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UNIDADE 2 TEORIA DO CONFLITO, FORMAS E MÉTODOS DE TRATAMENTO DOS CONFLITOS Alessandra Balestieri, Taís Schilling Ferraz, Roberto Portugal Bacellar e Guilherme Ribeiro Baldan Com inclusão de textos dos Manuais de Mediação Judicial e do Manual de Mediação e Conciliação da Justiça Federal, editados pelo Conselho Nacional de Justiça Curso de Formação de Conciliadores e Mediadores Judiciais UNIDADE 2 TEORIA DO CONFLITO, FORMAS E MÉTODOS DE TRATAMENTO DOS CONFLITOS Curso de Formação de Conciliadores e Mediadores Judiciais CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA Presidente Ministro José Antonio Dias Toffoli Corregedor Nacional de Justiça Ministro Humberto Eustáquio Soares Martins Conselheiros Ministro Emmanoel Pereira Rubens de Mendonça Canuto Neto Valtércio Ronaldo de Oliveira Candice Lavocat Galvão Francisco Luciano de Azevedo Frota Maria Cristiana Simões Amorim Ziouva Ivana Farina Navarrete Pena Marcos Vinícius Rodrigues André Luiz Guimarães Godinho Maria Tereza Uille Gomes Henrique de Almeida Ávila Secretário-Geral Carlos Vieira von Adamek Diretor- Geral Johaness Eck Secretário Especial de Programas, Pesquisas e Gestão Estratégica Richard Pae Kim SECRETARIA DE COMUNICAÇÃO SOCIAL Secretário de Comunicação Social Rodrigo Farhat Projeto gráfico Eron Castro Revisão Carmem Menezes 2019 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA SUMÁRIO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM 5 APRESENTAÇÃO 6 1 . TEORIA DO CONFLITO 7 1.1 O CONFLITO 7 1.2 A NORMALIZAÇÃO DO CONFLITO 7 1. 3 ESPIRAIS DE CONFLITO 12 1. 4 DIFERENÇA ENTRE INTERESSE E POSIÇÃO 13 1. 5 COMPETIÇÃO E COLABORAÇÃO 14 1. 6 MAPEAMENTO DO CONFLITO 15 2 . FORMAS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS 17 2.1 AUTOTUTELA, AUTOCOMPOSIÇÃO E HETEROCOMPOSIÇÃO 17 2 2 JURISDIÇÃO 18 2.3 ARBITRAGEM 18 2.4 NEGOCIAÇÃO 19 2.5 CONCILIAÇÃO 20 2 6 MEDIAÇÃO 21 2.7 JUSTIÇA RESTAURATIVA E PRÁTICAS RESTAURATIVAS 23 2.8 PROCESSOS HÍBRIDOS 24 3 . AS PRINCIPAIS ESCOLAS DE MEDIAÇÃO 25 3.1 ESCOLA DE HARVARD E A MEDIAÇÃO LINEAR, TRADICIONAL OU CLÁSSICA 25 3.2 MODELO DE SARA COBB E A MEDIAÇÃO CIRCULARNARRATIVA 26 CONSIDERAÇÕES FINAIS 28 REFERÊNCIAS 29 TEORIA DO CONFLITO, FORMAS E MÉTODOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS 5 TEORIA DO CONFLITO, FORMAS E MÉTODOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Tratar o conflito em seus vários aspectos e formas, identificando suas dimensões positivas como elementos constitutivos das relações humanas. > Distinguir interesse de posição, percebendo que nem sempre o pedido formulado pela parte reflete a sua real necessidade. > Distinguir as principais formas de solução de conflitos, em especial, a mediação e a conciliação. > Identificar as diferentes Escolas de Mediação e seus elementos distintivos. UNIDADE 2 CURSO DE MEDIAÇÃO JUDICIAL 6 APRESENTAÇÃO Nesta segunda apostila do nosso curso, dedicaremos os estudos à Teoria do Conflito. Nos questionaremos sobre os aspectos positivos e negativos envolvidos nos conflitos distinguiremos as principais formas de solução, percebendo a importância da existência de múltiplas portas, uma vez que cada conflito pode indicar abordagens a partir de diferentes métodos. Neste caminho, nos deteremos um pouco mais nas semelhanças e diferenças entre mediação e conciliação. Aprenderemos, também, que nem sempre as posições apresentadas pelos interessados no processo refletem seus reais interesses e que cabe ao conciliador e ao mediador criar as condições para que os verdadeiros interesses possam vir à luz para que o conflito possa ser verdadeiramente visualizado e, talvez, solucionado. Teremos oportunidade, por fim, de conhecer algumas das principais Escolas de Mediação e suas contribuições para os métodos e técnicas aplicados à solução consensual dos conflitos. TEORIA DO CONFLITO, FORMAS E MÉTODOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS 7 1 TEORIA DO CONFLITO 1.1 O CONFLITO O conflito, segundo Boardman e Horowitz (1994, p 1-12), pode ser definido como uma incompatibilidade de condutas, cognições (incluindo metas) e afetos entreindivíduos ou grupos que podem ou não conduzir a uma expressão agressiva. Surge a partir de diferentes fatores, como divergências de ideias ou comportamentos, de objetivos ou modos de vida, de ideologia ou religião, de falta de informação ou de informação equi- vocada; de pontos de vista diferentes sobre o que é importante, de interpretações ou avaliações divergentes sobre os mesmos dados, entre outras razões. Estabelece-se como uma crise, retratada no desentendimento entre duas ou mais pessoas sobre um tema de interesse comum Surge da dificuldade de se lidar com as diferenças, associada a um sentimento de impossibilidade de coexistência de interesses. Uma compreensão adequada do conflito pode transformá-lo em oportunidade, sob diversas perspectivas para a retomada do diálogo que em algum momento tornou-se difícil ou foi bloqueado; para a realização de ajustes necessários à retomada de relações construtivas, para a identificação de soluções criativas para uma questão comum, para maior e melhor compreensão da realidade, para o amadurecimento e o fortalecimento de laços. O conflito é inerente, inevitável e necessário às relações humanas É expressão de necessidade É oportunidade de desenvolvimento pessoal e de melhoria de vida É a diversidade e a diferença de valores É a principal alavanca da transformação social. O problema não é a presença de conflito, mas o que fazemos quando ele surge e qual a resposta que oferecemos. 1.2 A NORMALIZAÇÃO DO CONFLITO O texto a seguir foi extraído e adaptado a partir do Manual de Mediação Judicial do CNJ (AZEVEDO, 2016). O conflito pode ser definido como um processo ou estado em que duas ou mais pessoas divergem em razão de metas, interesses ou objetivos individuais percebidos como mutuamente UNIDADE 2 CURSO DE MEDIAÇÃO JUDICIAL 8 incompa- tíveis. Em regra, intuitivamente, se aborda o conflito como um fenômeno negativo nas relações sociais que proporciona perdas para, ao menos, uma das partes envolvidas. Em treinamentos de técnicas e habilidades de mediação, os participantes frequentemente são estimulados a indicarem a primeira ideia que lhes vem à mente ao ouvirem a palavra conflito. Em regra, a lista é composta pelas seguintes palavras: Você recorda do último conflito em que se envolveu significativamente? Quais foram suas reações fisiológicas, emocionais e comportamentais? Uma compilação das reações mais comuns pode ser a seguinte: Nesses conflitos, nota-se, em regra, a atuação abundante do hormônio chamado adrenalina, que provoca tais reações. Pessoas significativamente envolvidas emocionalmente em conflitos e que participaram de formações anteriores indicam que adotam, em regra (ainda que posteriormente haja arrependimento), as seguintes práticas (mesmo sabendo que poderiam não ser aquelas mais eficientes ou produtivas): GUERRA BRIGA DISPUTA AGRESSÃO TRISTEZA VIOLÊNCIA RAIVA PERDA PROCESSO TRANSPIRAÇÃO TAQUICARDIA RUBORIZAÇÃO ELEVAÇÃO DO TOM DE VOZ IRRITAÇÃO RAIVA HOSTILIDADE DESCUIDO VERBAL TEORIA DO CONFLITO, FORMAS E MÉTODOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS 9 Diante de tais reações e práticas de resolução de disputas, seria possível sustentar que o conflito sempre consiste em um fenômeno negativo nas relações humanas? A resposta da doutrina e dos participantes das citadas formações anteriores é negativa. Constata-se que, do conflito, podem surgir mudanças e resultados positivos. Quando questionados sobre aspectos positivos do conflito (i e “O que pode surgir de positivo em razão de um conflito?”)– ou formas positivas de se perceber o conflito em regra, participantes de cursos de formação em técnicas e habilidades de mediação apresentam, entre outros, os seguintes pontos: GUERRA PAZ BRIGA DISPUTA ENTENDIMENTO SOLUÇÃO AGRESSÃO TRISTEZA COMPREENSÃO FELICITADA VIOLÊNCIA RAIVA AFETO CRESCIMENTO PERDA PROCESSO GANHO APROXIMAÇÃO A possibilidade de se perceber o conflito de forma positiva consiste em uma das principais alterações da chamada moderna teoria do conflito Isso porque, a partir do momento em que sepercebeoconflitocomofenômenonatural na relaçãode quaisquer seresvivos, é possível se perceber o conflito de forma positiva. Exemplificativamente, em determinada mediação, após a declaração de abertura, um advogado dirigese para o mediador e irritado diz “esta mediação está se alongando desnecessariamente e a cada minuto sinto que terei de gastar mais tempo com isso ou aquilo Acho que você não está sabendo mediar” O mediador, neste momento, poderia interpretar o REPRIMIR COMPORTAMENTOS ANALISAR FATOS JULGAR ATRIBUIR CULPA RESPONSABILIZAR POLARIZAR RELAÇÃO ANALISAR PERSONALIDADE CARICATURAR COMPORTAMENTOS UNIDADE 2 CURSO DE MEDIAÇÃO JUDICIAL 10 discurso do advogado de algumas formas distintas: (i) como uma agressão (percebese o conflito como algo negativo); (ii) como uma oportunidade de demonstrar às partes e aos seus advogados como se despolariza uma comunicação (percebese o conflito como algo positivo); (iii) como um sinal de insatisfação com sua atuação como mediador (percebese o conflito como algo negativo); (iv) como um sinal de que algumas práticas autocompositivas podem ser aperfeiçoadas – e g sua declaração de abertura poderia ser desenvolvida deixando claro que o processo de mediação pode se estender por várias sessões e que o advogado pode auxiliar muito as partes ao permanecer de sobreaviso nos horários das sessões de mediação; (v) como um desafio ou confronto para testar sua força e domínio sobre a mediação (percebese o conflito como algo negativo); (vi) como um pedido realizado por uma pessoa que ainda não possui habilidades comunicativas necessárias (per- cebese o conflito como algo positivo) Na hipótese narrada, o mediador, se possuísse técnicas e habilidades autocompositivas mínimas necessárias para exercer esta função, seguramente perceberia a oportunidade que lhe foi apresentada perante as partes e tenderia a reagir como normalmente se reage perante oportunidade como essa: TRANSPIRAÇÃO TAQUICARDIA RUBORIZAÇÃO ELEVAÇÃO DO TOM DE VOZ IRRITAÇÃO RAIVA HOSTILIDADE DESCUIDO VERBAL MODERAÇÃO EQUILÍBRIO ‘NATURALIDADE SERENIDADE COMPREENSÃO SIMPATIA AMABILIDADE CONSCIÊNCIAVERBAL Nota-se que a coluna da esquerda seria abandonada pelo mediador, na hipótese narrada, caso ele possuísse as técnicas e habilidades autocompositivas necessárias e percebesse o conflito como uma oportunidade. Naturalmente, optase conscientemente pela coluna da direita no quadro anterior, isso porque o simples fato de se perceber o conflito de forma negativa desencadeia uma reação denominada “retorno de luta ou fuga” (ou apenas luta ou fuga) ou resposta de estresse agudo. O retorno de luta ou fuga consiste na teoria de que animais reagem a ameaças com uma descarga ao sistema nervoso simpático impulsionandoo a lutar ou fugir. Em suma, o mecanismo de luta ou fuga consiste em uma resposta que libera a adrenalina causadora das reações da coluna da esquerda no quadro anterior. Por sua vez, ao se perceber o conflito como algo positivo, ou ao menos potencialmente positivo, tem se TEORIA DO CONFLITO, FORMAS E MÉTODOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS 11 que o mecanismo de luta ou fuga tende a não ser desencadeado ante a ausência de percepção de ameaça, o que, por sua vez, facilita que as reações indicadas na coluna da direita sejam alcançadas. Note-se que, se o mediador tivesse insistido em ter uma interação caso houvesse reagido negativamente ao conflito, possivelmente tenderia a discutir com o advogado (e g “não é minha culpa– são os problemas trazidos pelas partes que precisam de mais tempo”), ou a julgá-lo (eg “Você sempreteveesse temperamento? Acho que ele não é compatível com a mediação”), ou a reprimir comportamentos (eg “esse discurso foi desnecessário. O que o Sr. gostaria não é ”), ou polarizaria a relação(eg “você é que não está sabendo participar de uma mediação”) Isto é, entre outras práticas (ineficientes) de resolução de disputas na hipótese citada temos aquelas da coluna da esquerda no quadro a seguir: REPRIMIR COMPORTAMENTOS ANALISAR FATOS JULGAR ATRIBUIR CULPA RESPONSABILIZAR POLARIZAR RELAÇÃO JULGAR O CARÁTER /PESSOA CARICATURAR COMPORTAMENTOS COMPREENDER COMPORTAMEN- TOS ANALISAR INTENÇÕES RESOLVER BUSCAR SOLUÇÕES SER PROATIVO PARA RESOLVER DESPOLARIZAR A RELAÇÃO ANALISAR PERSONALIDADE GERIR SUAS PRÓPRIAS EMOÇÕES Por outro lado, no referido exemplo, o mediador poderia adotar práticas mais eficientes para atender de forma mais direta seus próprios interesses – como o de ser reconhecido como um mediador zeloso e que os seus usuários pudessem aproveitar a oportunidade da mediação para aprender a lidar com o conflito da melhor forma possível e com o mínimo de desgaste desnecessário. Para tanto, caberia ao mediador adotar algumas das práticas relacionadas à direita no quadro anterior. Assim, ao ouvir o comentário do advogado, o mediador poderia responder que: “Dr Tiago, agradeço sua franqueza Pelo que entendi o senhor, como um advogado já estabelecido, tem grande preocupação com o tempo investido na mediação e gostaria de entender melhor por quanto tempo estaremos juntos e em quais momentos sua participação seria essencial Há algum outro ponto na mediação que o senhor gostaria de entender melhor? Vale destacar que a resposta dada ao advogado estabelece que não há necessidade de se continuar o diálogo como se um estivesse errado e o outro certo. Parte-se do pressuposto de que todos tenham interesses congruentes – como o de ter uma mediação que se UNIDADE 2 CURSO DE MEDIAÇÃO JUDICIAL 12 desenvolva em curto prazo com a melhor realização de interesses das partes e maior grau de efetividade de resolução de disputas. O ato ou efeito de não perceber um diálogo ou um conflito como se houvesse duas partes antagônicas ou dois polos distintos (um certo e outro errado) denominase despolarização. No exemplo, constata-se que, se o mediador tivesse despolarizado a interação com o advogado, isso não o colocaria em situação de humilhação ou inferioridade em relação a este profissional. De fato, percebese que ele apenas assumiu posição mais confortável na mediação – de legitimidade e liderança – a partir do momento em que tivesse demonstrado saber resolver bem conflitos. 1.3 ESPIRAIS DE CONFLITO Para alguns autores como Rubin e Kriesberg, há progressiva escalada, em relações conflituosas, resultante de um círculovicioso de ação e reação. Cada reação torna-se mais severa do que a ação que a precedeu e cria nova questão ou pontode disputa. Esse modelo, denominado de espirais do conflito, sugere que, com esse crescimento (ou escalada) do conflito, as suas causas originárias pro- gressivamente tornam-se secundárias a partir do momento em que os envolvidos mostram-se mais preocupados em responder a uma ação que imediatamente antecedeu sua reação. Po rexemplo, se em um dia de congestionamento, determinado motorista sente-se ofendido ao ser cortado por outro motorista, sua resposta inicial consiste em pressionar intensamente a buzinado seu veículo. O outro motorista responde também buzinando e com algum gesto descortês. O primeiro motorista continua a buzinar e responde ao gesto com um ainda mais agressivo. O segundo, por sua vez, abaixa a janela e insulta o primeiro.Este gritando, responde que o outro motorista deveria parar o carro e “agir como um homem” Este, por sua vez, joga uma garrafa de água no outro veículo. Ao pararem os carro sem um semáforo, o motorista cujo veículo foi atingido pela garrafa de água sai de seu carro e chutaa carroceria do outro automóvel. Nota-se que o conflito desenvolveu-se em uma espiral de agravamento progressivo das condutas conflituosas. No exemplo citado, se houvesse um policial militar perto do último ato, este poderia ensejar um procedimento de juizado especial criminal. Em audiência, possivelmente o autor do fato indicaria que seria, de fato, a vítima; e, de certa forma, estaria falando a verdade, uma vez que, nesse modelo de espiral de conflitos, ambos são, ao mesmo tempo, vítima e ofensor ou autor do fato. TEORIA DO CONFLITO, FORMAS E MÉTODOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS 13 1. 4 DIFERENÇA ENTRE INTERESSE E POSIÇÃO O texto a seguir foi extraído do Manual de Mediação e Conciliação da Justiça Federal (TAKAHASHI, 2019). A posição assumida na negociação, via de regra, obscurece os interesses em jogo, ou seja, o que realmente se quer (motivações, valores, necessidades). Como ponta do iceberg, o que aparece ao outro normalmente é a posição, ficando ofuscado o interesse em jogo. Ocorre que quando há conflito, nem sempre as pessoas buscam as mesmas coisas e têm os mesmos interesses. Por trás das posições opostas pode haver interesses comuns e compatíveis. Para se identificarem os interesses, que nem sempre estão explícitos, uma técnica básica consiste em se colocar no lugar do outro e pensar em sua escolha (pergunte “por quê?”;“por que não?”) para reconhecer os interesses do outro como parte do problema, olhando para frente (futuro), e não somente para trás(passado). Um exemplo bem simples e usado frequentemente para distinguir interesses e posições é o da disputa pela laranja. Imagine que dois filhos estejam brigando por uma mesma laranja, pois cada um quer a laranja inteira para si. A mãe, sem perguntar o motivo pelo qual os filhos querem a fruta, determina então que a laranja seja partida ao meio. Ocorre que, enquanto um deles queria a parte interna da laranja para fazer um suco, o outro queria apenas a casca para fazer a calda de um bolo. Quando a laranja foi partida ao meio, ambos saíram perdendo, mesmo que, no caso, pudessem ter tido seus intreresses integralmente satisfeitos, dado que não queriam a mesma coisa. Suas posições eram antagônicas, mas os interesses eram compatíveis. A troca de informações e escuta ativa, assim, são muito importantes para se explorarem os interesses envolvidos, fortalecendo a confiança dos envolvidos, a fim de gerar opções de ganho mútuo. A negociação propicia a construção de uma agenda com alternativas e soluções possíveis para resolver o conflito, que atendam aos interesses comuns e conciliem os interesses divergentes. Para inventar opções criativas (brainstorming), é preciso separar o ato de inventar opções do ato de julgá-las, ampliar as opções sobre a mesa, em vez de buscar uma resposta única, buscando benefícios mútuos. O brainstorming pode ser feito individual ou conjuntamente pelos interessados e costuma ser muito útil para se pensar opções de ganho mútuo. UNIDADE 2 CURSO DE MEDIAÇÃO JUDICIAL 14 1. 5 COMPETIÇÃO E COLABORAÇÃO No seu processo contínuo de tomada de decisão, a pessoa com frequência se depara com alguns dilemas. É comum que mais de uma pessoa tenha interesse sobre um mesmo bem, seja ele um bem material ou imaterial. Nesse momento, duas atitudes podem surgir, em especial quando não há segurança quanto à reação dos demais interessados diante de uma suposta escassez, ou seja, de uma suposta impossibilidade de um mesmo bem satisfazer a todos: pode haver competição ou pode haver colaboração. A chamada Teoria dos Jogos nos indica que a melhor opção é a colaboração. Foi desenvolvida por John Nash, um matemático que ousou questionar as ideias de Adam Smith, para quem, em uma competição, a ambição individual serve ao bem comum. Nash, partindo do pressuposto de que se todos competem pelo mesmo bem, todos se bloqueiam e ninguém ganha, defendeu que o melhor resultado é obtido quando todos no grupo fazem o que é melhor para si e para o grupo. A Teoria dos Jogos é o estudo da tomada de decisões entre indivíduos, quando o resultado de cada um depende das decisões dos outros, em uma interdependência similar a um jogo. Ela oferece algumas ferramentas para antecipar o movimento do outro interessado, auxiliando na elaboração de estratégia que antecipe as opções, considerando as possíveis reações do outro. Essa teoria nos oferece bom fundamento teórico para explicar quando a solução consensual de um conflito pode apresentar vantagens e desvantagens em relação à entrega da solução a um terceiro (heterocomposição). De forma muito resumida – e você poderá aprofundar-se um pouco mais no tema por meio da leitura do Manual de Mediação do CNJ, a Teoria dos Jogos nos indica que, se todos fizerem o melhor para si e para os outros, todos ganham. Trata-se de demonstrar que o elemento-chave para uma estratégia de negociação é a coope- ração e, não, a competição. TEORIA DO CONFLITO, FORMAS E MÉTODOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS 15 1 .6 MAPEAMENTO DO CONFLITO Geralmente as pessoas respondem a um conflito com: > Dominação: um dos interessados tenta impor seus desejos de forma física ou psicológica; > Concessão: um dos interessados cede unilateralmente diante do outro; > Abandono: um dos interessados abandona o conflito; > Evitação: um dos interessados não faz nada, ignorando o outro, ou aguarda que o decorrer do tempo melhore asituação; > Negociação: os interessados buscam um acordo; > Intervenção de terceiros: um indivíduo ou grupo intervém junto aos interessados e os auxilia para que encontrem possíveissoluções. Nem sempre a posição adotada pelas pessoas em um conflito traduz os seus reais interesses e necessidades. O mapeamento do conflito é instrumento que auxilia na busca de elementos para a formulação de estratégias de atuação pelo terceiro facilitador diante do conflito. Por meio de algumas perguntas, pode-se obter melhor desenho do conflito, identificando-se o porquê da sua existência, qual a questão de fundo e quais os reais interesses e sentimentos envolvidos. Entre as perguntas que podem ser formuladas pelo terceiro facilitador (conciliador ou mediador), para si mesmo ou para os interessados, estão: > Qual o objeto aparente do conflito (questão/problema)? > Quem são os atores do conflito (principais e secundários/rede de pertinência)? > Já houve tentativas de resolver o conflito? Quais? Quando? > Alguém já ajudou a minimizar o problema ou aumentá-lo? Quem? Por quê? A partir dessas e de diversas outras perguntas (você poderá aprofundar-se nelas na Unidade IV), o mediador ou o conciliador terá condições de mapear o conflito, identificando as questões controvertidas, os reais interesses, os sentimentos associados, tendo oportunidade de elaborar uma pauta que possa ser comum aos interessados, auxiliando no entendimento futuro e na retomada do diálogo. UNIDADE 2 CURSO DE MEDIAÇÃO JUDICIAL 16 Com um adequado mapeamento do conflito, os interessados talvez tenham melhores condições de perceberem as perspectivas e necessidades um do outro e de visualizar possibilidades de solução do problema por meio de uma comunicação mais eficaz. No mapeamento do conflito, mediante a formulação de perguntas e, em especial, por meio da escuta ativa – para além das palavras, você terá melhores chances de identificar os reais interesses. Nesse processo, será fundamental que a partes perceba ouvida e que tenha seus sentimentos validados, ou seja, que os sentimentos e as necessidades demonstrados não sejam julgadosnem considerados menores em importância. Após a identificação de todos os sentimentos e todas as posições, caberá ao mediador pontuar os pontos positivos e eventuais interesses comuns, juntamente com os envolvidos, abrindo espaço para a construção de soluções que possam atender aos seus efetivos interesses. TEORIA DO CONFLITO, FORMAS E MÉTODOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS 17 2 FORMAS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS 2 .1 AUTOTUTELA, AUTOCOMPOSIÇÃO E HETEROCOMPOSIÇÃO A doutrina tradicional faz menção a três formas de solução dos conflitos: a autotutela, a auto-composição e a heterocomposição. A autotutela significa a solução do conflito por esforço próprio. É conhecida como fazer justiça pelas próprias mãos e apenas excepcionalmente está autorizada na lei. Um dos exemplos é o previsto no §1º do art. 1210 do Código Civil, segundo o qual “o possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contato que o façal ogo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse”. Excetuando-se as poucas hipóteses previstas em lei, a autotutela constitui crime e está tipificada no art. 345 do Código Penal como exercício arbitrário das próprias razões: “Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite: Pena– detenção de 15 dias a 01 mês, ou multa, além da pena correspondente à violência”. A autocomposição ocorre quando os próprios litigantes encontram a solução para o término do conflito. Poderá haver, ou não, a interveniência de um terceiro como facilitador e estimulador do diálogo, como na conciliação e na mediação. Porém, o terceiro não compõe o conflito. Podemos identificar, como espécies de autocomposição a negociação, a mediação e a conciliação. A primeira não necessitando da interveniência de um terceiro e nas duas últimas um terceiro intervém para facilitar o estabelecimento da comunicação entre os interessados e o entendimento. E, por fim, tem-se a heterocomposição. Dá-se a heterocomposição quando a solução do conflito é dada por um terceiro. É este terceiro quem estabelece a solução para o litígio, tal como lhe é apresentado pelos interessados. São espécies de heterocomposição a jurisdição e a arbitragem. Duas diferenças entre autocomposição e heterocomposição são marcantes: UNIDADE 2 CURSO DE MEDIAÇÃO JUDICIAL 18 a) na autocomposição, a presença do terceiro facilitador do diálogo é facultativa. Na negociação, por exemplo , ela não ocorre. Em contrapartida, na heterocomposição , a presença do terceiro é condição determinante para a composição do litígio. b) na autocomposição, o terceiro é ator coadjuvante, pois que não é ele quem soluciona o conflito. São os próprios litigantes que encontram a solução do conflito. Diversamente, na heterocomposição, o terceiro tem um maior protagonismo, substituindo-se à vontade de cada uma dos interessados, ao apresentar a solução para o conflito. 2 .2 JURISDIÇÃO A Constituição, no artigo 5º, inciso XXXV, consagra o princípio da inafastabilidade da tutela juris- dicional, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Com base nesta garantia e na vedação, como regra, da autotutela, como acima referido, é assegurado aos interessados que tiverem seus direitos violados o acesso à Justiça, para fazê-los valer. Ao pedir a atuação do Poder Judiciário, por meio do ajuizamento de um processo, o interessado busca que a resolução de seu litígio, que supostamente não foi obtida de forma consensual, seja dada por uma decisãojudicial. A atuação jurisdicional é substitutiva da vontade dos interessados. Uma vez prolatada uma decisão sobre o litígio, esta decisão tem imperatividade e autoridade, e valerá ainda que desagrade a ambos os litigantes. A judicialização dos conflitos tornou-se fenômeno extremamente preocupante no Brasil. O grande volume de demandas ajuizadas é revelador de grande dificuldade de resolução dos conflitos sem a intervenção do Poder Judiciário. Hoje se sabe, porém, que a sentença, por melhor que seja, muitas vezes não resolve o conflito real entre os interessados, sendo muito comum que o torne ainda mais acirrado e propenso a reproduzir-se em mais litígios, inclusive pelo caminho judicial. 2. 3 ARBITRAGEM A decisão sobre os conflitos não é monopólio estatal Dizer quem tem razão não depende exclusivamente da intervenção do Poder Judiciário. Embora, nos termos do art 5º, XXXV, da TEORIA DO CONFLITO, FORMAS E MÉTODOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS 19 Constituição, a lei não possa afastar do controle jurisdicional lesão ou ameaça a direito, os próprios interessados podem, por livre manifestação de suas vontades, convencionar a entrega da decisão sobre eventual litígio que as envolve a um terceiro. Segundo Bacellar, a arbitragem pode ser definida como “um processo convencional (convenção) que defere a um terceiro, não integrante dos quadros da magistratura oficial do Estado, a decisão a respeito de questão conflituosa envolvendo duas ou mais pessoas” Para que este processo de tomada de decisão se instaure, é essencial o consentimento dos interessados: “enquanto o juiz retira seu poder da vontade da lei, o árbitro só o conquista pela submissão da vontade das partes” (BACELLAR, 2016, p 130). A sentença arbitral resolve o conflito. E esta sentença, em caso de descumprimento pelas partes compromissárias, poderá ser executada judicialmente através do processo judicial, já que a sentença arbitral é título executivo judicial como previsto no inciso VII do art. 515 do Código de Processo Civil. A Lei n 9 307/1996, que foi alterada e complementada pela Lei n 13 129/2015, atualmente regulamenta a arbitragem. Em que pese não haver mais o monopólio estatal para a resolução dos conflitos, a jurisdição exsurge como última fronteira para a manutenção da ordem jurídica com amparo no princípio da inafastabilidade do controle pelo Poder Judiciário de qualquer lesão ou ameaça de lesão a qualquer direito. 2. 4 NEGOCIAÇÃO A negociação é a autocomposição obtida pelos próprios litigantes, normalmente sem a interferência de qualquer outra pessoa. Como em um acidente de trânsito sem maiores consequências, em que, no próprio local do evento, os motoristas resolvem de comum acordo apurar suas responsabilidades, valoram os danos e assumem reciprocamente, se for o caso, a reparação dos danos. Pode ser um processo mais sofisticado, em face de litígios mais complexos. Se for cumprido o eventual acordo obtido entre os interessados, desnecessária a intervenção do Judiciário. Este se fará presente tão somente na hipótese de não cumprimento do acordo quando então aquele que se sentir prejudicado haverá de buscar o eventual cumprimento do acordo e/ou a reparação de seu direito por meio do exercício regular do direito de ação. Diversas técnicas de negociação são utilizadas nos processos de mediação e conciliação. A negociação normalmente se processa de forma extrajudicial. Se olitígio já houver sido judicializado, os UNIDADE 2 CURSO DE MEDIAÇÃO JUDICIAL 20 interessados poderão negociar uma solução e requerer ao juiz que homologue o eventual acordo que obtiverem, pondo fim ao processo. 2 .5 CONCILIAÇÃO A conciliação é definida, por Bacellar, como: [ ] um processo técnico (não intuitivo), desenvolvido pelo método consensual, na forma autocompositiva, destinado a casos em que não houver relacionamento anterior entre as partes, em que terceiro imparcial, após ouvir seus argumentos, as orienta, auxilia, com perguntas, propostas e sugestões a encontrar soluções (a partir da lide) Que possam atender aos seus interesses e as materializa em um acordo que conduz à extinção do processo judicial (BACELLAR,2016, p 84-85). A conciliação pode ser extrajudicial e judicial. Em sendo judicial, poderá ser estimulada em qualquer fase do processo, e poderá ser promovida por órgãos jurisdicionais revisores de 2º grau ou de 3º grau. O Código de Processo Civil, já no art 3º, estabelece que o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos e que a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive – mas não exclusivamente – no curso do processo judicial. O Código de Processo Civil (CPC), no art. 334 e seus parágrafos, estabelece que o juiz, ao receber a petição inicial, e estando a mesma em termos, determinará a citação do réu para que o mesmo compareça à audiência de conciliação ou de mediação. Não se trata, portanto, de uma citação para apresentar defesa, mas apenas para participar da audiência. O CPC ainda estabelece que poderá haver mais de uma sessão destinada à conciliação e à mediação, desde que necessário, que o ato poderá ocorrer por meio eletrônico, e que a audiência só não será realizada se ambas as partes manifestarem, de forma expressa, desinteresse na composição consensual ou nos casos em que não se admitir a autocomposição Alguns princípios informam a conciliação, assim como a mediação são eles: independência, imparcialidade, autonomia da vontade, confidencialidade, oralidade, informalidade e decisão informada (CPC, art 166). A conciliação surge como a mais adequada, como método de resolução do conflito, quando não houver vínculo anterior entre as partes (CPC, art 165, § 2º), sendo esta, na visão do legislador, a principal diferença entre esta via de solução de conflitos e a mediação. TEORIA DO CONFLITO, FORMAS E MÉTODOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS 21 Entre conciliação e mediação, são apontadas outras notas distintivas, em especial quanto à maior ou menor intervenção do terceiro facilitador na construção da solução para o conflito. A postura do conciliador é mais ativa que a do mediador, na busca de possibilidades para a solução do conflito. Sua abordagem é distinta da adotada pelo mediador, de forma que, eventualmente, ele sugere soluções possíveis para a controvérsia trazida a juízo, na busca, com os interessados, de possibilidades de solução consensual. Esta postura mais ativa e focada na facilitação de um acordo, porém deve ser adotada com cautela. Assim como a mediação, a conciliação é instrumento para a obtenção de cenários de paz, de forma que o conciliador deve estar atento para identificar sinais de que o verdadeiro conflito, a chamada lide sociológica pode estar sendo aprofundado com a mera obtenção de um acordo para pôr termo a um processo. Em casos tais, ele talvez deva adotar postura menos ativa, fazendo uso mais intenso das técnicas de mediação. Assim como a mediação, a conciliação pressupõe a livre manifestação de vontade dos litigan- tes, de forma que em hipótese alguma o conciliador poderá adotar posturas que possam ser interpretadas como constrangimento para que o acordo seja realizado ou como intimidação, acaso não ocorra. A lei processual, no § 4º do art 166, fala em“livre autonomia dos interessados, inclusive no que diz respeito à definição das regras procedimentais”. Portanto, o conciliador deverá estar capacitado para perceber que sua atuação tem um limite, qual seja, a vontade dos reais interessados. Tanto judicial quanto extrajudicial, o conciliador haverá de ser imparcial, independente, probo e estar capacitado para o exercício das técnicas de resolução consensual de conflitos. Os interessados podem escolher, de comum acordo, o conciliador, o mediador ou a câmara privada de conciliação e de mediação. O CPC, no art 168, estabelece algumas normas sobre esta escolha e recomenda que, sempre que possível, sejam designados mais de um mediador ou conciliador para conduzir o ato. 2. 6 MEDIAÇÃO A mediação é um método de resolução de conflito sem que um terceiro independente e imparcial coordena reuniões conjuntas ou separadas com as partes envolvidas em conflito. Seu objetivo, entre outros, é o de estimular o diálogo cooperativo UNIDADE 2 CURSO DE MEDIAÇÃO JUDICIAL 22 entre elas para que alcancem a solução dos conflitos em que estão envolvidas (SAMPAIO, 2016, p 444). Na mediação, a obtenção d oacordo não surge como o alcance de um objetivo preestabelecido, mas como consequência lógica de um trabalho de cooperação e de retomada do diálogo entre os interessados, com o auxílio de um terceiro facilitador. As principais notas distintivas, apontadas pelo legislador, entre mediação e conciliação, estão no vínculo anterior entre os interessados e na postura do terceiro facilitador. O mediador atuará preferencialmente “nos casos em que houver vínculo anterior entre as partes, auxiliará aos interessados a compreender as questões e os interesses em conflito, de modo que eles possam, pelo restabelecimento da comunicação, identificar, por si próprios soluções consensuais que gerem benefícios mútuos” (CPC, art 165, § 3º). Como se percebe, diferentemente do conciliador, que pode adotar uma postura mais ativa, participando da construção da solução para o conflito, o mediador tem por função auxiliar no restabelecimento da comunicação, de forma a que os próprios interessados encontrem caminhos para a eventual superação de suas controvérsias. A mediação foi sendo introduzida gradativamente no Brasil, inicialmente sem uma regulamentação específica. Em 2010, o CNJ a institucionalizou com o meio de solução de conflitos judicializados, por meio da Resolução CNJ nº 125, estabelecendo uma série de normas, inclusive quanto à formação dos mediadores equantoa os princípios norteadores de sua atuação. E, porfim, em 2015 entrou em vigor a Lei nº 11 140/2015, Lei da Mediação e, em 2016, o CPC, que trouxeram para o plano da lei formal este importante método de resolução de conflitos, estabelecendo seus princípios epressupostos. A mediação tem como princípios, além daqueles aplicáveis à conciliação e definidos no art. 166 do CPC (independência, da imparcialidade, da autonomia da vontade, da confidencialidade, da oralidade, da informalidade e da decisão informada), a isonomia, a busca do consenso e a boa-fé, trazidos pela Lei da Mediação, no art 2º. A mediação processa-se de forma judicial ou extrajudicial e, por meio dela, se estimula o amadurecimento da sociedade e uma nova cultura, na qual os próprios cidadãos passam a ser capazes de solucionar seus conflitos, principalmente de forma pré-processual eextrajudicial. É importante ter presente que a fronteira entre a conciliação e a mediação não é claramente demarcada. E talvez não deva ser. Como ensina LAGRASTA, embora existam várias teorias oferecendo critérios para diferenciar os dois métodos, na prática, eles não podem ser TEORIA DO CONFLITO, FORMAS E MÉTODOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS 23 rigorosamente definidos, pois suas técnicas são praticamente as mesmas e seus conceitos se interrelacionam, não sendo absoluta a regra que recomenda a conciliação para conflitos objetivos e a mediação para os subjetivos. A distinção, segundo a autora, é útil apenas para que o terceiro facilitador reconheça a situação que lhe é apresentada e use as técnicas mais adequadas para atingir as expectativas das partes com maior ou menor ênfase às questões subjetivas ou objetivas (LAGRASTA, 2016, p 233-245). 2. 7 JUSTIÇA RESTAURATIVA E PRÁTICAS RESTAURATIVAS Tendo surgido como um movimento para reformas na Justiça Criminal, a Justiça Restaurativa foi concebida como tentativa de olhar o crime e a justiça como novas lentes e abordagens. Segundo Bazemore e Walgrave, os objetivos restaurativos primários são oferecer um modo mais aberto e satisfatóriopara reparar danos e solucionar conflitos, reduzindo os papéis profissionais da justiça criminal e buscando menos intervenções do sistema e mais intervenções da comuni- dade (BAZEMORE e WALGRAVE, 1999, p 371-374). Em 2016, o CNJ, editou a Resolução nº 225, que institui a Política Pública Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário, como um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas eatividades próprias, que visa à conscientização sobe os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos eviolência, e por meio do qual os conflitos que geram danos, concretos ou abstratos, são solucionados de modo estruturado. Da Justiça Restaurativa, surge o conceito de práticas restaurativas, que são ferramentas que possibilitam o diálogo, contribuindo para o restabelecimento ou o aprofundamento de vínculos, promoção de responsabilidades, integração e pacificação. Não se confundem com os processos de mediação e de conciliação, mas também se fundamentam no diálogo. Atualmente as práticas restaurativas não ficam limitadas ao âmbito do Direito Penal. Têm sido aplicadas com grupos de diversas faixas etárias, nasescolas, nas comunidades, espaços não governamentais e empresas. Existem diferentes práticas e metodologias originadas da Justiça Restaurativa, entre as quais estão os chamados Círculos Restaurativos. UNIDADE 2 CURSO DE MEDIAÇÃO JUDICIAL 24 2 .8 PROCESSOS HÍBRIDOS Os processos híbridos são mecanismos de resolução de disputas que adotam características ou procedimentos de mais de um método. O termo híbrido é utilizado na literatura de resolução de conflitos para indicar uma classe de processos cujas características advêm simultaneamente de métodos heterocompositivos e de métodos autocompositivos. Podem ser citados os processos Med-Arb, Arb-Med, Co-Med-Arb, como também a Binding Mediation, a Abordagem Paralela de RDs, Avaliação Neutra Preliminar e a Avaliação Preliminar de Conflitos. TEORIA DO CONFLITO, FORMAS E MÉTODOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS 25 3 . AS PRINCIPAIS ESCOLAS DE MEDIAÇÃO (Desembargador - Roberto Portugal Bacellar) Veremos aqui algumas modalidades de mediação e suas principais escolas. Em geral as definições e os conceitos que se procuram atribuir à mediação não distinguem suas linhas doutrinárias nem as escolas de onde originaram-se seus estudos e raízes. 3. 1 ESCOLA DE HARVARD E A MEDIAÇÃO LINEAR, TRADICIONAL OU CLÁSSICA Temos, na Harvard Law School, o início do projeto de negociação coordenado por Roger Fisher juntamente com William Ury e Bruce Patton. Na obra traduzida para o português, denominada “Como chegar ao sim: a negociação de acordos sem fazer concessões”, os professores apresentam os pontos de partida de outros trabalhos que acabaram aos contornos da Mediação da escola de Harvard, também denominada mediação linear ou mediação tradicional/clássica. A mediação para essa escola é um desdobramento da negociação, uma negociação que se afasta das barganhas e é baseadaem princípios. Seu processo é estruturado linearmente com etapas e fases definidas estruturalmente com a intencionalidade de estabelecer ou restabelecer a comunicação entre as pessoas, identificando os interesses (lide sociológica) encobertos pelas posições (lide processual) para, como resultado chegar a um acordo que possa satisfazer as partes. Em resumo, foi a escola que teve maior influência no Brasil e as principais diretrizes iniciais do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que orientaram o recente movimento de conciliação, tiveram nela a sua principal referência. UNIDADE 2 CURSO DE MEDIAÇÃO JUDICIAL 26 3 .2 MODELO DE SARA COBB E A MEDIAÇÃO CIRCULARNARRATIVA Há, no modelo, a proposta de uma visão sistêmica destinada a ampliar o foco não só nos conflitos, mas com especial atenção nas pessoas. Cada pessoa tem sua história de vida, seus valores, suas percepções e relações sociais de per- tença em relação ao conflito. Para essa escola ou para essa linha de pensamento, tudo se interrelaciona reciprocamente e deve ser visto de forma global Nada pode ser visto de maneira isolada. A linha tem foco tanto nas relações quanto na busca de um acordo. 3 .3 MODELO DE BUSH E FOLGER E A MEDIAÇÃO TRANSFORMATIVA Como o nome já sinaliza, decorre de uma pesquisa elaborada por Robert Baruch Bushe Joseph Folger, é orientada e tem por intencionalidade a transformação do conflito. Formulam uma crítica à mediação orientada para o alcance de acordos que pode o fuscar o empoderamento das partes e a cooperação. O foco é a busca da transformação do conflito em algo positivo a partir de uma postura de maior autonomia das pessoas. De uma postura adversarial nas relações, persegue a identificação das necessidades das pessoas, suas capacidades de escolher uma postura de colaboração, estabelecendo ou restabelecendo seus vínculos e, com isso, produzindo mudança, transformação cognitivo-comportamental e da própria espiral do conflito que pode ou não evoluir para um acordo. O objetivo não é o acordo, mas a autonomia das pessoas e a transformação do conflito. 3. 4 MODELO DE LEONARD RISKIN E A MEDIAÇÃO AVALIADORA OU AVALIATIVA O professor Riskin define a mediação e apresenta um gráfico a partir de um quadrante sobre a orientação do mediador que pode ser um mediador avaliador ou facilitador e que tratará os casos de forma ampla ou restrita. É uma linha que, em um de seus TEORIA DO CONFLITO, FORMAS E MÉTODOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS 27 quadrantes – o da mediação facilitadora restrita –, de certa forma se aproxima da conciliação (que pode sugerir opções de soluçãoparaoconflito, a partir da lide e até da arbitragem, o que ocorre na mediação avaliadora restrita, em que as partes mantêm uma postura adversarial e heterocompositiva e se apresenta avaliação sobre algum aspecto do conflito). Há até dúvidas se ela verdadeiramente pode ser definida como mediação e se apresenta com duas fases bem distintas. Na primeira, o“mediador”, depois de fazer inicialmente o seu papel como um verdadeiro mediador (sem intervenção direta no mérito do conflito e procurando inicialmente só as soluções que advenham das propostas dos próprios interessados), não alcançando o acordo, modifica seu perfil de facilitador para avaliador. Na segunda, ao perceber que há impasse e não consegue avançar na mediação porque as partes apresentam expectativas muito diferentes sobre o caso e não apresentaram por elas próprias as opções de um acordo satisfatório, ele passa a oferecer, ao final, sugestões, sua própria opinião sobre a melhor solução para o caso com o objetivo de facilitar o acordo Pode ter característica ampla (envolvendo vários aspectos do conflito), ou se restringir a apenas um ou outro ponto controvertido (RISKIN, 1996). Tenho defendido que não há, no Brasil, na mediação e na conciliação, foco no alcance de um acordo nem restrição da discussão ao objeto controvertido e, sim, permissão, de maneira ampla, para que todos os pontos levantados como questões sejam apreciados. Na verdade, o uso determina o sentido e haveremos de conhecer os métodos, os processos, as formas e as escolas para verificar como cada uma delas pode melhor colaborar no contexto da solução pacífica dos conflitos (BACELLAR, 2016,p 109-110). UNIDADE 2 CURSO DE MEDIAÇÃO JUDICIAL 28 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os estudos que desenvolvemos até aqui demonstraram que é inevitável que existam conflitos nas relações humanas e que, entre seus principais fatores, estão falhas ou dificuldades na comunicação entre as pessoas. O auxílio no restabelecimento desta comunicação é uma das principais funções dos conciliadores e dos mediadores. Compreendendo o conflito como normal, temos melhores condições de contribuir com a sua normalizaçãopor aqueles que estão diretamente nele envolvidos. Especial atenção foi dedicada à distinção entre os conceitos de interesse e posição e à importância de que os processos de conciliação e de mediação possam trazer à luz os reais interesses e necessidades dos envolvidos, para que haja melhores condições de resolução de seus conflitos. Tivemos também a oportunidade de transitar sobre as variadas formas de resolução de controvérsias, diferenciando-as, com especial ênfase na conciliação e na mediação, tendo presente que a escolha entre um ou outro método não é aleatória e deve comportar flexibilidade. Por fim, nos dedicamos a conhecer as principais escolas de mediação, que nos trazem importantes e diferentes contribuições para a construção dos métodos de solução pacífica dos conflitos. E, assim, concluímos, a Unidade 2. TEORIA DO CONFLITO, FORMAS E MÉTODOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS 29 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Tânia Caixas de ferramentas em mediação: aportes práticos e teóricos São Paulo: Dash, 2016. BOARDMAN, Susan; HOROTITZ, Sandra. Constructive conflict management and social problems: an introduction Journal of Social Issues, v 30, p 1-12, 1994. AZEVEDO, André Gomma (Org ). Manual de mediação judicial, 6 ed. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2016. 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