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O problema da indução 10 1 Inferências indutivas Neste capítulo iremos debruçar-nos sobre uma impor tante forma de cepticismo localizado. A sua localização, no entanto, é algo vasta, na medida em que diz respeito ao nosso conhecimento do inobservado (o qual é imenso). Este é um conhecimento que adquirimos por inferência indutiva ou indução: a minha experiência de regulari- dades no passado é tomada como justificação de crenças acerca de coisas de que não tenho experiência. E impor tante notar que este tipo de raciocínio é muitas vezes apresentado como relativo apenas ao nosso conhecimento do futuro, o que não é correcto. Os argumentos indutivos dizem respeito ao futuro, ao presente e ao passado. Consideremos os seguintes argumentos: O Futuro Premissa: O Sol nasceu todos os dias da minha vida. Conclusão: O Sol vai nascer amanhã. O Presente Premissa: Toda a neve que eu já vi é branca. Conclusão: Toda a neve que existe agora é branca. 224 O P R O B L E M A DA IN D U Ç Ã O O Passado Premissa: Todas as maçãs que eu comi tinham caroços. Conclusão: A maçã que Guilherme Tell alvejou tinha caroço. Eu não afirmo que estas conclusões estão certas; afinal, é possível que o Sol não nasça amanhã, se por qualquer motivo se converter prematuramente numa supernova, ou se a Terra fosse desviada da sua órbita por um grande meteorito. Não obstante, gostaria de afirmar que há uma probabilidade muito grande de as minhas conclusões indutivas se revelarem verdadei ras, e de eu ter, portanto, justificação para as aceitar. Iremos examinar dois argumentos que sugerem que um tal raciocínio não é válido, levando-nos à conclu são de que não temos justificação para acreditar que o Sol vai nascer amanhã, que toda a neve é branca, ou que as maçãs tinham caroços no passado. Começare mos por analisar o argumento de Hume (Hume, 1978; 1999), para em seguida nos debruçarmos sobre uma versão contemporânea do problema apresentado por Nelson Goodman (1953). 2 O cepticismo indutivo de Hume Partimos do princípio de que a nossa experiência limitada do mundo é um guia fiável para o comporta mento do mundo noutros tempos e lugares. Para que este pressuposto seja justificado, temos de presumir que o mundo se comporta de um modo regular, que irá continuar a fazê-lo, e que a nossa experiência nos ajuda a apreender a natureza da sua regularidade. As nossas presunções constituem o «princípio da unifor midade», e alguns autores têm defendido que esta é uma premissa oculta em todos os argumentos indu- 225 IN T R O D U Ç Ã O À T EO R IA DO C O N H E C I M E N T O tivos. Uma versão mais completa de um dos argumen tos acima apresentados seria: Premissa: Toda a neve que eu já vi era branca. Premissa: Princípio da Uniformidade: «[que] os casos de que não tivemos experiência têm de se asse melhar àqueles de que tivemos experiência, e que o curso da natureza continua sempre uniforme mente o mesmo» (Hume, 1978, p. 89). Conclusão: Toda a neve que existe agora é branca. Com a inclusão desta premissa, este raciocínio é de dutivamente válido (ver inferência). Mas será esta pre missa adicional justificada? Há duas maneiras de eu justificar o princípio da uniformidade: posso vê-lo como uma verdade a priori, ou como uma afirmação empírica acerca do mundo, para a qual temos provas a posteriori. Hume, porém, argumenta que ele não pode ser justifica do de nenhuma destas formas. O princípio da uniformi dade não é uma verdade a priori porque não é contradi tório negá-lo; o mundo não precisa de ser regular. Se o princípio da uniformidade for verdadeiro, isso constitui uma verdade empírica, para a qual a nossa experiência tem de fornecer uma justificação. Contudo, a única pro va em que nos podemos basear é a nossa experiência da pequena fatia de espaço e tempo que habitamos. Aqúi, o princípio da uniformidade prevaleceu, mas este princí pio diz respeito a toâo o espaço e tempo, e a nossa expe riência não prova que a sua aplicação seja tão ampla. Podemos talvez tentar argumentar nos seguintes termos. Premissa: Na minha experiência, o curso da natureza continuou a ser sempre uniformemente o mesmo. Conclusão: O curso da natureza foi sempre e conti nuará sempre a ser uniformemente o mesmo. 226 O P R O B L E M A DA IN D U Ç Ã O Isto, no entanto, seria usar a inferência indutiva para justificar o princípio da uniformidade: as regularida- des do passado na minha experiência são tomadas como justificação de crenças acerca da ocorrência uni versal de tais regularidades. Este raciocínio faz uma petição de princípio: se o princípio da uniformidade servir de base à indução, precisamos de um argumen to independente para o facto de termos justificação para o aceitar. Hume afirma que isso é algo que não temos. E importante que estejamos cientes da natureza radical da tese de Hume. Ele argumenta que todo o raciocínio indutivo é inválido: não temos razões a priori ou empíricas para aceitar crenças baseadas em inferên cias indutivas. Não temos justificação para acreditar que o Sol irá nascer amanhã. O ponto crucial é este: se eu afirmar que o Sol vai nascer amanhã e o meu amigo afirmar que ele se vai transformar num ovo estrelado gigante, a minha crença não é, de acordo com Hume, mais justificada do que a do meu amigo. Claro que eu não tenho amigo algum que acredite nisto, e Hume tem uma explicação para esse facto. De vido ao «costume» ou ao «hábito», todos pensamos em termos indutivos. Contudo, este tipo de pensamento não é justificado; resulta apenas de certas disposições psico lógicas que criaturas como nós possuem: «não é, portanto, a razão que é o guia da vida, mas sim o costume» (Hume, Abstract, in Hume, 1978). No seu Tratado de 1739, Hume sustenta esta tese fornecendo uma explicação causal rudi mentar para o facto de termos as crenças que temos (Hume, 1978). (Com esta ênfase na descrição causal, a sua explicação pode ser vista como precursora da aborda gem naturalista moderna da epistemologia, a qual iremos explorar no próximo capítulo.) Os animais também têm essas disposições: são guiados pelo costume e esperam que as regularidades que experienciaram continuem. IN T R O D U Ç Ã O À T E O R IA DO C O N H E C I M E N T O Contudo, como observa Russell (1912), a galinha a que o agricultor dá de comer todos os dias pode ser degolada amanhã. A nossa posição é análoga à da galinha: espera mos que o Sol nasça todas as manhãs tal como a galinha espera o seu alimento, mas nenhum de nós tem qualquer justificação para as nossas crenças ou comportamento. Uma resposta comum a esta posição céptica é que sabemos que o Sol irá nascer amanhã porque temos uma explicação científica para que tal aconteça, des crevendo o movimento da Terra em relação ao Sol. Aqui, no entanto, podemos ver todo o alcance do ar-, gumento de Hume. Chegámos à nossa narrativa atra vés de sucessivas observações astronómicas. A nossa explicação científica do nascer do Sol é, portanto, indutiva, pelo que está igualmente sujeita ao argumen to de Hume. De acordo com Hume, o cientista não pode justificar a sua crença de que a gravidade conti nuará a manter os corpos celestes nas órbitas que até agora temos observado. 3 Respostas ao cepticismo indutivo Vários autores criticaram Hume por supor que todo o raciocínio válido tem de ser dedutivo; um bom racio cínio tem de nos fornecer razões conclusivas para mantermos as nossas crenças. Nos argumentos induti vos acima apresentados — a respeito do Sol, da neve e das maçãs — a inclusão do princípio da uniformida de permitiu que as conclusões desses argurnentos fos sem dedutivamente inferidas das respectiVas premis sas. Podemos ter duas atitudes perante esta abordagem dedutivista. O primeiro tipo de resposta aceita que a dedução é a única forma de inferência válida, com o argumento de que o raciocínio empírico é dedutivo e não indutivo. Esta é a abordagem assumida por Karl 228 O P R O B L E M A DA IN D U Ç Ã O Popper(1959). O segundo tipo de resposta rejeita o dedutivismo e argumenta que o raciocínio indutivo é justificado em si mesmo. 3.1 A concepção dedutiva da ciência de Popper Popper afirma que a metodologia científica é não- -indutiva; devemos entendê-la, portanto, como um método que segue um modelo hipotético-dedutivo em duas fases. Primeiro, formulamos uma hipótese ou teoria para explicar os dados observáveis. Segundo, testamos esta teoria tentando encontrar dados que ela não explica. A observação continuada de regularida- des indutivas nada acrescenta à justificação que temos para as nossas teorias; a observação trata, isso sim, de desvendar casos em que as regularidades propostas cessam. Procuramos «falsificar» as nossas teorias. Se conseguirmos fazê-lo, então, as nossas teorias estarão erradas e teremos de inventar teorias novas. A princi pal diferença entre os dois modelos é esta: seguindo a abordagem indutiva, mantemo-nos receptivos às re gularidades da natureza, e acreditamos naquelas para as quais obtemos provas indutivas. Seguindo o mode lo hipotético-dedutivo, abordamos o mundo com preconcepções, com hipóteses de trabalho relativamen te à natureza das regularidades que nele encontrar mos. Popper afirma que esta teoria tem duas virtudes. Primeiro, dá-nos uma descrição mais correcta das prá ticas dos cientistas. Segundo, a inferência usada na falsificação é dedutivamente válida. Hipótese: Todos os cisnes são brancos. Observação: Há cisnes não-brancos na Austrália (fo ram descobertos cisnes pretos nessa região). Conclusão: Não se dá o caso de todos os cisnes se rem brancos. IN T R O D U Ç Ã O À TEO RIA DO C O N H E C I M E N T O Se as premissas deste argumento forem verdadei ras, então temos de chegar a esta conclusão. As teorias que propomos são muitas vezes aquelas que os indícios indutivos nos sugerem: foi afirmado que todos os cisnes são brancos porque todos os cisnes observados até então o eram. Esta, no entanto, é ape nas uma das maneiras que temos de formular uma hipótese. Há muitas outras. Poder-se-ia, por exemplo, sugerir que a temperatura máxima num determinado ano é igual à média de idades da população mundial. Para Popper, esta hipótese não é epistemicamente infe rior àquela que tem por base os registos meteorológicos do passado (ainda que devesse ser, sem dúvida, ime diatamente falsificada). Um dos problemas da explicação de Popper é que não ficamos melhor no que concerne à justificação e ao conhecimento. Não temos razão para afirmar que as nossas teorias são verdadeiras; simplesmente, ainda não se provou serem falsas. A explicação de Popper acolhe as consequências cépticas do argumento de Hume. [N]ão devemos entender a ciência como um «corpo de conhecimento», mas antes como um sistema de hipó teses que em princípio não podem ser justificadas, mas com que trabalhamos, contanto que elas resistam aos nossos testes, e em relação às quais nunca temos justifi cação para dizer que sabemos serem «verdadeiras» ou «mais ou menos certas» ou sequer «prováveis». (Popper, 1959, p. 317) Gostaríamos, no entanto, de ser capazes de rejeitar a perturbante conclusão de que não temos qualquer tipo de justificação para acreditar que o Sol irá nascer amanhã. Sem perder isto de vista, debrucemo-nos agora sobre algumas respostas menos cépticas ao pro blema colocado por Hume. 230 O P R O B L E M A P A IN D U Ç Ã O 3.2 Probabilidade Russell (1912) aceita que a indução não nos propor ciona crenças certas acerca do inobservado; afirma, no entanto, que há uma grande probabilidade de as nos sas conclusões indutivas estarem correctas. Se todas as esmeraldas que examinámos até agora são verdes, então, há uma boa probabilidade de que a próxima também seja verde. E uma conclusão que tem uma elevada probabilidade de estar correcta é algo que podemos justificavelmente aceitar. Contudo, uma tal abordagem enfrenta um proble ma, pois não sabemos se examinámos uma amostra representativa do género de coisa em questão. Supo nhamos que uma criança está a pôr moedas a rodo piar no chão. As primeiras três moedas que a criança põe a rodopiar podem cair de cara para cima. Seguindo o raciocínio acima exposto, ela teria então justifi cação para pensar que há uma boa probabilidade de que a próxima moeda também seja cara (se não ti vesse examinado previamente a moeda). Isto, porém, não se verifica; é igualmente provável que a próxima seja coroa. Poderia, portanto, suceder que a nossa amostra fosse igualmente enviesada e que as cores das esmeraldas que vimos até agora fossem um mero gol pe de sorte, tal como as moedas que a criança fez ro dopiar. Se tivermos um saco contendo mil rebuçados ver melhos e um rebuçado azul, então, é razoável eu acre ditar que irei tirar um vermelho, visto que as probabi lidades são de mil contra um a meu favor. A minha crença pode não ser certa, mas há uma probabilidade muito boa de que venha a revelar-se verdadeira. Esta não é, no entanto, uma situação análoga ao problema de Hume. Sabemos quais são as probabilidades no que se refere aos rebuçados vermelhos e azuis porque sabe 231 I N T R O D U Ç Ã O À T EO R IA DO C O N H E C I M E N T O mos o que contém todo o saco. Não é isto que sucede com as nossas inferências indutivas a respeito do inobservado. Tivemos experiências de apenas uma fracção infinitesimalmente pequena de tudo o que há para experienciar; não podemos portanto saber se a nossa amostra é representativa. Talvez as esmeraldas verdes sejam muito pouco usuais, se atendermos à totalidade da sua ocorrência em todo o espaço e tem po. A partir da nossa experiência limitada, não pode mos estabelecer se a nossa amostra é representativa ou não; não temos por isso justificação para fazer sequer inferências probabilísticas a respeito do inobservado. As duas respostas ao problema da indução que se seguem são mais convincentes. Contudo, assentam em duas teorias mais amplas da justificação epistémica, isto é, o fiabilismo e o coerentismo. 3.3 A resposta fiabilista ao problema da indução Para os fiabilistas, o conhecimento resulta de meca nismos cognitivos que geralmente conduzem à aquisi ção de crenças verdadeiras. Uma pessoa não tem de ser capaz de enunciar as razões que justificam as suas crenças, e não tem de estar ciente dos tipos de proces sos cognitivos que o seu pensamento envolve; a única coisa que é necessária ao conhecimento é a conexão objectiva com a verdade. Pode dar-se o caso, portanto, de a inferência indutiva ser um método fiável para adquirir crenças verdadeiras. Se há regularidades no mundo, então a indução seria uma boa maneira de as identificar. Se isto fosse assim, poderíamos ter conhe cimento acerca do inobservado. Hume consegue mos trar que não podemos providenciar argumentos razoá veis para justificar a indução, mas para um fiabilista isso não importa. A única coisa que aqui lhe interessa é perceber se o raciocínio indutivo é ou não um método 232 O P R O B L E M A DA IN D U Ç Ã O fiável de obter verdades acerca do mundo. Para melhor avaliarmos esta resposta a Hume, seria útil recordar mos a primeira apresentação que fizemos do fiabilismo (capítulo 8) e até que ponto essa abordagem da episte- mologia nos pareceu então ser sustentável. 3.4 A resposta coerentista Há quem defenda que o problema da indução não atinge aqueles que aceitam uma teoria coerencial da jus tificação. De acordo com o coerentista, se o facto de acre ditarmos no princípio da uniformidade nos proporcio nar um sistema de crenças mais coerente, então, essa crença é justificada. Tem sido argumentado que é isto que acontece. Supunhamos que eu acredito que a esme ralda de Laura é verde, que as que estão no British Museum também são, e que a esmeralda da minha mãe também é. A crença no princípio da uniformidade e a consequente crença de que todas as esmeraldas são ver des não pode deixar de ser coerente com estas crenças particulares. Primeiro, nenhumadas minhas crenças contradiz a afirmação universal. Segundo, a coerência do meu sistema de crenças aumenta em virtude das re lações inferenciais do princípio da uniformidade: as cren ças acerca da cor de esmeraldas particulares podem ser inferidas a partir da minha crença de que todas as esme raldas são verdes. Assim, de acordo com o coerentista, temos justificação para acreditar no princípio da unifor midade em relação a quaisquer regularidades que te nhamos encontrado na natureza. Se aceitarmos o coerentismo, podemos rejeitar o problema da indução. É importante não perder de vista, no entanto, que no capí tulo 7 descobrimos haver várias dificuldades associadas à teoria coerentista da justificação, as quais teriam de ser resolvidas para que pudéssemos aceitar esta posição como resposta satisfatória à situação humeana. 233
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