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Universidade de Brasília (UnB) Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM) Infância e Juventude na Contemporaneidade Emília Morena Silva Felix - 130108766 Gustavo de Sousa Cardozo Costa - 130113361 Uma abordagem psicanalítica do filme “O Quarto de Jack” Brasília - DF 2016 RESUMO Tomando como base o conceito psicanalítico de infantil desenvolvido por Sigmund Freud a partir de 1900, faz-se necessário analisar as características psicanalíticas no cotidiano. O artigo tem como objetivo analisar alguns conceitos psicanalíticos a partir do longa-metragem “O quarto de Jack”. Com a leitura de artigos científicos e críticas publicadas foi feita uma comparação de elementos típicos da psicanálise que podem ser identificados no filme. O artigo explora as noções de afeto e cuidado no desenvolvimento infantil, tal como o que é entendido como real ou fictício a partir das experiências sensoriais. Palavras-chave: psicanálise, cinema, quarto de jack, infância, freud, infantil O filme do diretor Lenny Abrahamson “O quarto de Jack” (em inglês Room) conta a história de Joy, que é mantida em cativeiro junto com seu filho Jack, de cinco anos. Joy foi sequestrada e obrigada a manter relações sexuais abusivas com o seu sequestrador e posteriormente concebeu Jack. A criança cresceu em cativeiro, ou seja, sem que houvesse contato com o mundo externo. O longa se divide em três atos: o primeiro se passa com Jack e Joy ainda no quarto, onde o espectador se depara com a introdução de Jack no mundo. O segundo ato se inicia quando os dois saem do quarto e os conflitos se iniciam entre mundo externo e interno, uma vez que é o primeiro contato da criança com o ambiente fora do quarto. O último ato se concentra a partir do momento em que os conflitos de Jack com o mundo externo já estão resolvidos e a narrativa foca na figura de Joy, que não consegue voltar para o mundo real após o trauma do cativeiro. O foco da narrativa é, então, na percepção que Jack tem a respeito do quarto e do mundo, revelando os conflitos que existem acerca da realidade e da ficção, pois para Joy, o quarto é uma prisão, mas para Jack “Quarto” é um mundo inteiro que vai em todas as direções até o fim” (KERMODE, 2016), uma vez que o mundo para ele é apenas o quarto onde vive. Ele é incapaz de visualizar um mundo além do “Quarto” e por isso não compreende os valores de “fora” e “dentro”, pois para Jack, o limite do universo são as paredes que o cercam. Para facilitar o entendimento de Jack sobre o universo, Joy diz para Jack que os objetos que existem no quarto são reais (plantas, panelas, tapetes, etc.), mas os objetos que não existem no quarto são fictícios (árvores, carros, aviões). Estes objetos fictícios são vistos por Jack na televisão. Moreira (2016) explica a percepção que foi ensinada por Joy da seguinte forma: Jack de fato acredita que as pessoas que estão na televisão moram dentro da caixa cinza e que cada canal é um planeta diferente. Tem o planeta dos médicos, das notícias falsas, do mundo animal e dos desenhos. Pode parecer confuso mas, para o garotinho, só ele e sua mãe, Joy, são reais. Isso porque o mundo em que eles vivem, chamado de Quarto, é tudo que ele conhece. (MOREIRA, 2016) Uma vez que o Jack conhece apenas a realidade do seu quarto, os objetos que estão ali assumem um caráter único, Jack não fala “esta panela” ou “aquela panela”, existe apenas “Panela”, iniciada com letras maiúsculas para delimitar que as coisas ganham caráter de sujeito. Santos (2016), ao falar sobre a abordagem Gestáltica diz que: Na abordagem Gestáltica, vemos o homem como um ser que se constrói através dos contatos que faz com o seu meio - pessoas com diferentes perspectivas -, num processo eterno de vir a ser. É muito importante mantermos contatos nutritivos, com pessoas que colaboram para nosso desenvolvimento, evitando cristalizações, engessamentos produzidos em contatos tóxicos – pessoas que prejudicam nosso processo. (SANTOS, 2016) O único contato de Jack é com sua mãe Joy. Como uma forma de compensar a falta de relações humanas, Jack personifica os objetos à sua volta. Segundo a crítica feita pela comunicóloga e psicanalista Raquel Rocha no canal do Youtube “Luz Câmera Arte” o homem é um ser social por natureza, por isso é importante que haja interação com outros seres para a formação de laços. Assim sendo, a tentativa de Joy de fazer com que seu filho tenha uma vida feliz pode ser vista sobretudo nos esforços para que ele tenha contatos humanizados. Entretanto, como só há Joy e Jack no quarto, a infância do garoto é marcada pela personificação de objetos inanimados, a solidão e rotina em que Jack e Joy vivem se ameniza pelo processo de categorização dos objetos como pessoas com as quais Jack possui uma relação íntima, isto pode ser percebida porque o personagem cumprimenta, conversa e se despede dos objetos, sempre tocando os mesmos. As únicas coisas reais para Jack são as coisas que ele vê. A planta, por exemplo, é real porque ele tem uma no quarto, mas as árvores não. Enquanto aranhas e mosquitos são reais, cachorros e esquilos não, já que são animais que ele tem contato apenas por meio da televisão. A relação de Jack com os objetos é entendida também como uma forma de brincar. Vygotsky (1998) defende que a simbologia da brincadeira na formação da criança tem relação com o desenvolvimento infantil, sobretudo antes da introdução na escola, apesar de não ser o único fator, os brinquedos são responsáveis por grande parte do avanço na cognição infantil. Para Melo e Valle (2005), a brincadeira é uma forma de conhecer ainda mais a realidade, onde a criança tem a oportunidade não de se encaixar em normas, mas de encaixá-las em seu mundo. Segundo Souza (2016), é por meio de fantasias e brincadeiras que as crianças constroem suas experiências e compreendem o seu mundo. As fantasias atuam como metáforas dos processos inconscientes das criança. O cinema também possui papel semelhante, ao se projetar na tela fantasias. “Essa projeção leva uma transferência de intensidade psíquicas de uma interpretação consciente, atribuindo significado único ao sujeito sobre tais fantasias” (SOUZA, 2016, p. 2). Santos (2016), faz uma análise do filme O Quarto de Jack com foco na superação de conflitos, para ela contatos que são nutritivos e positivos nos ajudam a superar conflitos, favorecendo o desenvolvimento através do afeto, com a possibilidade de transformar nosso mundo, que sem estes afetos se torna empobrecido e restrito. Esta noção defendida pela autora nos permite enxergar o quarto em que Jack e Joy vivem de forma mais profunda, conforme a seguir: Chamamos a atenção para o “quarto de Jack”, não só como um espaço físico, mas como lugar psicológico. Quem não tem um “quarto intocável”, lugar conhecido, seguro, zona de conforto, um lugar difícil de ser deixado paratrás, ainda que não seja possível permanecer lá? Como aceitar a mudança, virar a página, fechar ciclos, quando a impressão é de que aquele lugar é único? Como enfrentar a despedida, vivenciar o luto em sua totalidade? (SANTOS, 2016) Sendo assim, o quarto é também um local de construções sociais. O sujeito humano já é moldado pelo ambiente antes mesmo do nascimento. Essa construção ocorre justamente porque a criança sofre influências do meio familiar, cultural e socioeconômico onde foi criada. Para Priszkulnik (2004), Freud identificou essas marcas deixadas pelo ambiente na criança como impressões, que são fundamentais para a identificação e compreensão dos distúrbios no adulto. Antes de vir ao mundo, ela já é falada pelos outros, já é marcada pelo desejo inconsciente dos pais e ocupa um lugar no imaginário desses pais (esses pais têm as marcas dos pais deles, esses últimos têm as marcas dos respectivos pais e, assim, sucessivamente). Ela é esperada de determinado jeito, já representa algo para um e outro dos pais em função da história de cada um, já tem um lugar marcado simbolicamente (PRISZKULNIK, 2004). A ideia de que o quarto é um lugar não somente físico mas também psicológico fica evidenciada ao longo do filme, pois apesar de Jack e Joy fugirem do quarto e serem salvos, estes ainda encontram-se retornando ao quarto inúmeras vezes através de lembranças, memórias e diálogos. Guerra (2016) ao fazer uma análise crítica do filme diz que: O filme retrata claramente as dificuldades de adaptação de Jack e sua mãe após sair do quarto. E, por isso, Jack fala por diversas vezes que gostaria de voltar para lá. É comum nós também desejarmos voltar para uma posição mais cômoda, regressar para nossa zona de conforto quando nos vemos em situações que nos exponham demais ou que ainda não aprendemos a lidar. (GUERRA, 2016) A realidade de Jack é confrontada ao escapar do quarto, pois “Jack experimenta o mundo multifacetado que ele nunca soube que existia, mas que todos a sua volta tomam como correto” (HUNT, 2016). O autor explora ainda os conflitos após a escapada no ponto de vista de Joy, que por ter sido sequestrada ainda jovem, pode ser considerada como uma criança internamente mesmo tendo concebido Jack. Desta forma, entende-se que o filme nos faz repensar a infância tanto para Jack (que é uma criança) quanto para Joy, que pelos abusos que sofreu acaba gerando uma relação contraditória com a binariedade adulto\infantil. Um outro conflito que surge é entre Joy e seus pais. Os pais ficaram distantes de sua filha por todo o período em que ela esteve sob cativeiro e agora ao reencontrá-la precisam lidar não somente com o fato de que ela passou muito tempo distante e envelheceu longe deles, mas também de que agora a filha tornou-se mãe. Os avôs de Jack precisam recebê-lo em suas rotinas e compreender que Joy pode ter mudado muito. Não obstante surgem conflitos com a mídia, pois os agentes midiáticos revelam-se mais preocupados em explorar comercialmente a história de Joy e Jack no cativeiro do que ajudá-los de alguma forma. Joy sente sua privacidade sendo invadida por fotógrafos e jornalistas, e de certa forma, o seu momento de dor e readequação a vida comum não é respeitado. Posteriormente Joy e Jack retornam ao quarto, o retorno é descrito da seguinte maneira: Quando os dois, mãe e filho, após já terem estado em um longo processo de readaptação ao mundo real desde sua libertação, regressam ao quarto onde ficaram presos por anos. Jack entra, percebe a falta de alguns móveis e diz “Ele parece pequeno agora”, “Não é mais o Quarto, talvez porque a porta esteja aberta. Sem a porta ele não é o Quarto”. Tais dizeres soam como: “Esse problema agora é pequeno. Eu tinha a percepção de que ele era muito maior. É porque eu estava naquela condição ‘x’, mas agora EU mudei. Por isso esta situação não é mais a mesma” (GUERRA, 2016). A fotografia utilizada nas cenas do quarto mostram que, no início (Figura 1), quando os dois ainda viviam naquele local, o quarto aparentava, de fato, ser bem maior, pois para eles a dimensão psicológica do quarto era superestimada, uma vez que todas a tarefas cotidianas eram feitas nele. Isso era representado por meio de planos de câmera bem mais fechados, conforme evidenciado na figura a seguir: Figura 1: cena do filme O Quarto de Jack Posteriormente (Figura 2), quando os personagens retornam ao quarto a câmera revela um plano mais aberto, que mostra efetivamente um ambiente físico menor do que anteriormente, já que os personagens superaram as dimensões psicológicas ligadas ao quarto. Os movimentos de câmera são na verdade uma representação de como os personagens enxergavam o tamanho do quarto e esta representação também é transmitida aos espectadores. Figura 2: cena do filme O Quarto de Jack O regresso deles ao quarto representa a superação dos conflitos psicológicos relacionados ao cativeiro e ao que ele significa, pois agora Jack enxerga o quarto como pequeno e insignificante socialmente. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir da leitura de resenhas, críticas e produções acadêmicas relacionadas à psicanálise, sobretudo à infância, foi possível perceber que existem muitas características convergentes entre a abordagem psicanalítica criada por Freud e estudada até hoje e o filme “O quarto de Jack”. A vida do personagem Jack, considerando o ambiente em que foi criado, influenciou suas condições de vida e sua formação enquanto sujeito humano, uma vez que suas relações com o meio externo foram comprometidas até os cinco anos de idade. Apesar de o filme se tratar de uma ficção, existem semelhanças com a realidade, já que, considerando a psicanálise de Freud, a formação da criança depende de fatores internos e externos que influenciam diretamente a personalidade dessa criança em um futuro próximo. Percebe-se, no caso do filme, a importância que as relações sociais e principalmente as relações com o ambiente modificam a percepção do ser humano a respeito do mundo que o cerca. Conclui-se que o longa-metragem contém características da abordagem psicanalítica e pode ser utilizado como uma referência para a explicação de algumas temáticas, principalmente a relação do ser humano com o outro e com o ambiente e as influências dessas relações na formação do sujeito humano, sobretudo o infantil. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS MELO, Luciana; VALLE, Elizabeth. O brinquedo e o brincar no desenvolvimento infantil. Psicologia Argumento, Curitiba, v. 23, n. 40, p. 43-48, jan./mar. 2005. HUNT, Nate. “Room” is an excellent study of human psychology. 2015. Disponível em: <http://www.calvin.edu/chimes/2015/12/13/room-is-an-excellent-study-of-human-psyc hology/>. Acesso em: 23 nov. 2016. SOUZA, Ana Carolina Morilho de. O Infantil e o Outro - uma abordagem PsicAnalítica do filme Lilo e Stitch. Universidade de Brasília, Brasília, 2016. VELLUDO, Natália Benincasa. A Criaçãode Amigos Imaginários: Um Estudo com Crianças Brasileiras. 2014. 130 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Programa de Pós-graduação em Psicologia, Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2014. Disponível em: <http://www.ppgpsi.ufscar.br/defesas/diss-nbv>. Acesso em: 23 nov. 2016. PRISZKULNIK, L. . A criança sob a ótica da Psicanálise: algumas considerações. Psic (São Paulo), São Paulo, v. 5, n. 1, p. 72-79, 2004. KERMODE, Mark. Room review – to see the world within four walls. 2016. Disponível em: <https://www.theguardian.com/film/2016/jan/17/room-review-lenny-abrahamson-brie-l arson-jacob-tremblay>. Acesso em: 23 nov. 2016. SANTOS, Patricia Simone. O Quarto de Jack. 2016. Disponível em: <http://www.psicologiaecinema.com/2016/01/oquarto-de-jack-assunto-relacoes.html> . Acesso em: 23 nov. 2016. VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente. 6. ed., São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1998. ROSSET, Eleonora. O Quarto de Jack. 2016. Disponível em: <http://www.eleonorarosset.com.br/o-quarto-de-jack/>. Acesso em: 23 nov. 2016. LUZ CÂMERA ARTE. Crítica O QUARTO DEJACK- Psicanálise e Neurociência. 2016. <https://www.youtube.com/watch?v=O7rszlGeAPQ>. Acesso em: 23 nov. 2016. GUERRA, Rafael. O que podemos aprender com o filme O QUARTO DE JACK. 2016. Disponível em: <http://www.rafaelguerrapsicologo.com.br/tag/analise-do-filme-o-quarto-de-jack/>. Acesso em: 23 nov. 2016. MOREIRA, Isabela. Como a experiência de "O Quarto de Jack" afetaria uma criança na vida real? 2016. Disponível em: <http://revistagalileu.globo.com/Cultura/noticia/2016/02/como-experiencia-de-o-quart o-de-jack-afetaria-uma-crianca-na-vida-real.html>. Acesso em: 23 nov. 2016. https://www.youtube.com/watch?v=O7rszlGeAPQ
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