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Unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara – SP MATHEUS HENRIQUE RAMOS ARARAQUARA – S.P. 2020 MATHEUS HENRIQUE RAMOS Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Conselho de Curso de Ciências Sociais, da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais. Orientador: Dagoberto José Fonseca ARARAQUARA – S.P. 2020. MATHEUS HENRIQUE RAMOS Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Conselho de Curso de Ciências Socias, da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais. Orientador: Dagoberto José Fonseca Data da entrega: ___/___/____ MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Dr. Dagoberto José Fonseca UNESP-FCLAr. Membro Titular: Drª. Tatiane Pereira de Souza UFU – Universidade Federal de Uberlândia Membro Titular: Drª. Elisângela de Jesus Santos IFSP – Campus Presidente Epitácio Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara AGRADECIMENTOS De início, gostaria de agradecer à minha mãe Ivana e minha irmã Letícia, por nunca desistirem de me apoiar, levantar e acreditar. À Clara e ao Perigo, por toda paciência, companheirismo e carinho. Ao meu orientador, Dagoberto José Fonseca, por participar de quase toda minha graduação, seja no PIBID ou na conclusão do curso. Ao ResPire e à República PNB – 1977, por ensinar que maturidade e conhecimento te levam longe. Agora que você já derrotou Mais um inimigo Seu ideal venceu! Claro que ao preço de Milhares de vidas Por seu sistema, seu racismo, sua cor! Por quanto tempo mais? Senhor, seu troco! (Senhor, seu troco – Dead Fish) Resumo Esta monografia tem como objetivo identificar quais são as drogas que os alunos da UNESP – Araraquara já usaram e se há alguma demanda por aprimorar os entendimentos a respeito da saúde mental dos alunos. Para tal, foi elaborado um questionário identificando um número significativo de pessoas que usam drogas, quais são elas e se já identificaram algum tipo de sofrimento mental ou dificuldade de lidar com os usos. Tiveram questões sobre a saúde mental e autoestima dos alunos, a fim de saber se há algum questionamento a respeito. Foram pensadas questões em especial para as mulheres, investigando se existe assédios e constrangimentos. A questão do uso de drogas e a saúde mental são demandas que se apresentaram de diversos modos, com diferentes especificidades. É preciso identificar como se dá esse uso para assim elaborar estratégias com enfoque em saúde e autoconhecimento. Palavras chave: Drogas. Universidade. Saúde Mental. Comportamentos. Usos. Abstract The present monography has as its aim to identify which are the drugs that the students from UNESP – Araraquara have already used and if there is a demand to improve the understanding about the mental health of students. For that, it was elaborated a questionnaire to identify a significative number of people who use drugs, who are these people and if they have already identified any kind of mental confusion or difficulty in dealing with this use. There were also questions about mental health and self-esteem of the students, with the purpose to understand if there are questions about it. Also, some issues were discussed especially for women, investigating if there is harassment and embarrassment resulted from the use. The matter of use of drugs and mental health are demands that present themselves in many ways, with different specificities. It is necessary to identify how the use of drugs happens to elaborate strategies focusing on health and self-knowledge. Keywords: Drugs. University. Mental Health. Behaviors. Uses. SUMÁRIO INTRODUÇÃO E JUSTIFICATIVA 1 1. REFERENCIAL TEÓRICO 2 1.1. São 10 mil anos, sem sequer uma morte... 2 1.2. As substâncias, os indivíduos e as definições de status 2 1.3. Processos estigmatizantes e a patologização dos corpos 4 1.4. As necessidades, o capitalismo e o proibicionismo 7 1.5. A Redução de Danos como prática libertadora e outra via de cuidado 9 1.6. Qual a função do antropólogo pra pesquisar as drogas 11 2. METODOLOGIA 15 2.1. As influências da vivência e dúvida 15 2.2. Construção do Método 16 2.3. Cronograma 17 3. APRESENTAÇÃO, ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS 18 CONSIDERAÇÕES FINAIS 28 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 31 1 Introdução e Justificativa A dinâmica universitária possibilita uma vivência que vai além de um contexto acadêmico. Este é um período de conhecimento pessoal, amadurecimento, quebra de tradições e morais, e tais mudanças se dão em várias práticas. Uma delas é o uso de substâncias que alteram o estado de consciência dos indivíduos. Sabe-se que as substâncias psicotrópicas estão dentro das sociedades desde os seus primeiros registros. O uso delas é observado há mais de dez mil anos, em diferentes culturas, com diferentes intencionalidades. Na atualidade, não é diferentes quando se trata da manifestação do uso de drogas. No II Levantamento Domiciliar sobre o uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil: estudo envolvendo as 108 maiores cidades do país e o I Levantamento Nacional Sobre uso de álcool, tabaco e outras drogas entre universitários das 27 capitais brasileiras nota-se que o uso de drogas na vida universitária é maior e que os alunos estão abertos a ações que podem estar associadas a situações de vulnerabilidade. O universitário, tratado nesse trabalho como indivíduo-aluno, ao sair do seu contexto famílias e local, abre-se para as possibilidades de diferentes experiências. Observando os dados do Levantamento nacional sobre o uso de álcool, tabaco e outras drogas entre universitários das 27 capitais brasileiras, constata-se que o uso é presente e que há uma necessidade de acumular e interpretar os dados dessa população, entendendo quais são as demandas apresentadas na já mencionada vivência universitária, e como isso interfere na saúde mental dos alunos, que é um dos organismos fundamentais para a estrutura acadêmica. O Uso de drogas, da forma que se expressa, não deve ser tratado como se não fosse responsabilidade da comunidadeacadêmica. O contexto universitário é um espaço para investigar e debater os saberes e realidades. Sendo assim, não é difícil escutar relatos de alunos que tiveram episódios de sofrimento mental e que isso o afetou de alguma forma. Portanto, o presente trabalho objetiva investigar essas demandas. 2 1. REFERENCIAL TEÓRICO 1.1. São 10 mil anos de uso, sem sequer uma morte... Conseguir sentar e escrever sobre o tema foi mais difícil do que pensar nele em si. Ao me deparar com tanta informação, ficava sempre o questionamento de como começar: sobre a historiografia do uso de drogas? Qual o objetivo do homem usar algum tipo de substância? Falar sobre os jovens que adentram a universidade e têm acesso a diferentes possibilidades ou sobre como definir a saúde mental deles? O dilema se instalou junto à crise emocional própria. Por anos, lemos sobre a sociedade e seus desencontros, fomos provocados a pensar sobre a sociedade de dentro de um espaço fechado e elitista, foram poucas as vezes que fomos instigados a pensar sobre nós mesmos. Com todos esses questionamentos, surgem mais dúvidas ainda: como eu vou, por exemplo, pensar uso de drogas e saúde mental de jovens que acabaram de acessar uma nova vida e como eles se relacionam com isso? É importante destacar qual a influência dos psicotrópicos nas sociedades. Em todos os registros, é possível observar o uso ou manipulação de alguma substância. Não é sem fundamento que a cannabis é uma das primeiras plantas a serem domesticadas, ou as especiarias terem grande importância no fortalecimento das Cruzadas, ou até mesmo a proibição do álcool nos EUA ter desencadeado um dos negócios mais lucrativos do mundo, o tráfico, e suas estruturas. O homem e as substâncias, ou como é chamado no mundo contemporâneo, as drogas, sempre andaram e continuarão de mãos dadas na história. O essencial é entender como elas interferem nos contextos. Maurício Fiore, em sua dissertação do doutorado, afirma que é muito comum que pesquisadores das áreas das drogas iniciem com o clichê da história das drogas, e chega à conclusão que esse método faz sentido para que o leitor não confunda a liberdade e o desejo de alterar própria percepção de mundo por meio de alguma substância, com o que é hoje chamado de “problema das drogas”(FIORE, Maurício). Dito isso, comecemos com as definições mais clássicas. A primeira delas: o que são as drogas? 1.2. As substâncias, os indivíduos e as definições de status O termo substâncias psicoativas “é o termo científico contemporâneo mais consensual para definir os compostos, extratos, plantas, pílulas, bebidas, pós, gases, enfim, qualquer excipiente que contenha moléculas às quais são atribuídas a propriedade de alterar o 3 funcionamento neural, o sistema nervoso, a percepção ou a consciência humana”. (FIORE, 2013, pág. 1) Ao citar a consciência humana, é preciso falar da história dela. Segundo Henrique Carneiro, ela é o resgate também da construção das noções, inclusive da noção de individualidade, e de que forma as consciências nascem. Pensando o desenvolvimento do homem até chegar ao mundo contemporâneo, ele possui sempre uma base de experimentações: de cheiros, gostos, toques, sentimentos e muitos outros. Segundo Hegel, com base nas transformações corporais, o homem não quer permanecer como a natureza os concebeu, e é natural que se tenha a vontade de sair da inércia e ter a autonomia para tomar decisões para si e experimentar as sensações (1979 apud FIORE, 2013). Conclui-se, então, que o uso sistemático de diferentes substâncias que têm um potencial para alterar a consciência, o comportamento e o humor do homem fazem parte de um desenvolvimento intelectual e de autonomia. Isso o acompanha por toda a sua história e o status de um problema social é recente, não chegando nem a um século na história. As perguntas que ficam agora são: como se definiu esse problema das drogas e o que é a proibição? Sabendo que há menos de um século as drogas não eram objetos de controle e nem mesmo sujeitas a prescrições, a consideração das drogas como uma problemática não é reduzida a questões farmacológicas, mas a questões sociais. A gênese do proibicionismo vem da necessidade do controle de corpos e a criação de estigmas. Qualquer vida social, independente dos julgamentos morais e de relevância, não deve estar dissociada do exercício de determinados direitos. Desse modo, como se pode proibir algo de alguém para si mesmo? Henrique Carneiro em A gênese do proibicionismo moderno e o ponto de inflexão atual define a proibição como controle biopolítico e define em três exemplos as raízes filosóficas. (CARNEIRO, 2016, PÁG 167) A etimologia da palavra proibir vem do latim prohibire e significa “manter afastado”. O poder sobre o que pode se ingerir, consumir ou de escolher sempre foram pela esfera sacerdotal, do indivíduo tido como sagrado, que elegem quais são as ingestões, atos, crenças aceitáveis, criando um sistema de pureza com base em seus próprios critérios. A partir do início da era moderna, a cultura distante do caráter religioso, a liberdade de consciência e de escolhas passam a se tornar pressupostos. Como já citado anteriormente, para entender o advento do proibicionismo contemporâneo, cito sobre três acontecimentos. O primeiro deles é a Dinastia Manchu na China, que, por razões morais, tenta erradicar a cultura do ópio. Na Rússia, em 1914, a autocracia russa imperial decide proibir a 4 vodca. O mais importante dos acontecimentos, no entanto, foi a proibição do álcool na década de 20 nos EUA. Este é considerado um dos maiores experimentos sociais da história. Tal proibição proscreveu toda a produção e comércio de álcool, mas não o consumo, criando toda uma rede clandestina para a produção. O processo de passagem de status legal para ilegal das drogas é considerado rápido e violento. Antes de ser um preceito legal para tratar do problema das drogas, o proibicionismo é uma prática moral e política, que entende o estado como formulador e agente controlador de costumes, o qual visa proibir determinadas substâncias para os seus usos e comércios. As discussões antes da proibição das drogas foram impulsionadas por militantes organizados que teciam pressões moralistas. Anteriormente a esse movimento, havia um hiato jurídico que abria um comércio muito promissor das substâncias. 1.3. Processos estigmatizantes e a patologização dos corpos Afirmando que a proibição das drogas tem relação com o controle dos corpos e classes sociais, é valoroso identificar por quais meios são justificadas tais proibições. O comportamento desviante, por exemplo, tem papel determinante nas classificações. Segundo Gilberto Velho, o indivíduo que tem práticas desviantes é aquele considerado inadaptado de seguir as normas vigentes.(VELHO, 2013) Esse é um conceito determinista e reducionista que tenta classificar indivíduo e não distingue o “são” do “não são”. Assim, o indivíduo é remetido a uma concepção patológica, àquele que sua existência tende a ser uma ameaça à sociedade. Gilberto mostra que “A própria noção de desviante já vem tão carregada de conotações problemáticas que é necessário utilizá-la com muito cuidado. A ideia de desvio, um modo ou de outro, implica a existência de um comportamento médio ou „ideal‟, que expressaria uma harmonia com as exigências do funcionamento do sistema social”. (VELHO, 2013, pág. 41) Entende-se, portanto, que a questão das drogas estaria dentro do indivíduo, que normalmente é definido como um fenômeno intrínseco ao hereditário. Foucault, por exemplo, no terreno dos distúrbios mentais, aponta mecanismos socioculturais mobilizados nas identificações dos desvios (apud VELHO 2013), e tem uma percepção que não é estática à vida sociocultural, vinculando o trabalho assim à antropologia. Dentro dessa perspectiva, é preciso, então,tentar observar quais são as condições patológicas de um sistema social, as quais concebam esses comportamentos individuais como desviantes. Um exemplo disso é a construção de estigmas sociais em determinados corpos, Thamires Moreira descreve como 5 essa concepção ganhou forma em Sem pudor, resguardo ou escolha: A construção de um estigma sobre os usos „ilegítimos‟ dos tóxicos no início do século XX. No Brasil do final do século XIX e início do século XX ocorre algo que explicita muito bem a criação de estigmas sociais. A cocaína era utilizada em diferentes práticas médicas, como fármaco e um potente anestésico. Procedimentos cirúrgicos delicados que poderiam propiciar dores intensas, com o uso da substância passavam despercebidos, possibilitando então ser uma substância frequentemente explorada. As potencialidades desse importante alcaloide eram publicados em revistas médicas como O Brasil Médico, periódicos especializados, jornais e dicionários que tinham como missão pública informar os leitores. As narrativas traziam experiências em procedimentos odontológicos, oftalmológicos e outras práticas. Nesse contexto, Dr. Carlos Costa foi um médico higienista que fundou, em 1879, o jornal A mãe de Família, com o objetivo de oferecer às mulheres conhecimentos necessários para exercer a maternidade, principalmente com relação à higiene infantil. Nesse jornal, o médico propunha que as mulheres ministrassem aos filhos receitas caseiras à base de cocaína e mel nos casos em que as crianças tivessem aftas e sapinhos. A mesma medicação poderia ser usada para dores nas gengivas, podendo aumentar, gradativamente, a dose de cocaína. (MOREIRA, 2016, pág.288) As publicações não se limitavam somente às instituições da área da saúde. Em quase todos os jornais encontravam-se propagandas de produtos à base da cocaína, e a indústria farmacêutica disponibilizava métodos fáceis para que dores fossem amenizadas. Os anúncios continham propagandas de pastilhas de cloridrato de cocaína para problemas na garganta, crises de asma, até elixires que eram recomendados para complicações estomacais, tais quais enjoos, vômitos e outros. No entanto, o entendimento sobre o uso da cocaína não era contundente. Durante esse período de exaltação da cocaína, havia muitas experimentações, e mesmo com toda potencialidade do alcaloide, observa-se também registros de episódios de intoxicação. Entretanto, não eram situações que trouxeram grandes complicações para a população. Após um período de exaltação e experimentação da cocaína, a partir do século XX nota-se uma alteração nas manchetes. Thamires Moreira observa, então, que a cocaína deixa de ser veiculada por propagandas médicas e passa às colunas policiais e noticiários com informações sobre suicídios e tentativas. Ao observar esse evento, remete-se a uma afirmação de Gilberto Velho de que “A questão concentra-se no fato de esta análise ter como uma premissa uma estrutura social não problematizada” (VELHO, 2013). Em outros termos, as desordens e agitações causadas pelas mudanças encaminham-se para o equilíbrio mesmo com mudanças nas 6 estruturas já definidas. Nota-se então que o comportamento desviante será investigado por esquemas individualizantes. O desacordo para com as normas ou a carência delas faz com que as pessoas procurem estratégias ou respostas ao individual, por não ter um método de escola moral. No texto, Thamires Moreira deixa evidente que os suicídios já faziam parte do cotidiano. No entanto, as manchetes passavam um tom mórbido, e os usos de substâncias eram conhecidos pela população em geral. A questão é que somente os suicídios relacionados à cocaína que apareciam nos jornais. Como explicado por Velho, os processos de mudança social tendem a ocasionar esses desequilíbrios. É preciso, portanto, observá-los com cautela. Nesse mesmo período, foi realizada a Conferência do Ópio em 1912. Nela, foram estabelecidos critérios para determinar os usos legítimos e ilegítimos. Além de prescrever atitudes e usos, tais critérios davam base comportamental para a estigmatização dos indivíduos. A partir dessa conferência, foi estabelecido que o uso excessivo dessas substâncias constituía a questão social de ação do estado. Para garantir que pudesse intervir nesses contextos, o estado cria essas legitimidades dos usos para dar base em considerar o que é uma utilidade médica ou não. Ao deslegitimar o uso recreativo, responsabilizava os indivíduos por aquilo que era considerado um problema social. O primeiro projeto de lei, artigo 396 do Código Penal, que colocava em prática os requisitos da Conferência do Ópio. Nele, primava-se que quem fizesse uso de substâncias sem prescrição deveria ser autuado, na mesma lei que reprimia os ébrios, artigo 396 do Código Penal da época. Tal lei consistia em prisão de até trinta dias para aos que fossem pegos embriagados por hábito, ou estivesse bêbado em público. Essa formação de maus hábitos, deslegitimando certos atos considerados ilegítimos, alinha-se ao pensamento da constituição sobre comportamentos desviantes, a qual classifica esses usuários como perigosos e nocivos para a sociedade, patologizando assim os usuários e desviantes. Todo esse processo de patologização de corpos mostra que as definições criadas sempre eram associadas a consumos considerados ilegítimos e a partes da sociedade que já eram indesejadas. A prostituição e crimes contra as propriedades, exemplo dos comportamentos desviantes, eram recorrentes nas ações policiais para reprimir essas atividades. Quando se faz a associação direta entre o uso de substâncias com hábitos considerados desviantes, cria-se um estigma social sobre os consumidores. Com esse advento, abre-se caminho para as intervenções da polícia, ou seja, do Estado. Quanto à natureza do termo vício, Henrique Carneiro destaca que esse conceito já vinha sendo usado para caracterizar uma ideia de comportamentos de cunho sexual (CARNEIRO, 2013, pág.165). Em 7 certo momento, a repressão policial sobre as zonas de prostituição e boemia virou cotidiana. Esses fatos atribuí tanto ao controle dos corpos como também da sexualidade feminina. Acreditava-se que o uso de drogas propiciava que garotos e principalmente, as garotas, sob o efeito das drogas, viessem a ter comportamentos que iam de encontro com a moral estabelecida. Perder o “sentimento de pudor” das mulheres era de grande preocupação das autoridades. Afinal, esse é um dos pontos importantes para se fortalecer as políticas de combate às drogas, pois as substâncias poderiam impulsionar a depravação. A criminalização das drogas, então, baseou-se em um controle social que tinha outras repressões morais atreladas, como raça, gênero e classe social. 1.4. As necessidades, o capitalismo e o proibicionismo Depois da contextualização de como o proibicionismo necessita dessas construções morais e estigmatizantes, entende-se, então, que a questão das drogas é um fenômeno de consumo que vai muito além do contato entre indivíduos e substâncias. O aumento da violência, pessoas presas por tráfico de forma desenfreada e o estímulo econômico das forças policiais caracterizam a forma hedionda que essa pauta vem sendo tomada como política pública. É importante lembrar que a proibição impulsionou o tráfico a ser um dos comércios mais lucrativos no planeta, com forte ascensão no século XX. Para Henrique Carneiro, em As necessidades humanas e o proibicionismo no século XX, “O estatuto do proibicionismo separou a indústria farmacêutica, a indústria do tabaco, a indústria do álcool, entre outras, da indústria clandestina das drogas proibidas, num mecanismo que resultou na hipertrofia do lucro no ramo das substâncias interditas” (CARNEIRO, 2002, pág. 03). Entende-se, portanto, que o consumo dessas substâncias não só cresce, mesmo com o advento do proibicionismo cada vez mais forte,mas também cria demandas para cada vez buscar mais lucros. Quando definimos o que é uma necessidade humana, é fundamental que se faça uma relação com o uso de drogas. O aparecimento é milenar na grande maioria das culturas, em expressões que definiriam um grupo, uma religião ou até as curas. Nos aspectos em que as substâncias são taxadas como divinas, elas fazem parte de um conjunto de interações que vão do prazer a um ato ritualístico. Em Marx, por exemplo, entende-se o conceito de necessidade mais à frente ao entendimento lógico e objetivo (Apud CARNEIRO 2002). Para ele, o espectro subjetivo do indivíduo tem duas formas de necessidade: aquela que é elementar para 8 uma sobrevivência física e as derivadas. Esse conceito observa essas necessidades como uma forma de concepção da sociedade, e compartilha com a antropologia funcionalista. Marx entende que é preciso, antes de tudo, viver(Apud CARNEIRO 2002). Isso corresponde aos atos essenciais do indivíduo, como se alimentar, comunicar etc. Desse modo, quando se satisfizer com esse primeiro aspecto, o ser passa a produzir novas necessidades, concebendo diferentes interações sociais e novas necessidades. Ou seja, quando o indivíduo supera suas necessidades básicas, é possível que ele seja livre e tenha suas aspirações. Essa superação da base é fundamental para que possa vislumbrar necessidades que renovem seu espírito. Em O Capital, quando Marx faz uma discussão sobre a questão dos produtos, necessidades e como elas foram sobrepostas no hábito e não apenas pela necessidade fisiológica, o exemplo que ele usa é o tabaco, uma substância psicoativa. Esse processo pode ser caracterizado como a concepção de novos hábitos e produtos, que ao ser restrito anteriormente, alcançam um status de conforto indispensável da vida moderna. Portanto, as mercadorias, ou o tabaco por exemplo, é um objeto externo, uma coisa que satisfaz a necessidade humana, e essa superação básica permite que o homem deseje tudo aquilo que ele quiser, renovando assim as necessidades do seu espírito. Nicholas Barbon dizia que “Desejo inclui necessidade, é o apetite do espírito e tão natural como a fome para o corpo (...) a maioria (das coisas) tem seu valor derivado da satisfação das necessidades do espírito” (1985 CARNEIRO 2002) Seguindo uma ordem cronológica, ao conceber a gênese do proibicionismo e quais sãos os fatores que ajudaram a impulsioná-la e também a ter um capital cultural e econômico, chega-se ao capitalismo e seu desenvolvimento. A Lei Seca, no início século XX, impulsiona a criação de máfias, o aparato policial e formas de lavagem de dinheiro. Entretanto, além disso, ela dá base material que serve de aparato para controlar corpos que serão intensamente vigiados. Um exemplo já dado a respeito do Brasil é o uso de cocaína e outras substâncias com potenciais médicos, que determinou usos “legítimos” e “ilegítimos” para conseguir justificar as ações do Estado. Gramsci, em Americanismo e Fordismo, (Apud CARNEIRO 2002) observa que o proibicionismo, quando atrelado à industrialização e ao movimento protestante nos Estados Unidos, impulsionou métodos, principalmente os donos das indústrias a vigiar a vida pessoal de seus trabalhadores. Essa vigilância é fundamental para que se estabeleça a nova organização do trabalho. Gramsci observa que os donos das fábricas, especialmente Henry 9 Ford, se interessavam pela vida sexual de seus trabalhadores e até onde residiam, para produzir interesses que pudessem controlá-los. Fundamentou-se, então, quais eram os prazeres que deveriam ser proibidos e policiados. O sexo e o álcool eram esses elementos para que a produção fabril pudesse ser exercida ao máximo. É interessante notar que, na América, a nova organização do trabalho é extremamente associada ao proibicionismo. Com tal artefato, era possível trabalhar em novos métodos para exercer o controle sobre a vida sexual e relações sociais dos trabalhadores. 1.5. A Redução de Danos como prática libertadora e outra via de cuidado “A ideia da erradicação do consumo de certas substâncias é uma concepção fascista que pressupõe um papel inquisitorial extirpador para o Estado na administração das drogas, assim como de outras necessidades humanas”. (CARNEIRO, 2002, pág 19) Ao fazer contextualização histórica, procuro mostrar que o proibicionismo e todo o processo de cerceamento não trouxe uma política inovadora e não solveu a questão das drogas. É importante ter em mente que esse “problema” não será solucionado e que sempre iremos conviver com as substâncias que podem de alguma maneira agir dentro da consciência dos indivíduos. É importante delimitar um ponto aqui que assinala não somente uma questão ideológica própria, mas também uma cooperação entre diferentes pares, em diferentes espaços, que fazem a defesa de uma prática que não só reconhece os Direitos Humanos, como também políticas sem enfrentamento a pessoas. Tal cooperação estimula práticas associadas ao campo da saúde, involuntariamente defende também o SUS, que é a Redução de Danos. Quando falamos da Redução de Danos (RD) e fazemos a sua defesa, é importante também falar sua linha do tempo para que os leitores não achem que ela apareceu inesperadamente. Na Inglaterra, antes da RD se tornar uma estratégia científica, no início do século XX, profissionais de saúde recomendavam opiáceos no plano da saúde coletiva, para que os usuários problemáticos de derivados do ópio pudessem ser mais estáveis e úteis aos olhos da sociedade, pois foi observado que a interrupção completa poderia trazer mais perturbações ao indivíduo do que se tivesse um manejo mais adequado e planejado. Nos anos de 1970 e 1980, a Holanda viveu um processo de estruturação de uma política mais tolerante às drogas, e concomitantemente a isso, um grupo de usuários passou a se preocupar com o aumento do número de casos de hepatite e organizaram-se para que fosse estruturado um programa que pensasse a respeito. Consequentemente, eles passam a se constituir como em uma categoria de sindicato dos usuários de drogas, conhecido como Junkie-Bond (Liga dos 10 Dependentes). Os Junkie-Bond viabilizam propostas de redução de danos conjuntamente com o Estado holandês, zelando pelos interesses deles próprios, combatendo assim o agravamento das condições de saúde dos usuários de drogas, impulsionando melhores condições de vida, de moradia e outros fatores. Eles entendem, então, que é a partir dos conhecimentos dos usuários que existirá um reconhecimento das demandas. Esse processo consolidou um programa de trocas de seringas em Amsterdã. No Brasil, desde sua consolidação no final dos anos 80, a Redução de Danos foi cenário de polêmicas e resistências por segmentos da sociedade civil e do Estado. O primeiro programa teve início na cidade de Santos, onde havia uma grande concentração de casos de HIV, por consequência de uso de drogas injetáveis. O programa, de iniciativa de David Capistrano, distribuiu seringas aos Usuários de Drogas Injetáveis. As resistências assinalavam que essa distribuição de seringas impulsionava o uso e consumo e elevava os gastos do dinheiro público. Mesmo com o reconhecimento do Conselho Federal de Entorpecentes, futuramente substituído pelo Sistema Nacional Antidrogas, que assinalava a Redução de Danos como uma estratégia de saúde pública, a iniciativa enfrentou dois processos do Ministério Público, sendo inocentado por falta de provas. Definir o que é Redução de Danos é necessário pelo fato de cada detalhe ter uma importância e potência únicas, que tenta de alguma forma tirar os estigmas como pontos de partida e inserir diversos setores que foram postos em situações de vulnerabilidade. A Redução de Danos, hoje, é uma política pública necessariamente antiproibicionista e antipunitivista, e que busca construir um espaço em conjunto com os usuários, fazendoum acolhimento sem julgamentos morais, com base em diálogo e sem tomar decisões por terceiros. Portanto, é uma prática em que as resoluções não passam somente por uma questão da dependência, e, nos aspectos considerados desviantes, ela se transforma em uma construção coletiva entre os hábitos e os saberes. Na prática, a Redução de Danos constitui-se ações que incentivem o autocuidado, a troca de conhecimento entre os agentes e os contextos apresentados. Seja o contexto que for: a universidade, as ruas, sua própria casa, entre outros espaços. É necessário citar dois parágrafos então do I Fórum Estadual de Redução de Danos do Estado de São Paulo: O nome Redução de Danos pode ser usado de forma equivocada e/ou perversa, quando as finalidades não levam em consigo que quer, pensa e precisa o sujeito naquelas ações. A redução de danos é construída a partir de uma relação sem julgamentos morais: é preciso falar com a pessoa respeitando e considerando seus valores e princípios, respeitando o lugar o outro. É a partir desse diálogo que 11 nascem as possibilidades de caminhos a serem percorridos. (...) Porém, fazer RD não é só trabalhar com o indivíduo, é também transformar a sociedade – há um tipo de militância nas nossas práticas quando entendemos que o problema do sofrimento de quem consome drogas não está somente no indivíduo, mas na forma como a sociedade se organiza como ele é percebido e quais possibilidades que existem concretamente. (BRUNO RAMOS GOMES (São Paulo) (org.). I Fórum Estadual de Redução de Danos de São Paulo: Construção, diálogo e intervenção política: conhecimento produzido e discussão final. Córrego: Governo do Estado de São Paulo, 2014.) 1.6. Qual a função do antropólogo pra pesquisar as drogas De acordo com Maurício Fiore, “O objetivo do cientista social deve ser entender a relação entre o consumo de drogas com uma visão de mundo e um estilo de vida ou, em outros termos, com uma construção social da realidade específica”. (1980 Apud FIORE) Mesmo trabalhando com a Redução de Danos, ficou difícil, por um tempo, conseguir fazer uma associação ao meu contexto que não ficasse tanto utópico e ainda carregasse algo que fez parte de mim por tanto tempo, a universidade. É notável que muito dos estudantes, tratados aqui no trabalho como indivíduo-alunos, passam por diversos momentos de sofrimento mental, descobrimento e, consequentemente, interessam-se por drogas. Um trabalho que ilumina bastante a respeito do uso de drogas e a universidade é o da Taniele Rui, O uso de drogas como marcadores sociais e corporalidades, que tem uma citação logo início que afirma: “Eu não tinha interesse por bruxaria quando fui para o país zande, mas os Azande tinham; e assim tive de me deixar guiar por eles. Não me interessava particularmente por vaca quando fui aos Nuer, mas os Nuer, sim; e assim tive aos poucos, querendo ou não, que tornar um especialista em gado.” (EVANS- PRITCHARD 2005 [1976]:245) No meu contexto, eu não tinha interesse somente em pelo uso de drogas, eu gostaria de me transformar em um especialista no assunto, como uma causa pessoal, mas alinhar a necessidade de ser um antropólogo que reconhece as necessidades desse tema em ser estudado. Ao apresentar as drogas como um dispositivo do homem, é determinante compreender além da escolha do não, mas em quais circunstâncias o sim se faz presente. Para Maurício Fiore, à luz de Foucault, quando compreende o fenômeno da sexualidade moderna, o conceito encaixa também para o espectro das drogas, porque ambas se constituem como um 12 dispositivo: são proibidas, cerceadas e objetos de observação e verificação constantes. As drogas, ao serem interpretadas enquanto um dispositivo, ultrapassam o limite de serem definidas apenas de um ponto de partida; sempre serão um dispositivo interdisciplinar. No entanto, outras substâncias, como o álcool, o açúcar e o tabaco ficam à margem da interpretação de dispositivo atribuída a muitas outras. O uso de drogas foi objeto de pesquisa em diferentes áreas de conhecimento, mas as Ciências Sociais tiveram seu papel mais tarde que outras, como a psicologia e a medicina. O debate público que prevalecia era o da área médica, e Fiore define que as Ciências Sociais constroem a perspectiva como um objeto pendular, como prática e questão social, que é concebida recentemente, e que a perspectiva sociológica contemplava unicamente o caráter médico e sanitário, reforçando a resolver os problemas relacionados a crimes. A sociologia, então, para Fiore, “olhava o consumo de drogas naquilo que, então, era considerado inquestionável: o desvio dos comportamentos socialmente aceitáveis.” (FIORE,2013 pág. 03) Voltando ao sentido do por que as drogas são atribuídas enquanto um dispositivo, é importante destacar que essa perspectiva tende a classificá-la de uma forma única, àquela do estado, no sentido de normatizar os controles, tecendo normas e leis, classificando a questão enquanto um dispositivo. Nesse sentido, retomando outra discussão, o porquê é significativo entender em quais condições os indivíduos dizem sim ao contexto das drogas. Para desvendar essas perguntas, Howard Becker estabelece dois critérios importantes: fazer um levantamento que compreende como e o porquê os indivíduos fazem esses consumos, principalmente com as substâncias ilícitas, e também questionando as caracterizações de comportamentos desviantes, e rótulos. (FIORE, 2013) O esforço pendular, que esmiúça sobre o tema, faz uma discussão sobre os comportamentos desviantes e sobre a prática de consumo, discute-se portanto, diferentes trabalhos o consumo e estatuto social. Entretanto, essas discussões concentraram-se principalmente sobre os grupos consumidores e em determinar uma espécie de “subcultura das drogas” (FIORE, 2013, pág. 05). Portanto, as Ciências Sociais chegam à conclusão de que não há uma substância ou indivíduo com elementos universais, o que se dispõe são contextos sociais e culturais diferentes, e quando não se tem uma devida atenção sobre, não se compreende o fenômeno. Ao compreender o recorte que os contextos sociais e culturais dão para os pressupostos, nota-se que os grupos de usuários foram sempre acessados enquanto 13 grupos desviantes, ou seja, necessariamente, o uso de drogas sempre foi o rótulo principal das identidades para as investigações dos sociólogos e antropólogos. Gilberto Velho traz uma contribuição em Nobres e Anjos (1980) que trata da multiplicidade dos grupos de usuários. Ele classifica a existência de um “mundo das drogas” para organizar um conjunto de práticas que são relacionadas ao uso. Esses artifícios, no sentido mais amplo ligam-se em um ethos específico, como rituais e sentidos diversos. Velho considera, então, que a antropologia contribui para compreender que esse contexto possui diferentes modos de se utilizar as substâncias, e essas diferenças se dão pelas variações sociológicas e culturais. Essas variações não só se somam, como criam um contexto complexo para se fazer distinções. Portanto, o antropólogo deve construir uma relação com o consumo de substâncias para o entender como uma visão de vida ou mundo, ou até mesmo a construção social, são determinantes. O que nos interessa então, não é em termos químicos o que as substâncias possibilitam, mas como elas são percebidas e vivenciadas por grupos sociais específicos. Sendo assim, o uso de drogas transfigura-se em conceito intelectualmente expressivo por ser um fenômeno que, simultaneamente, apresenta-se como da ordem material e simbólica, e deixa em destaque formas socialmente constituídas. Então, à luz de Nobres e Anjos (1980), é necessário que o antropólogo compreenda esses fenômenos a partir de contextos socioculturais, nos quais os indivíduos tratam esses eventos próprios como estilos de vida e visão de mundo, principalmente emindivíduos dentro da universidade. Quando Gilberto Velho opta pela teoria do desvio para traçar a discussão à época, faz um movimento conjuntamente com outras discussões para tentar entender se esses indivíduos fazem parte de uma subcultura ou de um movimento de contracultura, pois, ao debater essa dinâmica, entende que essas perspectivas estão entre os limites do normal e, o desajustado, desviante. Cabe ao antropólogo, então, debruçar-se sobre a temática das drogas e também sobre o desvio, pois a antropologia tende a perceber que diferentes visões de mundo e de estilo de vida coexistem em uma sociedade. Refere-se, portanto, de entender o uso como uma entre outras práticas sociais que são marcadas socialmente e que estabelecem relações, seja ela de pertencimento e identidade ou também de distinção e poder. Ao fazer esses entendimentos, nota-se que os efeitos variam nos diferentes grupos sociais, porque é resultante de aprendizado das particularidades. Nesse contexto, os trabalhos trazem as perspectivas dos usuários, com a finalidade de trazer as configuração e a sociabilidade dos grupos. 14 Taniele Rui em Uso de drogas e marcadores sociais e corporalidades, observa que, na literatura recente sobre os usos de drogas, há uma ausência nos temas que são relacionados a algum tipo de sofrimento dos indivíduos. Ela observa que essas questões estão em segundo plano, dando uma certa ideia de controle e um uso discriminado. Não significa que um sofrimento estará sempre atrelado a uma ideia de descontrole para com o uso, os sofrimentos podem ser considerados em outras instâncias, episódios ansiosos, depressivos que podem ser trabalhados com a atenção adequada. Esses episódios são frutos também das construções sociais que todos estão inseridos. Essa ausência estaria atrelada, então, à atenção somente aos comportamentos desviantes. As especificidades só serão esmiuçadas quando cada contexto for colocado em comparação com outras perspectivas, podendo assim presumir as distintas concepções e vivências com as substâncias. 15 2. METODOLOGIA 2.1. As influências de vivência e dúvida É muito difícil não dar uma dimensão que não é a pretendida ao se aprofundar a respeito da questão das drogas, a redução de danos e a universidade. O cenário foi escolhido por eu fazer parte dele e por ter contato com algumas experiências que me atentaram sobre como deveríamos atribuir as variáveis que o uso de drogas permite em nosso contexto. A universidade por si só é um espaço de interação dos indivíduo-alunos, eles se reúnem em diferentes universos que apresentam suas peculiaridades. Ela, a universidade, é um campo que possibilita as interações. Considerando isso, são comuns os momentos de reflexões entre os próprios estudantes a respeito das suas situações. Um questionário foi escolhido e pensado para fazer essa análise. Para explicitar algumas informações, é rico definir como algumas observações, ao longo de sete anos na universidade e cinco trabalhando como redutor de danos. O campo escolhido foi a Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” campus Araraquara, que conta com os cursos de Ciências Econômicas, Ciências Sociais, Letras, Pedagogia, Administração Pública, Química, Engenharias, Odontologia e Farmácia. A UNESP - Araraquara é composta por mais de 2700 alunos de graduação. Ao longo dessa vivência, foi possível atribuir que, numa visão geral, grande parte dos indivíduos- alunos são oriundos da classe média. Seus pais, mesmo que não possuam títulos acadêmicos, possuem uma preocupação com a educação dos filhos, principalmente pela universidade ter sua excelência acadêmica reconhecida, para ser aprovada no rígido processo seletivo, a educação figura um valor na sua história. Todos que responderam ao questionário são provenientes de condições socioeconômicas diferentes. Em diferentes conversas com colegas do espaço o uso de drogas sempre era atribuído a estar aberto a novas experiências, para as sensações e novos estilos de vida. Não é raro, em diálogos com os indivíduos-alunos, que, ao ingressar na universidade, começaram a repensar práticas, valores, crenças e visões sobre esse novo universo. Os indivíduos-alunos são produto e produtores desse imaginário que se tem sobre o universo das faculdades. Esse momento é uma passagem para a sua maioridade, partilhando mesmos anseios para os “dilemas da existência” (RUI, 2007 pág. 75). Esse é o momento que reúne a saída de casa e o autoconhecimento. Não é difícil observar também aqueles que prologam a 16 estadia na universidade, que é uma experiência social na qual as drogas se inserem, por exemplo. 2.2. Construção do método Ao elaborar um questionário, é preciso pensar uma dinâmica que envolvesse as necessidades, dados do consumo de drogas e fazer um esforço investigativo. Os dados quantitativos constatariam informações já pressupostas, que há um uso significativo de substâncias dentro da universidade. As perguntas foram pensadas a partir das demandas que surgiam com as conversas entre os pares da universidade. Elas têm como objetivo observar qual é a quantidade de indivíduos, dentro do ambiente universitário, que já fizeram algum tipo de uso, se isso já causou algum tipo de sofrimento mental e contextos que relacionam com o universo do uso de drogas. No questionário, não há nenhum tipo de peso moral sobre qual uso já foi feito; as substâncias são entendidas como um conjunto de compostos, não fazendo diferenciação entre o status de legal ou ilegal. Essa “não classificação moral” se dé na tentativa de não constranger o usuário a supor que seus comportamentos são desviantes. No caso das mulheres, foram elaboradas duas perguntas específicas, uma vez que em qualquer esfera escuta-se relatos de assédio ou violências. Para realizar a amostragem, então, foi elaborado um formulário na Plataforma do Google, chamada Google Forms. De início, existia o consenso que o primordial seriam entrevistas presenciais, porém com o advento da COVID-19, optou-se pelo formulário online. Esse método quantitativo possibilitaria então, constatar o que não vemos. As perguntas que compunham o formulário eram: Raça. Gênero. Orientação sexual. Idade. Ocupação. Curso. Como considera a própria autoestima? Como considera a saúde mental? 17 Você considera ou já fez acompanhamento com algum psicólogo/psiquiatra? Mora em república ou com amigos? Você acha que a Universidade deveria possuir um serviço de saúde de acolhimento e com práticas de redução de danos destinada aos alunos? Já usou drogas? Qual foi a primeira? Foi antes ou depois da faculdade? Já teve algum problema relacionado ao uso de drogas? Em qual circunstância? Faz uso contínuo de alguma substância? Há quanto tempo? Seus pais sabem? Como foi o diálogo? Avalia que o uso atrapalha ou ajuda no seu dia a dia? Tem dificuldade em se relacionar com as pessoas? Acha que seus usos estão relacionados a uma abertura de se relacionar? Mulheres: Sente-se vulnerável a fazer uso? Mulheres: Acha que já se sentiu forçada por algum homem para usar? Para conseguir uma boa divulgação, utilizei os meios não institucionais para ter acesso aos alunos, conversei com os centros e diretórios acadêmicos que mandaram por meios informais: Whatsapp e grupos do Facebook. Por já possuir um histórico do tema no contexto da universidade, diferentes pessoas já se diziam interessadas em participar da pesquisa, tanto por conhecer meu trabalho como para entender a importância de estudos relacionados a esse. Então, fiz uma divulgação entre meu círculo próximo. O fato de ter morado em república durante a graduação possibilitou criar uma rede de pessoas interessadas. 2.3. Cronograma Julho – Agosto Escolha da bibliografiateórica e estruturação do referencial. Julho – Agosto Questionário disponível de 20/07/2020 a 20/08/2020, um mês para que os participantes pudessem responder às questões. Setembro - Outubro Análise dos dados. Outubro Revisão dos dados, desenvolvimento das conclusões e finalização da monografia. 18 3. APRESENTAÇÃO, ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS Por fim, depois de explanar toda base teórica e a metodologia, esta presente parte pretende observar e interpretar os dados apresentados pelo questionário. Vamos às avaliações: Foram respondidos um total de 358 questionários, sendo que algumas pessoas não responderam todas as questões. Ainda, diversas pessoas entraram em contato dizendo que gostariam de participar e que divulgariam a pesquisa. Logo no princípio, é possível constatar que, nas questões de caracterização dos indivíduos-alunos, vê-se que as maiorias das respostas foram de mulheres do curso de Farmácia, heterossexuais, cisgênero, brancas e com idade entre 17 e 40 anos. Porém, mesmo que em menor quantidade, pessoas de todos os cursos, orientações sexuais e outras especificidades, responderam ao questionário. Os cursos que menos responderam, foram os de Engenharia de Bioprocessos e Biotecnologia, Odontologia e Pedagogia. Acredito que o fato dos indivíduos-alunos do curso de Farmácia ter mais interesse em responder o questionário seja pelo PENSAD (grupo de Pesquisa e Ensino sobre Álcool e outras Drogas) ter um trabalho muito potente com os alunos, sendo que dos outros cursos não terem tanto interesse pelo tema não fazer parte do cotidiano deles. 19 Com relação à ocupação, 73,1% dos indivíduos alunos estudam exclusivamente, enquanto 26,9% trabalham e estudam. Os dois gráficos acima trazem dados curiosos de se observar: 96,7% dos indivíduos- alunos já tinham usado algum tipo de substância psicoativa e 91,1% tiveram esse acesso antes da universidade. Deve-se levar em consideração que esses dados podem ser justificados, pois, neste trabalho, o álcool e cigarro industrializado estão no mesmo patamar moral das outras drogas assimiladas como mais “pesadas”, podendo então influenciar na opção “sim” para uso de drogas. Dessa maneira, é possível entender que se o álcool e os cigarros não fossem entendidas como um psicotrópico, a porcentagem poderia ser menor. 20 Outro dado que é muito proveitoso analisar é de quais substâncias são utilizadas. O gráfico demonstra o óbvio: álcool, maconha, cigarros industriais e MDMA são, respectivamente, as substâncias mais utilizadas dentro do contexto universitário. Logo após vem o LSD, cocaína e o clorofórmio (lança perfume). Essas substâncias são popularmente conhecidas como drogas de festa, e nota-se que existe um comércio amplo e de fácil acesso. Um dado que fala por si mesmo é a respeito de qual foi a primeira substância a ter interesse. O álcool aparece em 85,8% das respostas, seguido pela maconha (7,2%) e o cigarro industrial (3,9%). Esse índice derruba, mais uma vez, que a maconha é a porta de entrada para as drogas. O álcool, por ter muitos recursos de propaganda e uma alta aceitação na sociedade, faz com que se tenha um acesso precoce. Quando perguntado se os indivíduos-alunos fazem uso contínuo de alguma substância, foi indicado que a maioria não (60,6%). As drogas que estão incluídas no “sim” são as que comumente são já do senso comum: álcool, maconha e cigarros industriais. 21 Um dos dados que mais chama atenção é se os pais sabem do uso. 45% das respostas afirma que sim, 38,1% que não e 16,9% talvez. Essa informação apresenta que, mesmo dentro de uma sociedade conservadora e fechada, os pais vêm desenvolvendo algum tipo de diálogo sobre o uso de drogas. Não aponta em qual intensidade essa conversa é validada, mas surpreende as expectativas. A pergunta “Como foi a experiência de ter dialogado com eles?” tinha como objetivo observar como os pais vêm abordando essa questão e se há algum tipo de diálogo sobre a questão das drogas. Ela apresentou respostas muito potentes e também que, mesmo com a abertura sobre o tema, ainda existem algumas dificuldades para tratar sobre o assunto ou não existem propriedades suficientes para abordar com clareza e sem julgamentos morais. Cabe então expor algumas respostas: “Minha mãe sabe abertamente apenas sobre o uso de álcool, e o diálogo foi bebendo junto com ela... quanto ao cigarro e à maconha, nunca conversamos sobre e não tenho certeza se ela sabe ou não (provavelmente sim, mas não tocamos no assunto).” “Eles não sabem de tudo, mas sabem que já experimentei algumas coisas e me disseram para tomar cuidado, tentar sempre saber a procedência das drogas e usar com pessoas de extrema confiança.” “Sabem do cigarro, não gostam. Não sabem sobre a maconha (e outras drogas) e não poderiam/gostariam de saber.” “Não muito boa por eu ser mulher e minha mãe achar vulgar mulheres que bebem” “Meus pais sempre foram muito abertos à experimentação e diálogo. Eles compravam vodca para que eu bebesse em casa, ao invés de ir passar mal na rua. Sempre me ensinaram sobre limites, então sempre tive cuidado com álcool. Apesar de sempre tomar uma cerveja aos fins de semana, não considero um vício ou algo maléfico à minha rotina. Por ter esse diálogo, 22 sempre tomei cuidado também com as drogas que experimentei, usando sempre em companhia e com respeito e atenção, e nunca tive problemas, e nem segui com uso contínuo, sendo experiências isoladas.” “Bastante complicada, pois na época minha mãe tinha câncer no pulmão, anos depois veio a falecer por esse motivo.” “Havia muita desinformação. Minha mãe acreditava que a maconha me causava irritação política e social. Quando na verdade somos governados e rodeados por uma elite fascista. Com a contextualização, houve uma aceitação e tranquilidade quanto ao assunto.” “O diálogo meio que não existe abertamente. É mais como: eles sabem mas preferem não ver." “Apenas minha mãe sabe do uso de maconha. Não gostou a princípio, mas hoje aceita normalmente (já até convenci ela a dar um traguinho uma vez, só não gostou do gosto).” “Minha mãe achou um baseado na minha mochila. Foi horrível. Ela é advogada, então toda relação que ela tem com drogas são de pessoas que são presas. Com meu pai foi tranquilo, ele tem uma visão mais progressista sobre o assunto.” “Álcool é ok! Agora maconha eles não podem nem sonhar... já tentei conversar sobre o assunto diversas vezes, porém eles são bem fechados quanto ao uso dela, eles têm como verdade absoluta que a maconha é a porta para se tornar um “drogado vagabundo” - palavras deles.” “Meus pais são bem abertos, os diálogos aqui sempre foram tranquilos. Mas são pais, e as vezes levei algumas broncas pelo exagero, rs.” Considerei duas perguntas como fundamentais para analisar as questões seguintes, são elas: “Como considera a sua saúde mental?” e “Você considera ou já fez algum acompanhamento com psicólogo/psiquiatra?”. Elas demonstram que os indivíduos-alunos se preocupam em qual situação está a sua saúde mental e que têm interesse ou já fizeram acompanhamento médico especializado. É importante assimilar o fato de que ter acesso a atendimentos vai além da preocupação. Afinal, as condições socioeconômicas determinam essa circunstância. A grande maioria considera boa ou razoável a avaliação do estado mental e que deva frequentar ou já frequentou um profissional. Relacionado ao tema de saúde mental, foram inseridas perguntas se já fizeram uso de medicação para melhoria da saúde mental (não: 67,7%; e sim: 32,3%), e se achavam que a universidade deveria possuir um serviço de acolhimento com práticas de redução de danos (sim: 97,5%; e não: 2,5%). Esse segundo dado apresentado dá a entender que as atividades sobre uso de drogas e redução de danos que foram promovidos peloscentros acadêmicos deram uma melhor noção sobre o tema para os indivíduos-alunos. 23 A pergunta “Você já verificou algum problema relacionado ao uso?” é uma das que mais surpreende. Os que consideram que “sim” ou “talvez” chega a quase 50% das respostas, sendo 36,7% sim e 12,5% talvez. Esse fato referencia que pelo menos a metade dos indivíduos alunos já passaram ou passam por experiências difíceis. Na Redução de Danos, as experiências difíceis são atribuídas aqueles momentos definidos como bad trips, ou uma “viagem ruim” com a substância. Esse acontecimento é um sentimento muito intenso em alguma situação. Sofrer demais, ficar com medo incalculável de um local, não se sentir seguro, estar persecutório são exemplos desses momentos que podem ser pontuais ou não na vida das pessoas. Quando se trata de um uso problemático, vai desde um mal desempenho na universidade, problemas em relacionamentos, episódios depressivos e ansiosos, agressividade, entre outros. Então, os problemas relacionados ao uso não se dão somente em episódios 24 específicos, são várias especificidades que os determinam. Tal dado fortalece a ideia de que é necessário continuar a elaborar políticas que atendam a essas demandas com mais especificidades. Ficam para o leitor alguns exemplos: “Períodos depressivos após o uso de estimulantes.” “Uma grande bad trip de mais de 24hs na primeira e última vez que usei alucinógenos.” “No dia posterior ao uso de qualquer substância, quando usada em excesso, me sinto totalmente sem energia e, às vezes, deprimida, ou em alguns casos, eufórica.” “Falta de conhecimento e experiência sobre drogas mais fortes (lsd, me.), assim como usar na „hora errada‟ ou no „lugar errado‟.” “O efeito da droga intensificou sentimentos em um ambiente que não estava agradável.” “Durante o primeiro mês do primeiro ano na faculdade consumia álcool quase que diariamente como forma de "fugir" da tristeza de estar longe da minha família em uma cidade nova. Cheguei a faltar aulas por estar muito bêbada e fui motivo de preocupação para amigos da minha cidade natal”. “Não saber dosar ou misturar as substâncias” “Nas últimas vezes em que fumei maconha, fiquei bem ansiosa. o efeito demorava passar e as vezes a ansiedade seguia mesmo sem eu estar chapada. Por isso, decidi dar um tempo.” “Aumentou minha ansiedade, tanto que parei de tomar.” “Estava num período muito ruim da minha vida, e para "mascarar" isso, comecei a abusar de drogas, principalmente álcool e maconha.” “Passei mal por ingerir muito álcool, tontura, enjoo, dor de cabeça. Tive um ataque de pânico enquanto estava sob efeito da maconha.” “A maconha e a cocaína me fizeram abandonar a faculdade um tempo, mas depois voltei por vontade própria de acertar minha vida, porque se depender da faculdade ou de alguém de lá pra fazer você tomar rumo na vida, você morre.” “Quanto ao uso da maconha, ao em vez de acalmar, que geralmente é o efeito esperado, fazia com que atacasse minha ansiedade e tive crises cada vez mais recorrentes e intensas; por isso parei o uso... quanto ao álcool, a famosa ressaca moral é um problema, gerando um estado depressivo (não a depressão em si, mas sim um estado de melancolia intenso), após o uso em excesso... Mas quando consumo em poucas quantidades, não há efeitos adversos.” “Bad vibes usando substâncias em lugares em que não me sentia à vontade, pela música ou pelas pessoas.” 25 “Já tive „bads‟ com uso de LSD. A primeira vez que eu usei estava em um show, misturei com maconha e comecei a sentir muito frio e dificuldade pra respirar, imaginava tudo muito perto de mim e achava que ia morrer. A segunda vez que usei LSD via todas as pessoas falando de mim e todas me sufocando, também pensei que ia morrer, fiquei desesperada e fui acolhida por amigos. Nunca mais usei. Usos exagerados de maconha também me causam dificuldade pra respirar e sensação de morte.” “Cara, álcool é uma bela de uma merda porque geral acha suave mas gera infinitas problemáticas no uso, tanto entre as relações (agressividade, falar coisa sem lembrar depois, fazer coisas sem lembrar também) como pra própria pessoa (tudo precisa de álcool pra sentir divertido, atrela a diversão a isso). Definitivamente a porta de entrada pra outras drogas” “Perda total de consciência e ausência de memórias dos ocorridos após um certo momento do evento (uso de MDMA e álcool). Passei cerca de 6 meses após o ocorrido sem o uso ou uso excessivo de drogas, apenas cigarro de palha e pouca bebida durante as festas. “Desenvolvi bipolaridade por conta do uso.” “Excesso de LSD, MDMA e NBOME me causavam muitas náuseas, vômito e enxaqueca.” “Excesso de maconha aumentou minhas crises depressivas e paranoicas. Por isso comecei a diminuir e estudar sobre redução de danos.” “Certa vez eu fiquei tão transtornado de álcool que não lembro como fui da festa até minha casa. Quando ouvi as histórias por amigos do que aconteceu fiquei extremamente assustado e desde então não uso álcool em grandes quantidades.” “As vezes quando fico bêbada acabo fazendo coisas que não me recordo, e fico meio que com "ressaca moral". Fora a ressaca física que o álcool causa quando não é feita a ingestão de água (intercalando com a bebida).” 26 Quando perguntado sobre relacionamentos e se há uma dificuldade de se relacionar afetivamente, expõe-se a relação com os dados de autoestima e saúde mental. Pelo menos um terço dos participantes acredita que tem dificuldade para se relacionar, enquanto uma considerável parte dos indivíduos considerou que a autoestima e a saúde mental são razoáveis. Isso só mostra que as condições mentais e de bem estar consigo podem influenciar nos usos das substâncias, muitas vezes na tentativa de se relacionar afetivamente com as pessoas, na tentativa de criar coragem e ficar mais desinibido. 27 As duas últimas perguntas foram pensadas exclusivamente para as mulheres. Em diferentes setores da sociedade, as mulheres estão mais vulneráveis a ser (e são) assediadas ou sofrer algum tipo de violência. As perguntas têm o intuito de saber em que grau elas já se sentiram expostas ao fazerem algum uso. O índice foi: 76,5% afirmam que já se sentiram vulneráveis e 33,8% já foram forçadas a usar algo. Esses dados evidenciam que, mesmo em um espaço no qual se acredita superado de velhas práticas, o machismo ainda é um fato que agride e incomoda as mulheres da universidade. 28 CONSIDERAÇÕES FINAIS A ideia de se chegar a uma conclusão a partir desse questionário é, no mínimo, desconcertada. Toda construção e concepção dos dados é transfigurado. As pré-noções do que se teria de material mudam. Como exemplo, o dado de que os pais já conversaram com os filhos a respeito das drogas, alguns deles com entendimentos progressistas sobre o tema, constata que o movimento antiproibicionista e os esforços acadêmicos de cientistas pesquisando sobre o tema alteram a noção do senso comum. Outro ponto importante a se destacar, que pela grande maioria dos alunos serem de famílias que tiveram acesso a informações, internet e já assistiram reportagens confiáveis, entende-se que o modo que as políticas são elaboradas não vem solucionando o problema. Além disso, senso comum é muito questionado ao constatar que o álcool é a substância que mais teve o primeiro interesse, não sendo a maconha como a “porta de entrada para as drogas”. Além disso, os números da autoestima e referentes à saúde mental mostram que é necessário se debruçar mais ainda sobre o contexto, aprimorar os serviços e criar novos que agreguem todas as demandas da saúde mental dos indivíduos-alunos. Ao fazer uma relação com mais de um dado, é importante destacar que os homens cisgênerospossuem uma maior inclinação a assinalarem que já identificaram um problema referente ao uso de substâncias. É importante destacar que, no gráfico a seguir, os gêneros assinalados como “outros” (trans, não-binárie, pessoas negras e etc) tiveram pouca representatividade, não dando assim para analisar com maior profundidade a respeito dessa parcela da universidade. Por outro lado, analisados os dados de quem preencheu “mulheres”, pôde-se observar que elas tiveram um número de 33% que já tiveram algum problema com o uso, enquanto quem assinalou “homens”, 42%. Tabela 1 - Você já identificou algum problema relacionado ao uso de drogas? 0% 20% 40% 60% 80% Masculino Feminino Outros Talvez Não Sim 29 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% Masculino Feminino Outros Muito Ruim Razoável Boa Muito Boa Outra relação importante a se mostrar e que também desperta um alerta sobre as relações dos indivíduos-alunos com eles mesmos, é quando focamos na consideração de como percebem a sua saúde mental. Os homens cisgênero consideram a saúde mental razoavelmente melhor do que as mulheres cisgênero: são 51% e 48%, respectivamente. Mesmo sendo uma diferença pequena, entende-se que é necessário levar em conta esses dados e entender que políticas públicas nesses espaços são substanciais. A instituição, enquanto provedora dessas políticas, deveria, além de aprimorar, escutar que os indivíduos-alunos possuem demandas não só acadêmicas. As condições econômicas, mentais e de bem-estar, têm influência nos desempenhos individuais. Dentro do aspecto de permanência estudantil – instituído como dever da universidade para com os alunos – assim como as medidas providas relacionadas à moradia e a auxílios socioeconômicos, a questão da saúde mental também se insere no campo da permanência enquanto fundamento para, que os indivíduos-alunos, deem continuidade aos estudos. Concidentemente, é possível observar que temos um número regular de indivíduos- alunos que informaram acreditar que sua saúde mental é boa: homens 35% e mulheres 33%. A opção “Muito Ruim” não é desconsiderável, sendo 11% homens e 13% mulheres. Tabela 2 - Como considera sua saúde mental? 30 Ao longo desses cinco anos trabalhando, pesquisando e promovendo a Redução de Danos como uma política pública a ser fomentada, noto que, para chegarmos em dados, como os que foram debatidos no presente trabalho, é preciso criar modos para que esses temas sejam debatidos dentro da comunidade científica. Nesse contexto, os próprios indivíduos-alunos são agente dessas demandas. Além disso, durante esses anos, tive muita dificuldade para promover debates que fossem de fato sobre a perspectiva da Redução de Danos, entendendo que, mesmo no ambiente universitário, apesar do grande uso de substâncias, as instituições ainda insistem que essas demandas não são de sua responsabilidade. Ainda hoje há grande resistência na promoção de debates sobre o tema, seja pela instituição, como foi dito, ou seja pelos próprios estudantes que representam os centro acadêmicos, atléticas e demais organizações, por temerem admitir que nesses espaços, assim como todos os outros, tem-se o fenômeno do uso de drogas, e serem ainda mais estigmatizados. Afinal, todos sabem que houve registros de óbitos por abusos de substâncias e também por condição da falta saúde mental. Por isso, credito que, com base em todos os dados explicitados na presente pesquisa e os fatos ocorridos dentro dessa universidade e de outras tantas, é negligente não falar sobre o abuso de substâncias e da saúde mental. Cabe aqui finalizar o presente trabalho com um trecho de Marcelo D2 e Rafael Crespo: “Eles pegam a palmatória e você estende a mão Desde pequeno você é induzido a fumar induzido a beber e vendo a TV falar Digam não as drogas, use camisinha e para de brigar Mas beba muito álcool até a sua barriga inchar O que você tem na cabeça? Tudo que eles te falam você acha uma beleza Aprenda a dizer não Pense um pouco meu irmão Você tem medo de quem?” A culpa é de quem ?- Marcelo D2, Rafael Crespo 31 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BACHINI, Natasha; CHICARINO, Tathiana Senne. Os métodos quantitativos, por cientistas sociais brasileiros: entrevistas com Nelson do Valle Silva e Jerônimo Muniz. Soc. estado., Brasília , v. 33, n. 1, p. 251-279, Apr. 2018 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 69922018000100251&lng=en&nrm=iso>. access on 14 Oct. 2020. https://doi.org/10.1590/s0102-699220183301010. 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