”. A data exata do seu falecimento é ainda ignorada, não tendo o seu nome aparecido em qualquer referência após 1826. De sua obra, dispomos hoje de uma coleção aproximada de 20 manuscritos. Suas composições mais importantes são: Credo em Ré Maior; Missa e Credo a 4 para coro e órgão (1826); Zelus Domus Tuae (Ofício de 4a feira santa); Astiterunt Reges Terrae (Ofício de 5a feira santa); In Pace (Ofício de 6a feira santa). O último grande compositor ativo em Vila Rica foi, sem dúvida, o Pe. João de Deus de Castro Lobo (1794-1832). As primeiras notícias da atividade musical do Pe. João de Deus datam de 1810, quando seu nome aparece como o responsável pela regência da temporada de Ópera em Vila Rica. De 1817 a 1823, atuou como organista da Ordem 3a do Carmo, alternadamente, a partir de 1819, com sua formação sacerdotal no Seminário de Mariana, que se completará em 1821. Apesar de ter falecido bastante jovem, em 1832, o Pe. João de Deus foi um dos compositores mais “ousados” de sua época, escrevendo obras de grande dificuldade técnica tanto para as vozes quanto para os instrumentos. Pe. João de Deus deixou variada obra litúrgica, além da Abertura em Ré-Maior, que é o único exemplar de música puramente instrumental encontrado em Minas pelo autor do presente texto. Suas principais composições são: Missa e Credo a 8 vozes e orquestra; Missa a 4 vozes em Ré maior; Matinas de Natal; Matinas de Nossa Senhora da Conceição; Te Deum (1822); 6 Responsórios Fúnebres (1832). O compositor faleceu em Mariana, aos 38 anos de idade, em 1832. Antes do Pe. João de Deus, Mariana, como sede do bispado, foi um centro musical de grande importância, sendo que a função de mestre-de-capela foi criada pelo primeiro bispo D. Frei Manoel da Cruz. Ainda na década de 1750, chega à Sé de Mariana o Órgão Arp Schnitger, fabricado em Hamburgo, no norte da Alemanha, originalmente para servir em Lisboa. Esse instrumento foi uma doação do rei ao bispado e é considerado, hoje, como o órgão Arp Schnitger mais importante fora da Europa. Ainda na década de 1750, chega à Sé de Mariana o Órgão Arp Schnitger, fabricado em Hamburgo, no norte da Alemanha (...) Esse instrumento foi uma doação do rei ao bispado e é considerado, hoje como o órgão Arp Schnitger mais importante fora da Europa. 30 Outro compositor importante que provavelmente atuou em Mariana foi Francisco Barreto Falcão, procedente da Vila de Sabará. Algumas de suas obras encontram-se em manuscritos, no Museu da Música de Mariana. Da avaliação que se pode fazer até o momento da produção musical de Vila Rica de Nossa Senhora da Conceição do Sabarabussu, atual Sabará, percebemos que a produção musical de lá foi igualmente intensa, porém a perda da documentação musical foi ainda maior que em outros lugares. Além de Francisco Barreto Falcão, que atuou em Mariana, encontramos Manuel Júlião da Silva Ramos (1763-1824), que foi descoberto pelo musicólogo Régis Duprat. O compositor Manuel Júlião aparece exercendo funções musicais na Vila de Atibaia, SP, em 1808. É autor de um Credo, cuja linguagem está bem próxima da dos demais compositores. As Vilas de São José e São João del-Rei desempenharam também um importante papel na produção musical do período. O compositor de maior destaque da região é, sem dúvida, Manuel Dias de Oliveira (1735 − 1813). Organista e regente, esse compositor jamais atuou fora de sua região, onde foi organista na Matriz de Santo Antônio de São José del-Rei (atual Tiradentes). A maior parte das obras atribuídas a Manuel Dias de Oliveira apresenta, às vezes, estilos muito diferentes entre si, fazendo com que coloquemos em dúvida boa parte do conjunto de obras que hoje conhecemos. Em São João del-Rei, os compositores mais importantes são Antônio dos Santos Cunha, Pe. Manuel Camelo, João José das Chagas, Francisco Martiniano de Paula Miranda e Lourenço José Fernandes Braziel. Santos Cunha representa, juntamente como Pe. João de Deus, o início das influências românticas na música produzida na região das minas. Esse compositor atuou em São João entre 1815 e 1825; ignoram-se as datas de seu nascimento e morte. A primeira notícia escrita de atividade musical em São João del-Rei data de 1717, quando o Governador da Capitania de Minas Gerais, Dom Pedro de Almeida e Portugal, conde de Assumar, fez uma visita à antiga vila. O manuscrito de Samuel Soares de Almeida relata minuciosamente a recepção, descrevendo desde a marcha de entrada da comitiva na vila até a solenidade na Igreja Matriz, “ao som de música organizada pelo mestre Antônio do Carmo”. Na Igreja foi entoado o Te Deum, “que foi seguido por todo o clero e música”, o que provavelmente indica uma forma alternada de canto em polifonia com os padres cantando um verso gregoriano e o conjunto musical respondendo com um verso musical, tal como se faz, ainda hoje, na cidade. Daí em diante, o mestre Antônio do Carmo responsabiliza-sepela parte musical de importantes festas realizadas na vila. Em 1724 dirigiu a música na solenidade de benção da nova Matriz. Quatro anos depois, organizou a música para a festa de São João Batista, promovida pelo Senado da Câmara, e, em 1730, os “desponsórios dos Sereníssimos Príncipes Nossos Senhores”. Pe. Manuel Camelo parece ser o compositor mais antigo do qual conhecemos algum exemplo musical. Trata-se de uma Antífona: Flos Carmeli. Lourenço José Fernandes Braziel atuou em fins do século XVIII e início do XIX, sendo que o inventário de seus bens nos dá uma visão bastante ampla do tipo de repertório que era conhecido pelos A maior parte das obras atribuídas a Manuel Dias de Oliveira apresenta, às vezes, estilos muito diferentes entre si, fazendo com que coloquemos em dúvida boa parte do conjunto de obras que hoje conhecemos. 31 compositores mineiros da época. João José das Chagas e Francisco Martiniano de Paula Miranda são compositores também representativos da música do início do século XIX. Na Vila de Tamanduá (atual Itapecerica) aparece o nome de José Rodrigues Dominguez de Meireles como músico. Em época ignorada, esse compositor transferiu-se para a Vila de Nossa Senhora da Piedade (atual Pitangui). De sua obra, a referência mais antiga que temos é uma página de rosto existente no Museu da Música de Mariana; trata-se de uma Antífona de Santo Antônio, de 1797, que se encontra perdida. Existe ainda, no Museu da Música, uma Antífona Portuguesa a Sta. Rita. As demais obras encontradas são: Ofício de Domingo de Ramos (1810); Ofício de 4a feira de Trevas “Zelus Domus” (1811); Ofício de 5a feira “Astiterunt” (1811); Ofício de Finados, todas completas. Todas essas obras estão no Arquivo Curt Lange, em Ouro Preto. Consta no arquivo que pertenceu ao Maestro Vespasiano Santos, em Belo Horizonte, a ária a solo Oh Lingua Benedicta, de 1815. Em 1985, foram descobertas pelo autor deste texto, uma Trezena de Santo Antônio e um Domine ad Adjuvandum de Dominguez de Meireles. Outro importante compositor é Joaquim de Paula Souza, o “Bonsucesso”, de Prados, que deixou uma Missa em Sol Maior e outra em Dó Maior. Na região diamantina, ou seja, da Vila do Príncipe do Serro do Frio (atual Serro) e do Arraial do Tejuco (atual Diamantina), atuaram José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita (1746?−1805), José de Paiva Quintanilha (século XVIII/XIX) e Alberto Fernandes de Azevedo (século XVIII/XIX). Lobo de Mesquita atuou como organista e compositor na Vila do Príncipe até por volta de 1775, quando se transferiu por motivos desconhecidos para o Arraial do Tejuco. Sua obra datada mais antiga que conhecemos é a Missa para Quarta-feira de Cinzas, de 1778, para 4 vozes, violoncelo obligatto e órgão (baixo contínuo), o que mostra que o compositor, muito provavelmente, já atuava como organista nessa época. Em 1792, encarregou-se de compor um Oratório para a Semana Santa, que se encontra perdido. Em 1795 abandonou o Carmo e em 1798, o Arraial do Tejuco, por problemas financeiros, indo instalar-se em Vila Rica, onde viveu por um ano e meio. Com a decadência da Vila e a falta de melhor remuneração para o seu trabalho, Lobo de Mesquita abandona Vila Rica em 1800, passando o cargo que ocupava na Ordem 3a do Carmo para Francisco Gomes da Rocha. A partir de dezembro de 1801 até a morte, tocava nas missas da igreja da Ordem 3a do Carmo, no Rio de Janeiro, em troca de 40 mil réis. O compositor faleceu em 1805. Como todos os outros compositores de sua época, a maioria de sua obra se perdeu. Algo em torno de 60 manuscritos chegaram até os nossos dias. José de Paiva Quintanilha atuou na Vila do Príncipe durante toda a sua vida e, ao que parece, pelo estilo de sua Missa em Sol Maior, foi discípulo de Lobo de Mesquita. Desse mestre, no momento, pouco podemos dizer além de que recebeu, da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Vila do Príncipe, para compor a música da Semana Santa de 1790, 1792, 1807 e 1808, e que seu nome figura numa relação de músicos da Irmandade de Santa Cecília no período de 1817 a 1838. O nome de Alberto Fernandes de Azevedo aparece no período de 1804−1805 na Capela das Mercês do Tejuco, tendo entrado para esta Irmandade, segundo Curt Lange, em 24/9/1799. Em 1818 e 1819 foi encarregado de compor a música para cravo para a Semana Santa para a Irmandade do Santíssimo Sacramento da Matriz de Santo Antônio, no Tejuco. Apenas duas obras suas chegaram até os nossos dias: Gradual Veni Sancte Spiritus para quatro vozes, violino I e II, viola, trompas e baixo; e uma Encomendação para quatro vozes e baixo. HARRY CROWL Compositor e musicólogo. Tem obras apresentadas no Brasil e em vários países. Prof. da Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Diretor artístico da Orquetra Filarmônica Juvenil da Universidade Federal do Paraná. Produtor de programas da Rádio Educativa do Paraná e da Rádio MEC. Presidente da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea (2002−2005). MÚSICA NA CORTE DO BRASIL O PROF. DR. MAURÍCIO MONTEIRO 1808-1821 Entre Apolo e Dionísio s projetos de transferência da Corte somente se concretizaram no período em que as incursões napoleônicas ameaçaram o Estado de Portugal e a continuidade da casa de Bragança. Nos inícios do século XIX, diante do medo e das ameaças que levariam à perda do poder e de partes do território português, as opiniões sobre a retirada da Família Real e dos cortesãos para o Brasil não foram unânimes. Para alguns se tratava de uma traição; para outros, estratégia. Podia ser, em outras palavras, tanto o abandono do povo e do trono, como o único recurso capaz de manter a casa monárquica, tendo em vista as ameaças de Napoleão. O marquês de Alorna já havia alertado, paradoxalmente, à Corte portuguesa para os perigos de permanência da Corte em Portugal, na iminência do ataque francês, e para os benefícios que Na página ao lado: Henrique Bernardelli. José Maurício tocando para D. João VI. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL 33 34 essa mesma retirada estratégica poderia gerar. Para o marquês de Alorna, foi estratégica e importante a vinda de D. João VI e da Família Real para o Brasil, porque daqui, como um imperador em um vasto território, os domínios poderiam expandir-se e o monarca poderia conquistar facilmente “as colônias espanholas e aterrar em pouco tempo as de todas as potências da Europa”1. As recomendações do marquês de Alorna não foram novidades nos inícios do século XIX em Portugal. Não foi também a primeira vez que os franceses incomodaram a monarquia portuguesa, e muito menos era nova a aliança com os ingleses. Desde os tempos de D. João III, depois nos reinados de D. João IV e de D. Luíza de Gusmão, a monarquia já admitia um projeto de se instalar fora das mediações de Portugal e se estabelecer em algum lugar do ultramar. Ou porque temia as interferências dos estrangeiros – como no caso dos franceses na primeira metade do século XVII e na derradeira expansão napoleônica nos inícios do século XIX, ou porque realmente confiavam no potencial econômico do Brasil, a Corte portuguesa pretendeu, durante quatro séculos, retirar-se de Portugal2. Se pensarmos como pensou o marquês de Alorna, a emotividade com que a carta foi escrita e a estratégia que ela propunha, a retirada da Família Real para o Brasil era necessária havia muito tempo e inevitável, diante as ameaças de Junot. Não bastava somente uma retirada nem as lembranças de uma terra promissora, que por direito de conquista deveria acolher o príncipe e sua família. Foi preciso ainda reforçar, nesse caso como um atrativo para a retirada, as dimensões da colônia e a possibilidade da conquista de territórios vizinhos. Como estratégia política ou como reação que previa a expansão francesa, o príncipe regente, sua mãe debilitada, a princesa Carlota Joaquina e seus filhos, vieram para o Brasil e aqui se estabeleceram por 13 anos, comseus costumes e suas práticas. A primeira mudança foi acolher um número estimado de reinóis entre 10.000 e 15.000 indivíduos; a segunda, já no plano das perdas e da autoridade, começou nos despejos. Para toda população que tinha uma das residências “das mais excelentes”, ou pelo menos habitável, estaria sujeita, mais por obrigação que por espontaneidade, a ceder sua residência aos portugueses. As autoridades coloniais mandaram marcar nessas casas as iniciais P. R. impressas nas portas das casas; seriam para uns, “Príncipe Regente”, para outros, “Ponha-se na Rua”3. Com a instalação da Corte e com as medidas tomadas por D. João, as relações com os estrangeiros foram mais abrangentes. Spix e Martius mostram que vários países vendiam produtos para o Brasil: da Inglaterra vinham algodão, chitas, panos finos, porcelana e cerveja; de Gibraltar, vinhos espanhóis; da França, artigos de luxo, jóias, móveis, licores finos, pinturas e gravuras; da Holanda, cerveja, objetos de vidro e tecidos de linho; da Áustria, relógios, pianos e espingardas; e vários outros produtos da Alemanha, Rússia, Suécia, Estados Unidos, Guiné, Moçambique, Angola e Bengala4. O produto interno, a manufatura e a indústria, que ainda começavam a crescer no Brasil, não eram competitivos, nem em termos de gosto nem em termos de tecnologia da civilização, com os da Europa. Os hábitos estrangeiros foram, dessa forma, assimilados pelos cariocas, seja pela observação do outro, seja pela imitação de seu comportamento. Durante todo o período joanino, houve no Rio de Janeiro uma intensa atividade musical, distribuída basicamente em dois setores, o da Corte, onde a qualidade era imprescindível, e o de fora da Corte, em que a funcionalidade era festiva e mítica. É importante pensar nisto, numa complexidade que surge no momento em que negros e mestiços são Os músicos diletantes ou amadores dividiam-se entre os negros e mestiços, com seus lundus, modinhas e batuques, e brancos pobres que normalmente tinham uma outra ocupação, que lhes assegurava o sustento. 35 chamados para tocar em festas religiosas, muitas vezes com seus instrumentos típicos e com suas próprias interpretações. Arregimentar músicos, pintores e outros artífices para algum trabalho ou para abrilhantar alguma festa em caráter de urgência foi uma medida comum nos tempos de D. João VI. Na verdade era necessário atender um desejo de manter a pompa, a ostentação e a visibilidade de um gosto; mas para isso era necessário que houvesse mão-de-obra suficiente. Muitas vezes não era possível. Em algumas situações, criava-se, literalmente, o artífice e artesão, normalmente uma maioria de negros, mestiços e brancos pobres, cujo desejo e habilidade eram formulados pela ordem e obediência. Em algumas circunstâncias, para atender à demanda musical, ou de outra atividade artesanal, o que valia era o poder de um sobre o outro. O caso dos músicos pobres, dos diletantes que estavam à mercê dessas relações de poder, não foi diferente. Robert Southey chega a falar de “devotos músicos” que eram chamados para as festas das igrejas “muitas vezes por água”5 . Os músicos diletantes ou amadores dividiam-se entre os negros e mestiços, com seus lundus, modinhas e batuques, e brancos pobres que normalmente tinham uma outra ocupação, que lhes assegurava o sustento. Entre esses diletantes, encontrava-se ainda alguns professores, mecânicos e “barbeiros-cirurgiões”. No Rio de Janeiro já existia uma vida musical significativa para aqueles tempos históricos, com compositores ativos e importantes, como Lobo de Mesquita, que saiu de Minas e foi para o Rio, morto em 1806; José Maurício Nunes Garcia, mestre-de- capela, compositor e organista que se tornou uma das maiores expressões da História da Música no Brasil, e Gabriel Fernandes da Trindade, violinista e compositor, um dos mais prolíficos instrumentistas da Colônia e do Brasil Reino. Além desses ilustres, tem-se ainda o vasto universo dos anônimos. A vinda da Família Real para o Brasil, juntamente com alguns dos compositores e intérpretes portugueses que serviram a Corte em Portugal, influenciou o estilo e as práticas desses músicos coloniais, “construindo” uma nova percepção do gosto e uma nova maneira de observar o mundo das artes. O surgimento de instituições de corte, como a Capela e Câmara Reais, favoreceu a expansão da atividade musical, criou mais Neukomm, Sigismund. Retrato de autoria de Ary Scheffer. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO 36 oportunidades de trabalho e redefiniu a hierarquia entre os músicos. As famílias aristocráticas que vieram com D. João VI, ou que aqui se aproximaram dele, contribuíram com seus comportamentos e hábitos de ouvir música em saraus e reuniões sociais. Em tudo isso pode-se somar ainda a circulação de viajantes e negociantes estrangeiros, a freqüência e a pompa que as festividades adquiriram e, sobretudo, a construção do Real Teatro de São João, palco ideal para as representações dramáticas. Se os homens vão e vêm, com eles circulam também as idéias. A circulação de músicos estrangeiros no Rio de Janeiro joanino foi importante para o estabelecimento de uma prática de corte, para sustentar a demanda de música e, sobretudo, ajudar a construir um novo gosto, baseado em práticas cortesãs. A vinda dos cantores castrados, o serviço prestado por Marcos Portugal e em seguida a vinda de Neukomm foram acontecimentos importantes que transformaram a idéia da criação e da recepção musical. Todas essas mudanças ocorridas nos níveis sociais, culturais, administrativos e, sobretudo, mentais, criaram um outro espaço e uma outra forma de audiência das obras no período joanino. Classicismo e italianismo vieram, respectivamente, com Sigismund Neukomm e Marcos Portugal. O que aconteceu nesse período em que a Família Real esteve no Brasil foi exatamente uma articulação desses estilos. Se a música vocal se firmou no virtuosismo italiano, a música instrumental se baseou nos modelos do classicismo vienense. As relações da Casa de Bragança com as cortes da Europa, sobretudo com a Casa da Áustria, se reforçavam cada vez mais, através de questões políticas e conveniências matrimoniais. Acontecimentos como a vinda da Missão Artística em 1816 e o casamento da arquiduquesa D. Leopoldina com D. Pedro I aproximavam os portugueses dos costumes e hábitos europeus. O que aqui denominamos por “classicismo” conviveu com o “italianismo” e com o “colonialismo”. Um se refere à estilística tipicamente germânica e austríaca; outro, como diz o próprio termo que o define, a uma maneira de dramatizar e interpretar em termos de técnica desenvolvida na Itália e, por fim, uma situação político-administrativa, o “colonialismo” português no Brasil do tempo de D. João VI. Esse último termo tem significado histórico e prático. Na verdade, pode-se sugerir a intensa e larga dependência do Brasil com Portugal. Mesmo depois da instalação da Corte, da elevação a Reino Unido, da coroação do Príncipe Regente, a situação dos trópicos não mudou muito nas suas relações externas. Classicismo, com Haydn (através das relações Brasil-Áustria e a vinda de Neukomm), Mozart e Beethoven e o italianismo operístico, com as obras de Piccini, Cimarosa, David Perez, Salieri, Scarlatti, Rossini e a transferência de Marcos Portugal, estiveram na colônia, absorvidos por José Maurício. Essas relações são importantes para a compreensão de uma estilística resultante de práticas coloniais, de um novo gosto, que foi mantido com a Família Real no Rio de Janeiro e aos poucos foi sendo construído no Brasil. O gosto pela ópera clássica era cultivado pela Família Real portuguesa, sobretudo pelo Príncipe Regente e depois rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, D. João VI. A ópera italiana do final do século XVIII e da primeira metade do século seguinte reservava o caráter virtuosístico
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