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CAPÍTULO 3 - AS INFLUÊNCIAS FISIOLÓGICAS DAVID K. PERDE O EMPREGO: JÁ ERA HORA Os sapatos de David Kinnebrook eram engraxados todas as noites, mas esse era o único benefício que tinha em seu emprego. Seu trabalho era solitário, maçante e muito estressante. Era forçado a morar no mesmo prédio em que trabalhava e tinha de estar disponível das 7 horas da manhã às 10 horas da noite, sete dias da semana. Além disso, muitas vezes um alarme tocava no meio da noite, chamando‐o de volta ao trabalho. Ele recebia um salário muito pequeno para tudo isso e três refeições por dia, e, lógico, seus sapatos eram engraxados. Quais eram as qualificações para esse emprego maravilhoso? Um dos cientistas que supervisionava esse serviço escreveu: “Quero homens incansáveis, que trabalhem muito e, acima de tudo, sejam escravos obedientes do trabalho, que ficarão satisfeitos por passar seu dia usando suas mãos e olhos no ato mecânico de observar, e o resto do tempo no processo maçante de calcular” (apud Croarken, 2003, p. 286). Quando Kinnebrook finalmente saiu, o substituto dele descreveu o trabalho da seguinte maneira: Nada pode exceder o enfado e o tédio da vida que o assistente leva nesse lugar, excluído da sociedade, com exceção de um pobre rato que ocasionalmente sai de seu buraco na parede... Abandonado nesse lugar, o assistente passa seus dias, semanas e meses no mesmo longo e cansativo cômputo, e sem um amigo para encurtar as horas entediantes ou uma alma com quem possa conversar. (apud Croarken, 2003, p. 285). O local era o Observatório Real em Greenwich, Inglaterra; o ano era 1795. Kinnebrook trabalhava como assistente do reverendo Nevil Maskelyne (1732‐1811), um astrônomo da realeza. Trabalhou para o reverendo durante 1 ano, 8 meses e 22 dias antes de ser despedido, e nunca soube que seu trabalho teve papel impactante para a fundação da nova ciência da psicologia. Tudo começou com uma diferença de cinco décimos de segundo. Isso não é muito, pode‐se dizer, mas foi demais para o astrônomo. Quando Maskelyne percebeu que as observações de Kinnebrook sobre o tempo decorrido na passagem de uma estrela de um ponto a outro eram inferiores, repreendeu‐o pelo engano, e alertou‐o para que fosse mais cuidadoso. Kinnebrook tentou (e até deu a Maskelyne um peru de Natal), mas as diferenças aumentaram. Maskelyne relata: Devo mencionar que meu assistente, Sr. David Kinnebrook, que observava criteriosamente o movimento das estrelas e dos planetas por todo o ano de 1794 e parte do presente ano, obedecendo aos mesmos procedimentos por mim utilizados, passou a registrar a partir do início de agosto passado meio segundo de atraso em relação às minhas observações, e, em janeiro do ano seguinte, ou seja, em 1796, ele aumentou seu erro em oito décimos de segundo. Infelizmente, suas observações prosseguiram por um período considerável antes que eu notasse o erro, e não me parecia possível resolver esse problema e retornar ao método correto de observação, portanto, embora relutante, visto ser ele um ótimo e cuidadoso assistente em diversos aspectos, acabei dispensando‐o. (apud Howse, 1989, p. 169). E, assim, Kinnebrook foi demitido. Ele desempenhou um trabalho como diretor de escola até sua morte, 14 anos mais tarde, e caiu no esquecimento sem tomar conhecimento de que, realmente, não havia cometido erro algum (Rowe, 1983). A IMPORTÂNCIA DO OBSERVADOR HUMANO O incidente de Kinnebrook foi ignorado durante 20 anos, até o fenômeno tornar‐se objeto de investigação do astrônomo alemão Friedrich Wilhelm Bessel (1784 ‐1846), que estava interessado em estudar os erros de medição. Ele suspeitava que aqueles “erros” do assistente de Maskelyne deveriam ser atribuídos às diferenças individuais – distinções pessoais sobre as quais as próprias pessoas não têm controle. Assim, raciocinou Bessel, as diferenças podem ser encontradas entre os tempos observados por todos os astrônomos, fenômeno que passou a ser chamado “equação pessoal”. Bessel continuou investigando essa hipótese e constatou que estava correto. Mesmo entre vários astrônomos experientes, as divergências eram comuns. Bessel chegou a duas conclusões com sua descoberta: primeiro, os astrônomos devem levar em consideração a natureza humana do observador, já que as características e as percepções pessoais necessariamente influenciam as observações; segundo, se a astronomia deve levar em conta o papel do observador humano, certamente ele é importante também nas outras ciências que dependem dos métodos de observação. Vimos no Capítulo 2 que os filósofos empiristas, como Locke e Berkeley, debateram a natureza subjetiva da percepção humana, usando como argumento a afirmação de que nem sempre há – ou que muitas vezes não há – correspondência exata entre a natureza de um objeto e a nossa percepção sobre esse objeto. O trabalho de Bessel ilustrou e corroborou a teoria com os dados de uma ciência pura: a astronomia. Assim, os cientistas foram forçados a concentrar‐se no papel do observador humano como responsável pelos resultados das experiências. Consequentemente, eles começaram a estudar os órgãos dos sentidos humanos – os mecanismos fisiológicos por meio dos quais recebemos informações a respeito do universo –, como forma de investigação dos processos psicológicos da sensação e da percepção. Desse modo, os fisiologistas começaram a aplicar essa metodologia no estudo da sensação, e a psicologia estava a um passo de seguir o mesmo caminho. OS AVANÇOS INICIAIS DA FISIOLOGIA A pesquisa fisiológica que discutiremos neste capítulo e que estimulou e orientou a nova psicologia era produto do trabalho científico do fim do século XIX. Assim como todos os demais esforços, esse também teve predecessores, trabalhos iniciais que lhe serviram de base. Durante a década de 1830, a fisiologia tornou‐se uma disciplina voltada aos experimentos, principalmente sob a influência do fisiologista alemão Johannes Müller (1801‐1858), defensor do método experimental. Müller ocupava posição de prestígio como professor de anatomia e fisiologia da University of Berlin. Era um fenômeno na produção de trabalhos, publicando em média um trabalho acadêmico a cada sete semanas. Manteve esse ritmo por 38 anos e suicidou‐se durante uma crise depressiva. Uma de suas obras de maior influência, Manual de fisiologia humana [Handbook ofthe physiology ofmankind], foi publicada entre 1833 e 1840. Seus volumes contêm o resumo das pesquisas fisiológicas desse período e sistematizam um vasto conhecimento a respeito da área. Eles apresentam muitos estudos novos, sinalizando o rápido crescimento do trabalho experimental. O primeiro volume foi traduzido para o inglês em 1838, e o segundo, em 1842, confirmando o interesse dos cientistas de vários outros países, além da Alemanha, na pesquisa fisiológica. Sua teoria sobre a energia específica dos nervos também foi muito importante para a fisiologia e a psicologia. Müller afirmava que a estimulação de determinado nervo sempre provocava uma sensação característica, porque cada nervo sensorial possuía energia específica própria. Essa noção estimulou a realização de muitas pesquisas para localizar as funções dentro do sistema nervoso e apontar os mecanismos sensoriais receptores nas regiões periféricas do organismo. Uma vez estabelecido esse tipo de pesquisa sobre os nervos sensoriais e o sistema nervoso, o próximo passo lógico era estudar o depósito de dados sensoriais – o cérebro. PESQUISA SOBRE FUNÇÕES CEREBRAIS: MAPEAMENTO INTERNO Muitos dos primeiros fisiologistas realizaram suas pesquisas diretamente nos tecidos cerebrais, e essas contribuições foram substanciais para o estudo das funções do cérebro. Esses esforços foram as primeiras tentativas de mapeamento das funções cerebrais, ou seja, de determinar as partes específicas do cérebro responsáveis pelo controle das diferentes funções cognitivas.A importância desse trabalho para a psicologia não se restringe à delimitação das áreas especializadas do cérebro, como reside também no refinamento dos métodos de pesquisa que mais tarde viriam a ser amplamente usados na psicologia fisiológica. O médico escocês Marshall Hall (1790‐1857), na época trabalhando em Londres, foi o pioneiro na investigação do comportamento por reflexo. Hall observou que os animais decapitados continuavam a se mover por algum tempo mediante o estímulo de várias terminações nervosas. Chegou à conclusão de que os diversos níveis de comportamento tinham origem nas diferentes partes do cérebro e do sistema nervoso. Mais especificamente, Hall postulava que o movimento voluntário dependia do cérebro; o movimento de reflexo, da medula espinhal; o movimento involuntário, da estimulação direta dos músculos; e o movimento respiratório, da medula. A pesquisa do professor de história natural do College de France, de Paris, Pierre Flourens (1794 ‐1867), envolvia a destruição sistemática de partes do cérebro e da medula espinhal dos pombos, bem como a observação das consequências. Flourens concluiu que o cérebro controlava os processos mentais mais elevados; partes do cérebro médio controlavam os reflexos visuais e auditivos; o cerebelo, a coordenação; e a medula, o batimento cardíaco, a respiração e outras funções vitais. As descobertas de Hall e Flourens, embora consideradas válidas no aspecto geral, são secundárias para os nossos propósitos em relação ao uso do método de extirpação (Extirpação: técnica para definir a função de determinada parte do cérebro animal, removendo‐a ou destruindo‐a para observar as mudanças no comportamento), no qual o pesquisador tenta determinar a função de uma parte específica do cérebro, removendo‐a ou destruindo‐a e observando as consequentes mudanças no comportamento do animal. A segunda metade do século XIX presenciou a introdução de duas abordagens experimentais complementares à pesquisa sobre o cérebro: o método clínico e a técnica do estímulo elétrico. O método clínico (Método clínico: exame pós‐morte das estruturas cerebrais para detectar as áreas lesionadas, consideradas responsáveis pelo comportamento do indivíduo antes de sua morte), foi desenvolvido em 1861 por Paul Broca (1824 ‐1880), cirurgião de um hospital para doentes mentais próximo a Paris. Broca realizou a autópsia de um homem que, por muitos anos, apresentara uma fala incompreensível. O exame clínico revelou uma lesão na terceira convolução frontal do hemisfério esquerdo do córtex cerebral. Broca denominou essa seção do cérebro de centro da fala, que mais tarde ficou conhecida como a área de Broca. O método clínico servia como complemento da técnica de extirpação, já que era difícil obter o consentimento das pessoas para remover partes de seu cérebro, ainda mais para conseguir crédito extra para seus laboratórios de psicologia. Como uma espécie de extirpação pós‐morte, o método clínico possibilita o exame da área danificada do cérebro, considerada responsável pelo comportamento do paciente quando ainda vivo (O cérebro de Broca encontra‐se preservado no Museu do Homem, em Paris, onde ainda pode ser visto, juntamente com a ossada de Descartes, em uma animada tarde de visitas). A técnica dos estímulos elétricos (Estímulos elétricos: técnica de exploração do córtex cerebral que consiste em aplicar pequenos choques elétricos para observar a resposta motora), para o estudo do cérebro foi aplicada pela primeira vez em 1870, por Gustav Fritsch e Eduard Hitzig. A técnica consiste na aplicação de fracas correntes elétricas para a exploração do córtex cerebral. Fritsch e Hitzig descobriram que a estimulação de certas áreas corticais de coelhos e cães provocava algumas reações motoras, como a movimentação das patas. Com o desenvolvimento de equipamentos eletrônicos cada vez mais sofisticados, a técnica dos estímulos elétricos tornou‐se extremamente produtiva para o estudo das funções cerebrais. PESQUISAS SOBRE FUNÇÕES CEREBRAIS: MAPEAMENTO EXTERNO Dentre os cientistas que tentavam realizar o mapeamento interno do cérebro estava o médico alemão Franz Josef Gall (1758‐1828), que dissecava cérebros de animais e de pessoas mortas. Seu trabalho constatou a existência de substâncias cerebrais branca e acinzentada, a conexão de cada lado do cérebro ao lado oposto da medula espinhal por meio de fibras nervosas e a ligação por fibras entre as metades do cérebro. Após completar esse minucioso programa de pesquisa, Gall voltou sua atenção para a parte externa do cérebro. Ele desejava descobrir se era possível obter informações sobre as propriedades cerebrais analisando o tamanho e o formato do cérebro. Quando criança, ele percebeu que seus colegas de classe que conseguiam memorizar grandes passagens com facilidade tinham olhos e testas maiores. “A partir disso, ele deduziu que um órgão da memória verbal deveria ficar entre os olhos. Ele supôs que, se uma capacidade era indicada por uma característica externa, outras também poderiam ser” (Morse, 1997). Com relação a seu tamanho, os estudos realizados com animais demonstraram tendência de comportamento mais inteligente em animais com cérebros maiores do que nas espécies com cérebros menores. Todavia, quando começou a investigar o formato do cérebro, Gall aventurou‐se por um território controverso. Ele fundou um movimento chamado cranioscopia, mais tarde conhecido como frenologia, cuja proposta afirmava que o formato do crânio de uma pessoa revelava suas características intelectuais e emocionais. Sua reputação caiu rapidamente quando promoveu essa ideia e ele deixou de ser visto pelos colegas como um respeitável cientista, mas como um charlatão e uma fraude. Gall acreditava que quando uma habilidade mental, como a consciência, a benevolência ou a autoestima, fosse particularmente bem desenvolvida, devia existir uma protusão ou uma saliência correspondente na superfície do cérebro, na região controladora dessa característica. Se a capacidade fosse inferior, haveria um afundamento no crânio. Depois de examinar as saliências e os afundamentos de muitas pessoas, Gall mapeou a localização de 35 atributos humanos (veja Figura 3.1). Um aluno de Gall, Johann Spurzheim, e um frenologista escocês, George Combe, contribuíram muito para a popularização do movimento. Viajaram por toda a Europa e pelos Estados Unidos dando aulas e demonstrações a respeito da frenologia. Seu sucesso foi rapidamente obscurecido por Orson e Lorenzo Fowler, dois irmãos, filhos com boa escolaridade de um fazendeiro no norte de Nova York. Os irmãos Fowler interessaram‐se pela frenologia depois de ler os trabalhos de Spurzheim e Combe e resolveram desenvolver um empreendimento extremamente bem‐sucedido. Milhões de norte‐americanos tiveram a cabeça examinada e as saliências do cérebro lidas pelos Fowlers e seus associados. [Os irmãos] abriram clínicas em Nova York, Boston e Filadélfia no fim da década de 1830. Venderam o direito de abrir clínicas em outras cidades, principalmente mediante o treinamento de frenologistas, e forneceram suprimentos frenológicos [...] como bustos para exibição e ensino, compassos de calibre e tamanhos diversos para medições, painéis, manuais para venda e, para o frenologista itinerante, caixas para transportar os instrumentos e suprimentos. (Benjamin e Baker, 2004, p. 4 ‐5) Seus negócios foram incrivelmente lucrativos e continuaram sendo bem‐sucedidos no século XX. Em 1838, iniciaram uma revista, a American Phrenological Journal, que foi publicada por mais de 70 anos. Os clientes chegavam em quantidade tão grande, que os consultórios frequentemente pareciam um show. Os frenologistas iam de cidade em cidade, “fazendo visitas nos dias marcados, estabelecendo‐se por curto período, e oferecendo seus serviços mediante uma taxa [...] vendiam livros e painéis, assim como os gruposde rock atuais vendem camisetas e pôsteres em seus shows” (Sokal, 2001, p. 25). Sociedades frenológicas foram formadas, e a leitura de cabeças tornou‐se tão difundida, que muitas empresas norte‐americanas usaram a técnica para selecionar seus funcionários. Praticantes da frenologia afirmavam que podiam usá‐la para avaliar o nível de inteligência de uma criança e para aconselhar casais em dificuldades matrimoniais. Assim, a crença de que a frenologia podia ser aplicada a problemas práticos foi a principal razão de seu sucesso nos Estados Unidos. Em 1929, Charles Lavery e Frank White fundaram a Companhia Psicográfica de Minneapolis e desenvolveram uma máquina para mapear caroços nas cabeças das pessoas. O aparelho que consistia em quase 2 mil partes, era baixado sobre o crânio do cliente e media 32 pontos diversos. A máquina imprimia um relatório que atribuía pontos para 32 atributos mentais, os quais iam da autoestima à combatividade. Este frenologista mecânico tornou‐se tão popular, que 33 máquinas foram produzidas e usadas com grande sucesso financeiro durante muitos anos (Joyce & Baker, 2008). A crítica mais veemente em relação à cranioscopia de Gall teve como base a pesquisa conduzida por Pierre Flourens. Ao destruir sistematicamente partes de um cérebro (usando o método da extirpação), Flourens descobriu que o formato do crânio não correspondia aos contornos do tecido cerebral subjacente. Além disso, o tecido cerebral era delicado demais para produzir alterações, tais como protuberâncias ou afundamentos, na superfície óssea do crânio. Flourens e outros fisiologistas também demonstraram erros nas áreas designadas por Gall para as funções mentais específicas. Portanto, se você estiver procurando alguma saliência ou afundamento no seu crânio, pode ficar certo de que eles não revelam qualquer característica sobre o funcionamento intelectual ou emocional do seu cérebro. Gall fracassou na tentativa de mapear a parte externa do cérebro, mas suas ideias reforçaram a crença crescente entre os cientistas de que era possível localizar as funções específicas do cérebro com a aplicação do método clínico, da extirpação e dos estímulos elétricos. E, como veremos no Capítulo 15, a ideia básica por trás da frenologia – de que características pessoais se localizam em regiões específicas do cérebro – está sendo demonstrada em pesquisas contemporâneas de neurociência (Wrap, 2010). Há uma lição a ser aprendida com o sucesso, e depois fracasso, da frenologia, que pode ser aplicada a todos os movimentos de todos os tempos. Não há necessariamente uma relação entre a popularidade de uma ideia, tendência ou escola de pensamento e sua validade. Daniel Robinson, um famoso historiador da psicologia, observou que a “frenologia de Gall floresceu tanto tempo quanto a teoria psicanalista [e] seus achados e dizeres encheram muitos periódicos... Cidadãos educados em todos os bons centros culturais apalpavam a cabeça uns dos outros com muita seriedade. Assim, uma outra lição moral se faz presente: o impacto em si nada estabelece em relação à validade ou adequação dos trabalhos” (Robinson, 2003, p. 200). Em outras palavras, só porque algo é popular não significa que seja verdadeiro. PESQUISAS IMPRESSIONANTES SOBRE O SISTEMA NERVOSO Durante esse período, também foi realizada uma quantidade considerável de pesquisas sobre a estrutura do sistema nervoso. No Capítulo 2, mencionamos as duas primeiras explicações para descrever a natureza da atividade neural: a teoria do tubo, de Descartes, e a teoria das vibrações, de Hartley. Quase no fim do século XVIII, o pesquisador italiano Luigi Galvani (1737‐1798) sugeriu que os impulsos nervosos seriam elétricos. Ele demonstrou isso com sapos, pendurando‐os em ganchos de metal no corrimão da sua varanda durante uma tempestade. Quando os raios caíam perto, “suas patas se contorciam de uma forma que fazia parecer que eles estavam prontos para saltar da varanda e ir rua abaixo” (Blum, 2013). Ele continuou seus experimentos usando milhares de sapos mortos, demonstrando repetidamente que, de alguma forma, a eletricidade exercia impacto sobre eles, fazendo que se contorcessem, se movessem e realizassem outras atividades como se estivessem vivos. A expressão “galvanizar” significa assustar alguém ou algo em uma atividade súbita e deriva do trabalho de Galvani. O sobrinho de Galvani, Giovanni Aldini, deu continuidade a seu trabalho, e um historiador relatou que ele “misturou pesquisa séria com um pouco de espetáculo”. Em uma das exibições mais horrendas, destinadas a enfatizar a eficácia dos estímulos elétricos na obtenção dos movimentos espasmódicos dos músculos, Aldini exibiu as cabeças decapitadas de dois criminosos (Boakes, 1984, p. 96). O público de Londres ficou chocado e hipnotizado pela noção de que, aparentemente, a eletricidade poderia trazer alguém de volta à vida, mesmo que momentaneamente. Parece aceita a tese de que a escritora inglesa Mary Shelley tenha sido influenciada pelas demonstrações do poder da eletricidade para escrever seu famoso romance Frankenstein, cujo corpo morto, composto por pedaços coletados em cemitérios, foi trazido à vida através da eletricidade. Aldini também experimentou a terapia de choque em pessoas deprimidas, fazendo‐as ter convulsões espasmódicas. Isso aconteceu 200 anos antes de a terapia eletroconvulsiva (ECT) ter sido formalmente desenvolvida para tratar doenças mentais. Praticamente à mesma época, Benjamin Franklin tentou os mesmos tipos de experimentos que Aldini (Bolwig e Fink, 2009). Alessandro Volta (1745‐1829) inventou a primeira bateria elétrica, conhecida como “pilha voltaica”, que deu aos cientistas e inventores um modo ágil de produzir eletricidade, revolucionando, assim, o avanço da ciência. O termo volt, usado como uma medida de eletricidade, deriva de seu nome. Volta foi descrito como alguém que tinha “um gosto pela boa vida; ele gostava de festa. Sempre se podia encontrá‐lo curtindo a vida em concertos, óperas e banquetes, ou em qualquer ocasião em que a bebida fosse liberada e as mulheres estivessem dispostas e aptas” (Montillo, 2012, p. 53). Aparentemente, ele gostava de chocar as pessoas. O trabalho experimental prosseguiu com tamanha rapidez, que, em meados do século XIX, os cientistas aceitaram como fato comprovado a natureza elétrica dos impulsos nervosos. Passaram a crer que o sistema nervoso constituía‐se essencialmente de um condutor de impulsos elétricos e que o sistema nervoso central funcionava como uma estação de transferência, desviando os impulsos para as fibras nervosas sensoriais ou motoras. Embora essa posição representasse grande avanço na teoria sobre o tubo nervoso de Descartes e na teoria das vibrações de Hartley, em termos de conceito era semelhante. Ambas as teorias, a antiga e a mais recente, tinham como base o reflexo: um elemento do mundo exterior (o estímulo) provoca impacto no órgão do sentido e, assim, excita o impulso nervoso, que segue até o local adequado do cérebro ou do sistema nervoso central e ali reage, criando outro impulso, que é transmitido através dos nervos motores para acionar a resposta do organismo. A direção seguida pelos impulsos nervosos no cérebro e na medula espinhal foi descoberta pelo médico espanhol Santiago Ramón y Cajal (1852‐1934), professor de anatomia da escola de medicina da University of Zaragoza e diretor do Museu de Zaragoza. Pelas descobertas, recebeu a medalha Helmholtz da Academia Real de Ciências de Berlim, em 1905, e o Prêmio Nobel, em 1906. Ramón y Cajal teve dificuldades para divulgar suas descobertas à comunidade acadêmica, já que a língua espanhola não era utilizada nas publicações especializadas da época. Frustrado, ele “muitas vezes ficou decepcionado ao ler sobre as ‘novas’ descobertas, nas revistas inglesas, alemãs ou francesas, as quais, na realidade,eram redescobertas do seu trabalho publicado muito antes em espanhol” (Padilla, 1980, p. 116). Sua situação é outro exemplo das barreiras enfrentadas pelos cientistas que trabalham fora do círculo da cultura dominante. Os pesquisadores também estavam estudando a estrutura anatômica do sistema nervoso. Descobriram que as fibras nervosas eram compostas de estruturas separadas (neurônios) e, de alguma forma, se conectavam em pontos específicos (sinapses). Essas descobertas coincidiam com a imagem mecanicista do funcionamento humano. Os cientistas acreditavam que o sistema nervoso, assim como a mente, era constituído de estruturas de átomos, partículas de matéria combinadas para produzir um produto mais complexo. Isso também significava que, assim como um relógio, o sistema nervoso poderia ser quebrado ou reduzido em seus componentes mais simples. O IMPACTO DO ESPÍRITO DO MECANICISMO O espírito do mecanicismo era predominante na fisiologia do século XIX, assim como na filosofia da época. Não havia outro lugar em que esse espírito se destacasse tanto como na Alemanha. Na década de 1840, um grupo de cientistas, muitos dos quais ex‐alunos de Johannes Müller, fundou a Sociedade de Física de Berlim. Esses cientistas, todos na faixa dos 20 anos, estavam comprometidos com uma única proposta: a explicação de todos os fenômenos pelos princípios da física. O grupo desejava relacionar a fisiologia com a física, ou seja, desenvolver a fisiologia com base no quadro de referência do mecanicismo. Em um gesto dramático, quatro dos cientistas prestaram um juramento solene e o selaram, como reza a lenda, com o próprio sangue. Essa declaração estabelecia que as únicas forças ativas dentro do organismo eram as forças psicoquímicas comuns. E, assim, as linhas se entrelaçaram na fisiologia do século XIX: o materialismo, o mecanicismo, o empirismo, o experimentalismo e a medição. A evolução inicial da fisiologia indica os tipos de técnicas de pesquisa e as descobertas que fundamentaram a abordagem científica da investigação psicológica da mente. Enquanto os filósofos abriam caminho para o ataque experimental da mente, os fisiologistas realizavam experiências para investigar os mecanismos que estão por trás dos fenômenos mentais. O passo seguinte era a aplicação do método experimental na mente propriamente dita. Os empiristas britânicos argumentavam que a sensação era a única fonte de conhecimento. O astrônomo Bessel demonstrou o impacto da observação das diferenças individuais na sensação e na percepção. Os fisiologistas estavam definindo a estrutura e a função do sistema nervoso e dos sentidos. Era chegada a hora de estudar e quantificar esse portão de entrada para a mente: a experiência mentalística e subjetiva da sensação. As técnicas disponíveis para a investigação do corpo passaram a ser aperfeiçoadas para a exploração da mente. A psicologia experimental estava pronta para começar. OS PRIMÓRDIOS DA PSICOLOGIA EXPERIMENTAL As primeiras aplicações do método experimental à mente, ou seja, ao que consistia no objeto de estudo da nova psicologia, são creditadas a quatro cientistas: Hermann von Helmholtz, Ernst Weber, Gustav Theodor Fechner e Wilhelm Wundt. Todos eram cientistas alemães especializados em fisiologia e cientes da impressionante evolução da ciência moderna. POR QUE A ALEMANHA? A ciência estava em franco desenvolvimento na maior parte da Europa ocidental no século XIX, principalmente na Inglaterra, na França e na Alemanha. O entusiasmo, a consciência e o otimismo na aplicação das ferramentas científicas aos diversos temas de pesquisa não estavam concentrados em nenhuma nação específica. Então, por que a psicologia experimental teve início na Alemanha e não na Inglaterra, na França ou em outro local? A resposta parece estar em algumas características exclusivas da ciência alemã, que a tornou o solo mais fértil para o crescimento da nova psicologia. A ABORDAGEM CIENTÍFICA ALEMÃ. Durante um século, a história intelectual da Alemanha preparou o caminho para a ciência experimental da psicologia. A fisiologia experimental estava bem estabelecida e era reconhecida por um estágio ainda não atingido pela França e pela Inglaterra. O famoso temperamento alemão adaptava‐se bem ao trabalho preciso de classificação e descrição exigido em biologia e fisiologia. As ciências biológicas e fisiológicas não dão muita margem a generalizações que permitam a dedução dos fatos, por isso, a aceitação da biologia foi lenta nas comunidades científicas inglesa e francesa. Entretanto, a Alemanha, munida de sua fé na descrição e classificação taxonômica, recebeu de braços abertos a biologia como um membro da família das ciências. Mais tarde, os alemães definiram ciência amplamente. A ciência, na França e na Inglaterra, limitava‐se à física e à química, duas áreas passíveis de serem abordadas quantitativamente. A ciência alemã incluía áreas como fonética, linguística, história, arqueologia, estética, lógica e até mesmo crítica literária. Os estudiosos franceses e ingleses eram céticos em relação à aplicação da ciência à complexa mente humana. Os alemães, não, e por isso se adiantaram, usando as ferramentas da ciência para explorar e medir todas as facetas da atividade mental. O MOVIMENTO DE REFORMA NAS UNIVERSIDADES ALEMÃS. No início do século XIX, uma onda de reforma educacional voltada aos princípios da liberdade acadêmica invadiu as universidades da Alemanha. Os professores foram encorajados a ensinar o que desejassem, sem interferência externa, e a escolher os temas das próprias pesquisas. Os alunos tinham liberdade para escolher as matérias que desejassem cursar, sem a imposição de um currículo fixo e obrigatório. Essa liberdade, desconhecida nas universidades da Inglaterra e da França, também se estendeu às novas áreas da pesquisa científica, por exemplo, a psicologia. O estilo universitário alemão criou o ambiente ideal para o surgimento da investigação científica. Os professores escolhiam os próprios temas das aulas, além de contarem com laboratórios bem equipados para orientar os alunos nas pesquisas experimentais. Não houve outro país que promovesse a ciência de forma tão ativa. A Alemanha também proporcionou grandes oportunidades para aprendizagem e prática de novas técnicas científicas; temos aqui um exemplo do impacto das condições econômicas prevalecentes na época (um fator contextual). Havia muitas universidades na Alemanha. Antes de 1870, ano em que fora unificada e dotada de um governo central, a Alemanha era uma confederação dispersa de reinados, ducados e cidades‐‐estado autônomos. Cada um desses distritos era provido de universidades bem financiadas, com um corpo docente bem‐remunerado e equipamentos de laboratório com tecnologia de ponta. Naquela época, a Inglaterra possuía apenas duas universidades, Oxford e Cambridge, e em nenhuma delas havia incentivo, auxílio nem financiamento para pesquisas científicas de qualquer disciplina. Além disso, a política acadêmica era contrária à implementação de novas áreas de estudo no currículo. Em 1877, a Cambridge vetou o pedido de inserção de aulas de psicologia experimental, porque poderia “ser um insulto à religião colocar a alma humana em uma balança de medição” (Hearnshaw, 1987, p. 125). A psicologia experimental ficou fora do currículo da Cambridge por 20 anos e foi ministrada somente em 1936, na Oxford. A única forma de praticar ciência na Inglaterra era à maneira de um nobre cientista, vivendo com independência econômica, como fizeram Charles Darwin e Francis Galton (Capítulo 6). A situação na França era semelhante. Nos Estados Unidos, a primeira universidade dedicada à pesquisa surgiu apenas em 1876, com a fundação da Johns Hopkins University, em Baltimore, Maryland. Essa nova universidade baseava‐se fortemente no modelo alemão. Seu objetivo principal era fazer dapesquisa científica o centro e o foco no treinamento dos alunos de pós‐graduação. Na realidade, Baltimore, em si, foi considerada “um pedacinho da Alemanha que havia se restabelecido no lado leste da região costeira”. De acordo com o psicólogo e filósofo John Dewey (ver Capítulo 7), “os alunos e professores se reuniam [na sala do clube da Hopkins] para beber cerveja alemã e cantar canções alemãs” (apud Martin, 2002, p. 56). A fundação de Hopkins foi chamada “o início da grande transformação no ensino superior americano”, e serviu de modelo para outras universidades nos Estados Unidos que estavam surgindo no começo do século XX (Cole, 2009, p.20). Antes daquela época, no entanto, havia mais oportunidades para pesquisas científicas na Alemanha do que em outros países. Praticamente, pode‐se afirmar que era possível ganhar a vida como pesquisador científico na Alemanha, mas não na França, na Inglaterra ou nos Estados Unidos. Assim, as chances de alguém se tornar um professor respeitado e bem‐remunerado eram maiores na Alemanha do que em qualquer parte do mundo, embora não fosse fácil alcançar as posições mais elevadas. O promissor cientista universitário era obrigado a produzir uma pesquisa que fosse considerada pelos colegas uma grande contribuição para que o trabalho fosse visto como algo mais que apenas uma tese de doutorado. Consequentemente, a maioria das pessoas selecionadas para as carreiras universitárias era do mais alto calibre. Somente o melhor obtinha êxito na ciência alemã do século XIX, e o resultado foi uma série de feitos alcançados em todas as ciências, até na nova psicologia. Portanto, o fato de terem sido os professores universitários alemães as pessoas diretamente responsáveis pelo crescimento da psicologia científica não é simples coincidência. HERMANN VON HELMHOLTZ (1821‐1894) Um dos maiores cientistas do século XIX, Hermann von Helmholtz (Figura 3.2) foi um pesquisador produtivo na física, medicina e na fisiologia. A psicologia vinha em terceiro lugar nas suas áreas de contribuição científica, embora seu trabalho, com o de Fechner e o de Wundt, fosse fundamental para o início da nova psicologia (Stock, 2013). Ele dava ênfase ao tratamento mecanicista e determinista, partindo do princípio de que os órgãos sensoriais humanos funcionavam como máquinas. Apreciava também as analogias técnicas e mecânicas, como comparar a transmissão dos impulsos nervosos com a operação do telégrafo (veja Ash, 1995). A BIOGRAFIA DE HELMHOLTZ Nasceu em Potsdam, na Alemanha, onde seu pai era professor do Gymnasium (no sistema educacional europeus, curso de nível médio preparatório para a universidade). Helmholtz recebia aulas particulares em casa, por causa da fragilidade da sua saúde. Aos 17 anos, matriculou‐se no instituto médico de Berlim, que isentava das mensalidades os alunos que se comprometessem a servir como cirurgiões do exército após a graduação. Helmholtz serviu durante sete anos, período em que prosseguiu com os estudos de matemática e física e que publicou diversos artigos. Em um trabalho cujo tema era a indestrutibilidade da energia, utilizou‐se de fórmulas matemáticas para criar a lei da conservação da energia. Depois de deixar o exército, Helmholtz cumpriu compromissos acadêmicos na área de fisiologia nas universidades de Königsburg, Bonn e Heidelberg, e na de física, em Berlim. Extremamente entusiasta, Helmholtz dedicou‐se a diversas áreas acadêmicas. Ao realizar uma pesquisa de fisiologia óptica, inventou o oftalmoscópio, utilizado até hoje para examinar a retina. Esse instrumento revolucionário possibilitou a realização de diagnósticos e tratamentos de doenças da retina. Como consequência, seu nome “espalhou‐se rapidamente por todo o público e universo acadêmico. Em um piscar de olhos, progrediu na carreira e tornou‐se reconhecido mundialmente”, tudo isso aos 30 anos (Cahan, 1993, p. 574). Seu trabalho em três volumes sobre a óptica fisiológica, Manual de óptica fisiológica [Handbook of physiological optics], 1856 ‐1866, exerceu uma influência tão intensa e duradoura, que foi traduzido para o inglês 60 anos depois. Em On the sensations oftone [Sobre a sensação do tom], 1863, publicou uma pesquisa a respeito dos problemas acústicos, resumindo as próprias descobertas e juntando o restante da literatura disponível. Também escreveu trabalhos referentes a vários assuntos, como a imagem persistente, o daltonismo, a escala musical árabe‐persa, o movimento dos olhos humanos, a formação das geleiras, os axiomas geométricos e a febre do feno. Anos mais tarde, contribuiu indiretamente para a invenção do telégrafo sem fio e do rádio. No outono de 1893, voltando de uma viagem aos Estados Unidos que incluiu uma visita à feira mundial de Chicago, Helmholtz sofreu uma queda a bordo do navio. Menos de um ano depois, sofreu um ataque que o deixou semiconsciente e em estado de delírio. Sua esposa relatou: “Seu pensamento oscilava confusamente entre a vida real e o sonho, o tempo e o lugar, tudo misturado em sua mente. [...] Era como se sua alma estivesse distante, bem longe, em um mundo ideal muito bonito, embalado apenas pela ciência e pelas leis eternas” (apud Koenigsberger, 1965, p. 429). CONTRIBUIÇÕES DE HELMHOLTZ PARA A NOVA PSICOLOGIA As pesquisas de Helmholtz de interesse para a psicologia são aqueles referentes à velocidade do impulso neural e sobre a visão e a audição. Os cientistas aceitaram a teoria de que o impulso nervoso era instantâneo, ou, pelo menos, que viajava rápido demais para ser medido. Helmholtz forneceu a primeira medição empírica da velocidade de condução, estimulando um nervo motor e o músculo anexo da perna de um sapo. Ele preparou a demonstração de forma que registrasse o momento exato do estímulo e do movimento resultante. Trabalhando com nervos de diversos comprimentos, observou o tempo entre a aplicação do estímulo no nervo próximo ao músculo e a reação muscular, e fez o mesmo estimulando um nervo mais distante. As medições resultaram no tempo necessário para a rápida condução do impulso neural: aproximadamente 27 metros por segundo. A demonstração de Helmholtz de que a velocidade de condução não era instantânea levantou a hipótese de que o pensamento e o movimento seguem um ao outro em intervalo mensurável e não ocorrem simultaneamente, como se pensava. Os estudos sobre a visão provocaram impacto na nova psicologia. Helmholtz pesquisou os músculos externos do olho e o mecanismo por meio do qual os músculos internos focalizam o cristalino. Ele estudou e aprofundou a teoria da visão cromática publicada em 1802 por Thomas Young. Esse trabalho ficou conhecido como a teoria de Young‐Helmholtz. Não menos importante é a pesquisa de Helmholtz sobre a audição, mais especificamente a percepção dos tons, a natureza da harmonia e desarmonia e o problema da ressonância. A influência permanente de suas ideias e experiências é evidente pelo fato de ainda serem mencionadas nos livros didáticos de psicologia moderna. Ele também se concentrou nos benefícios práticos ou aplicados da pesquisa científica. Helmholtz não concordava com a ideia da condução de experiências apenas para o acúmulo de informações. Para ele, a missão do cientista era coletar a informação e estender ou aplicar aquela enorme quantidade de conhecimento aos problemas práticos. Veremos, adiante, mais avanços dessa abordagem na escola de psicologia funcionalista que fincou raízes nos Estados Unidos (Capítulos 7 e 8). Helmholtz não era psicólogo, nem a psicologia foi o seu principal interesse; no entanto, sua contribuição tornou‐se uma vasta e importante fonte de referência para o estudo dos sentidos humanos, além de haver fortalecido a abordagem experimental para a análise das questões psicológicas. ERNST WEBER (1795‐1878) Ernst Weber obteve o doutorado na University of Leipzig, em 1815, onde lecionou anatomiae fisiologia até se aposentar, em 1871. Sua principal área de interesse em pesquisa, e da qual foram extraídas suas maiores contribuições, era a fisiologia dos órgãos dos sentidos. Assim, aplicou os métodos experimentais da fisiologia aos problemas de natureza psicológica. As pesquisas anteriores com os órgãos dos sentidos foram realizadas quase exclusivamente sobre os sentidos superiores da visão e da audição. Weber explorou novos campos, mais especificamente as sensações cutâneas e as musculares. O LIMIAR DE DOIS PONTOS Uma contribuição muito importante para a nova psicologia refere‐se à determinação experimental exata da distinção entre dois pontos da pele, ou seja, a distância entre dois pontos antes de o indivíduo experimentar duas sensações distintas. Encostando nas pessoas um aparelho semelhante a um compasso, sem que elas vissem, Weber pedia que descrevessem se sentiam um ou dois pontos tocando a pele. Quando os dois pontos de estímulo estavam praticamente juntos, as pessoas afirmavam sentir apenas um. À medida que a distância entre as duas origens do estímulo aumentava, as pessoas mostravam‐se hesitantes quanto à experiência de sentir um ou dois pontos na pele. Finalmente, atingia a distância em que os indivíduos relatavam sentir dois pontos distintos tocando a pele. Esse procedimento demonstra o limiar de dois pontos (Limiar de dois pontos: o limiar em que é possível distinguir dois pontos de estímulo), o ponto em que é possível distinguir duas origens separadas de estímulo. A pesquisa de Weber marca a primeira demonstração sistemática experimental do conceito de limiar (o ponto em que começa a se produzir o efeito psicológico), noção amplamente usada na psicologia desde o seu início até os dias atuais (no Capítulo 13, discutiremos o conceito do limiar aplicado à consciência, no ponto em que as ideias inconscientes da mente tornam‐se conscientes). AS DIFERENÇAS MÍNIMAS PERCEPTÍVEIS A pesquisa de Weber resultou na formulação da primeira lei quantitativa da psicologia. Ele desejava determinar a diferença mínima perceptível (dmp), ou seja, a menor diferença detectável entre dois pesos. Pediu aos participantes da pesquisa para levantarem dois pesos, um padrão e um de comparação, e relatarem se algum deles pensava ser um mais pesado que o outro. As diferenças menores entre os pesos resultaram no julgamento de igualdade, e as maiores, na avaliação de disparidade. Conforme prosseguia com o programa de pesquisa, Weber descobriu que a diferença mínima perceptível entre dois pesos consistia em uma proporção constante, 1:40, do peso padrão. Em outras palavras, um peso de 41 gramas possuía uma “diferença mínima perceptível” do peso padrão de 40 gramas, e um peso de 82 gramas, uma diferença mínima perceptível de 80 gramas. Weber, então, desejava saber como as sensações musculares contribuíam para a capacidade de o indivíduo distinguir entre dois pesos. Ele pensava que as pessoas seriam capazes de fazer essa diferenciação com maior precisão se elas mesmas levantassem o peso (recebendo nas mãos e nos braços as sensações musculares), e não com o peso sendo colocado em suas mãos pelo pesquisador. Na verdade, o levantamento dos pesos envolve a sensação tátil (toque) e a muscular, ao passo que se os pesos forem colocados nas palmas das mãos, apenas a sensação tátil estará envolvida. As pessoas conseguiam sentir diferenças menores entre os pesos quando os levantavam (uma proporção de 1:40) do que quando eles eram colocados em suas mãos (uma proporção de 1:30). Assim, Weber chegou à conclusão de que as sensações musculares internas do primeiro exemplo exercem influência sobre a capacidade distintiva do indivíduo. A partir dessas experiências, Weber sugeriu que a distinção entre as sensações não depende da diferença absoluta entre dois pesos, mas da diferença relativa ou da proporcionalidade. Nas experiências com as diferenças visuais, descobriu que a proporção era menor que nas sensações musculares. Assim, propôs uma razão constante para a diferença mínima perceptível entre dois estímulos, consistente para cada sentido humano. A pesquisa de Weber demonstrou que não há correspondência direta entre um estímulo físico e a nossa percepção desse estímulo. Entretanto, assim como Helmholtz, Weber estava interessado apenas nos processos fisiológicos e não dava importância ao significado do seu trabalho para a psicologia. Sua pesquisa proporcionou a criação de um método de investigação da relação entre o corpo e a mente – entre o estímulo e a sensação resultante. Esse foi um feito muito significativo e que passou a exigir uma atitude mais séria em relação à sua importância. As experiências de Weber estimularam outras pesquisas e concentraram a atenção dos fisiologistas posteriores na utilidade do método experimental no estudo do fenômeno psicológico. O trabalho de Weber sobre os limiares e a medição da sensação foi da maior importância para a nova psicologia e influenciou virtualmente cada aspecto da psicologia até os dias atuais. GUSTAV THEODOR FECHNER (1801‐1887) Gustav Theodor Fechner foi um estudioso que obteve diversas conquistas intelectuais ao longo de uma vida extremamente ativa. Foi fisiologista, físico, psicofísico, filósofo e ficou inválido por muitos anos. Entre todas essas atividades, o trabalho com a psicofísica foi o que lhe trouxe maior fama, embora não desejasse ser tão lembrado pela posteridade. A BIOGRAFIA DE FECHNER Fechner começou a estudar medicina em 1817, na University of Leipzig, e, nesse período, assistiu às aulas de Weber sobre fisiologia. Fechner passou o resto da vida em Leipzig. Mesmo antes de se formar em medicina, sua visão humanista era contrária ao mecanicismo dominante no estudo científico. Com o pseudônimo de “dr. Mises”, escreveu sátiras ridicularizando a medicina e a ciência. Esse conflito entre os dois lados da sua personalidade perdurou por toda a vida: o interesse na ciência e na metafísica. Visivelmente incomodado com a abordagem da corrente atomística da ciência, criou um conceito ao qual chamou “visão diurna”, em que o universo era analisado do ponto de vista da consciência. Essa definição opunha‐se à ideia predominante da “visão noturna”, em que o universo, até a consciência, consistia em nada além de matéria inerte. Depois de concluir o curso de medicina, Fechner iniciou a carreira na física e na matemática, em Leipzig, além de traduzir manuais de física e química do francês para o alemão, o que lhe rendeu o reconhecimento como físico. No fim da década de 1830, interessou‐se pelo problema da sensação e, durante uma pesquisa com imagens persistentes, feriu gravemente os olhos ao olhar diretamente para o sol através de lentes coloridas. Em 1833, Fechner obteve uma prestigiosa nomeação para lecionar em Leipzig, quando caiu em profunda depressão, que se prolongou por vários anos. Queixava‐se de cansaço e tinha dificuldade para dormir. Tinha uma digestão difícil e não sentia fome mesmo quando seu corpo estava à beira da inanição. Sua sensibilidade à luz era extrema, e passava a maior parte do tempo em um quarto escuro com as paredes pintadas de preto, ouvindo a leitura que sua mãe fazia através de uma abertura estreita da porta. Na esperança de amenizar o tédio e a melancolia, tentava fazer longas caminhadas, inicialmente apenas à noite ou quando já houvesse escurecido e, mais tarde, durante o dia, com os olhos cobertos com bandagens. Em uma espécie de catarse, escrevia poemas e criava adivinhações. Apelou para várias terapias alternativas, entre as quais o uso de laxantes, choques elétricos, tratamentos com vapor e a aplicação de substâncias escaldantes sobre a pele; mas nenhuma delas lhe trouxe a cura. A doença de Fechner pode ter sido de natureza neurótica. Essa ideia surgiu dada a forma bizarra de sua recuperação. Uma amiga contou‐lhe um sonho em que elalhe preparava uma refeição com presunto cru temperado e marinado em vinho do Reno e suco de limão. No dia seguinte, arrumou o prato e o serviu a Fechner. Ele experimentou, embora relutante, mas a cada dia comia mais presunto, afirmando que, de alguma forma, se sentia melhor. A melhora do seu estado não durou muito e, depois de seis meses, os sintomas pioraram, chegando a ponto de ele temer pela sua sanidade. Fechner declarou: “Tinha a sensação clara de ter perdido para sempre a minha mente, a menos que eu conseguisse refrear o fluxo de pensamentos perturbadores. Muitas vezes, as mínimas preocupações me incomodaram a ponto de levar horas e até dias para me ver livre delas” (Kuntze, 1892, apud Balance e Bringmann, 1987, p. 42). Fechner obrigou‐se a cumprir um regime de tarefas rotineiras, uma espécie de terapia ocupacional, mas limitado a atividades em que não fizessem uso dos olhos nem da mente. “Eu produzia fios e bandagens, fazia velas de cera [...] enrolava fios e ajudava na cozinha, separando [e] lavando lentilhas, fazendo farelos de pão e triturando o pão‐doce até deixar apenas o açúcar. Também descascava e cortava cenouras e nabos [...] e milhares de vezes desejei a morte” (Fechner in Kuntze, 1892, apud Balance e Bringmann, 1987, p. 43). Aos poucos renascia o seu interesse pelo mundo ao redor, e ainda mantinha a dieta do presunto cru marinado no vinho (VOU FAZER ESSA DIETA). Teve um sonho em que aparecia o número 77, levando‐o a crer que em 77 dias estaria curado. E, obviamente, ficou curado. A depressão transformou‐se em euforia e em delírios de grandeza, e ele afirmava ser o escolhido de Deus para resolver todos os mistérios do mundo. Essa experiência serviu‐lhe de inspiração para a definição do princípio do prazer, que, vários anos mais tarde, influenciou o trabalho de Sigmund Freud (Capítulo 13). Embora 40 anos antes a University of Leipzig o tivesse considerado inválido e concedido a ele uma aposentadoria vitalícia, Fechner viveu até os 86 anos na mais perfeita saúde, contribuindo significativamente para a ciência. A RELAÇÃO QUANTITATIVA ENTRE MENTE E CORPO Esta é uma data importante para a história da psicologia: 22 de outubro de 1850. Naquela manhã, Fechner estava deitado na cama, quando lhe ocorreu a ideia sobre a ligação entre a mente e o corpo. Ele afirmou ser possível encontrar essa ligação na relação quantitativa entre a sensação mental e o estímulo material. Pela primeira vez na história, uma experiência genuinamente mental (uma sensação) poderia ser medida. Esse foi um grande avanço no desenvolvimento de uma nova ciência da psicologia. Fechner alegava que o aumento na intensidade do estímulo não produzia um incremento com a mesma proporção na intensidade da sensação. Ao contrário, a progressão geométrica caracteriza o estímulo, enquanto a progressão aritmética a sensação. Por exemplo, o acréscimo do som de um sino ao de outro que já esteja tocando produz um aumento maior da sensação sonora do que a adição de um sino a dez outros que já estejam tocando. Portanto, os efeitos da intensidade do estímulo não são absolutos, mas proporcionais à intensidade da sensação já existente. Essa revelação simples, porém, brilhante, significa que a dimensão da sensação (a qualidade mental) depende da quantidade de estímulos (a qualidade física). Para medir a mudança na sensação, é necessário medir a alteração no estímulo. Portanto, é possível formular uma relação quantitativa ou numérica entre o corpo e a mente. Fechner tinha cruzado a fronteira entre corpo e mente, relacionando um ao outro empiricamente, tornando possível, pela primeira vez, a condução de experimentos sobre a mente. Embora o conceito estivesse bem claro para Fechner, como prosseguir com a teoria? O pesquisador deve medir com precisão tanto o que é subjetivo como o que é objetivo – tanto a sensação mental quanto o estímulo físico. Não é difícil medir a intensidade física do estímulo, como a intensidade do brilho da luz ou o peso de um objeto padrão; no entanto, como medir a sensação, as experiências conscientes descritas pelas pessoas quando reagem ao estímulo? Fechner apresentou duas propostas para medir as sensações. Primeiro, determinar se o estímulo está presente ou ausente, se foi sentido ou não. Segundo, medir a intensidade do estímulo na qual as pessoas relatam a primeira sensação, ou seja, o limiar absoluto da sensibilidade, que é o ponto de intensidade abaixo do qual a sensação não é percebida e acima do qual é sentida. Embora a ideia do limiar absoluto seja útil, ela é limitada, já que apenas embora a ideia do limiar absoluto seja útil, ela é limitada, já que apenas o valor do menor nível da sensação pode ser determinado. Para relacionar as duas intensidades é necessário especificar toda a faixa de valores do estímulo e os valores de sensação resultantes. Para isso, Fechner apresentou o conceito de limiar diferencial da sensibilidade, que é a quantidade mínima de alteração no estímulo que provoca uma mudança na sensação. Por exemplo, quanto um peso deve aumentar ou diminuir antes que a pessoa perceba a mudança, antes que ela relate uma diferença mínima perceptível na sensação? Para medir a noção de peso de determinada pessoa (qual a sensação que o peso provoca na pessoa), não podemos usar a medição física do peso do objeto. Entretanto, podemos usá‐la como base para a medição da intensidade psicológica da sensação. Primeiro, medimos em que proporção a intensidade deve ser reduzida para que a pessoa perceba a diferença. Segundo, mudamos o peso do objeto para o seu valor mínimo e medimos novamente o tamanho do diferencial. Como as duas mudanças de peso são apenas levemente perceptíveis, Fechner concluiu que eram subjetivamente iguais. Esse processo pode ser repetido até que o objeto seja levemente sentido pelo indivíduo. Se cada redução de peso for subjetivamente igual a qualquer outra, então a quantidade de vezes que o peso deve ser reduzido – o número de diferenças mínimas perceptíveis – pode ser considerada a medição objetiva da magnitude subjetiva da sensação. Desse modo, estamos medindo os valores dos estímulos necessários para criar a diferença entre duas sensações. Fechner sugeriu que, para cada sentido humano, existe determinado aumento relativo na intensidade do estímulo que sempre produz uma mudança observável na intensidade da sensação. Portanto, é possível medir a sensação (a mente ou a qualidade mental) e o estímulo (o corpo ou a qualidade material). A relação entre os dois pode ser expressa na forma de uma equação: S = K log R, em que S é a magnitude da sensação, K é uma constante e R é a magnitude do estímulo. A relação é logarítmica, isto é, uma série aumenta em progressão aritmética e a outra em progressão geométrica. Nos últimos trabalhos que escreveu, Fechner comentou que essa ideia para a descrição da relação mente‐‐corpo não ocorrera por ter lido o trabalho de Weber, embora tivesse assistido às suas aulas na University of Leipzig e Weber tivesse publicado sobre o tema alguns anos antes. Fechner continuou afirmando que desconhecia o trabalho de Weber até começar as experiências para testar a sua hipótese, e que somente algum tempo depois percebera que o princípio ao qual aplicara a fórmula matemática era basicamente o trabalho demonstrado por Weber. OS MÉTODOS DA PSICOFÍSICA O resultado imediato da visão de Fechner foi sua pesquisa a respeito da psicofísica (a palavra, em si, expressa a sua definição: a relação entre o mundo mental [psico] e o material [físico]). Ao longo desse trabalho, que incluía experiências com o levantamento de pesos, a percepção visual do brilho, a noção de distância visual e de distância tátil, Fechner desenvolveu um método e sistematizou outros dois dos três principais utilizados na pesquisa psicofísica atual. [Psicofísica: o estudo científico das relações entre os processosmental e físico.] O método do erro médio, ou o método do ajuste, consiste em o indivíduo ajustar o estímulo variável até sentir que ele é igual a um estímulo padrão constante. Realizadas várias tentativas, o valor médio das diferenças entre o estímulo padrão e o ajuste feito pelo indivíduo para o estímulo variável representa o erro de observação. Essa técnica serve tanto para a medição do tempo de resposta como para a distinção visual e auditiva. Em um sentido mais amplo, é o princípio básico de muitas das pesquisas psicológicas, já que qualquer cálculo de média envolve essencialmente o método do erro médio. O método do estímulo constante envolve dois estímulos constantes, e tem como objetivo medir a diferença de estímulo necessária para produzir uma proporção específica de julgamentos corretos. Por exemplo, primeiro a pessoa levanta um peso padrão de 100 gramas e, em seguida, um peso comparativo de, digamos, 88, 92, 96, 104 ou 108 gramas. O indivíduo deverá dizer se o segundo peso é maior, menor ou igual ao primeiro. No método dos limites, dois estímulos (por exemplo, dois pesos) são apresentados à pessoa. Um estímulo é aumentado ou reduzido até que ela relate ter notado a diferença. Os dados são obtidos por meio de várias tentativas e somente as diferenças mínimas perceptíveis são consideradas para calcular a média e determinar o limiar diferencial. O programa de pesquisa psicofísica de Fechner durou sete anos. Ele publicou dois trabalhos resumidos, em 1858 e 1859, e, em 1860, apresentou o trabalho completo em Elementos de psicofísica [Elements of psychophy‐sics], um livro didático a respeito da ciência exata das “relações funcionalmente dependentes [...] do material e do mental, dos universos físico e psicológico” (Fechner, 1860/1966, p. 7). Essa obra é uma das primeiras contribuições de destaque para o desenvolvimento da psicologia científica. A afirmação de Fechner a respeito da relação quantitativa entre a intensidade do estímulo e a sensação foi considerada, naquela época, de importância comparável à descoberta da lei da gravidade. Em 2010, para celebrar o 150o aniversário da publicação de Elements, um historiador escreveu: “É quase consenso entre os historiadores da psicologia que essa obra em dois volumes foi a primeira grande publicação a demonstrar que os fenômenos psicológicos poderiam ser estudados de forma experimental e quantitativa” (Robinson, 2010, p. 409). Também é importante notar que Fechner introduziu a noção de inconsciente na psicologia, a ideia de estímulo abaixo do limiar de consciência. O conceito era praticamente desconhecido na época, e Fechner não o incluiu em seu trabalho, mas ele veio a se tornar parte importante da nova disciplina da psicologia (Romand, 2012). O material que se segue foi extraído da obra Elementos de psicofísica, em que Fechner debate a questão da diferença entre a matéria e a mente, entre o estímulo e a sensação resultante. Na parte reimpressa neste livro, Fechner também faz a distinção entre o que chamou de psicofísicas “interna” e “externa”. A psicofísica interna refere‐se à relação entre a sensação e a consequente reação cerebral e nervosa. Na época de Fechner, não foi possível medir com precisão esses processos psicológicos. Desse modo, ele optou por lidar com a psicofísica externa, ou seja, a relação entre o estímulo e a intensidade subjetiva da sensação, medida por meio dos seus métodos psicofísicos. Texto original Trecho sobre a psicofísica, extraído de Elements of Psychophysics (1860), de Gustav Fechner A psicofísica deve ser entendida neste texto como a teoria exata das relações funcionalmente dependentes do corpo e da alma ou, mais genericamente, do material e do mental, dos universos físico e psicológico. Consideramos mental, psicológico ou pertencente à alma tudo o que possa ser captado pela observação introspectiva ou que, desse modo, sirva de base para abstração; enquanto é considerado corporal, corpóreo, físico e material tudo o que possa ser observado de fora ou que, assim, sirva de base para abstração. Essas designações referem‐se exclusivamente aos aspectos do mundo aparente, com cujas relações os psicofísicos deverão ocupar‐se, visto ser senso comum o uso de observações interna e externa para referir‐se às atividades por meio dos quais a existência em si torna‐se aparente. De qualquer modo, todas as discussões e as investigações da psicofísica estão relacionadas somente com o fenômeno aparente do universo material e mental para um mundo que se apresenta diretamente por meio da introspecção ou pela observação externa, ou, ainda, a partir do que pode ser deduzido da aparência ou percebido como uma relação fenomenológica, uma categoria, uma associação, uma dedução ou uma lei. Em resumo, os psicofísicos referem‐se ao físico no sentido da física e da química e ao psíquico no sentido da psicologia experimental, sem se referirem de algum modo à natureza do corpo ou da alma em seu sentido além do fenomenal metafísico. Em geral, chamamos psíquica uma função dependente da função física, e vice‐versa, por causa da existência entre elas de uma relação constante ou regida por leis e na qual, a partir da presença e das alterações de uma é possível deduzir o comportamento de outra. A existência da relação funcional entre corpo e mente geralmente não é negada; todavia, existe uma discussão ainda não resolvida a respeito das razões desse fato, da sua interpretação e da sua abrangência. Sem se referir aos pontos metafísicos desse argumento (aspectos relacionados mais com a essência do que com a aparência), os psicofísicos conseguem determinar a verdadeira relação funcional entre os modos de aparência do corpo e da mente com a maior precisão possível. Quais objetos pertencentes ao mesmo grupo nos aspectos quantitativo e qualitativo, estando distantes ou próximos, no mundo material e no mental? Quais leis regem suas mudanças na mesma direção ou em sentidos opostos? Essas são perguntas que os psicofísicos em geral formulam e tentam respondê‐las com a maior exatidão. Em outras palavras, mas ainda seguindo o mesmo raciocínio: que objetos pertencem aos mesmos modos internos e externos da aparência das coisas e quais são as leis relacionadas às respectivas mudanças? Pela existência da relação funcional, unindo mente e corpo, na verdade não há nada que nos possa impedir de olhar para essa relação e buscá‐la em uma e não em outra direção. Alguém pode ilustrar essa relação adequadamente, usando uma função matemática, uma equação entre as variáveis x e y, em que cada variável possa ser vista como função da outra e cada uma sendo dependente das mudanças da outra. Entretanto, há uma razão pela qual os psicofísicos preferem a abordagem pela dependência da mente em relação ao corpo, em vez do contrário: é porque o físico está imediatamente disponível para medição, enquanto a medição do psíquico é possível somente ao considerá‐lo dependente do físico. [...] Pela sua natureza, a psicofísica pode ser dividida em uma parte externa e uma interna, dependendo do foco da análise, se baseada na relação do físico com os aspectos externos do corpo ou se nas funções internas, com as quais o psíquico está intimamente relacionado. [...]. A verdadeira prova básica empírica para toda a psicofísica pode ser vista somente na esfera da psicofísica externa, visto ser esta a única parte disponível para uma experiência imediata. Portanto, nosso ponto de partida deve ser obtido da psicofísica externa. No entanto, sem a referência constante à psicofísica interna pode não haver o desenvolvimento da psicofísica externa, visto estar o universo externo do corpo funcionalmente relacionado com a mente apenas pela mediação do mundo interno do corpo. [...] A psicofísica, que já está relacionada com a psicologia e a física pelo nome, deve, por um lado, basear‐se na psicologiae, por outro, proporcionar à psicologia a fundamentação matemática. A psicofísica externa toma emprestado da física o auxílio e a metodologia; a psicofísica interna inclina‐se mais para a fisiologia e a anatomia, especialmente no que diz respeito ao sistema nervoso, com o qual se pressupõe alguma relação. [...] A sensação depende do estímulo, e uma sensação mais forte depende de estímulos mais fortes; no entanto, o estímulo provoca a sensação somente mediante a ação intermediária de alguns processos internos do corpo. Na medida em que sejam encontradas relações regidas por lei entre a sensação e o estímulo, estas devem incluir as relações entre o estímulo e essa atividade física interna, que obedecem às mesmas leis gerais da interação dos processos corporais e, assim, fornecer‐nos a base para as conclusões gerais sobre a natureza dessa atividade interna. [...] De algum modo, à parte das implicações resultantes da psicofísica interna, essas relações regidas por lei, que podem ser examinadas na área da psicofísica externa, são dotadas de importância própria. Com base nelas, como veremos, a medição física produz uma medição psíquica, a partir da qual podemos levantar argumentos interessantes e importantes. No início do século XIX, o filósofo alemão Immanuel Kant insistia em afirmar que a psicologia nunca poderia ser considerada ciência, porque era impossível medir – ou realizar experiências – com os processos psicológicos (Sturm, 2006). Em virtude do trabalho de Fechner, que, ao contrário, tornou possível a medição do fenômeno mental, a alegação de Kant deixou de ser levada a sério. E foi principalmente com base na pesquisa psicofísica de Fechner que Wilhelm Wundt concebeu sua teoria da psicologia experimental. Os métodos usados por Fechner mostraram‐se aplicáveis a uma ampla variedade de problemas psicológicos nunca imaginados. E o mais importante de tudo: Fechner deu à psicologia aquilo que toda disciplina deve possuir para ser chamada ciência: técnicas de medição coerentes e precisas. A FUNDAÇÃO OFICIAL DA PSICOLOGIA Em meados do século XIX, os métodos das ciências naturais estavam sendo empregados para pesquisar fenômenos puramente mentais. Técnicas foram desenvolvidas, aparelhagens foram criadas, livros importantes foram escritos, e o interesse crescente se espalhava. Astrônomos e filósofos empiristas britânicos enfatizavam a importância dos sentidos, e cientistas alemães descreviam seu funcionamento e como poderiam ser medidos. O espírito intelectual positivista da época, o Zeitgeist, incentivava a convergência dessas duas linhas de pensamento. No entanto, ainda faltava alguém que pudesse uni‐las e “fundar” a nova ciência. Wilhelm Wundt foi quem deu esse toque final. ////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////// QUESTÕES PARA DISCUSSÃO 1. Qual foi o papel de David Kinnebrook no desenvolvimento da nova psicologia? 2. O que era a “equação pessoal” e o que ela significava para a nova psicologia? 3. Qual a importância do trabalho de Bessel para a nova psicologia? Como esse trabalho se relacionava aos de Locke, Berkeley e de outros filósofos empiristas? 4. Será que, naquela época, a psicologia experimental teria se desenvolvido sem o trabalho de Fechner? E sem o trabalho de Weber? Por quê? 5. Discuta os métodos desenvolvidos para o mapeamento das funções cerebrais. 6. Descreva o método da cranioscopia de Gall e o movimento popular que se originou a partir dele. O que o levou ao descrédito? 7. Qual era o objetivo principal da Sociedade de Física de Berlim? 8. Explique como o desenvolvimento da fisiologia se uniu ao empirismo britânico para formar a nova psicologia. 9. Por que a psicologia experimental surgiu na Alemanha e não em outro lugar? 10. Qual é a importância da pesquisa de Helmholtz a respeito da velocidade do impulso neural? 11. Descreva a pesquisa de Weber referente ao limiar de dois pontos e às diferenças mínimas perceptíveis. Qual é a importância dessas duas ideias para a psicologia? 12. O que ocorreu a Fechner no dia 22 de de outubro de 1850? Como ele media as sensações? 13. Qual é a relação entre intensidade do estímulo e a intensidade da sensação representada na equação S = K log R? 14. Quais os métodos psicofísicos utilizados por Fechner? Qual foi o impacto da psicofísica no desenvolvimento da psicologia? 15. Qual é a diferença entre a psicofísica interna e a psicofísica externa? Em qual delas Fechner teve de se concentrar? Por quê?
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