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i UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO DISSERTAÇÃO DE MESTRADO PARTICIPAÇÃO DA COMUNIDADE NA ESCOLA PÚBLICA: OS MODELOS COLEGIADO E VOLUNTARIADO E SEUS CAMPOS DE SIGNIFICAÇÃO SUNG CHEN LIN Orientador: Prof. Dr. Charles Richard Lyndaker Este exemplar corresponde à redação final da Dissertação defendida por Sung Chen Lin e aprovada pela Comissão Julgadora. Data: _______/__________/________ Assinatura: ________________________________ Prof. Dr. Charles Richard Lyndaker Comissão Julgadora: _____________________________________________________ 2003 © by Sung Chen Lin, 2003. Catalogação na Publicação elaborada pela biblioteca da Faculdade de Educação/UNICAMP Bibliotecário: Gildenir Carolino Santos - CRB-8ª/5447 Sung, Chen Lin. Su72p Participação da comunidade na escola pública : os modelos colegiado e voluntariado e seus campos de significação / Sung Chen Lin. -- Campinas, SP: [s.n.], 2003. Orientador : Charles Richard Lyndaker. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação. 1. Administração escolar. 2. Gestão educacional. 3. Conselho escolar. 4. Participação. 5. Voluntariado em educação. I. Lyndaker, Charles Richard. I. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. III. Título. 03-0164-BFE iii Ao meu pai, Sung Min I shiãn sheng, in memorian, maior incentivador de meus estudos, que afastado da oportunidade de freqüentar a escola foi auto-didata na arte de ler e escrever em sua língua natal – o chinês – já com idade avançada. À minha mãe, exemplo de vida, que analfabeta em sua língua natal, se esforçou em aprender a língua portuguesa para junto com seu companheiro prover melhores condições de vida para nossa família em terra estrangeira. Ao meu companheiro e meus filhos queridos, Francisco, Tom Min e Victória, pela caminhada a quatro na busca de ser sujeitos comprometidos com uma vida espirituosa e pela compreensão dos momentos ausentes. Ao meu irmão, minhas irmãs queridas e seus familiares por compartilharem momentos de distração. iv v AGRADECIMENTOS Ao Ser Supremo, fonte e companheiro de vida; Aos meus familiares queridos; Ao meu orientador Prof. Dr. Charles Richard Lyndaker, pela orientação; A Professora Dra. Raquel Pereira Chainho Gandini e Professor Dr. James Patrick Maher, pelas contribuições e considerações pertinentes; A Sra. Hermínia Bernardi, pelo polimento deste trabalho contribuindo para tornar minhas idéias mais claras; A Zédina Silva, pela primorosa contribuição na tradução do resumo; Aos interlocutores deste estudo, colegas de profissão (coordenadora regional de ensino, diretoras, especialistas em educação, professores), pais de alunos e pessoas da comunidade, por disporem de seu tempo para trocar idéias e experiências participativas; Aos colegas da pós-graduação, Sérgio Lontra, Janaína, Neuza, Leopoldina, e tantos outros pela amizade sincera; Aos professores da pós-graduação, Dr. Milton Almeida, Dr. Luís Aguilar, Dr. Roberto Ruz Perez, Dra. Heloísa Hofling pelo conhecimento disponibilizado e pela amizade; As funcionárias da Faculdade de Educação/UNICAMP pela ajuda, muitas vezes a distância e pela acolhida; Ao Professor Dr. Alfredo Veiga-Neto pelos bons conselhos; A todos e todas meus sinceros agradecimentos. vi vii RESUMO Nos últimos anos verifica-se que é crescente a demanda pela participação da comunidade na escola pública especialmente após o período de governos militares no Brasil. Apesar do tema não ser novidade, a participação vem ganhando destaque nas discussões da escola contemporânea por ser considerada um meio essencial de se promover à democratização do setor público educacional. Juntamente com essas discussões, novas aspirações despertam inovações participativas que vem preenchendo o espaço escolar. Ligado ao compromisso com demandas sociais e ao atendimento do imperativo constitucional de gestão democrática no ensino público, duas formas de participação vem sendo largamente adotada nas escolas: o Conselho Deliberativo Escolar, baseado no modelo colegiado e de caráter obrigatório, e o Projeto Amigos da Escola, baseado no modelo voluntariado e de cuja adesão e envolvimento social firma-se pela livre vontade de escolas e indivíduos ou grupos sociais. Esse é o ponto chave deste estudo: verificar quais são os significados dessas duas formas de participação e quais impactos elas causam nas escolas. Para se atingir esse objetivo, a pesquisa desenha em três etapas seu caminho metodológico. A primeira que busca na literatura corrente e em estudos de outros pesquisadores dados que situem a participação social na escola nos contextos sócio, político e educacional. A segunda recorre aos suportes institucionais que dão sustentação às formas de participação investigadas e a terceira que, apoiada num estudo piloto realizado no município de Araranguá/SC abrangendo escolas de nível fundamental da rede estadual de ensino, procura tecer considerações sobre a prática e os efeitos derivados dos modelos colegiado e voluntariado de participação. A qualidade da participação; a influência que exercem na democratização da gestão escolar e na qualidade de ensino; ambigüidades e vulnerabilidades desses processos participativos; aspectos comparativos entre o modelo colegiado e o voluntariado são alguns aspectos que dão o tom desse estudo. viii ix ABSTRACT In the past years, we have observed that there has been an increasing social claim for parents and community participation in Brazilian public schools, in particular after the period related to military governments. Although the subject is not new, it is getting more and more notability in discussions about current public system of education for it is considered an essential way to promote democratization in the system. Together with these discussions, recent ideas have motivated new manners of participation in public schools. Engaged in attending social demanding and the constitutional imperative of democratic administration in public school, two forms of participation have widely been adopted: the School Council, based on an elected representative group and compulsory firmness, and the Amigos da Escola project, based on voluntary action in which school and citizen involvement enrolment is based on their free will. This is what this research focuses on: studying the meanings of these two forms of participation and their impact in schools. In order to reach this goal, the present research has three parts. The first examines current literature about social participation in the public sector comprehending social, political an educational contexts. The second one focuses on the institutional bases that give support to the participation forms this research investigates, and the third part, which is supported on a study of state-run elementary schools in Araranguá – SC, makes remarks aboutthe actual doing in council and voluntary models of school participation and their effect. Some of the aspects that give expression to this study are the way how these forms of participation influence the democratization process of school administration and schooling quality, considering the extension of participation they allow to parents and community, ambiguity and vulnerability of these participation forms, and comparative aspects between the collegiate and voluntarism form of participation. x xi SUMÁRIO Resumo........................................................................................................... vii Abstract........................................................................................................... ix Introdução...................................................................................................... 1 Capítulo 1. Subsídios teóricos para a pesquisa (revisão bibliográfica)............................................................. 15 1. Localizando os referenciais ....................................................................... 15 2. Revisão da literatura ................................................................................... 18 2.1 Reflexões iniciais sobre a participação ................................................... 19 2.2 A participação social: dos movimentos sociais aos novos modelos de participação social .............................................................................. 22 2.3 A cidadania e o direito no contexto da participação social ..................... 37 2.4 Reflexões sobre a qualidade de ensino .................................................. 46 2.5 O novo modelo de gestão escolar ........................................................... 54 2.6 A normatização como forma de regulação da conduta humana...................................................................................... 64 2.7 Uma rede de proteção social mínima – da educação básica como um direito universal e obrigação do Estado à crise da educação brasileira ................................................................................................... 71 2.8 O crescimento do Terceiro Setor e o voluntariado como tendência mundial .................................................................................... 80 2.9 A contribuição da mídia nas formas contemporâneas de voluntariado........................................................................................ 86 2.10 A participação da comunidade na escola pública no contexto das reformas educacionais .................................................................... 95 Capítulo 2. Suportes legais e institucionais ............................................. 105 1. Projeto Amigos da Escola .......................................................................... 106 2. Conselho Deliberativo Escolar ....................................................................110 xii Capítulo 3. Buscando na experiência individual e coletiva subsídios para considerações sobre a prática da participação nas escolas .......... 121 1. estudo piloto ............................................................................................. 121 2. Aspectos principais das formas de participação ..................................... 124 3. Recuperando passos que nortearam a construção das categorias ......... 129 4. Revelando a prática das formas de participação sob um olhar comparativo ..................................................................................... 135 4.1 Categoria I – A efetividade dos objetivos das formas de participação por meio do Conselho Deliberativo Escolar e do projeto Amigos da Escola .............. 135 4.1.1 Promover a democratização da gestão escolar e fortalecer a presença da comunidade na escola .................................................. 135 4.1.2 Incidir na melhoria da qualidade de ensino ........................................ 162 4.2 Categoria II – Mecanismos operacionais institucionais ................................................. 184 4.2.1 O aperfeiçoamento e a instrumentalização ........................................ 184 4.2.2 O provimento do cargo de diretor ....................................................... 197 4.2.3 A implementação das propostas participativas sugerida como ação suficiente para alcançar os objetivos estabelecidos ..................... 205 4.3 Categoria III – Valores de referência em processo participativo escolar ........................ 215 4.3.1 Contribuições e influência da mídia na divulgação de modelos de participação ....................................................................... 215 4.3.2 Os modelos colegiado e voluntariado como as formas mais disseminadas de participação da comunidade na escola pública ........ 223 4.3.3 Alternativas de processos participativos ............................................ 230 Considerações finais ................................................................................... 245 Referências bibliográficas .......................................................................... 271 Apêndices ..................................................................................................... 289 xiii SIGLAS PCEP – Participação da Comunidade na Escola Pública PCCE – Participação da Comunidade por meio do Conselho Escolar PCAE – Participação da Comunidade por meio do “Amigos da Escola” CRE – Coordenadoria Regional de Ensino CDE – Conselho Deliberativo Escolar PPP – Projeto Político Pedagógico APP – Associação de Pais e Professores APM – Associação de Pais e Mestres PAGEPE –Programa de Autonomia e Gestão da Escola Publica Estadual CEs – Conselhos Escolares AAESC – Associação dos Administradores Escolares do Estado de Santa Catarina LDB – Lei de Diretrizes e Bases CONSED – Conselho Nacional dos Secretários de Educação UNDIME – União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação CENPEC – Centro de Estudos e Pesquisa em Educação, Cultura e AçãoComunitária ONG – Organização não Governamental SME – Secretaria Municipal de Educação SEBRAE – Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas GEPEP – Gerência de Planejamento Estudos e Pesquisas IES – Institutos de Ensino Superior STF – Supremo Tribunal Federal PETI – Programa de Erradicação do Trabalho Infantil xiv xv Fomos formados numa sociedade autoritária, criados no silêncio e, portanto, nos representamos como sujeitos apenas capazes de obedecer ao que outros determinam e, em conseqüência disso, a não nos comprometermos com os resultados das nossas ações. Gouvêa, Antônio Fernando. Secretaria da Educação da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. xvi 1 INTRODUÇÃO Falar sobre a participação da comunidade na escola pública não é exatamente um assunto novo. Nos últimos anos, mais precisamente a partir da nova democracia brasileira em 1988, muito tem se falado sobre a relevância dessa participação. Expressões como "gestão compartilhada", "administração participativa", "democratização da gestão escolar" vêm fazendo parte da agenda da direção de escolas públicas orientadas pelas políticas do setor educacional. Essa nova mentalidade gerou a implantação de políticas sociais que passaram a garantir a participação de pais e do conjunto da comunidade escolar na gestão da escola. Outros motivos decorrentes da própria dinâmicasocietal fizeram surgir por parte da iniciativa privada, de organizações não governamentais e de parcerias destes com órgãos públicos, propostas participativas no setor público educacional. Pelo menos dois fatores podem ser indicados como contribuidores para essa mentalidade: um, refere-se à transição do regime militar autoritário para o período de redemocratização do país, que possibilitou novas formas de manifestações sociais em diversos setores da sociedade; outro, a um conjunto de fatores ligado ao Estado, representado por reformas surgidas no seu interior (do próprio Estado), provocadas por uma crise fiscal e questionamentos sobre seu papel no provimento dos bens sociais, levando-o a adotar estratégias de inclusão da sociedade civil para suprir o seu menor empenho na prestação de bens e serviços sociais, situação da qual o setor educacional não foge à regra. Da associação destes dois fatores tem-se que, a partir de 1988, com a abertura política emanada da nova Constituição, formas inovadoras de participação social oriundas de iniciativas de diversos setores da sociedade civil eclodiram em todo o país. No setor da educação, propostas de participação da comunidade se intensificaram, especialmente devido a insatisfação quanto ao caótico quadro que já se vislumbrava no ensino público brasileiro, gerado em grande parte pela incapacidade e ineficiência do Estado em gerenciar e atender o setor. 2 Sob pressões da sociedade civil e interesses políticos, as administrações públicas do setor educacional voltaram sua atenção para a escola, que passou a ocupar o centro das preocupações das reformas educacionais. As reformas do setor orientadas pela cooperação técnica decorrente dos acordos financeiros com órgãos multilaterais, postulam a participação da comunidade na gestão escolar como ação decisiva para garantir uma maior atuação e envolvimento dos pais e da comunidade na escola segundo o discurso de maior envolvimento na gestão escolar e da contribuição econômica para a sustentação da infra-estrutura escolar1. Tamanho interesse na educação se deve a expectativa de que ela seja um caminho eficaz no combate à pobreza2. Atendendo a demanda social democratizante, a participação social no setor educacional ganha sustentação legal. Ancorada na nova Constituição de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) sancionada em 1996, pais e comunidade têm sua participação assegurada na gestão das escolas públicas mediante a criação obrigatória de órgãos colegiados nas diversas esferas públicas. O Terceiro Setor da sociedade3, por sua vez, também traz sua parcela de contribuição. Atendendo a demandas sociais e a estratégias próprias do mercado, passa a organizar ações voluntárias e de parcerias beneficiando setores mais carentes da sociedade. A educação é apontada pelas estatísticas do Terceiro Setor4 como uma das áreas nas quais há maior investimento voluntário, juntamente com a saúde e o meio ambiente. Com o apoio da mídia, estas ações se destacam e ganham mais adeptos à causa social. Assim, mecanismos legais e institucionais vêm intensificando a convocação da sociedade civil para a participação na escola pública. Apenas para citar algumas experiências que evidenciam o crescente apelo 1 Análise que TORRES (2000: 136) faz do pacote de reforma educativa proposto pelo Banco Mundial, especificamente sobre a convocação dos pais e da comunidade para uma maior participação nos assuntos escolares. 2 De acordo com T.S. SANTOS, in Considerações sobre o desenvolvimento e políticas educacionais no Brasil, "uma das prioridades atuais do Banco Mundial é a educação básica como motor de desenvolvimento". 3 Esfera social composta por entidades da sociedade civil, identificadas como organizações privadas sem fins lucrativos que geram bens e serviços públicos ou privados. 3 para trazer pais e comunidade para o meio escolar tem-se: o Projeto Parceiro do Futuro, da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo; o Projeto Comunidade na Escola, iniciativa de uma escola pública no município de Cocal do Sul (SC); Comunidade é a Melhor Parceria, matéria publicada pela revista TV Escola n.20 (2000: 31-35). São propostas5 visam buscar a ajuda da comunidade à causa escolar e mostrar como a escola aberta à comunidade pode trilhar uma trajetória de sucesso. Projetos de participação da comunidade na escola pública ganharam maior número de adesões sob a motivação do Ano Internacional do Voluntariado – 2001 – estabelecido pela Organização das Nações Unidas (ONU). Com respaldo internacional, um forte vínculo cresceu no país entre o sentido da participação social e o trabalho voluntário, refletindo-se diretamente no setor educacional, e em outras áreas sociais mais carentes. Por força da mídia, a participação da comunidade na escola pública tem encontrado eco. Especialmente a mídia televisiva e impressa tem contribuído de forma eficiente na divulgação e convocação da sociedade civil, dedicando elevado grau de atenção sobre o tema. Propagandas sobre o tema têm sido veiculadas em horário nobre, evidenciando o valor dessa ação. Tanto para o cidadão comum quanto para o profissional da área da educação, anúncios publicitários diariamente imprimem o valor da participação social na escola pública pela ação voluntária. O projeto Amigos da Escola, desenvolvido pela empresa de comunicação Rede Globo, veicula na tela de suas emissoras a importância de ser um Amigo da Escola. Os anúncios cativam o público para a causa, repetindo slogans, entre as quais, Todos pela educação; Educação é tudo; Para milhares de brasileiros você pode ser um herói – seja você também um Amigo da Escola. Outro anúncio que também procura conscientizar os pais para participarem da escola é o Dia Nacional da Família na Escola6, recentemente institucionalizado pelo Ministério da 4 Disponível em www.portaldovoluntario.com.br - acesso em 02.10.2001 5 Ver na sessão dos apêndices. 6 Instituído pelo MEC, sua primeira experiência deu-se em 24 de abril de 2001, seguida da segunda versão em 23 de novembro do mesmo ano. Em 2002, o dia estabelecido para essa parceria com os pais foi anunciado para 4 de junho. Tem como objetivo mobilizar e envolver os pais para o melhor desempenho do aluno na escola. No dia previsto as escolas públicas de todo 4 Educação (MEC). No estado de Santa Catarina os anúncios sobre o concurso Escola Referência7 apelam para o prestígio que a participação dos pais traz e a corrida para a conquista do prêmio, que acaba criando um estado de competição entre as escolas. Com essas propostas inovadoras, uma nova abordagem rearticula, reconstrói e resignifica a participação da comunidade na escola pública. Rearticula, reconstrói e resignifica porque, sob o mesmo discurso de democratização da educação, que já constituía um ideário progressista, setores tidos como conservadores passam a também defender a participação da sociedade no meio escolar. Assim, da mesma forma, o assunto divide atenção e importância em fóruns públicos; em movimento populares; em movimento sindical do setor educacional; em reformas educacionais; na nova lei de diretrizes e bases da educação brasileira; em diretrizes que regem os sistemas de ensino nas diversas esferas públicas; em documentos emitidos por órgãos de financiamento e cooperação internacional. Este é o perfil inicial que procura retratar a importância que vem sendo dado ao tema proposto neste estudo. Mesmo na introdução do tema já se percebe a complexa trama de interesses e os grupos que convivem no campo analisado. Antes de avançar na apresentação e discussãodo que se propõe, porém, faz-se necessário conceituar algumas expressões que povoam o universo desse estudo: escola; comunidade escolar; comunidade; sociedade civil. Tomando-se como base a constituição do sujeito, e tendo em vista que esse não se constitui sozinho, mas vive em grupos que se aproximam e interagem segundo um sistema de interesses, neste estudo adotou-se uma base referencial o país deverão abrir suas portas e organizar-se para receber a visita da família. Jornal do MEC, n. 14, out. 2001. 7 O Prêmio Escola Referência foi instituído em 1998 pelo governo do estado através da Secretaria da Educação e do Desporto em parceria com a RBS, afiliada da Rede Globo, com o objetivo de avaliar as ações decorrentes dos progressivos graus de autonomia das unidades escolares com base na descentralização e participação da comunidade educacional. O prêmio utiliza os mesmos critérios de avaliação do Prêmio Nacional de Referência em Gestão Escolar que tem a missão de identificar, valorizar e dar publicidade às escolas públicas que se destacam pela qualidade de serviços prestados. Fonte: Escolas de Sucesso, Escolas de Referência. Secretaria de Estado da Educação e do Desporto/SC, Florianópolis, 1999. 5 para essas expressões, que teve como ponto de partida a definição de comunidade escolar dada pelo sistema de ensino do estado de Santa Catarina, por ser de onde se tomou como referencial um estudo piloto na investigação das formas de participação pelo conselho escolar e pelo projeto Amigos da Escola. Dessa forma, com base na Lei Complementar 170/98/SC, parágrafo único do art. 15, cap. III, entende-se por comunidade escolar o conjunto de docentes, especialistas, pessoal técnico-administrativo e de serviços lotados e em exercício na instituição; pais ou responsáveis pelos educandos, educandos matriculados e com freqüência regular na instituição. Por comunidade entende-se a população que reside no entorno escolar: no bairro onde se localiza a escola e em localidades circunvizinhas que a escola procura servir, mesmo que essa população seja constituída de beneficiários da escola pública que jamais a requeiram como usuários8, ou seja, população usuária efetiva ou potencial. Por escola entende-se os profissionais que atuam no seu interior, já que a escola em si não tem significado sem as pessoas e os profissionais que nela atuam. Quando se fala em sociedade civil, neste estudo, procura-se abarcar todo o conjunto da sociedade, exceto o de cunho comercial, e que, nesse sentido, é composta de: qualquer agrupamento de pessoas físicas ou jurídicas com o objetivo de praticarem e realizarem negócios de natureza civil9. Desta forma, sob uma concepção relacional e operacional, essas expressões são empregadas no sentido de situar os grupos sociais envolvidos no tema da participação social na escola pública e as dimensões progressivas em que se organizam. No entendimento da pesquisadora, embora outras acepções possam também definir as expressões apresentadas, as que foram aqui utilizadas dão conta da abordagem que se dá no contexto deste estudo. 8 De acordo com LOBATO (1997:43), por princípio, a política social é fornecedora de um bem público. Um bem que é custeado pelo conjunto da sociedade e dirigido a todos aqueles que pertencem a ela, mesmo que jamais o requeiram, ou seja, todos os cidadãos são tanto responsáveis quanto merecedores do bem público. 6 Tratando do problema Um aspecto polêmico que se levanta das recentes propostas de participação na escola pública é o fato de a sociedade civil vir a compensar as deficiências da ação do Estado em detrimento de uma visão mais alargada de participação. Em outras palavras, se por um lado alguns grupos dos setores governamental e empresarial têm a participação da sociedade como uma forma democrática para solucionar os problemas apresentados no setor educacional, de outro lado, alguns estudiosos do assunto (SOARES, L. T., 2000; TORRES, 1999; GENTILLI, 1999c; CORAGGIO, 1999) entendem que a proposta de envolvimento da população na gestão escolar, apresentada pelas reformas educacionais, são estratégias para solucionar os problemas apresentados no setor educacional de forma a complementar o papel do Estado. Tal proposta visa redefinir o papel do Estado em relação à educação que ao endereçar às famílias e à comunidade uma contribuição maior, reduz a intervenção do Estado nas questões educacionais. A ambigüidade que envolve o tema pode ser entendida ao se observar os diferentes interesses políticos que circundam e se enfrentam na arena política. Tais interesses carregam cada qual seu discurso e produzem distintas significações que vão repercutir no meio escolar. Nas escolas, a questão da participação suscita muitas vezes esperança e descrédito. Experiências pessoais da pesquisadora, que preenche a função de administradora escolar em uma unidade escolar pertencente à rede pública do estado de Santa Catarina, demonstram que mesmo diante do arsenal em torno da inclusão da comunidade na gestão da escola, o processo participativo tem ainda muitas barreiras a vencer. Exemplo disso é que constantemente significativo número de usuários (alunos e pais) se afastam das escolas em que estão matriculados e buscam outras ofertas escolares por motivo de descontentamento. Para efeitos de registro, outras causas que levam os usuários a trocarem de escola dizem respeito à mudança de residência, gravidez precoce indesejada, 9 Essa acepção contempla o conceito de sociedade civil proposto por PLÁCIDO E SILVA in Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1990. 7 trabalho infantil longe do local de estudo e outros motivos de naturezas as mais diversas. O descontentamento dos usuários da escola e as informações geradas pelo contato com eles estabelecidos indicam que essa mudança se deve à forma como as relações entre a instituição escolar e a comunidade em seu entorno se estabelecem, especialmente quando se trata de alunos e pais. De um lado, falas de superioridade; controle interno das decisões e atividades escolares; difícil ruptura do poder estabelecido no interior da escola; de outro, conformismo; passividade; pouco conhecimento sobre questões que envolvem o universo escolar ainda provocam grande desigualdade no processo participativo escolar. Esses fatores indicam que os caminhos para a inclusão dos pais e da comunidade no processo participativo escolar merecem ser constantemente revistos. Especialmente porque a proposta participativa envolve duas dimensões: uma discursiva e outra prática. Ainda que tudo indique crescente avanço do discurso de democratização na gestão escolar, o fato de se adotarem propostas e políticas de participação que incluam pais e comunidade nas atividades escolares apenas na dimensão discursiva não faz da escola ou do sistema público de ensino aspirante ou praticante da democratização. A prática participativa vai, em muitos aspectos, além da implantação de formas de participação institucional. Envolve um caminhar próprio e particular de cada comunidade escolar. Ao privilegiar a adoção de propostas e políticas participativas originadas de fonte externa e de caráter homogeneizante, corre-se o risco de abafar ritmos locais e inibir a evolução ou o surgimento de possíveis práticas participativas nascidas do interiordas comunidades escolares. Algumas práticas que se solidificaram na escola também desfavorecem uma participação mais ampliada, especialmente dos pais. São práticas alimentadas pela resistência e por receio de perder posição de superioridade; pelo costume de criticar e censurar a forma como pais e responsáveis conduzem a educação de seus filhos ou (não) acompanham sua aprendizagem escolar, ou ainda de reclamar da indisciplina dos filhos na escola. Os pais, por sua vez, 8 freqüentemente se afastam, ou comparecem na escola apenas quando convocados. Nesse cenário, um profundo faz-de-conta envolve o processo participativo no meio escolar. Mesmo com a adoção de políticas participativas, muitas vezes o clima é de “eu finjo que executo, tu finges que estás satisfeito, nós fingimos que está dando certo e todos fingem que a inclusão dos pais na gestão escolar é uma realidade”. Por estar atenta às políticas de inclusão participativa da comunidade na escola pública e nos apelos da mídia para tanto, o assunto despertou grande interesse na pesquisadora. Observando movimentações mais recentes nesse sentido, percebeu que duas formas de participação na escola se destacam no cenário nacional e podem ser apontadas como tendo maior abrangência: a participação por meio do Conselho Deliberativo Escolar (PCDE) e outra que se refere ao projeto Amigos da Escola (PCAE). Essas constituem propostas de participação firmadas institucionalmente, que promovem, incentivam e mesmo garantem a presença dos pais e da comunidade no interior da escola pública. A primeira, decorrente de demandas democratizantes surgidas da nova democracia brasileira, caracterizada como modelo colegiado que convoca todos os membros da comunidade escolar para participar; a segunda, desenvolvida pela Rede Globo, uma das maiores empresas de comunicação do país, é tida como um modelo voluntário. Essas formas de participação passam a ser o foco de atenção deste estudo. Assim, sustentada por inquietações surgidas da prática escolar e face a tantos apelos que envolvem a participação da comunidade na escola pública a pesquisadora teve seu interesse despertado para analisar como se processam esses dois modelos de participação. Passam por esse interesse analisar alguns "porquês". Por que determinadas preocupações públicas que se constituem problemas sociais de relevância, portanto não menos merecedoras de atenção, não obtêm o ibope que a participação da comunidade na escola pública vem atingindo? Por que, apesar de tantas promoções em favor da participação da comunidade na escola pública, permanecem desencontros e insucessos? 9 Entendendo que a participação dos pais e da comunidade na gestão da escola pública é possível, mas sentindo-se frágil em provocar mudanças na comunidade escolar em que está inserida, o trabalho acadêmico que precisava elaborar pareceu ser uma boa oportunidade para que a pesquisadora preenchesse algumas lacunas que surgiram de reflexões sobre o assunto. Poder avançar na tarefa de aproximar escola e comunidade para uma convivência de respeito mútuo e colocar em prática um processo participativo ampliado, integrador e libertário, não desprezando as conquistas já obtidas, ao contrário, valorizando-os, foi objetivo perseguido pela pesquisadora. E, quem sabe, sugerir um outro olhar, que venha a contribuir para ampliar os caminhos de democracia participativa na escola pública. Esse é o mapa inicial que gerou a proposta deste estudo. Conferindo importância ao tema (justificativa) Ignorar a relevância deste tema é estar alheio ao aparato institucional e legal que nos últimos anos vem insistentemente convocando a sociedade civil a participar da escola pública, sensibilizando a escola a abrir suas portas para receber os pais de alunos e a comunidade. Assim, este estudo se justifica dado o significativo valor que vem sendo depositado na participação comunitária na escola pública, atualmente em amplo processo de popularidade. Conforme já apontado, esse valor é percebido por toda a sociedade e pode ser constatado pela importância que o tema vem adquirindo em âmbito nacional. Combinada com projetos de iniciativa privada e crescente valorização por órgãos governamentais, a participação da sociedade na escola pública vem rapidamente ganhando adeptos, especialmente graças à mídia. Nessa dinâmica, um novo redimensionamento vem norteando o tema da PCEP e suas relações na construção do processo participativo escolar e, conforme já mencionado, vêm ocupando posição polêmica entre as severas críticas sobre o abandono do Estado inerente às suas responsabilidades com o 10 ensino público e a promissora perspectiva democratizante na gestão escolar. Tendo em vista as duas formas de participação já indicadas, tão amplamente difundidas, cabe verificar se, na prática, seus objetivos são alcançados. Dessas ponderações iniciais, tem-se a impressão de já se estar tecendo os primeiros fios desta trama que vai se revelando complexa, tendo em vista o envolvimento de diversos atores, cada qual com seus interesses na partilha do bem que representa o ensino público. Objetivos Alguns dos questionamentos que conduziram esta pesquisa merecem ser destacados: A que tipo de participação as propostas apontadas se referem? Qual o grau participativo que estes processos guardam em si e qual seu caráter? Até que ponto tais formas de participação contemplam as demandas sociais democratizantes? Até que ponto as formas de participação investigadas neste estudo atingem seus objetivos? Quais os atuais resultados destas formas de participação? Orientadas por estas questões e com base nas recentes garantias e incentivos que a participação da comunidade na escola pública vem ganhando, neste estudo pretende-se investigar a participação dos pais e da comunidade por meio de dois instrumentos: o conselho deliberativo escolar e o projeto Amigos da Escola, caracterizados pelos modelos colegiado e voluntariado, focando suas dimensões ideais, institucionais e reais. Para a consecução de tal objetivo central buscou-se: a) recorrer à produção científica que envolve o assunto, entendendo em que contexto os modelos de participação enfocados vêm se enquadrando no novo cenário sócio-político- educacional; b) recorrer a normas institucionais e legislação que fundamentam e dão sustentação à política pública e proposta de participação social que visam incluir novos interlocutores no processo escolar; c) tecer considerações sobre a 11 prática e os efeitos derivados dos modelos de participação colegiado e voluntariado. Enquanto forma de aproximação dos itens a e b das considerações apontadas no item c, três objetivos específicos foram estabelecidos. A investigação se propôs a: 1) verificar até que ponto essas formas de participação enfocadas têm o poder de ruptura com a herança centralizadora, autoritária e excludente da administração escolar, herança de nossa própria formação, e modificar o quadro que apresenta uma tradição participativa de desacertos e desencontros já enraizada; 2) averiguar a efetividade dos objetivos centrais das formas de participação enfocadas que visam metas de democratização na gestão da escola pública, contribuir para a melhoria da qualidade do ensino e incidir sobre a garantia, promoção, mobilização e fortalecimento da presença e participação da comunidade na escola; 3) tornar visível situações e mecanismos que contribuem para maior ou menor êxito da participação social na escola no contexto da institucionalização. Este é o tom neste trabalho: reconhecer a participação da comunidade na escola pública como algo promissor em termos democratizantes e, buscar apoio nas bases legais e institucionais, para extrair delas um melhor proveito. Organização do estudo Leituras iniciais sobre as recentes formasde participação da comunidade na escola pública conduziram a algumas questões que foram se apresentando como necessárias para a compreensão mais aprofundada do assunto. Entre elas, a qualidade e a melhoria do ensino; o papel da mídia na conversão de um novo conceito de participação; a ação dos movimentos sociais em contrapartida aos novos canais de participação, revelando-se como instrumentos à disposição do Estado e elites dominantes; as contradições que ocorrem no discurso e na prática da "democratização da gestão escolar"; os significados sociais da participação na escola pública no contexto das reformas educacionais; a influência da forma de 12 escolha do diretor de escola; o uso da noção de cidadania e direito como forma de mediar a participação da comunidade; a crise do ensino público; o voluntariado como "a tendência da moda" na zona de atividade da participação social; o surgimento e crescimento do Terceiro Setor, todas elas, questões que vão se entrecruzando ao longo deste estudo, estabelecendo uma rede em torno do discurso da participação. Assim, o referencial teórico constituiu a primeira parte deste estudo. Pela revisão bibliográfica procurou-se dar sustentação teórica ao que se propôs neste trabalho e conferir a este primeiro capítulo um caráter que aponta para aspectos ideais da participação social na escola pública. Conforme indica LUNA (1989: 31) a teoria é sempre um recorte, um retrato parcial e imperfeito da realidade, que ao ser elaborada, serve a dois propósitos: indica lacunas em nosso conhecimento da realidade e serve de referencial explicativo para os resultados que vão sendo observados. Com base nesses propósitos, recorreu-se a diversos estudiosos do tema, os quais foram tomados como base que possibilitasse uma percepção mais clara das inferências da pesquisadora. Também para servir de suporte teórico, recorreu-se a estudos já realizados sobre a participação dos pais na escola pública por órgãos colaborativos, buscando neles interlocução com pesquisadores que, mediante suas ricas contribuições, têm a participação dos pais e da comunidade como condição indispensável no processo de democratização e emancipação do meio escolar. Na segunda parte do estudo procura-se levantar suportes institucionais e legais da proposta do projeto Amigos da Escola e do conselho deliberativo escolar do sistema catarinense de ensino destacando suas âncoras de apoio e sustentação. Com esse tratamento pretende-se enfocar a dimensão legal e institucional da participação social na escola. A especificidade quanto a escolha do sistema de ensino se dá por se tratar da rede de ensino na qual atua a pesquisadora e nela se inserir um estudo piloto que objetiva contribuir para dar forma as considerações sobre a prática nas escolas dos modelos de participação colegiado e voluntariado. Na terceira parte são tecidas considerações sobre a dimensão da prática, 13 do real, nos processos participativos enfocados. Enquanto forma de articular as dimensões do ideal, legal e institucional e real um estudo piloto foi realizado. Dados que contextualizam o estudo piloto serão apresentados no terceiro bloco desse estudo (capítulo III). Também, uma terceira forma de participação que marca presença com regularidade nas escolas públicas da região onde atua a pesquisadora será apresentado. Essa forma de construir o estudo, buscando articular as dimensões do teórico e das normas com a da concretude visa buscar uma melhor compreensão das possibilidades da participação social nas relações do cotidiano escolar. Desta articulação foram se construindo categorias, que a pesquisadora procurou trabalhar no capítulo III, tendo o sentido de agrupar considerações que constituíram suas idéias, dados extraídos de fundamentação teórica, institucional e empírica. Esta última enriquecida com vivências e discursos de sujeitos que tiveram participação neste estudo na condição de interlocutores. Este caminho não tem o significado de ser único, mas de se apresentar como um dos possíveis na articulação do real com o quadro teórico inicial, podendo ser contestado pelo leitor. Passando para a parte final apresentam-se algumas considerações que tratam da trajetória deste estudo. As considerações apresentadas não constituem conclusões finais, dado o próprio caráter processual de processos participativos, mas considerações da produção que está essencialmente ao alcance do pesquisador. Por último apresentam-se as referências bibliográficas, dispondo ao leitor o acesso às fontes consultadas e referendadas. 14 15 CAPITULO I REVISÃO BIBLIOGRÁFICA 1. Localizando os referenciais A revisão da literatura teve por objetivo recorrer à produção científica que envolve a atual prática de participação escolar. A investigação procurou articular conhecimentos anteriores construídos por estudiosos da área às indagações e inquietações da pesquisadora previamente apresentada. Já na fase exploratória inicial, a investigação remeteu a questões que abarcam o recente quadro da participação comunitária na escola pública, que foram elucidando o estudo na medida que levaram à compreensão de como a dinâmica social, política e econômica vem influindo na participação da comunidade na escola pública (PCEP). Baseando-se em orientações de MINAYO (1999: 18), o referencial teórico elaborado teve como meta levantar questões acerca da participação da comunidade na escola pública com mais propriedade possibilitando iluminar a análise dos dados organizados, lembrando que esse referencial representa explicações parciais do tema investigado. Como forma de apresentação do referencial teórico, que envolve a organização do pensamento do pesquisador, optou-se por um esquema que não fosse rígido, por entender que as questões a que se chegou permite uma leitura não-linear, uma vez que ao mesmo tempo em que se ligam ao tema proposto se interligam entre si. Ainda, estando o tema envolvido em contexto mais amplo da sociedade, marcado pela dinamicidade, pluralidade de interesses e rápidas mudanças que ocorrem na atualidade, estas características patrocinam novos campos de significação e demandas que convivem em meio a convergências e divergências. Nesse contexto, práticas participativas vão sofrendo alterações ao longo do seu próprio processo incorporando novos fatores e novas identidades aos já tradicionais movimentos de participação popular. Por esta dinâmica, torna- se improvável falar em ordenações rigorosas, leituras lineares ou exposições conclusivas. 16 Assim, a organização desta apresentação seguiu um esquema próprio da pesquisadora. A revisão da bibliografia possibilitou a compreensão do entorno de interesses, blocos de poder, regimes de verdades, estratégias discursivas, intenções pouco transparentes da atual política e propostas de participação da comunidade no contexto escolar. Compondo o esquema, encontram-se questões cuja relevância foram percebidas pela pesquisadora como condição de enriquecimento para uma visão mais completa acerca do tema investigado. Tais questões, que vão se revelando e se entrecruzando nas recentes formas de PCEP, abarcam parâmetros acerca da qualidade do ensino; papel da mídia na conversão de um novo conceito de ( figura ) PCEP e as questões que abarcam o tema Terceiro Setor e o voluntariado Novo modelo de gestão escolar Reflexões sobre qualidade de ensino Uma rede de proteção social mínima Poder da mídia Cidadania: direitos e deveres na participação escolar A PCEP no contexto da agenda neoliberal A normatização como regulação da conduta humana Participação da comunidade naescola pública 17 participação; ação dos movimentos sociais em contrapartida aos novos canais de participação; contradições que ocorrem no discurso e na prática da democratização da gestão escolar; significados da participação social na escola pública no contexto das reformas educacionais; uso da noção de cidadania e do direito como forma de mediar a participação da comunidade; crise do ensino público; a influência do Terceiro Setor na construção de uma mentalidade voltada para a responsabilidade social e sua contribuição no crescimento da participação social por meio da ação voluntária; a normatização da participação como estratégia de regulação da conduta dos sujeitos envolvidos na participação. Validando esta forma de apresentação, buscou-se em DELEUZE & GUATTARI (citados por ALVES, et al., 2000) uma nova possibilidade de se compreender os problemas educacionais. Estes autores propõem o paradigma rizomático, como metáfora ao rizoma – tipo de caule que se ramifica formando inúmeras raízes emaranhadas que se entrelaçam constituindo um conjunto complexo no qual todos os elementos se remetem uns aos outros e também para fora do próprio conjunto. Nessa proposta pode-se considerar múltiplas possibilidades de conexões, aproximações, cortes, percepções em vários sentidos, sem hierarquização ou direção pré-definida, o que permite uma nova forma de trânsito entre as questões apresentadas. Ao mesmo tempo, permite contemplar grau de prioridade a todas as questões, aqui submetidas à apreciação do leitor. Tal proposta, numa perspectiva particular e pessoal da pesquisadora, constitui "uma leitura possível" do tema, que não descarta outros entendimentos que possam surgir, enriquecendo ainda mais esta reflexão. Desta forma, espera- se que o leitor se sinta à vontade para determinar, segundo sua própria leitura, como as questões a serem apresentadas se articulam com relação à participação dos pais e da comunidade na escola pública, ponderando sobre seus novos significados. Importante ressaltar que ao se fazer menção a estas questões não houve pretensão de se contemplar todos os prismas possíveis, mas de desenvolvê-las até o ponto em que pudessem estabelecer relação com o tema proposto. 18 Tampouco houve pretensão de esgotar todas que possam existir com relação ao tema. Um último esclarecimento diz respeito à perspectiva de incompletude, reconhecendo que somos sujeitos que buscamos nos completar com o conhecimento compartilhado assumindo que ainda há muito por ser dito. 2. Revisão da literatura Recuperando as questões apresentadas na figura anterior, preenchendo este capítulo, procurar-se-á desenvolvê-las perseguindo o objetivo de relacioná- las com o tema da participação social na escola pública, tendo em vista as re- significações que vão se construindo na rede de interesses dos grupos sociais. As questões, cujo plano de apresentação estimula a optar por uma seqüência não-necessariamente ordenada, teria num plano virtual uma apresentação do tipo hiper-texto, que possibilitaria uma leitura de múltiplas conexões, sem hierarquias ou direção pré-definida. Ao ingressar nas questões, convida-se o leitor para este espírito de leitura. 2.1 Reflexões iniciais sobre participação 2.2 A participação social: dos movimentos sociais aos novos modelos de participação social 2.3 Cidadania e o direito no contexto da participação social 2.4 Reflexões sobre a qualidade de ensino 2.5 O novo modelo de gestão escolar 2.6 A normatização como forma de regulação da conduta humana 2.7 Uma rede de proteção social mínima - da educação básica como um direito universal e obrigação do Estado à crise da educação brasileira 2.8 O crescimento do Terceiro Setor e o voluntariado como tendência mundial 2.9 A contribuição da mídia nas formas contemporâneas de voluntariado 19 2.10 A participação da comunidade na escola pública no contexto das reformas educacionais 2.1 Reflexões iniciais sobre participação A participação não é somente um instrumento para a solução de problemas mas, sobretudo, uma necessidade fundamental do ser humano... a participação é o caminho natural para o homem exprimir sua tendência inata de realizar, fazer coisas, afirmar-se a si mesmo e dominar a natureza e o mundo... Sua prática envolve a satisfação de outras necessidades, não menos básicas, tais como a interação com os demais homens, a auto- expressão o desenvolvimento do pensamento reflexivo, o prazer de criar e recriar coisas, e ainda, a valorização de si mesmo pelos outros. BORDENAVE (1995: 16) Baseado em BORDENAVE (1995: 17-19), tem-se que a participação é inerente à natureza social do homem ... e ... a frustração da necessidade de participar constitui uma mutilação do homem social. O oposto da participação é entendido pelo autor como a marginalidade (no sentido de ser colocado à margem do processo participativo) e que ocorre como resultado lógico e natural do desenvolvimento modernizador em sociedades onde o acesso aos benefícios está desigualmente repartido. Apontar a existência dessas dimensões, da participação e da marginalidade, torna-se fundamental pois possibilita compreender as implicações de ordem social que determinam as várias significações e os múltiplos usos do termo participação que variam de uma ponta a outra dessas dimensões. Como por exemplo, a participação em sociedades onde o acesso aos benefícios está desigualmente repartido pode ser entendida como “estratégia integradora”, ou, como a “inclusão” aos bens materiais e culturais inerentes ao desenvolvimento modernizador. Em termos de potencialidade, BORDENAVE entende que participar engloba as dimensões fazer parte, tomar parte, sentir parte e ter parte numa determinada atividade. O autor entende, no entanto, ser possível fazer parte sem tomar parte 20 mas aponta que o apenas “fazer parte” remete à condição de uma participação passiva; enquanto que o “tomar parte” à uma participação ativa, diferença que distingue a ação de um cidadão inerte daquele engajado no processo participativo. Isso porque no segundo caso, a idéia é que, quando se toma parte de algo, ou melhor, na condução do processo, sente-se parte dele, portanto, tem-se parte na sua construção. Ainda tratando de participação social, BORDENAVE (p.24) distingue a macroparticipação a ocasião quando há intervenção das pessoas nos processos dinâmicos que constituem ou modificam a sociedade. São processos em que se toma parte na produção, na gestão e no usufruto dos bens e serviços. Desta forma, conceitua a participação social como o processo mediante o qual as diversas camadas sociais têm parte na produção, na gestão e no usufruto dos bens de uma sociedade historicamente determinada. Considerando esta premissa, se os pais ou a comunidade produzem e usufruem, ou apenas usufruem da escola enquanto um bem social, mas não tomam parte na sua gestão, então, não se pode afirmar que eles realmente participem da escola. E aponta a microparticipação como uma dimensão que compreende a associação voluntária de duas ou mais pessoas numa atividade comum, podendo elas tirar benefícios pessoais e imediatos ou não. Distinguindo os tipos de participação, BORDENAVE (p. 30) aponta vários: a participação espontânea (decorrente de grupos, panelinhas ou gangs, que não supõem uma organização estável com propósitos claros e definidos, senão que satisfazer necessidades psicológicas); a participação imposta (situação em que o indivíduo é obrigado a fazer parte por compromissos de diversas naturezas como é o caso da missa dominical ou do voto obrigatório); a participação voluntária (resultante de uma proposta própria, definida pelo próprio grupo, tal como o sindicato, a associação de profissionais, a cooperativa); a participação provocada por agentes externos (típicos em propostasde participação dirigida e manipulada, na qual quem propõe “usa” outros para atingir seus próprios objetivos anteriormente estabelecidos); e, por último, a participação concedida (situação em que a participação é dada ou outorgada por superiores, passando a ser 21 considerada como legítima por todos. Esta modalidade faz parte de uma estratégia de melhor dominação, concedendo e mantendo uma participação restrita dos grupos, criando uma ilusão de participação. Com base nas definições de BORDENAVE (p. 30) e nas situações de desigualdades existente em processos participativos que aponta, quanto aos graus e níveis de participação, do menor ao maior, pode-se dizer que na escola os graus de participação variam de apenas acesso às informações sobre decisões já tomadas, facultando ou não o direito à reação; consulta aos pais englobando críticas, sugestões ou dados na resolução de problemas, podendo ser uma atitude obrigatória ou facultativa da direção cabendo sempre a decisão final ao diretor; inclusão dos pais na elaboração de propostas e medidas administrativas, pedagógicas ou envolvendo o setor financeiro, podendo estas serem aceitas ou rejeitadas sob justificação; a co-gestão, num grau superior de participação dos pais, representando a atuação de órgãos colegiados garantidos por mecanismos de co-decisão descritos no projeto político pedagógico (PPP) e viabilizados em sua atuação; a atuação autônoma da comunidade escolar – neste grau, o autor defende uma completa autoridade da administração escolar (entendido como o órgão colegiado) – nas tomadas de decisão, ou seja, sem necessidade de consultar órgãos superiores. Relativo aos níveis, o autor chama a atenção para a existência de decisões de muita e pouca importância, que podem variar da mera execução das tarefas, até a formulação e o planejamento das políticas e ações educativas. Tomando as instâncias de macro e microparticipação, de tipos, graus e níveis de participação já expostos, pode-se observar que, para se atingir os pontos mais elevados de participação, há uma árdua escalada para a derrubada de poderes já estabelecidos no interior da escola, e em relação aos órgãos superiores. Nesse sentido, o autor aponta que experiências democráticas vivenciadas e cursos de capacitação fazem uma frente de peso na mudança dos quadros de baixo índice participativo, e estas mudanças vêm fatalmente acompanhadas de lutas e conflitos contra o poder estabelecido. 22 Assim, a noção de conflito relacionada com a participação se deve às condições de desigualdade existentes em sociedades sócio-economicamente estratificadas, as quais tendem a ser reproduzidas nos sistemas de ensino. Estes, atrelados à uma estrutura de poder, concentram as decisões numa elite minoritária. Por essa breve contribuição de BORDENAVE (1995) depara-se com múltiplos usos do termo “participação”. Verificar as formas de emprego nos processos participativos aqui investigados e atingir a compreensão de suas várias significações foi o que se perseguiu no primeiro bloco desse estudo. Por entender que uma escola participativa deve se apoiar numa estrutura onde toda a comunidade escolar detém o mesmo grau de poder para que se possa atingir o mesmo grau e nível de participação de forma igualitária, e que, para se atingir uma participação assim definida, dada as condições de desigualdade e exploração, inevitavelmente verifica-se o envolvimento de lutas e conflitos, é que torna-se útil retomar as formas de emprego de processos participativos sociais em períodos anteriores. É no sentido de alinhavar o íntimo parentesco que a participação social tem com os movimentos sociais, que no próximo segmento serão apresentados aspectos conceituais dos movimentos sociais e sua evolução no setor educacional. 2.2 A participação social: dos movimentos sociais aos novos modelos de participação social A educação, considerada instrumento e ação estratégica para se atender aos interesses políticos e sociais de uma sociedade, nos últimos tempos vem sendo considerada área prioritária para o desenvolvimento da sociedade (SOARES, M., 2000: 30). Reconhecida por organismos multilaterais de financiamento como um caminho eficaz no combate à pobreza, o setor tem apresentado mais problemas do que soluções. Na busca de soluções mais 23 eficientes, a participação e o envolvimento da comunidade vêm sendo intensamente sugeridos e incentivados por setores governamentais e não- governamentais como alternativa para a melhoria da escola pública. Refletindo sobre a situação do setor educacional, GOHN (1994) afirma que, após os anos de regime militar e início dos anos 70, ocorreu no Brasil amplo processo de massificação do ensino público e queda geral de sua qualidade, resultando em problemas de ordem funcional e estrutural que vêm se arrastando até os dias atuais. A participação popular no cenário educacional brasileiro no período que marca a nova democracia – definido pela Constituição de 88 – bem como nos diversos setores sociais, apresentava-se como um discurso de oposição ao regime militar. Apoiada nos movimentos de base, preconizava uma participação vinda das bases, do compartilhamento, do exercício à democracia, visando às necessidades e aos desejos da comunidade. De acordo com GOHN, eram movimentos sociais que agiam e se manifestavam mediante lutas e reivindicações para conquistar espaços democráticos numa sociedade conduzida pela ordem da ditadura militar. Segundo MELUCCI (1989), a noção de movimentos sociais envolve interesses e paixões dos atores envolvidos e supõe a adesão e o compartilhamento de objetivos e de motivações, cuja ação coletiva não é um dado, mas resultado de processos sociais assentados em bases históricas, implicando algo que se move na sociedade. A ação dos movimentos sociais deve apresentar uma dimensão educativa que, por meio de experiências vivenciadas, leva ao aprendizado de como identificar os distintos interesses dos atores envolvidos. Para MELUCCI (p. 28), a ação coletiva da sociedade movimenta-se em duas direções: uma, na direção da ação e dos conflitos sociais; outra, na direção da cidadania, e ambas vêm combinadas no aspecto de luta e conflito social pela inclusão dos excluídos na esfera da cidadania. Pelo viés da ação coletiva, o processo participativo deve se basear na capacidade dos atores partilharem uma identidade coletiva, reconhecendo e sendo reconhecido como uma parte da mesma unidade social, que não é realizada apenas com fins de 24 troca de bens num mercado político e cujo objetivo nem sempre pode ser calculado. No Brasil, os movimentos sociais – que já ocorriam durante o regime militar pós-64 – foram se intensificando durante a elaboração da Constituinte10, articulados com base no conflito contra o poder centralizador e autoritário do Estado e das elites sociais, tidos como "inimigos" do processo de democratização. Estes dois representantes sociais repudiavam a participação da sociedade civil nos processos decisórios, cerceando-a, perseguindo-a e caçando as manifestações e os manifestantes da democratização. Segundo a avaliação de GOHN (1994), durante a década de 80 os movimentos na área educacional geraram saldos positivos11. Várias reivindicações foram feitas, entre elas o acesso à escolaridade e a universalização do ensino. Ainda de acordo com GOHN, após 1988 ocorreu um fato marcante que fez mudar o curso dos movimentos sociais no Brasil. A vitória eleitoral de vários partidos de oposição em diversos estados brasileiros levou lideranças dos movimentos sociais a assumir cargos na administração pública. Como reflexo, muitas das reivindicações sociais passaram para o terreno das conquistas, sendo inscritas em leis. Este acontecimento desencadeou uma grande desmobilização dos movimentos sociais, bem como estabeleceu uma novarelação entre sociedade civil, lideranças políticas e governos estaduais. Outras manifestações como as lutas pelas "diretas já" e as manifestações a favor do processo de impeachment do presidente Collor, contribuíram para instalar uma abertura política na sociedade civil brasileira. Desta forma, a partir do final da década de 80 e início dos anos 90, um novo perfil político surgiu no país. Concomitante a estes acontecimentos, alguns setores da sociedade representados pelas elites dirigentes passaram a reivindicar maior atuação nos setores sociais junto ao Estado que, movido por uma forte onda neoliberal, criou possibilidades de interferência direta do setor privado no setor público. O ingresso 10 Segundo a análise do GRUPO DE ESTUDOS SOBRE CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA, Revista Idéias,1998-1999. 11 Deve-se lembrar que estes movimentos ocorreram de forma ampla nos diversos setores sociais. 25 do setor privado no espaço público foi apresentado como "a grande solução" para os problemas da crise fiscal do Estado, numa trama que transferia a responsabilidade do Estado com a área social para as comunidades organizadas, utilizando o argumento da “política participativa”. De acordo com GOHN (1991: 15), foi nesta época que surgiram as políticas sociais reelaboradas pelo Estado em torno de negociações com a sociedade, consolidando-se o que a autora denominou como o ideal de participação enquanto fórmula de gerenciamento dos negócios do Estado, quando o Estado criou novas regras sociais como forma de atender a reivindicação do direito de participação da sociedade organizada. Com efeito, SILVA, M. L. (s/d.:105) afirma que não se pode falar em movimentos sociais na atualidade sem considerar as transformações ocorridas no interior do próprio Estado a partir da nova república brasileira, quando este assume uma posição de aliado diante da sociedade civil. Em direção à uma melhor definição da posição dos movimentos sociais contemporâneos, SILVA menciona que em tese os movimentos sociais trabalham sobre o legítimo, e o Estado, sobre o legal. Para a autora, apesar da fragilidade nas atuais possibilidades de manifestação social, as oportunidades de articulação e organização social possíveis de serem criadas a partir do Estado constituem aspectos que devem ser considerados. CARDOSO (1999: 87), analisando os rumos dos movimentos sociais na década de 90, refere-se a uma visão de refluxo e cooptação com o Estado. Segundo a autora, se no início dos movimentos sociais, particularmente nos anos 70 e início dos 80, a demanda defendia um corte de relações com o Estado por ele não atender às reivindicações populares, durante todo o processo da nova Constituinte, ao surgirem possibilidades concretas de participação social, as reivindicações da sociedade passaram para o terreno da legalidade. Diante deste quadro de mudanças políticas criou-se um novo contexto, estabelecendo uma nova relação entre a sociedade civil e o Estado, que levou a sociedade a não ter mais o Estado como inimigo mas a estabelecer com ele uma nova relação: de posição de opositora às ações governamentais, passou a ocupar uma posição de 26 parceria. Por conseguinte, a participação social deixou seu cunho reivindicatório de um modelo de luta, passando para a posição de “parceria” com o Estado, situando a comunidade como parceira ideal das ações governamentais. Na mesma perspectiva de GOHN (1994), a análise do Grupo de Estudos sobre a Construção Democrática da Unicamp (1998/1999) entende que este fato mudou o curso das ações dos movimentos sociais, que foi deixando para trás suas características de lutas, conflitos e reivindicações. CARDOSO (1999) defende este novo referencial na relação entre Estado e sociedade civil como uma proposta de união de esforços para solucionar os problemas sociais. Segundo a autora, estas mudanças levam o Estado a abrir espaço para a participação da sociedade nas questões públicas, como um modo mais moderno e mais adequado de gerenciar as políticas públicas. É este modo mais "moderno e adequado" que leva o Estado a introduzir em seu interior a idéia de conselhos como modelo de participação, abrindo formas de participação institucional. Outro fato que mudou o comportamento político tradicional das camadas populares na última década foi a ação das ONGs, que passaram a ocupar o lugar dos movimentos sociais e, por sua vez, se acomodaram na passividade, aguardando a iniciativa de “outros” para liderar novas mobilizações. Porém, nem só retrocessos marcaram os movimentos sociais nos anos 90. Em 1996, um movimento de peso liderado e articulado pelo sociólogo Herbert de Souza estabeleceu, numa ação nacional, a campanha pela Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, revelando a força e a capacidade de organização da sociedade brasileira. Este movimento, cujos pilares de sustentação foram os sentimentos de solidariedade, fraternidade, filantropia e ações cidadãs promovidas pela própria sociedade, mostrou para a sociedade brasileira que ação social e ação política não são incompatíveis, e que mobilizações imensas poderiam ser feitas com a parceria e a participação da sociedade civil, sem palanque ou comando político partidário. ASSIS (1993:5), fazendo referência ao sociólogo Herbert de Souza, articulador nacional do movimento, acredita que o aspecto ético, o compromisso com o ser humano e 27 com a vida foram as diretrizes norteadoras do movimento que prestigiou a ação da coletividade, agiu sobrepondo-se às políticas, às ações governamentais e não- governamentais, às atividades comerciais, financeiras, produtivas ou a outros interesses12. De maneira geral, a demanda pela participação social desacelerou nos anos 90, apresentando um quadro de participação mínima dos indivíduos nos movimentos, chegando a uma desmobilização geral. Assim analisando, GOHN (1994: 102) entende que as causas básicas que levaram a este declínio estão refletidas em fatores de ordem externa aos movimentos sociais, apontados como a crise econômica do país, a crise do modelo centralizador do Estado, as políticas neoliberais, a crise das utopias, a descrença na política e em fatores de ordem interna caracterizados pela falta de independência e autonomia nos projetos políticos que acompanharam estes movimentos, uma vez que a maior parte deles era liderada e conduzida por projetos de outras instituições (igreja, mediante pastorais religiosas, ou partidos políticos). Outros fatores apontados por GOHN como estimuladores do movimento de participação da sociedade constituem movimentos populares, sociais, sindicais, acadêmicos, de entidades de base, como a OAB, e de ONGs que tinham como objetivo fortalecer a atuação civil na vida pública nacional. Todos estes representam demandas sociais em conquistar mais espaço de participação na política nacional. Assim, o conceito de participação social tinha sua ação vinculada à noção de movimentos sociais, caracterizada pela luta, reivindicação, protesto e conflito, apresentando um cunho transformador. Concordando com a análise de GOHN sobre a evolução dos movimentos sociais no Brasil, GENTILLI (1999b: 121), aponta que as demandas democratizadoras de conteúdo progressista no campo educacional expandiram-se no início dos anos 80, porém, acabaram apresentando uma sobrevida curta. Para o autor, este percurso se deve a promessas de liberdade e de progresso do discurso empresarial, levando as demandas participativas a passarem por uma reconfiguração, assumindo um conteúdo de caráter conservador. 12 Para saber mais sobre o movimento iniciado por Herbert de Souza (Betinho), acesse 28 CARDOSO (1999) analisa essa reconfiguração como uma nova condição da participaçãosocial nascida do apelo à união de esforços entre a sociedade civil e o governo, desencadeando um reordenamento das relações que se estabelecem entre o Estado e a sociedade civil. Ao serem redefinidas e resignificadas, passam a estabelecer novas práticas de participação, baseadas em práticas de solidariedade, humanitarismo e dever social. Na opinião de TELLES (1998: 113), a nova noção de espaço público foi politicamente construída para uma versão comunitária. A autora sugere uma leitura que difere da de Cardoso: [...] Há aí um peculiar deslocamento do campo em que a noção do espaço público não-estatal é definida. De uma noção política politicamente construída para uma versão comunitária apresentada como terreno da solidariedade, não a dos direitos sociais, a solidariedade da benemerência. E não por acaso onde antes o discurso de cidadania e dos direitos tinha algum lugar ou pertinência no cenário público hoje é ocupado pelo discurso humanitário da filantropia, uma filantropia renovada e modernizada. Nesta nova acepção de participação, CORAGGIO (1999: 78-82) situa a educação nas amarras do poder dos organismos multilaterais, cuja influência e capacidade de intervir nas relações econômicas dos países devedores chegam a ser fatores decisivos na formulação das políticas públicas destes países. Segundo o autor, utilizando o argumento da crise fiscal dos Estados-nações, estes organismos têm como orientação minimizar o gasto público. O objetivo principal é reestruturar as ações do governo, deixando cada vez mais nas mãos da sociedade civil a alocação de recursos para os serviços públicos, que passam a ser dirigidos pelo mercado. Na realidade, esta é a situação que vem se apresentando no conjunto dos serviços sociais públicos, não apenas no setor educacional. CARDOSO (1994: 87), que defende a nova condição da participação social e a idéia de conselhos como um modelo de participação institucional, aponta algumas dificuldades na sua implantação devido à identidade cultural. Para a autora, como a identidade dos movimentos sociais era calcada na idéia de espontaneidade e conflitos com o Estado, tornava-se difícil para as lideranças dos movimentos de base encontrar os caminhos para participação conjuntamente na www.acaodacidadania.com.br. 29 administração pública. Esta nova ordem simplesmente não se encaixava no modo como os movimentos se identificavam. Além de a crise de identidade, questões como a representatividade, expressas em perguntas como: De que forma as comunidades podem ser representadas num órgão público? Mais ainda, sem que sejam manipuladas por eles? levavam a uma baixa mobilização, muitas vezes ao esvaziamento desta nova forma de participação política. Segundo CARDOSO, estas questões representam o elemento fundamental do desencontro e da dificuldade de se entender como o diálogo, nesta nova trama, seria melhor redefinido. Na análise do Grupo de Estudos sobre a Construção Democrática – GECD (1998: 80) estas novas oportunidades de participação social revelam interesses antagônicos nos processos participativos. O Grupo aponta para certos riscos da parceria entre Estado e sociedade civil. Se de um lado existe demanda social para conquistar mais espaços de participação, de outro a crise do modelo de Estado centralizado leva a sociedade civil a se tornar mero instrumento à disposição do Estado. O GECD, por sua análise, confirma que algumas produções teóricas se referem à crescente presença da sociedade civil na construção de mecanismos institucionais de participação social junto ao Estado, como um refluxo dos movimentos sociais – abandonados aos ideais revolucionários e adesão à uma perspectiva reformista. Outros estudiosos apontam para uma forma de legitimar a participação dos cidadãos nos processos decisórios no sentido de uma nova possibilidade de democratização das estruturas políticas, percebendo na sociedade civil legítimos interlocutores no cenário político (CACCIA BAVA, citado por GECD, 1998/1999: 83). Outros ainda, entendem que tal participação represente formas legítimas, que passam a ser reguladas por amarras legais, seguindo a lógica do incluir para melhor controlar, inibindo seu potencial transformador. No entendimento do GECD (1998/99: 84), constata-se que muitas das atuais propostas de participação social não prevêem a participação da sociedade 30 civil na formulação das políticas públicas, mas apenas a transferência da execução das políticas públicas para os movimentos e organizações voluntárias. Um elemento primordial, porém ausente nas novas propostas de participação, pode ser apontado como o que GOHN (1994) e MELUCCI (1989), chamam de cultura da participação, indicada por estes autores como uma das três fontes básicas de inspiração dos movimentos sociais nos anos 70/80. Esta cultura funda-se no princípio da autonomia das ações e no desejo da autodeterminação dos grupos excluídos. Caracteriza-se por sujeitos que lutam pela sua própria história, rejeitando ser meros objetos de política e políticos (GOHN, 1994: 107). Na cultura da participação, a liberdade de expressão visa ser o atributo fundamental, objetivando não apenas o bem material imediato, mas principalmente o crescimento e o amadurecimento do indivíduo. GOHN entende que neste sentido, a cultura da participação almeja ser uma expressão manifesta na forma plural de seus participantes, possibilitando a construção de identidades diferenciadas nas quais a igualdade se refere ao acesso às oportunidades. Especificamente quanto à forma de participação pela atuação do conselho escolar, GOHN (1995: 92) entende que esta deve ultrapassar as fronteiras da instituição escolar [...] a criação do Conselho e a participação na escola implicam abertura de canais de participação na administração, tendo como meta a transparência administrativa. O Conselho de Escola deve existir para criar políticas e não apenas para executar decisões. Deve estar inserido em um plano estratégico amplo, sem ser o único instrumento de democratização da escola. Deve deliberar sobre currículo, calendário escolar, formação de classes, horários, atividades culturais etc. e deve apontar soluções para os problemas no conjunto de interesses da escola, tais como a aplicação de recursos, racionalização de horários de trabalho e seu funcionamento geral... Os Conselhos representam a possibilidade da escola transformar-se em um espaço de cidadania e democracia no bairro e na região. Assim, cabe ao Conselho garantir que a escola não seja uma unidade voltada só para sua clientela, mas uma unidade de educação para toda a comunidade. Na proposta de GOUVÊA (1997), pode-se perceber a expectativa de uma atuação emancipatória do conselho escolar: Uma escola que apresente uma proposta pedagógica que atenda aos interesses da comunidade desencadeia um processo de reavaliação da participação comunitária nas decisões e caminhos a serem trilhados. O Conselho da Escola passa a ser o fórum pertinente para as discussões e deliberações a respeito das questões pedagógicas e administrativas. Pais e alunos, ao lado de educadores e funcionários, são co-autores do destino educacional da unidade escolar. Tanto na escolha das temáticas a serem abordadas nos diferentes semestres, quanto nas questões relacionadas a operacionalização das ações, as decisões devem ser tomadas levando em consideração 31 as variáveis e os interesses da comunidade local e dos educadores: funcionários, professores, técnicos e equipe diretiva. Um espaço democrático de construção dos saberes não se organiza com poderes centralizados, autoritarismo e clientelismos corporativistas. A gestão democrática é, além de um direito, uma necessidade pedagógica.
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