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Brasília a. 42 n. 165 jan./mar. 2005 51 João Batista Marques Introdução O presente trabalho tem como objetivo principal descrever, analisar e ter em conta a aportação científico-teórica que fez Hans Kelsen, ainda que seja relevante trazer à dis- cussão toda a temática relacionada, no cam- po do sistema de governo proposto pela Democracia. Também é objeto deste escrito, sem embargo de buscar subsídio acerca do pensamento kelseniano sobre a democracia em obras que sobre ele se puseram, o esforço para apreender e compreender a contribui- ção que deu à História, tendo-se como fio condutor sua obra mestra “Esencia y valor de la democracia”. Basicamente, as idéias desen- volvidas por Kelsen, para tentar encontrar as respostas para a questão democrática, estão dispostas nos dois momentos1 em que o renomado mestre de Viena aborda o tema: no primeiro caso, com a publicação de seu livro em 1920; e no segundo caso, quando levou a cabo a publicação de sua outra obra intitulada “Los Fundamentos de la Democra- cia”, em 1955, onde reitera suas anteriores manifestações. A obra extensa e profunda de Kelsen re- flete sua compreensão e entendimento de que a Democracia é, acima de quaisquer outras vicissitudes, um procedimento para O princípio de maioria na doutrina de Hans Kelsen João Batista Marques é Advogado, Profes- sor, Mestre e Doutorando em Direito pela Uni- versidad Complutense de Madrid. Sumário Introdução. 1. A democracia para Hans Kel- sen. 2. O princípio de maioria segundo Kelsen. Conclusão. Revista de Informação Legislativa52 a tomada de decisões políticas, seja para o fim do bom governo do povo, ou seja para o fim da legitimação desse próprio sistema governativo. Por uma medida de lealdade intelectual, é oportuno apontar que o pensamento do autor em comento não obteve a unanimida- de, tendo sido objeto de ferrenhas críticas. Entre aqueles que objetam as idéias desse autor, imputam-lhe a condição de um balu- arte da antidemocracia. Inobstante tal pensamento, teve o gran- de mentor do constitucionalismo de Áus- tria o mérito de sobrepor uma lógica consis- tente na reflexão acerca do modelo demo- crático de gestão dos conflitos de interesses em uma sociedade organizada e civilizada. Portanto, tal pecha há que ser rechaçada, pois sua posição doutrinária conduz à consciência de que a democracia é procedi- mental, devendo ser ela afastada, por ademais de ser equivocada, em razão de que nada tem a ver com apreciações valorativas concretas de determinada realidade que haja servido de base para as formulações em torno do tema. Quando Kelsen descreve sua Teoria Pura do Direito, está preocupado em explicar o fenômeno jurídico desde uma visão distan- ciada de todas as influências exteriores ao dito fenômeno, como as influências socioló- gicas, históricas, econômicas, etc. Entende ele a Democracia, nesse particular, em ter- mos de essencialidade de concreção, como um modelo puramente formal de gestação e gestão dos interesses comuns, pela prima- zia dos princípios garantidores da liberda- de do indivíduo, do fortalecimento da par- ticipação do titular da soberania, que é o povo, de maneira não direta, mas de manei- ra a ser exercida por representantes em um órgão articulador das decisões políticas re- levantes, mediante um método ou procedi- mento formal de tomada de decisões basea- do na transação, na negociação, que deverá existir entre a maioria e a minoria, com o necessário respeito à segunda. Em última instância, Kelsen entende que a relevância da democracia subsiste latente no meio social, reverberando como meio suficiente e necessário para a formação da vontade geral. 1. A democracia para Hans Kelsen O primeiro que salta à vista quando se está a examinar o tema da democracia em Hans Kelsen é a premissa básica que sus- tenta seu raciocínio lógico, ou seja, para ele Estado e Direito significam basicamente o mesmo conteúdo, já que essas duas cons- truções culturais do homem moderno aglu- tinam o modus vivendi e o modus operandi de todo o atuar em sociedade, determinando ambos as condutas estabilizadas e deseja- das. Isso, precisamente, porque, em sua de- finição de democracia, o traço característico é a participação individual nas decisões que afetam ao todo, ou melhor, é o grau de en- volvimento no governo da engenharia cons- titucional, no dizer de Sartori (2004), criada e mantida na comunidade em que cada um dos indivíduos está submetido. Um segundo posicionamento em torno ao pensamento kelseniano dá argumentos fortes à posição de que a democracia, como modo de organização e participação social, é antes de tudo um método, um procedimen- to para permitir os debates, as articulações, transações e negociações entre as distintas correntes e forças políticas que representam os interesses dispersos e difusos na socie- dade, com o fim de que possa concretizar, de um modo pragmático, o que resultar do que aqui se denomina Vontade Política. A reflexão de Kelsen realça que, inexora- velmente, Sociedade e Estado hão de convi- ver sob a condição de um esquema de orde- nação que fixe os parâmetros que compati- bilizem liberdade e igualdade de seus parti- cipantes. Está subjacente a esse posiciona- mento um conteúdo essencial axiologica- mente previsto para os fins de garantia dos valores humanos fundamentais baseados nos ideais da Justiça e da Igualdade. Kelsen (1989, p. 227), definitivamente, põe de manifesto a vinculação ingente e ne- Brasília a. 42 n. 165 jan./mar. 2005 53 cessária entre a democracia e a liberdade. E esse posicionamento resulta evidente, pois o significado intrínseco do procedimento democrático é a garantia da máxima liber- dade aos que estão submetidos à condição da natureza humana, em que o homem há de compatibilizar o binômio necessidade/ dificuldade de mútua convivência. Hans Kelsen (1995, p. 337-338), em sua aportação sobre a teoria geral do Estado e do Direito relativiza a idéia de democracia e, como aponta magistralmente Monereo Pérez (2002, p. XIV), parte da idéia da mutá- vel e sempre cambiante experiência históri- ca, rechaçando a hipótese de um valor ab- soluto transcendente. Quer isso dizer que, em sociedade, vale a regra de que todos são iguais, por definição. De todas maneiras, Kelsen reforça a idéia de democracia como método ou procedimen- to para formação e obtenção da Vontade Política da sociedade, e que, de acordo com a obra citada: “en todo caso una cuestión de proce- dimiento, el método específico de cre- ación y aplicación del ordenamiento social que constituye la comunidad; éste es el criterio distintivo de ese sis- tema político al que se llama propia- mente democracia. La democracia no es un contenido específico del orde- namiento social salvo en la medida en que el procedimiento en cuestión es, él mismo, un contenido de este or- denamiento, es decir, un contenido regulado por este ordenamiento”. A democracia resulta, portanto, em um meio capaz de promover a interação entre os indivíduos e o coletivo, e entre estes e o Estado, reduzindo a complexidade das re- lações inerentes, como bem está assinalado por Fernández-Miranda (2003, p. 28). “la democracia, pues, exige el asegu- ramiento jurídico de los derechos y li- bertades fundamentales, que hacen posible la participación política y que, a partir de la contribución de todos, legitiman la regla de la mayoría como mecanismo impecablemente democrá- tico de toma de decisiones”. Também consiste em preocupação kel- seniana a idéia da necessidade de garantia de um arcabouço, um acervo de liberdades fundamentais, em que funciona o modelo procedimental formal da democracia como instrumento catalisador do processo social no termo participativo do governo comuni- tário. A percepção de Kelsen sobre a democra- cia sói ter como componente essencial o ele- mento subjetivo, representadopelos atores de todo o procedimento. Percebe ele que a democracia só tem razão de ser caso seja o calço de uma forma de manifestação políti- ca na qual, no poder soberano de determi- nar a gerência e o governo dos interesses coletivos, esteja definido como titular do exercício do poder o próprio povo. Muito possivelmente não veja Kelsen nesse elemento essencial para a democra- cia mais que um elemento cuja legitimação radica em um conceito jurídico, já que a rea- lidade social permite perceber variedades tais de grupos humanos convivendo simul- tânea e conflitivamente, submetidos à mes- ma conjuntura, mas detentores de traços característicos mórficos variáveis, como se exemplifica pela existência de culturas, lín- gua, raças, etc., bem como outros atributos das sociedades humanas. A percepção é que o povo, termo aqui entendido como a expressão eminentemen- te jurídica, não é a coletividade como um todo. Por suposto que a idéia de povo, de onde emana o poder e legitima o seu exercí- cio, resulta restringida em número dos que podem participar no procedimento demo- crático. Também há que se ter em conta que a esse conjunto de pessoas participantes, não se pode considerá-las em sua universa- lidade, dada a impossibilidade técnica de participação individual nas tomadas de decisões. O problema que agora se permite levantar, naturalmente, fica resolvido por intermédio do procedimento formal con- substanciado no princípio da Representa- Revista de Informação Legislativa54 ção, ou seja, o povo, que reflete um conteúdo jurídico, detém o poder de autogovernar-se, mas exercita esse poder mediante seus re- presentantes, elegidos por um sistema de redução da complexidade, que é o sistema eleitoral. Para a intermediação, na prática da rea- lidade política, surge a figura dos Partidos, cuja definição, do próprio Kelsen, é que es- sas instituições sociais buscam reunir e con- vergir as idéias que sejam concludentes para poder assegurar uma atuação eficiente na consecução da vida política da comunida- de, de um modo geral e universalizante. Outro elemento formal da democracia que deve ser sublinhado em Hans Kelsen é o relativo ao órgão que possibilita as tran- sações das mais diversas posições ideológi- cas. Ou, dito de outra maneira, é no Parla- mento que o povo, por intermédio de seus representantes eleitos segundo o processo eleitoral vigente, torna factível a materiali- zação dos interesses individuais e coletivos na vontade política do Estado. É no Parla- mento que o elemento subjetivo, configura- do pelo povo, manifesta sua vontade ten- dente à formação de um conteúdo geral e abstrato de paradigmas de condutas da vida em sociedade e de gestão dos interesses co- muns plasmados em leis. Importante posicionamento passível de inferência em torno ao conceito kelseniano de democracia é que tal instituição do go- verno dos homens pelos homens ultrapas- sa a mera condição de organização econô- mica, pois entende ele que, na prática soci- al, desde um ponto de vista potencial, o pro- cedimento democrático, como forma da polí- tica, admite conteúdos diversos, possibilitan- do o desenvolvimento tanto de um sistema econômico de orientação ao Capitalismo, como de outro com orientação Socialista. 2. O princípio de maioria segundo Kelsen O renomado mestre austríaco é, como já assinalado anteriormente, um firme defen- sor do relativismo em torno do tema da de- mocracia, o que vai determinar seu pensa- mento em relação ao chamado Princípio de Maioria, ao que o próprio Kelsen prefere denominar Princípio de Maioria e de Mino- ria. Levando-se em consideração que, por definição kelseniana, a existência de uma maioria pressupõe, de antemão, a coexistên- cia necessária de uma minoria, pode-se in- ferir que somente é possível falar em Maio- ria se se tem em conta que existe uma prévia disposição da minoria com seu respectivo direito de participação no processo delibe- rativo. É forçoso concluir que essa necessidade de dar cabida a um processo deliberativo de tomadas de decisões políticas que permita, dialeticamente, a participação concomitan- te da Maioria e da Minoria adquire força e razão de ser se, e somente se, estão todos a falar de uma Democracia Representativa. Sabidamente, entendida a democracia repre- sentativa como procedimento formal de re- dução da complexidade política que infor- ma a vontade coletiva, posto que, na demo- cracia de identidade, ou seja, a democracia direta, também explicada por aquela em que o povo exercita, sem intermediários, o seu poder soberano de constituição, fica sem sentido a existência de representantes, man- datários atuando em nome dos titulares do poder em um órgão articulador das transa- ções e negociações que se devem realizar para a imprescindível obtenção da vontade política desse mesmo povo. Em uma democracia de identidade, tam- pouco tem força a distinção entre Leis e Constituição, uma vez que o titular da sobe- rania prescreve as condutas diretamente, e sempre quando assim o desejar, não estan- do limitado por quaisquer restrições. Desse modo, a noção de supremacia da Constitui- ção perde relevância, uma vez que o titular constituinte tem um poder prévio e ilimita- do na formulação diuturna da política ge- ral de constituição das condutas previstas para o pacto de convivência. Brasília a. 42 n. 165 jan./mar. 2005 55 Posição crítica à democracia de repre- sentação dita que, por razão da impossibili- dade técnica da realização da democracia direta ou de identidade, surgem, no âmbito do órgão representativo articulador da von- tade do povo, qual seja o Parlamento, posi- ções ideológicas majoritárias tendentes a obscurecer a vontade da minoria, visando sempre à unanimidade, surgindo, por ou- tro lado, também, as paixões minoritárias, muitas vezes incapazes de interpor a força suficiente para dar vazão a um mecanismo equilibrador, em que esteja manifesto um sistema de freios e contrapesos. Frente a argumento tão palpável, Kelsen predica a efetiva garantia às minorias como método de concerto da democracia, por in- termédio da participação dessa parcela da vontade política, sem a qual não se pode legitimar a tomada de decisão. De toda sor- te, há de haver um acordo entre a Maioria e a Minoria na composição de uma só vonta- de manifestada pelas diferentes forças polí- ticas que compõem o órgão parlamentar. O procedimento parlamentar para Hans Kelsen está concebido como o resultado con- tingente de uma distinção sobejamente im- portante e que se manifesta entre os concei- tos de ideologia e realidade. Em um primei- ro suposto, ele percebe como um sistema ideal da liberdade com ênfase no fato de que a formação da vontade coletiva deve dar-se com a maior aproximação possível à vonta- de dos indivíduos submetidos, não só no que diz respeito ao procedimento, mas também aos efeitos decorrentes dessa Liberdade. Sob esse prisma, Kelsen concebe uma noção para o significado do que é a autode- terminação, termo que se encontra vinculan- te e vinculado ao ideal da Liberdade. E o definitivo, nessas questões ideais, é que, por ficção, a maioria representa a decisão aqui- escida pela minoria e que essa decisão é re- presentativa da Vontade Coletiva. De ângulo distinto, Kelsen reconhece a existência de outro problema, o fato de que, na realidade, as coisas não acontecem tal qual previsto ideologicamente. Exemplifica que pode haver maiorias numéricas que nada determinem, uma vez que resultam de coalizões meramente eleitorais. E é possível trazer um termo cunhado no jargão políti- co, “coalizões meramente eleitoreiras”. Muito se há falado, no curso deste escri- to, sobre o Princípio de Maioria. Significa para Kelsen (1995, p. 65) o referido princí- pio, em suas próprias palavras: “el sentido del principio de la mayo- ría no consiste en que triunfe la vo- luntad del mayornúmero, sino en aceptar la Idea de que bajo la acción de este principio, los individuos inte- grantes de la comunidad social se di- viden en dos grupos fundamentales”. Da necessidade do confronto, não neces- sariamente numérico, entre maioria e mino- ria, é possível reconhecer, segundo Kelsen, que o procedimento diante do Parlamento, com toda sua dinâmica de funcionamento, resultado da mecânica do contraditório, das controvérsias e debates, das influências manifestadas, dos discursos e réplicas, po- sições e contraposições ideológicas, deve constituir-se em uma ferramenta eficiente e eficaz que tenda a viabilizar o consenso, cujo nome mais difundido é transação. A transação, que retrata simplesmente a negociação política, tem uma amplitude em Kelsen, significando o modo político dialé- tico capacitador do embate e catalisador dos distintos movimentos de idéias. Concebe a articulação negociativa, sobretudo, quando esta conduz ao afastamento, à posposição dos problemas que podem estorvar o con- senso, à coesão; com o concurso, no mesmo procedimento das coadunações necessári- as que visem à busca dos elementos que fac- tibilizem, que favoreçam, que contribuam à consecução da Vontade Coletiva. A transa- ção kelseniana traz a receita para todo o procedimento parlamentar, pois este está baseado na fixação de uma linha eqüidis- tante mediana entre os interesses que se con- trapõem, que resultam da bipolarização, da pugna entre as idéias, das forças sustenta- das no debate político. Revista de Informação Legislativa56 Dando-se conta que o órgão parlamentar está composto por membros provindos do corpo eleitoral, o que se constitui em uma di- ficuldade no plano concreto é o problema de como formular um sistema eleitoral equilibra- do e seguro, que seja capaz de dar as respos- tas que melhor resolvam as pugnas de inte- resses contrapostos no seio daquele órgão. O sistema de representação fundamen- tado na proporcionalidade, segundo Kelsen, permite que cada partido participe no Órgão com a força numérica que lhe há dado uma parcela do Corpo Eleitoral, ou seja, o partido, no Órgão Parlamentar, representa não a inte- gralidade do corpo eleitoral, mas a parcela do eleitorado que lhe deu aquela votação. Notadamente, o mestre da Escola de Viena advoga por um sistema de represen- tação proporcional para a composição dos distintos ideários no seio do Parlamento. Assevera, inclusive, que esse tipo de méto- do é hábil e útil para a acomodação dos dois princípios basilares reitores da vida parla- mentária: ou bem permite intercambiar o sis- tema de maioria; ou, por outro lado, o siste- ma de divisão em circunscrições eleitorais, o que facilitaria a obtenção de assentos na bancada parlamentar pelas minorias. Advém dessa posição a vantagem de que, nas discussões e debates no Órgão Parla- mentar, estejam manifestadas as represen- tações de todos os partidos, de conformida- de com a força numérica que sustenta a ex- pressão das idéias políticas na sociedade. Ademais, a Kelsen não há ocorrido dei- xar de levantar algumas objeções às quais se enfrenta o sistema de representação pro- porcional, como é o exemplo dado por ele de que de nada serve levar-se ao Parlamen- to minorias fracas, posto que as decisões são impostas, sem negociação, pela maioria. E, de todas maneiras, que esse sistema facilita a formação de partidos pequenos e atomi- zados, o que redundaria em dificuldade para a formação de uma vontade política homogênea e garantidora do regular desen- volvimento das atividades parlamentárias e de governo. Nessa mesma linha de racio- cínio, traz ele à colação outras objeções fei- tas ao modelo de representação proporcio- nal, que estão muito evidentes e que refle- tem o conteúdo de sua formulação teórica de fundo eminentemente democrático, reme- tendo a solução para os problemas suscita- dos à necessidade de uma integração políti- ca resultante da sorte de coalizões eleitorais que possam gerar o trabalho constante das forças sociais representadas no Parlamento. Conseqüência manifesta que acredita Kelsen ser de todo benéfica para o resultado da formação do governo e sua conseguinte manutenção, havida conta de que a vonta- de manifestada para o governo do Estado consistirá, simplesmente, não na vontade de um só grupo partidário, mas, por outra for- ma, haverá que se levar em consideração as vontades das outras agremiações partidári- as com representação no Parlamento. E de verdade, como assinala Kelsen, o trabalho de transação é mais proveitoso no âmbito parlamentar que aquele que seria feito pela massa disforme do Corpo Eleitoral, em uma eventual democracia de identidade. A obra de Kelsen considera essencial a luta transacional parlamentar e que esse embate deve estar cercado de garantias de que as minorias tenham as mesmas possi- bilidades e oportunidades no jogo político para desenvolver suas propostas e projetos. Por outra sorte de situações, Kelsen pon- tualiza alguns importantes riscos que de- vem ser considerados no procedimento par- lamentar, baseado na representação propor- cional. Um dos principais problemas que sublinha é o do bipartidarismo, em que sem- pre se impõe uma maioria em detrimento de uma minoria, com uma conseguinte tendên- cia à perpetuidade no poder por parte do grupo majoritário, bem como um possível desinteresse da minoria que estaria desti- nada a ficar sempre sem a factibilidade de poder tornar-se, eventualmente, governo. Ademais desse significativo problema da distribuição bipolar do poder entre o partido majoritário e as minorias, suscita o autor outra questão de transcendental rele- Brasília a. 42 n. 165 jan./mar. 2005 57 vância na rotina do procedimento parla- mentar, que está relacionada com o tema da obstrução. Esse mecanismo de atuação da minoria Kelsen considera quase legítimo, ainda que também o considere como um meio que pode tornar possível entorpecer, ou quiçá, obstaculizar, inclusive, às vezes, impossibilitar o processo de transação no seio do Parlamento. Em outros supostos, reconhece Kelsen que a obstrução, na prática parlamentária, possibilitou e, inclusive, alicerçou uma rea- lidade que habilita a maioria e a minoria para promover cada vez mais as transações necessárias à vida política do Estado. Assim é que se pode imputar a Kelsen uma certa influência da vertente psicanalí- tica, sobretudo quando explica as diferen- ças entre o que é a democracia e o que é a autocracia. Argumenta acerca da posição favorável a uma situação psico-política em termos de uma prévia disposição a uma acei- tação ou a uma recusa de determinadas or- dens provindas de uma ou de outra. A pregação kelseniana, enveredando por essa tendência psico-político-social, estabe- lece que a submissão do indivíduo na de- mocracia se dá pela adesão espiritual, moti- vada pelo fato de que alguém se vê repre- sentado por aquele a quem elegeu, e que a norma criada por seu representante tem algo de participação sua, o que faria com que, no caso, esse indivíduo se tornasse predispos- to ao cumprimento do preceituado, enquan- to, por outro lado, também existiria uma adesão individual ao cumprimento na au- tocracia, mas com outra motivação psicoló- gica, de índole negativa. A título de síntese das diferenças entre a democracia e a autocracia, o que reflete o autor é que a primeira acaba por sobrelevar a consciência individual do cidadão à par- ticipação no jogo político por meio de sua adesão pessoal. E isso vai se dar pela cren- ça de que o indivíduo se considera um ator mais na cena política. Sem embargo, na au- tocracia, o indivíduo permanece inerte à es- pera da definição que lhe será outorgada heteronomamente. Isso explica que, ainda que a teoria do Contrato Social, de Rousseau, constitua uma ficção ideológica, segundo o pensamento de Kelsen, na realidade psicoló- gica, ele visualizaque a democracia torna viável a possibilidade da concórdia, do con- senso, enquanto a autocracia sobreleva o peso que tem a decisão dada desde fora. Conclusão A modo de resumo, o princípio de maio- ria e de minoria kelseniano reforça a neces- sidade da constante conversação política no âmbito daquele Órgão encarregado da articulação das forças políticas com vulto na organização do Corpo Eleitoral. É o Par- lamento como foro por excelência da demo- cracia representativa de partidos. A esse contínuo diálogo que torna assumível a transação, tende a aproximar-se ainda mais daquilo que é o consenso, sempre e quando as minorias hajam tido a possibilidade de participação no processo decisório. E tudo isso porque, pode-se concluir, desde o pensamen- to de Kelsen, a decisão tomada apenas com obediência à regra majoritária não represen- ta necessariamente que tal decisão tenha que ver com o que é a verdade, a correção ou a fiabilidade. Apenas essa decisão advém de uma regra numérica, e, sem a dialética facili- tadora do consenso, pode aquela redundar em desapreço pelo método democrático. Notas 1 Obras traduzidas ao Castellano. 2 Há de entender-se o conceito de Corpo Eleito- ral como o conjunto de cidadãos habilitados legal- mente à manifestação do direito de sufrágio. Bibliografia DAHL, Robert A. Poliarchy: participation and oppo- sition. New Haven: Yale University Press, 1971. FERNANDEZ-MIRANDA CAMPOAMOR, Alfon- so; FERNANDEZ-MIRANDA CAMPOAMOR, Revista de Informação Legislativa58 Carmen. Sistema electoral, partidos políticos y parla- mento. Madrid: Colex, 2003. 223 p. KELSEN, Hans. Esencia y valor de la democracia. 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