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CartoCrônicas

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Carto-Crônicas
Uma Viagem pelo Mundo da Cartografi a
Carto-Crônicas
Uma Viagem pelo Mundo da Cartografi a
Segunda edição
Fortaleza
2013
Jörn Seemann
Arte Final da Capa: Francisco Taliba
Editoração Eletrônica: Francisco Taliba
Revisão: Flávio Queiroz (98)
(Os números entre parênteses correspondem às referências 
na bibliografi a no fi m do livro)
 
Contato com o autor:
E-mail para contato: jornseemann@gmail.com
FICHA CATALOGRÁFICA
Direitos reservados exclusivamente ao autor. Qualquer trabalho deste 
livro pode ser usado livremente, desde que seja citada a fonte. Os 
infratores estarão sujeitos às penalidades previstas na Lei Nº 9.610/98 
(Lei de Direitos Autorais).
IMPRESSO NO BRASIL
PRINTED IN BRAZIL
Jorn
Typewritten Text
________________________________________________________________________
Seemann, Jorn
 Carto-crônicas: uma viagem pelo mundo da cartografia/Jörn Seemann
 .- Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2013.
138 p.
ISBN 978-85-420-0184-6
1. Cartografia				I. Título
							CDD: 526
________________________________________________________________________
O ato de mapear é
Uma maneira ou outra de
Tomar a medida de um mundo.
Confi gurando a medida
Tomada de uma maneira assim
Para que possa ser comunicada
Entre pessoas, lugares ou tempos.
A medição do mapeamento
Não é restrita ao matemático;
Pode ser igualmente espiritual, política ou moral.
Pelas mesmas razões,
O registro do mapeamento
Não é confi nado ao que é para arquivar,
Mas também inclui o que é lembrado, imaginado, contemplado.
O mundo fi gurado através do mapeamento
Pode ser então
Material ou imaterial,
Existente ou desejado,
Inteiro ou em partes,
Experimentado, lembrado ou projetado em várias maneiras.
Conforme a sua escala,
O mapeamento pode traçar uma linha
Ou delimitar e defi nir um território
De qualquer comprimento ou tamanho,
Da totalidade da Criação
Aos menores fragmentos;
Noções de formas e áreas
São, por eles mesmos, de certa forma,
O produto de processos de mapeamentos.
Atos de mapear são criativos,
Às vezes inquietos,
Momentos de obter conhecimento sobre o mundo,
E o mapa é ao mesmo tempo
Uma materialização da cognição
E um estímulo para novos compromissos com o conhecimento.
Denis Cosgrove, 1948-2008, minha inspiração para essas 
“cartografi as culturais” (13)
Esse livro é para Selma e Oliver, cartógrafa e cartógrafo do meu coração.
SUMÁRIO
Prefácio - Mapas, cosmologias e paradoxos:
a arte de soltar pipas .......................................................... 9
Introdução ........................................................................ 13
O Trauma Cartográfi co na Sala de Aula .................... 15
Correntes e Acorrentados na Cartografi a ................. 24
História(s) da Cartografi a I:
Em Busca do Mapa Mais Antigo do Mundo ..................... 32
História(s) da Cartografi a II:
A Busca pela Longitude ..................................................... 38
História(s) da Cartografi a III:
A Invenção do Primeiro Meridiano ................................... 43
(Con)fusos Horários I:
Produzindo Tempo e Espaço............................................. 49
(Con)fusos Horários II :
Quem Faz a Hora no Brasil? .............................................. 57
(Con)fusos Horários III:
 O Horário de Verão ........................................................... 61
A Escala Como Chave do Tamanho ............................. 66
A Guerra das Projeções Cartográfi cas ...................... 72
O Mapa de Cabeça para Baixo .................................... 78
Minha Cabeça é um Mapa ............................................. 83
Crianças, Mapas-Múndi e a Visão de Mundo ........... 89
Lendo entre as Linhas dos Mapas ............................... 97
O Mapa como Biografi a ................................................ 102
Mapas e a Poética do Espaço ...................................... 108
A Cartografi a - Baseada em Fatos Reais ................... 113
Posfácio
A Vida ao Rés do Mapa...................................................... 123
Referências bibliográfi cas ............................................ 131
9
Carto-Crônicas
Prefácio
Mapas, cosmologias e paradoxos: a arte de soltar pipas
Pelo recorte do mapa
Pela restinga
Pela praia [...] 
Pela areia afora
A tarde inteira
Pela borda [...]
(Maritmo – Adriana Calcanhoto)
A Paixão é como um Deus que 
quando quer me toma todo o pensamento.
Dirige os meus movimentos [...]
Meu pulso é desse
todo poderoso sentimento. 
(Paixão - Maria Rita)
À medida que o vejo avançar, meu olhar dilata-se. 
Estávamos em um desses contextos de reunião científi ca que, 
agora, não me lembro ao certo se num congresso, simpósio 
ou colóquio. Já o conhecia pelos seus escritos acerca dos 
recortes dos mapas e das imaginações espaciais sugeridas por 
eles. De uma escrita experimental - embalada pelo desejo em 
lidar com o pensamento espacial. De uma escrita afetuosa 
- a conquista do leitor. De uma escrita-maritmo – as viagens 
e escritos por lugares cartografados e não cartografados. De 
uma escrita apaixonante – a potência imaginativa. 
Essas são as Carto-crônicas: uma viagem pelo mundo da cartografi a, 
de Jörn Seemann. Trata-se de um conjunto de narrativas 
sobre a linguagem cartográfi ca e os seus paradoxos, cujo 
autor aponta, de maneira cuidadosa e descontraída, tanto 
10
Carto-Crônicas
os limites e “pontos cegos”, quanto às potências política e 
poética dos mapas, conquistando o pensamento do leitor, 
pois não é qualquer autor/pessoa que ao bater à nossa 
porta está autorizado entrar em nossa casa/nossa morada 
– estado passageiro de um espaço-tempo marcado por 
trajetórias de histórias até agora – em decorrência dos engajamentos 
assumidos por nós ao longo de nossa história. 
Cada crônica deste livro apresenta as marcas de 
um geógrafo cultural genuíno (“geonuíno”) como é Jörn 
Seemann que aprendeu “a deixar-se ensinar por uma 
outra cultura, pois, doravante, possuí um novo órgão de 
conhecimento, voltou a se apoderar da região selvagem de 
si mesmo, que não é investida por sua própria cultura e por 
onde se comunica com as outras”(99), com a fi nalidade 
de reconhecer as rupturas e desigualdades necessárias das 
cartografi as já legitimadas e daquelas em aberto – elaboradas 
na produção contínua do novo.
Nascido no norte da Alemanha, Jörn viveu próximo 
de um riacho que é afl uente do Rio Elba e quando criança 
costumava andar sobre o dique que protegia a população 
das águas do riacho..., conforme sua carto-crônica sobre 
o mapa como biografi a, que nada mais é do que uma 
tentativa de reconhecer sua verdadeira espacialidade. No 
Brasil, ele vive em Crato, município localizado na encosta 
da Chapada do Araripe, extremo-sul do Estado do Ceará, 
onde também desenvolve suas atividades acadêmicas e 
de pesquisa na Universidade Regional do Cariri (URCA), 
“cartografando” por meio de um olhar etnográfi co as 
imaginações espaciais daqueles que serão professores de 
geografi a, daqueles que já atuam na educação básica e 
daqueles que vivem no/o Cariri.
11
Carto-Crônicas
Carto-crônicas é uma contribuição importante e necessária 
para professores (seja da educação básica, seja do ensino 
superior) e pesquisadores vinculados ao ensino de geografi a e 
à Cartografi a Escolar brasileira, porque desvenda concepções 
históricas acerca da abordagem de temáticas como fusos 
horários; cartas, cálculos e coordenadas geográfi cas; projeções 
cartográfi cas; história da cartografi a; origem da latitude e 
longitude; e escala. Além disso, Jörn também aborda “carto-
fatos” de um jornal brasileiro que ofereceu aos seus leitores 
um curso preparativo para o vestibular; obras artísticas como 
o “mapa invertido”, de 1943, do pintor uruguaio Joaquín 
Torres Garcia que também constitui a capa de Carto-crônicas; 
as metáforas espaciais sugeridas ora pelos poemas de Álvaro 
de Campos (heterônimo do poeta português Fernando 
Pessoa), ora pelas narrativas da escritora norte americana 
Maya Sonenberg.Este livro também se constitui como a paisagem de 
Brodowski (de 1942) de Candido Portinari.
12
Carto-Crônicas
Em minha imaginação, as pipas são como os mapas. Prontas 
e ao mesmo tempo inacabadas. Prisão e liberdade. Nômades 
e sedentárias. O vento lança as pipas para ajudar a colorir 
o limite do céu esculpido pelo nosso olhar que as mistura 
com nuvens e a solidão de quem as empina na esperança 
de novamente tê-las em mãos para empiná-las. Os mapas 
aguçam nossa imaginação, potencializam nossos sonhos de 
viagem, fazem-nos perder em meio às experimentações de 
percorrer um lugar desconhecido, porque necessariamente 
o mapa não coincidirá com aquilo que ele pretende ser: a 
verdade do espaço. 
Derivar. Eis a potência deste livro. Para isso, o autor de 
Carto-crônicas não apresenta os mapas em suas grafi as poéticas 
e políticas em detrimento dos mapas oriundos da cartografi a 
ofi cial. Experimenta com e não contra estes mapas e por entre 
suas linhas Jörn Seemann nos convida a seguir com ele, 
às vezes como Dom Quixote fazia em seus deslocamentos 
imaginativo-espaciais, adensando ao seu movimento 
refl exivo as manifestações das grafi as que operam em nosso 
pensamento acerca dos mapas. 
Assim, este livro constitui-se uma referência fundamental 
para quem exerce seus engajamentos nos campos da 
educação geográfi ca, da cartografi a escolar e da geografi a 
cultural. Provavelmente o leitor identifi car-se-á com grande 
parte das crônicas com as quais fomos presenteados ao 
ganharem existência por meio dos escritos deste geógrafo 
cultural que solta pipas. 
Valéria Cazetta
Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH)
Universidade de São Paulo
Maio de 2012
13
Carto-Crônicas
Introdução
Cartografi a = cartas, cálculos e coordenadas? Eis a imagem 
comum da cartografi a: exata, friamente objetiva e alheia à nossa 
realidade. Os mapas nos impressionam, parecem representações 
perfeitas da realidade. Às vezes, confi amos mais no mapa do que 
na própria realidade. Os manuais de cartografi a enfatizam o lado 
matemático da ciência: cálculos, coordenadas, fusos horários, 
convenções cartográfi cas, escalas – corremos o risco de fi carmos 
presos nas malhas dos meridianos e paralelos.
Em vez de ver a cartografi a como técnica esotérica para os 
aptos em matemática e engenharia, como língua culta para os 
mais cultos e como um conjunto de ferramentas especializadas 
que espantam até o último interessado em mapas, precisamos 
mergulhar no mundo fascinante das representações cartográfi cas 
e olhar além das suas aparências para alcançar os professores e 
outros “mortais” com curiosidade potencial de querer saber de 
mapas. 
Esta coletânea de textos não é para ofender, ainda menos 
para desafi (n)ar os profi ssionais da área, mas tem como intuito 
estabelecer um diálogo entre a cartografi a e a sociedade. Mapas 
são criações humanas, narrativas, mensagens, ideologias, discursos 
e construções socioculturais. E seria lastimável se desperdiçássemos 
o seu potencial como forma de comunicação, expressão e meio 
para apreender a realidade. Mapas representam, apresentam ou 
visualizam algum espaço, seja esse imenso ou minúsculo, bonito ou 
feio, real ou resultado de pura imaginação. O mapa, na verdade, não 
é um produto, mas um processo (mapeamento) que não se reduz 
a levantamentos topográfi cos e geodésicos, medidas de precisão e 
formas materiais, mas que pode ser igualmente espiritual, político 
ou moral e incluir o que é lembrado, imaginado e contemplado, 
“existente ou desejado, inteiro ou em partes, experimentado, 
lembrado ou projetado em várias maneiras” (13).
14
Carto-Crônicas
Para estabelecer esse diálogo entre a cartografi a 
e a sociedade, um texto sobre mapas não pode ser 
excessivamente acadêmico nem técnico. Por isso, optei pela 
estratégia de capítulos curtos em estilo de crônicas, cuja 
ludicidade já foi mostrada por Manoel Fernandes na sua Aula 
de Geografi a (22), brincando com palavras e poetizando sobre 
a representação da nossa realidade. Apresento essas crônicas 
através da utilização de uma linguagem mais leve para falar 
de outra linguagem “mais pesada”, a cartografi a. Crônicas 
são diálogos entre o autor e os seus leitores, registros menos 
formais, comentários e observações sobre acontecimentos 
“que tanto poderiam ser do conhecimento público como 
apenas do imaginário do cronista, tudo examinado pelo 
ângulo subjetivo da interpretação, ou melhor, pelo ângulo 
da recriação do real” (72). Quero mostrar que a cartografi a 
é inteiramente humana e faz parte da nossa prática social: 
queiramos ou não, somos mapeadores da realidade, alguns 
mais e outros menos. 
Essa viagem pela cartografi a aborda alguns assuntos 
importantes da disciplina, desde o sentido e a utilidade da 
cartografi a e seus princípios (projeção, escala e simbologia) 
até as cartografi as da nossa realidade com sua(s) história(s), 
biografi as e poesias. Alguns dos textos são versões 
simplifi cadas de artigos já publicados, outros são anotações 
e rabiscos garimpados na gaveta da minha escrivaninha, 
refl exões inéditas ou apenas relatos das minhas experiências 
“sofridas” em sala de aula. 
Jörn Seemann
Crato, Ceará, 01 de maio, 2012
15
Carto-Crônicas
O Trauma Cartográfi co na Sala de Aula
Omã é o quê?
Se se cala a memória transcendental?
Goya escrevia ou pintava?
Não é desleixo esquecer
números de telefones.
Vidas existiram mesmo que as tenhamos
esquecido completamente.
Mas se gravar é virtude,
se é que deve ser lembrado algo
armazenado num ponto ou galeria
dum hemisfério cerebral
ou do corpo espiritual,
por que não começar do necessário-mor?
Por que não guardar
a chave da memória eterna?
Francisco de Freitas Leite - Dúvida do Nunca Lembrado (44)
Omã é o quê? Essa pergunta me preocupou bastante 
quando era um moleque de dez anos na quinta série. Era 
dia de prova de geografi a que incluía vários exercícios sobre 
coordenadas geográfi cas. Uma das tarefas era localizar a 
cidade que estava aproximadamente situada em cima do 
Trópico de Câncer e na longitude 58°30’ leste. Durante a 
prova, medi os paralelos e meridianos, estimei a posição, 
suei, tentei tudo, mas não fui capaz de acertar a localização 
correta da cidade procurada. Não tirei nota máxima por 
causa disso e gravei esse incidente na minha memória. O 
lugar do meu fracasso escolar foi a cidade de Mascate, a 
capital de Omã, um país pequeno na Península Arábica, 
pouco conhecido aqui no Brasil e vizinho do Iêmen e dos 
Emirados Árabes Unidos. Desde então, guardo esse lugar na 
minha mente: Mascate, Omã, coordenadas de acordo com 
o Google Earth: 23 graus, 36 minutos e 31 segundos norte e 
58 graus, 35 minutos e 31 segundos leste – mas quem vai 
querer saber?
16
Carto-Crônicas
Por que saber as coordenadas de um lugar? Em que essa 
informação vai contribuir para o meu conhecimento? Ainda 
me lembro das minhas aulas de geografi a no ensino médio. 
No primeiro ano, o tema foi o cenário da Guerra Fria (um 
dos tópicos principais nos anos 80), visando à comparação 
de diversos aspectos geográfi cos dos então superpoderes 
do mundo, os Estados Unidos e a União Soviética. Um 
dos exercícios das provas consistiu na memorização 
das principais cidades, rios e serras nos dois países. Foi-
nos apresentado um mapa-mudo (apenas os rios, serras e 
“bolinhas” da localização das cidades) de cada país, e nossa 
tarefa era preencher as lacunas com os topônimos corretos. 
Memorizar para quê? Será que essa decoreba ajuda 
a estabelecer uma ligação com a realidade? Essa prática 
comum nas salas de aula faz lembrar uma história fi ctícia 
apresentada pela educadora Maria Inez Carvalho. Ela nos 
conta o que aconteceu a um senhor de idade já avançada que 
foi assaltado por um ladrão “geófi lo” em plena luz do dia. 
Encostando a arma na cabeça do idoso, o assaltante gritou: 
“Diga-me todos os afl uentes do Rio Amazonas, se não você 
vai morrer!” Angustiado e nervoso, o senhor literalmente 
disparou: “Javari, Juruá, Purus, Madeira, Tapajós e Xingu”.Diante da sequência correta dos rios, o assaltante cumpriu a 
sua palavra e baixou a arma, deixando o homem velho em 
paz. Ainda trêmulo e encharcado de suor, a vítima respirou 
fundo e disse: “Eu sabia que isso ainda ia servir para alguma 
coisa!” (08).
Quando era criança, fi z competições com os meus 
amigos para descobrir quem sabia o maior número de 
capitais no mundo. Mascate estava na minha lista das cidades 
conhecidas. O decorar até se tornou uma diversão para nós. 
Os mapas nunca ganharam destaque, mas eles estavam lá, 
prontos para serem usados. Meu fascínio era passar com o 
17
Carto-Crônicas
meu dedo sobre os nomes de lugares, imaginando como a 
vida era lá: Ulan Bator (literalmente “herói vermelho”) na 
Mongólia, Llanelli (“igreja do Santo Eli”) no País de Gales ou 
Baton Rouge (“vara vermelha”) nos Estados Unidos. Era o 
prazer de descobrir lugares.
Apenas aprendi a me preocupar com projeções, escalas 
e símbolos, quando ingressei no curso de geografi a na 
universidade. Três disciplinas abriram o mundo da cartografi a 
científi ca para mim: a primeira para decorar defi nições da 
cartografi a e tipos de projeções, a segunda para interpretar 
e produzir mapas topográfi cos e temáticos e a terceira para 
confeccionar mapas com a ajuda do computador. 
Em 1998, eu me tornei professor universitário da 
disciplina de cartografi a em uma universidade no Nordeste 
brasileiro e tive a oportunidade de refl etir mais sobre 
o misterioso mundo que os mapas escondem (11). No 
decorrer dos anos desenvolvi várias estratégias para ensinar 
cartografi a para os estudantes do curso de graduação em 
geografi a. Nas minhas aulas na universidade, no começo 
do semestre, costumo aplicar um mini questionário junto 
com a turma e peço aos alunos que respondam às seguintes 
perguntas: O que é cartografi a? Qual é a sua utilidade? Como 
foi a cartografi a que conheci ou aprendi até agora? Como 
usar a cartografi a na sala de aula? As respostas, em geral, 
variam bastante, entre a falta absoluta de uma noção sobre a 
disciplina e a curiosidade incontrolável de querer saber.
As observações dos universitários (destacadas 
neste texto em letras itálicas) chegam a ser provas de um 
desconhecimento pessoal sobre a cartografi a: Alguns alunos 
simplesmente admitiram a inexistência de uma discussão 
cartográfi ca na escola e nunca estabeleceram um contato 
consciente com a disciplina: 
18
Carto-Crônicas
Não aprendi, acho que não tinha na escola. 
Não recordo. 
Nunca aprendi nada sobre cartografi a. 
Sinceramente, não lembro se tive aulas de cartografi a.
Em outros casos, a cartografi a foi reduzida a um mero 
exercício de reprodução de um mapa sem sentido e do tipo 
“vamos pintar o Ceará em cor de laranja, Bahia em azul etc.”, 
tornando a atividade um mero ato mecânico sem referência 
ao espaço: 
“Quantos não têm lembrança de terem feito 
cópias de mapas, com detalhes de contornos, 
meandros de rios, nomes de cidades, sem 
ao menos entenderem ou refl etirem sobre as 
informações relacionais que estavam sendo 
copiadas? O capricho era com a arte: cores, 
traços, letras!” (61).
Nas palavras dos próprios alunos, não havia o mínimo 
sentido nesse exercício de pintar e colorir o espaço geográfi co: 
Um desenho de mapa puro e simples sem nenhuma 
interpretação. 
Somente desenhar mapas, localizar estados e capitais do 
Brasil. 
Um conjunto de mapas para decorar e passar de ano. 
Olhando e reproduzindo. 
Parece com um exercício de caligrafi a. Dá-se mais 
atenção à aparência do que aos conteúdos do mapa. As 
conseqüências da “escrita boa” mostram-se também nas 
capas dos trabalhos que os alunos entregam ao professor: 
letra bonita, estética, com toque de artista, mas o conteúdo 
nem tanto... 
Dentro do discurso geográfi co, os alunos enquadram a 
cartografi a como baluarte da geografi a tradicional: 
19
Carto-Crônicas
Muito defasada
Burra /pequena
Solta
Decoreba
Um pouco ultrapassada e distante da prática. 
Não surpreende que o seu verdadeiro valor e signifi cado 
simplesmente continuam aguardando sua descoberta. Não 
é fácil entender por que a exposição aos livros didáticos 
de geografi a com a sua abundância de mapas não está 
provocando uma refl exão mais aprofundada sobre a função 
do mapa, sem ser 
Apenas uma fi gurinha ilustrativa nos livros didáticos que 
não chamou a minha atenção
Chata sem perspectiva
Algo fútil, não se fazendo necessário a sua utilização no 
nosso dia-a-dia. 
Até hoje não houve mudanças signifi cativas nos 
livros didáticos de geografi a que continuam carregados ou 
sobrecarregados de mapas, mas os autores raramente ligam 
as imagens ao texto e vice-versa. A cartografi a defi nha com a 
frase “veja mapa 1” – sem maiores explicações ou instruções 
de como “ver” e ler entre as suas linhas. 
A causa dessa situação talvez seja a maneira como 
os professores ensinam a cartografi a. Uma professora que 
não domina os conteúdos certamente não vai ensiná-los 
aos seus alunos. Ela simplesmente “pula” na hora de tratar 
dos assuntos da cartografi a. Quem por acaso avança e tenta 
usar mapas na sala de aula, muitas vezes, não passa do 
exercício de localização, que, na verdade, nem é localização, 
mas o mero ato de apontar com o dedo a um determinado 
lugar, rio, serra etc., - tanto que a cartografi a na escola 
praticamente não foi ensinada e sim mostrada. Muitas vezes, a tradição 
dessa “subutilização” da cartografi a tem continuidade na 
universidade quando o professor não explica o sentido, o 
20
Carto-Crônicas
signifi cado e a utilidade da cartografi a: Na escola: uma cartografi a 
sem aprofundamento, na universidade: um aprofundamento sem enriquecimento.
Diante dessa calamidade cartográfi ca, não surpreende 
sermos confrontados com visões cartográfi cas como as 
seguintes: Aprendi que a bússola serve para não se perder, porém só 
olhando-a, eu me perco. Ou, ainda mais grave, o caso de uma aluna 
de especialização que defi niu a cartografi a como modelo correto 
das letras, que posso usar de modo que dê para escrever com o tempo. Pois quando 
escrevemos em pouco tempo, a letra é uma e quando é em mais tempo, a letra é 
outra... Entenderam? Eu também não entendi essa resposta até 
descobrir o sentido verdadeiro muito tempo depois. A aluna 
tinha confundido a cartografi a com a caligrafi a!
Onde está nosso problema? Em um texto intitulado “A 
reprodução do não-saber: o uso dos mapas por professores 
e alunos do ensino fundamental”, a geógrafa Ângela Katuta 
(39) investiga o conhecimento cartográfi co defeituoso 
nas escolas, chegando à conclusão de que a professora de 
geografi a, muitas vezes, reproduz na sala de aula o que ela 
mesma aprendeu quando aluna. Pois ensina aos alunos a ter 
a mesma relação que ela mesma manteve com os mapas. 
Pior, a professora está consciente de seu defeito, mas não 
consegue superar as suas difi culdades didáticas e descartar 
ou repensar as antigas práticas. Ainda pior, os alunos não 
serão capazes de entender o sentido de trabalhar com mapas. 
Continua sendo divulgada a idéia que o mapa serve para fazer, 
para estudar ou para colocar o nome dos lugares na prova.
Trabalhar com mapas signifi ca pensar, representar e 
interpretar o espaço de uma maneira gráfi ca e não se deve 
restringir-se à leitura superfi cial de mapas. Aquele olhar de 
cinco ou dez segundos para identifi car o objeto na nossa 
frente como um mapa não é sufi ciente. Que tal passar cinco 
minutos lendo os detalhes e literalmente esfregando o nariz 
nos rios, morros e estradas?
21
Carto-Crônicas
Além desse maior entrosamento com a cartografi a, 
também precisamos incluir a produção das nossas próprias 
representações do espaço. A educadora Maria Elena Simielli 
chama esses desenhos de croquis: representações esquemáticas 
dos fatos geográfi cos que não são mapas e não se destinam 
à publicação, mas têm um valor interpretativo por expor 
questões, não sendo obras de um especialista em cartografi a 
(80), mas expressões gráfi cas pessoais. Desta maneira, não 
seremos apenasusuários dos mapas, mas também fazedores. 
O maior problema, portanto, é como ensinar a representar o 
espaço? Como se tornar cartografi camente iniciado? A respeito 
deste questionamento, um aluno do quarto semestre (Alcides é 
o nome dele) fez a seguinte observação: 
Difi cilmente somos estimulados a fazer até mesmo um 
mapa do nosso bairro e concluímos o segundo grau como 
“analfabetos cartográfi cos” (...) a ponto de ouvirmos falar 
em carta zoogeográfi ca e perguntarmos se é uma carta escrita 
por um animal como o macaco.
Como resolver o problema diante dos salários achatados 
das professoras do ensino básico, dos desestímulos fi nanceiros, 
administrativos e profi ssionais, da sua sobrecarga de trabalho 
(muitas vezes em dois ou três turnos e sobretudo por serem 
mães de família e esposas não compreendidas)? Vejam bem, 
uso o plural feminino para salientar que a maioria do corpo 
docente nas escolas são mulheres. O que fazer diante de alunos 
entre os quais se manifesta uma nova forma de analfabeto: 
aquele que não sabe pensar e apenas reproduz sem investir 
na busca pelo conhecimento? (19) Será que o mapa perde 
mais uma vez essa luta? Será que a cartografi a está “perdendo 
espaço”, tornando-se uma ciência espacial sem referência à 
realidade?
22
Carto-Crônicas
Eu mesmo ando cada vez mais preocupado com 
a educação cartográfi ca que não é para ser um assunto 
acadêmico, mas uma prática ou até atitude estreitamente 
ligada à nossa vida cotidiana. Pouco tempo atrás, elaborei 
uma prova da disciplina de cartografi a básica que incluía uma 
pergunta sobre as diferenças entre a cartografi a do século 
XVI e XVIII e os mapas modernos. Uma aluna escreveu a 
seguinte resposta que vou reproduzir sem correções (se a 
correção automática do Word e o revisor deste manuscrito 
deixarem):
Alguns mapas antigos aindam mostra a terra enquanto 
ainda não separada devido as placas, outros, que devido a 
religiões, mostram apenas parte do planeta, pois acreditavam 
que fora dali onde moravam não havia mais nada e quem 
ousace discordar, tinha pena, pois acriditavam que se saírem 
dali cairiam direto no inferno. E graças a Cristovam 
Colobom que discordou e foi ver o que tinha fora de suas 
terras percebeu que o mundo era redondo e que ao invés de 
cair você poderia fi car dando voltas e voltas.
À primeira vista este texto parece muito engraçado. 
Portanto, pelo fato de se tratar de uma aluna de licenciatura 
em geografi a (uma professora futura então!) e eu ser o docente 
dessa disciplina não há nada animador nessa passagem. 
Esse episódio me faz lembrar uma das inúmeras historietas 
do cronista-mestre Rubem Alves (02). Na sua crônica O Rio 
São Francisco no Paraná, ele nos mostra o caso de uma aeromoça 
que não precisava colar para passar de ano, sabia direitinho 
os nomes, sabia olhar os mapas, marcou certo as respostas 
na prova de geografi a, mas em um voo entre Londrina e São 
Paulo confundiu o Rio São Francisco com o Rio Paranapanema 
por não ser capaz de ligar uma representação do espaço ao 
espaço representado, ou seja, ligar o mapa à realidade e ver 
pelos símbolos o espaço que representa - um espaço que não 
23
Carto-Crônicas
é símbolo, mas feito de montanhas, rios de verdade, planícies 
e mares. O geógrafo crítico Manoel Fernandes descreve essa 
situação da seguinte maneira:
“... na mesa o mapa pode ser apenas um 
pedaço de papel, mais nada, e no entanto 
ele signifi ca um grandioso universo cheio 
de símbolos e legendas, maravilhosamente 
mudo enquanto fala para quem o olha. O 
mapa representa para nós, não nós a ele, e 
assim vai escorregando como se fosse areia 
colorida entre os nossos dedos. O mapa é 
uma grande representação, esse é o seu 
papel, o resto é só impressão” (22).
Na verdade, precisamos investigar mais casos como o 
da minha aluna da cartografi a básica e o da aeromoça do 
voo entre Londrina e São Paulo para conhecer e entender os 
nossos problemas com a cartografi a e, possivelmente, mudar 
a cultura cartográfi ca no Brasil. 
24
Carto-Crônicas
Correntes e Acorrentados na Cartografi a
A maneira de pensar o espaço depende fortemente das 
infl uências socioculturais, fi losófi cas, políticas e econômicas 
de cada época e cada povo. Vertentes como o evolucionismo, 
determinismo ambiental, possibilismo e a geografi a crítica 
são produtos do seu próprio tempo, e sempre se corre o 
perigo de interpretar ideias do passado com a visão do 
presente. Diante de tantas correntes, correntezas, enxurradas 
e avalanches mentais para pensar o espaço, surpreende que 
quase nunca se fala em “pensamento cartográfi co”, embora 
os mapas sejam considerados uma ferramenta essencial para 
retratar, armazenar e generalizar informações. O famoso 
geógrafo inglês David Harvey afi rma que “nada é tão caro 
ao coração e à mente dos geógrafos como os mapas” (35). 
Mapas são classifi cados como linguagem da geografi a, e 
eles “derrubam as nossas inibições, estimulam as nossas 
glândulas (sic), mexem com nossa imaginação, soltam nossas 
línguas” (75). No entanto, a prática conta outras histórias. 
Para muitos geógrafos, a cartografi a não passa de uma técnica 
(muitas vezes terceirizada porque o geógrafo “encomenda” 
os mapas para os seus trabalhos) que dispensaria qualquer 
refl exão teórica ou fundamentação epistemológica. 
O que no tempo da Antiga Grécia era praticado não 
era cartografi a, mas cosmografi a: O saber geográfi co não 
dependia de mapas, mas de relatos de viagens, navegações 
e descrições de determinados países e se referia a questões 
fi losófi cas e matemáticas da visão do mundo. Cláudio Ptolomeu 
(aproximadamente 90-168), por exemplo, elaborou um 
mapa do mundo com uma malha de coordenadas de latitude 
e longitude. A sua obra-prima Geographia foi escrita por volta 
de 150 d.C. e devidia-se em oito volumes. O primeiro livro 
discutia os princípios da cartografi a matemática e os métodos 
25
Carto-Crônicas
de representar uma superfície esférica no plano. Os outros 
sete volumes eram “um pouco mais do que uma lista de 
cerca de 8000 nomes de lugares, cidades, ilhas, montanhas, 
bocas de rios etc., cujas localizações foram presumivelmente 
determinadas com uma precisão de minutos e segundos” 
(85). A “teoria” de Ptolomeu era excelente, mas a prática 
“ordinária”, porque a determinação das posições baseava-
se em algumas medições astronômicas de latitudes e nas 
estimativas encontradas nos relatos de viajantes. A maioria 
das posições foi determinada por cálculos matemáticos a 
partir de um ponto conhecido e não por meio de medições.
Depois de quase um milênio de pouca fi losofi a sobre mapas 
durante a Idade Média, os pensadores do Renascimento 
começaram a resgatar os valores e visões da Antiguidade, 
principalmente nas áreas de fi losofi a, arte, literatura e 
arquitetura. O visual reconquistou o seu lugar, enquanto a 
representação do espaço ganhou cada vez mais importância. 
Neste contexto, a primeira descrição formal de um sistema 
de perspectiva surgiu na cidade italiana de Florença no 
século XV, quando dois arquitetos apresentaram as suas 
ideias para transcrever o olhar humano no papel. A invenção 
da perspectiva linear, dos pontos de fuga e das linhas do 
horizonte na arte e na arquitetura permitiu criar a ilusão 
visual do espaço tridimensional numa superfície plana de 
duas dimensões. 
A perspectiva, portanto, não é uma transposição das 
condições supostamente eternas do olhar, mas apenas 
uma técnica, uma forma simbólica de representação do 
espaço. É uma construção histórica que tenta simular a visão 
binocular através de um olhar unifi cado e imobilizado e que 
identifi ca profundamente um conteúdo intelectual com um 
modo sensível de representação: “Vemos da forma que não 
26
Carto-Crônicas
representamos, pois o olhar percebe de modo ligeiramente 
esférico, enquanto a perspectiva é linear... Existe uma 
discrepância entre a percepção e a perspectiva linear” (57). 
O que vemos no papel não é uma transcrição exata do que o 
olho vê. Trata-se deuma geometrização do olhar (fi gura 1). O 
mundo é concebido através de uma janela que é subdividida 
em quadrados ou retângulos. Tudo que é observado pode 
ser projetado em uma folha de papel.
Figura 1: Desenhar com perspectiva: Recorte de uma gravura do Lehrbuch der 
Malerei (1525) de Albrecht Dürer
(http://people.sc.fsu.edu/~jburkardt/latex/asa_2011_images/durer_perspective.png)
Essa sistematização do olhar representa a base para 
ciências como a cartografi a e para manifestações artísticas 
como a pintura de paisagens. Ao mesmo tempo, a perspectiva 
linear era responsável pela criação da “aparência objetiva” 
dos mapas: 
27
Carto-Crônicas
“O ponto de vista fi xo dos mapas e quadros 
com perspectiva é elevado e distante, 
completamente fora do alcance plástico 
e sensorial. Ele gera um sentimento de 
espaço friamente geométrico e sistemático, 
que mesmo assim produz uma sensação 
de harmonia com a lei natural, acentuando 
assim a responsabilidade moral do homem 
no âmbito do universo geometricamente 
organizado de Deus” (36).
Com base no perspectivismo renascentista, os cartógrafos 
iluministas criaram uma dialética entre a experiência empírica e 
a razão na cartografi a: é a experiência visual do meio ambiente 
que produz as informações, mas é a razão que a refi na e 
estrutura e lhe atribui um signifi cado. As experiências subjetivas, 
independentemente da sua natureza, foram moldadas de acordo 
com o racionalismo cartesiano que escolhia a matemática como 
a ciência verdadeira e a geometria como sua língua ofi cial.
A palavra cartografi a é relativamente nova. Foi introduzida 
nas ciências apenas no século XIX, quando em 8 de dezembro 
de 1839 o historiador português Manoel Francisco de Barros e 
Sousa (mais conhecido como Segundo Visconde de Santarém) 
mandou uma carta para outro visconde (o Visconde de Porto 
Seguro), o historiador brasileiro Francisco Adolfo Varnhagen, 
na qual disse: “invento esta palavra, já que ahí se tem inventado 
tantas”. Um dos biógrafos do Visconde de Santarém comenta o 
seguinte sobre esse neologismo:
 “Essa asserção é muito importante. 
Começamos a verifi car em alguns dicionarios 
anteriores a 1839 a não existência da 
palavra cartographia; entretanto, tornar-
se-ia indispensável uma investigação mais 
minuciosa, que não nos foi possível fazer, 
se por ventura se julgasse necessário ratifi car 
28
Carto-Crônicas
o que não temos razão alguma para pôr em 
dúvida até demonstração em contrário. E 
assim bem se pôde dizer que o Visconde de 
Santarém é o primeiro crítico da cartografi a, 
como foi o inventor do próprio termo” (17).
Então, a palavra “cartografi a” é mesmo uma invenção 
brasileira! Para ilustrar esse fato, o geográfo americano Denis 
Wood atesta que a palavra “cartógrafo” encontrou seu lugar 
no Oxford English Dictionary apenas em 1859, enquanto o termo 
“cartográfi co” foi somente mencionado 1880 (94) 
Com a consolidação da geografi a como ciência na segunda 
metade do século XIX e a corrida dos países europeus para 
conquistar a sua “parte” nos outros continentes, principalmente 
na África, a cartografi a se tornou uma ferramenta importante para 
os projetos coloniais, porque os mapas bem feitos “facilitaram” 
a exploração dos recursos naturais dos países “colonizados”. 
Só a partir da segunda metade do século XX surgiu um 
engajamento maior dos profi ssionais e pesquisadores com a 
teoria na cartografi a. Eles começaram a se preocupar com as 
informações geográfi cas e sua transmissão. Alguns se apegaram 
a teorias de informação segundo as quais os mapas são 
concebidos como veículos de informações espaciais. A tarefa 
dos pesquisadores era investigar a forma da transmissão da 
mensagem do emissor ao receptor e as interferências (“ruídos”) 
durante o processo. Outros se apoiavam na teoria dos signos, cuja 
semiologia gráfi ca procurava estabelecer um padrão para uma 
espécie de gramática de linguagem visual a partir de símbolos 
que consistiam em um signifi cado (“sentido”) e um signifi cante 
(forma gráfi ca para representar o signifi cado). A questão do 
poder cognitivo dos mapas também chamou mais atenção. 
O que interessava mais aos seguidores dessa linha não era o 
fazedor de mapas, mas o usuário cujas operações mentais são 
estimuladas, provocando uma interação entre o mapa (produto 
cognitivo do cartógrafo) e os processos cognitivos do usuário. 
29
Carto-Crônicas
As novas tecnologias, ligadas ao uso do computador e da 
informática (SIG, Internet, vídeo, imagens digitais etc.) levaram 
a uma maior refl exão sobre a visualização de informações em 
face das crescentes quantidades e qualidades das informações e 
da rapidez na coleta, tratamento, armazenamento e atualização 
de dados. Sob essa perspectiva, os mapas são concebidos não 
apenas como forma de comunicação, mas como ferramentas 
de análise e meios de visualização que servem tanto para 
estudar as características dos fenômenos geográfi cos e sintetizar 
informações como também para apresentar resultados.
Quanto à cartografi a no Brasil, registrava-se uma 
infl uência forte da “escola regional” francesa de Vidal de 
La Blache, que “foi importante matriz da organização da 
geografi a científi ca no Brasil” (25). De acordo com essa 
corrente, a cartografi a era o instrumento legitimador do 
método geográfi co, tendo como fi losofi a uma base regional, 
positivista e apolítica que “não enganava o olho”. Dava-se 
preferência à descrição da paisagem e suas marcas visíveis 
e não à análise e aos fatores invisíveis. Nesta “fase” da 
cartografi a no Brasil (com seu “auge” entre 1930-1975), o 
objetivo era auxiliar a localizar e descrever fenômenos 
geográfi cos e representar fi dedignamente as partes que 
compunham a realidade sem muita preocupação com a 
explicação da organização territorial da sociedade (40).
Com a renovação da geografi a no Brasil nos anos 70, 
surgiram duas infl uências marcantes: a tecnologia e a crítica 
social. No caso da primeira infl uência, os novos avanços 
tecnológicos encaixaram-se na “revolução quantitativa” do 
neopositivismo que buscava maior rigor na aplicação da 
metodologia científi ca, utilizando técnicas matemáticas e 
estatísticas, abordagens sistemáticas e modelagem. Hoje em 
dia, esses procedimentos se resumem nas “Geotecnologias” 
que, entre os próprios cartógrafos, não estão isentas de 
30
Carto-Crônicas
críticas, já que muitos cartógrafos estão abertos para novas 
tecnologias e fechados para novos conceitos (86). Vozes 
críticas na cartografi a alertam que se esse paradigma da 
cartografi a como “tecnologia persuasiva” (32) prevalecer, 
muito seria perdido, porque seria um erro “determinar 
a nossa compreensão e defi nição da cartografi a por um 
imperativo tecnológico” (86). 
A segunda infl uência teve um impacto muito 
signifi cativo quando do emprego da cartografi a na geografi a 
humana. A crítica marxista na geografi a acusou a função 
ideológica e manipuladora dos mapas que se tornaram o 
símbolo da geografi a tradicional ultrapassada. Portanto, essa 
crítica se limitava à destruição da cartografi a, mas sequer 
tentou apresentar propostas alternativas. As máscaras dos 
mapas como distorções ou falsifi cações da realidade foram 
desvendadas e as representações do espaço não passaram pelo 
crivo ideológico. Enquanto a geografi a física continuava sua 
parceria com a cartografi a, a geografi a humana simplesmente a 
sepultou. Os geógrafos humanos (e críticos) romperam de vez 
com a chamada geografi a tradicional. Mesmo as tentativas de 
quebrar essa rotina fracassaram como no caso do importante 
geógrafo brasileiro Milton Santos, cujas publicações, na 
maioria, carecem de mapas. Por ocasião da entrega de um 
texto para publicação, ele chega à conclusão de que 
“a cartografi a é uma representação. Então há 
a possibilidade de uma escolha. Num livrinho 
meu ilustrador pôs o mundo de cabeça para 
baixo, sugerindo que era o Sul que estava 
em cima. E o editor, sem desejar perturbar, 
desobedecer à sugestão do arquiteto quebolou a idéia, pôs a representação costumeira. 
Porque a cartografi a tem essa idéia de criar 
um costume, um hábito de viver que tem 
conseqüências políticas” (73).
31
Carto-Crônicas
Ainda nos anos 80, surgiram as primeiras preocupações com 
os aspectos éticos da cartografi a que não visavam a uma destruição 
do mapa, mas à sua “desconstrução” para acusar as “falhas éticas” 
do mapa no processo de mediação entre a sociedade e o mundo, 
o “isolacionismo teórico” da cartografi a e a “burocratização” do 
mapa (32). Foi o historiador de cartografi a britânico J.B. Harley 
(1932-1991) que encorajou uma mudança epistemológica na 
maneira de interpretar a natureza da cartografi a. Enquanto os 
marxistas mais dogmáticos se restringiram a desmascarar o poder 
opressivo e o teor ideológico dos mapas (esquecendo-se que eles 
próprios também seguiam uma ideologia), Harley tentou tirar 
novos signifi cados por entre as linhas da representação, agendas 
escondidas e visões contrastantes do mundo. Na visão dele, 
para compreender melhor como mapas funcionam, precisamos 
considerar as maneiras que um mapeador usa para estruturar o 
conhecimento. O mapa é constitutivo de uma determinada forma 
da realidade, e não apenas representativo dela (05). O ponto 
central desta abordagem é que “o mapa não nos deixa ver coisa 
nenhuma, mas ele deixa-nos saber o que outras pessoas viram ou 
acharam ou descobriram” (93). 
Diante dessas correntes de pensamento cartográfi co que 
costumam “acorrentar” os seus seguidores, a cartografi a não é 
uma mera técnica ou um simples “fazer mapas”. Existem várias 
cartografi as com vários paradigmas, embora muitos acadêmicos 
estejam convencidos que suas próprias ideias sobre a cartografi a 
sejam as únicas válidas. A professora do ensino básico, portanto, 
raramente tem contato com o pensamento cartográfi co, porque 
esses conteúdos não são mencionados nos livros didáticos. 
Refl etir sobre a cartografi a inserida no contexto da sua época e 
em relação às tendências nas ciências poderia ser um caminho 
para compreender a cartografi a como algo mais do que uma 
técnica inútil e distante da nossa realidade. A cartografi a não 
serve apenas “para fazer a guerra”, mas também pode se tornar 
uma contribuição essencial para a construção da cidadania. 
32
Carto-Crônicas
História(s) da Cartografi a I: 
Em Busca do Mapa Mais Antigo do Mundo
Muitas vezes, as aulas sobre cartografi a começam com 
o tradicional histórico da disciplina seguindo um esquema 
evolucionista do mapa “mais antigo” e “mais primitivo” 
de milhares de anos atrás até os produtos sofi sticados 
da cartografi a digital do Terceiro Milênio, sem levar em 
conta que os mapas representam “uma forma de ‘saber’ 
em geral, ao invés de meros produtos de uma prolongada 
difusão tecnológica a partir de um foco europeu” (33). 
Como qualquer outra ciência, a cartografi a se baseia nos 
seus mitos fundadores: “a crescente complexidade das 
sociedades humanas levou os homens a se preocupar com 
a organização social do espaço,” como relata um aluno do 
curso de geografi a da minha universidade (Romério, terceiro 
semestre): 
“Quando o homem conheceu o mundo, não 
tinha esta forma, estes arranha-céus, estes 
automóveis, enfi m, não existia nada além de 
plantas e animais. Então o homem começou 
a modifi car, chegando a um ponto onde 
seu espaço era imenso. Então ele sentiu a 
necessidade de desenhar o espaço conhecido 
chamando isso de ‘mapa’, o qual veio fi cando 
cada vez mais moderno com o passar do 
tempo”.
A representação e a imaginação do espaço sempre 
fi zeram parte da raça humana, mas não necessariamente 
resultaram em mapas. Um rabisco na parede de uma 
caverna, um desenho na areia - a expressão gráfi ca sempre 
tem exercido um papel na comunicação humana de modo 
que se torna impossível dizer qual é mesmo o mapa mais 
33
Carto-Crônicas
antigo conhecido (nem falar dos desconhecidos). O geógrafo 
americano John Krygier não concebe esses rabiscos como 
mapas, mas como um “cartocacoete”, isto é, “a mania, o 
desejo incontrolável, a compulsão ou coceira de ver mapas 
em todos os cantos” (42).
Há autores que acham que o “mapa mais antigo” de 
que temos notícia foi feito aproximadamente 4500 anos. 
Encontrado em 1930 nas escavações das ruínas de Ga-Sur na 
Babilônia, hoje Iraque, trata-se, na verdade, de uma placa de 
barro cozido (e quebrado) do tamanho da palma de uma mão 
(7,6 cm por 6,8cm) com caracteres cuneiformes e símbolos 
estilizados que foram carimbados ou arranhados na argila 
(87). O mapa na fi gura 2 mostra o vale de um rio (delta 
com três braços, provavelmente o Rio Eufrates) cercado de 
duas cadeias de montanhas que são representadas como 
escamas de peixe. As cidades existentes aparecem em forma 
de círculos, enquanto outros círculos nos cantos da placa 
indicam os pontos cardeais.
Figura 2: O mapa de Ga-Sur (52, 97)
34
Carto-Crônicas
Outros autores argumentam que o mapa mais antigo 
é um desenho de quase três metros de largura, encontrado nas 
escavações de Çatal Hüyük na região da Anatólia na Turquia. 
Essas inscrições rupestres mostram a planta de uma suposta 
cidade, tendo uma idade estimada de aproximadamente 
8200 anos (79). Conforme as interpretações, as cerca 
de 80 casas retangulares parecem como as favas de uma 
colméia e fi cam em frente de um vulcão em erupção cujos 
escombros incandescentes ou estão caindo nas encostas de 
uma montanha ou estão sendo jogados do cone vulcânico, 
criando nuvens de fumaça e cinzas (fi gura 3).
Figura 3: As inscrições rupestres de Çatal Hüyük
(http://architecturetraveljournal.blogspot.com.br/2011/08/catal-huyuk-turkey-
neolithic-wall.html)
O mito das origens da cartografi a e a busca pelo mapa 
mais antigo da humanidade disfarçam o simples fato de que 
os seres humanos sempre tiveram uma preocupação com a 
percepção e representação do espaço, embora nem sempre 
eles tenham chegado a expressar suas idéias em forma 
gráfi ca, ainda menos com escala e legenda!
No princípio da década de 80 do século passado, iniciou-
se uma discussão mais aprofundada sobre o signifi cado e 
a função de representações (carto)gráfi cas do passado. 
Essa “nova história da cartografi a” procura compreender os 
35
Carto-Crônicas
mapas e desenhos no contexto sociocultural, econômico e 
político da época e do lugar em que eles foram criados. Neste 
sentido, uma defi nição mais ampla do mapa seria “uma 
representação gráfi ca que facilita a compreensão espacial de 
coisas, conceitos, condições, processos ou acontecimentos 
no mundo humano” (34). Em vez de ser considerado 
um produto pronto e inquestionável, o mapa deveria ser 
interpretado como uma forma de comunicação que só pode 
ser compreendida dentro do seu próprio contexto. Por muito 
tempo, a cartografi a moderna cometeu o erro de julgar os 
mapas mais “antigos”, “primitivos” e “indígenas” de acordo 
com as normas e convenções do modelo moderno da ciência. 
Uma “vítima famosa” desse julgamento sem 
conhecimento do contexto é aquele mapa esquemático 
da Idade Média (mapa “T no O” ou “mapa de roda”) que 
costuma ser citado em muitos livros didáticos e manuais 
de cartografi a como testemunho do misticismo religioso da 
Idade Média quando todas as atividades científi cas (inclusive 
a cartografi a) sucumbiram à religiosidade (fi gura 4).
Figura 4: Representação esquemática do Mapa “T no O” (97)
36
Carto-Crônicas
Portanto, quando analisamos esse mapa, descobrimos que 
o “T no O” não se preocupava com convenções cartográfi cas 
tais como legenda, escala e projeção. Sua função não era o 
registro preciso de fatos geográfi cos, mas a representação de 
mistérios religiosos e acontecimentos históricos. Esses conceitos 
de espaço e tempo foram fundidos para compreender a vida 
cristã e providenciar uma narrativa visual da historia cristã 
com um pano de fundo geográfi co (95). Informações sobre a 
superfície terrestre foram secundárias para os cristãos da Idade 
Media cuja mente se preocupava com esferas espirituais e nãocom cenários terrestres. O mapa não servia para localização 
e orientação, mas era um recurso didático para explicar e 
corroborar a fé cristã. Com uma exceção, não há referências a 
mapas na Bíblia Sagrada. A única alusão pode ser encontrada 
em Ezequiel 4,1 que declara: “Tu, pois, ó fi lho do homem, 
toma um tijolo, põe-no diante de ti e grava nele a cidade de 
Jerusalém”.
O “T no O” tem a forma de um simples disco com uma 
subdivisão das massas terrestres nos três continentes Ásia, 
Europa e África, os quais representavam os três fi lhos de 
Noé. Sem, por ser o fi lho mais velho, fi cou com a partilha 
maior, a Ásia, enquanto Cam recebeu a África e Jafé a Europa. 
Os continentes foram divididos através dos cursos de dois 
grandes rios, o Nilo e o Tanais (Rio Don na atual Rússia). A 
cidade sagrada de Jerusalém sempre fi gurava como centro do 
mapa, uma transcrição direta das palavras da Bíblia, porque 
em Ezequiel 5,5 está escrito onde deveria fi car o lugar dessa 
cidade: “Assim diz o SENHOR DEUS: esta é Jerusalém; pu-la no 
meio das nações e terras que estão ao redor dela”. A própria 
forma do mapa pode ser interpretada como uma alusão à fé 
cristã: enquanto o T simboliza a cruz, a tripartição das terras 
pode ser um testemunho da perfeição divina, relacionando-
se ao dogma da Santa Trindade.
37
Carto-Crônicas
Muitos mapas desse tipo foram enfeitados com desenhos 
que mostravam cenas bíblicas como o Paraíso, o Juízo Final 
ou episódios da vida de Jesus. O Paraíso se tornava um lugar 
real nos mapas, ainda que inacessível devido a barreiras 
insuperáveis como imensas muralhas ou de montanhas de 
fogo. Foi só por volta de 1500 que o Paraíso defi nitivamente 
desapareceu nas representações cartográfi cas.
Seria totalmente errado julgar esses artefatos antigos 
do espaço como “inferior’ à cartografi a do presente. Como 
manifestações humanas, eles precisam ser contextualizados. 
Muitos mapas do passado não foram compreendidos por 
serem interpretados à luz da norma de que um mapa – para 
ser um verdadeiro mapa – precisava mostrar a realidade 
geográfi ca estruturada conforme um sistema de coordenadas 
e uma escala. Não é para negar a necessidade de produzir 
mapas friamente objetivos. O espaço geométrico é essencial 
para o planejamento urbano, o monitoramento ambiental e o 
ordenamento territorial em geral. A mente humana, portanto, 
não pensa em “linha reta”. Por isso, os mapas medievais e 
“primitivos” e outros “desenhos cartografi camente rejeitáveis” 
com a sua falta de rigor se aproximam mais da experiência 
humana e precisam ser apreciados pela sua capacidade de 
dialogar com o leitor. Trata-se de narrativas no tempo e no 
espaço que exigem uma leitura “entre as suas linhas”.
38
Carto-Crônicas
História(s) da Cartografi a II:
A Busca pela Longitude
Os conceitos de latitude e longitude geográfi cas 
provavelmente foram discutidos pela primeira vez por volta 
de 300 a.C. na antiga Grécia para defi nir posições geográfi cas 
na superfície terrestre. O matemático grego Hiparco (cerca 
de 190 a 120 a.C.) é considerado o inventor de uma “rede” 
geográfi ca para determinar posições no globo terrestre, o que 
Cláudio Ptolomeu mais tarde ia explorar para o seu sistema 
de coordenadas. Os gregos, portanto, pensaram menos em 
aplicações práticas para a navegação e mais em medições 
astronômicas para determinar, entre outros cálculos, o número 
de horas de sol no dia mais longo do ano em determinada 
latitude.
A medição das posições geográfi cas para fi ns práticos 
apenas se tornou essencial com o aumento das viagens 
marítimas a partir do século XVI. A atração pelo Novo Mundo 
estimulou ambiciosos projetos de exploração, colonização 
e comércio, de modo que as navegações em alto mar se 
tornaram uma preocupação crescente para as maiores nações 
navegantes da Europa.
A determinação da latitude nunca constituiu um 
problema sério para os astrônomos, porque o Equador, como 
o único círculo máximo entre os paralelos, representava com 
naturalidade a origem de todas as latitudes, tanto para o norte 
quanto para o sul. Assim foi que já em meados do século XVI 
havia dois métodos para o estabelecimento da latitude, tanto 
em terra como no mar: a determinação da altura do sol acima 
do horizonte e a determinação da altura da Estrela Polar (no 
hemisfério sul é o Cruzeiro do Sul) mediante instrumentos 
como astrolábio, quadrante, sextante, octante e balestilha 
(báculo de São Tiago).
39
Carto-Crônicas
Figura 5: Instrumentos para medir a latitude: Astrolábio, sextante e balestilha
(http://etc.usf.edu/clipart/25100/25161/astrolabe2_25161.htm
http://michaeldinges.blogspot.com.br/2008/01/sextant-project.html
http://www.hirondino.com/historia-de-portugal/balestilha/)
A determinação da longitude, ao contrário, foi muito 
mais difícil. A escritora americana Dava Sobel (81) relata 
algumas tentativas de medição da longitude, realizadas na 
fase mais “quente” no fi m do século XVII, quando “inúmeros 
excêntricos e oportunistas publicaram panfl etos para 
promulgar suas próprias soluções loucas para determinar a 
longitude no mar”. Entre os inúmeros esforços destacavam-
se as seguintes tentativas:
- A medição da longitude através do movimento 
da lua e sua posição em relação às estrelas, realizada 
em 1514 pelo astrônomo e astrólogo alemão Johannes 
Werner (1468-1522). O problema principal desse método 
foi que as posições das estrelas não estavam muito bem 
conhecidas e que não havia instrumentos precisos para 
medir as distâncias entre a lua e as estrelas a bordo de 
um navio.
- A medição da longitude com base nas quatro 
luas do Júpiter (os chamados “satélites de Galilei”), feita 
por Galileu Galilei em 1610. Os mais de 1000 eclipses 
anuais permitiram a previsão e o ajuste dos relógios com 
base nas tabelas das aparições e desaparições dos satélites. 
40
Carto-Crônicas
Infelizmente, as medições somente podiam ser realizadas 
à noite e com a ajuda de um capacete desengonçado 
com telescópio embutido, deixando o observador em um 
estado bastante desconfortável.
- A determinação da hora local a partir dos 
estrondos de canhões que, acionados em determinado 
horário em determinado lugar com a hora local conhecida, 
poderiam servir como pontos de referência “audíveis”. 
Portanto, era praticamente impossível e economicamente 
inviável estabelecer tais redes de canhões.
- A tentativa mais curiosa e absurda foi a chamada 
“teoria do cão ferido”, que se baseava na aplicação de 
um pó milagroso, chamado de “pó de simpatia” ou 
“pó de Digby” (segundo seu inventor). Conforme a 
propaganda desse remédio, o pó de Digby poderia curar 
feridas a distância. Bastava aplicá-lo em uma peça de 
roupa qualquer da pessoa enferma. Transferindo esse 
“raciocínio” para o problema da longitude, a solução era 
a seguinte: 1) Mande um cão ferido a bordo quando o 
barco zarpar para o oceano. 2) Deixe uma pessoa de 
confi ança na terra fi rme. Essa pessoa seria encarregada 
de mergulhar uma bandagem usada pelo cão na tintura 
do pó todos os dias quando o relógio marcar meio dia. 
3) No mesmo horário, o cão no barco iria latir e dar 
uma noção da hora local ao capitão, porque o latido do 
cão ferido signifi caria que seria meio-dia em Londres. 
4) Ao comparar a hora local com a hora de Londres 
seria possível deduzir a longitude. Evidentemente, como 
comentam ironicamente alguns críticos, os capitães 
precisavam acreditar que o efeito do pó de Digby pudesse 
ser sentido a uma distância de milhares de quilômetros e 
que a ferida do cão não sarasse durante uma viagem de 
vários meses – senão os navegantes fi cariam obrigados a 
ferir o cão de novo para “garantir o efeito”!
41
Carto-Crônicas
A construção de cronômetros permitia medir a 
hora local em dois lugares diferentes ao mesmo tempo. 
O astrônomo e matemático holandês Christiaan Huygens 
(1629-1695) elaborou o primeiro destes instrumentos em 
1657. Infelizmente, como funcionava com um pêndulo, 
não tinha utilidade no mar, porque o movimento do navio 
impediaum funcionamento regular do aparelho. Para 
determinar a longitude em alto mar era preciso saber a 
hora a bordo do navio e a hora no porto de partida ou 
qualquer outro lugar com a longitude conhecida. Desta 
maneira, todos os dias em alto-mar, o navegador corrigia 
o relógio do barco para o meio dia local (= o sol no seu 
ponto mais alto no céu), comparando-o com o relógio 
que indicava a hora local do porto de partida Assim foi 
possível determinar a longitude da posição do navio. Cada 
hora de diferença correspondia a mais quinze graus de 
longitude (360 graus divididos por 24 horas resultam em 
fusos de 15°). No entanto, o problema foi a construção 
de um cronômetro adaptado às navegações, porque em 
alto-mar os relógios com pêndulo iriam acelerar, atrasar 
ou até parar conforme o movimento das ondas e a sua 
mecânica fi caria comprometida devido às mudanças da 
temperatura do ambiente, da pressão barométrica ou das 
variações tênues da gravidade em diferentes latitudes. 
O óleo lubrifi cante poderia engrossar ou dilatar e as 
partes metálicas se esticariam ou se contrairiam. Em 
outras palavras, a medição da longitude era menos uma 
questão metodológica e mais um problema técnico. Ou 
como observa o escritor italiano Umberto Eco (21) no 
seu romance A Ilha do Dia Anterior: 
42
Carto-Crônicas
“Mas se não é difícil determinar a hora do 
lugar em questão, é deveras difícil ter a bordo 
um relógio que continue a dar a hora certa, 
depois de meses de navegação num navio 
sacudido pelos ventos, cujo movimento 
induz ao erro os mais engenhosos dentre os 
instrumentos modernos, para não falar dos 
relógios de areia e de água, que para bem 
funcionar deveriam repousar num plano 
imóvel”.
O Parlamento Britânico chegou a oferecer um prêmio 
de 20 000 libras esterlinas para a descoberta de um “meio 
prático e útil de determinar a longitude”. Afi nal de contas, foi 
o inglês John Harrison (1693-1776) que em 1773, depois de 
vários modelos mais ou menos bem sucedidos, conseguiu 
elaborar um cronômetro com a confi abilidade necessária 
para a navegação.
Uma vez resolvido o problema da medição da longitude, 
surgiu outro problema: qual seria a referência para todas as 
longitudes do mundo? Mas isso já será outra “história” da 
cartografi a a ser contada na próxima crônica.
43
Carto-Crônicas
História(s) da Cartografi a III:
A Invenção do Primeiro Meridiano
“... para que latitude ou longitude será 
que estou indo?” (Alice não tinha a menor 
idéia do que fosse latitude, nem do que 
fosse longitude, mas lhe pareciam palavras 
imponentes para se dizer. (Lewis Carroll – 
Alice no País das Maravilhas (07))
As coordenadas geográfi cas representam um dos temas 
mais traumatizantes nas aulas de geografi a. Como Alice no 
País das Maravilhas, muitos alunos pacientemente se expõem 
às explicações (muitas vezes mal feitas) sobre latitude e 
longitude e até reconhecem a sua “imponência”, mas ignoram 
o seu signifi cado.
Os mapas representam não apenas os elementos visíveis 
da realidade, mas também fenômenos da mente. Fronteiras, 
divisas, limites, fusos horários, paralelos e meridianos 
parecem ser marcas verdadeiras tanto no papel como na 
paisagem, embora sejam apenas linhas imaginárias, isto é, 
construções da mente humana, que se tornam “naturais” 
e fatos consumados no discurso dos livros didáticos de 
geografi a e dos manuais de cartografi a. 
Quanto à latitude e à longitude, surge a questão de como 
“dividir” o mundo em hemisférios. Monteiro Lobato (52), por 
exemplo, deixa a Dona Benta a falar sobre a linha do Equador, 
cuja invenção a senhora idosa vê como mérito dos geógrafos: 
“Os geógrafos dividiram o globo por meio de um círculo que 
o rodeia pela parte mais barriguda. Esse círculo, chamado 
Equador, tem todos os seus pontos a igual distância dos pólos. 
Quer dizer que o Equador divide o globo terrestre em duas 
metades igualzinhas, os dois Hemisférios”. Como Narizinho 
(que está dialogando com a Dona Benta), podemos imaginar o 
globo terrestre “como uma laranja que a gente parte em cuias 
44
Carto-Crônicas
do mesmo tamanho”. Existe apenas uma maneira de cortar a 
laranja em duas metades iguais.
Quanto aos meridianos, Dona Benta observa “que eles 
são círculos, dividindo a Terra em sentido contrário. Em vez 
de serem linhas paralelas ao Equador, elas cortam o Equador 
e são círculos que passam pelos pólos e lá se cruzam”. 
À pergunta da Narizinho sobre quantos meridianos havia, 
Dona Benta responde: “Quantos você quiser. Desde que são 
círculos imaginários, você poderia traçar milhões de milhões 
deles, cada qual cortando o Equador num pontinho”. 
Enquanto o Equador serve como divisora natural do Norte 
e do Sul, não existe um único corte válido para partir 
uma laranja (quer dizer, o globo terrestre) na sua vertical 
(hemisférios leste e oeste). 
Na história da cartografi a e dos mapas constam 
inúmeros meridianos de referência para o ponto inicial da 
longitude. O primeiro meridiano de origem foi supostamente 
estabelecido por Cláudio Ptolomeu no século II, quando 
escolheu as Ilhas Afortunadas (hoje Ilhas Canárias) como 
referência longitudinal e limite do mundo conhecido. Muitos 
países tinham os seus meridianos “caseiros”, porque com o 
aparecimento dos movimentos nacionalistas no século XVII, 
cada nação tomou para si como meridiano de origem o da 
sua própria capital. Assim surgiram os primeiros meridianos 
de Londres, Lisboa, Madri, Paris, Filadélfi a e Washington. Até 
o Brasil usava seu próprio meridiano fi xado no observatório 
do Castelo no Rio de Janeiro, além do meridiano da Ilha do 
Ferro nas Ilhas Canárias.
A existência paralela de diferentes meridianos, portanto, 
tornou a navegação confusa, porque exigia a conversão 
das longitudes de um sistema de referência para outro. Em 
1871, por ocasião do Primeiro Congresso Internacional de 
45
Carto-Crônicas
Geografi a em Antuérpia na Bélgica, a plenária recomendou a 
adoção do Observatório de Greenwich como meridiano zero 
para todas as longitudes e todas as cartas marítimas para os 
próximos quinze anos. Muitos países adotaram o meridiano 
de Greenwich como referências para suas cartas marítimas, 
mas ainda tiveram a liberdade de referenciar as suas cartas 
terrestres de acordo com seus próprios meridianos nacionais. 
A Rússia, por exemplo, usava três diferentes referências de 
longitude para suas cartas marítimas e quatro para as suas 
cartas terrestres.
Para garantir uma padronização do primeiro meridiano, 
o presidente dos Estados Unidos, Chester Arthur “em 
prosseguimento de uma provisão especial do Congresso” 
(37) convidou os governos de todas as nações com as quais 
mantinha relações diplomáticas a mandarem delegados 
para Washington (DC) para realizar uma conferência 
internacional no começo de outubro de 1884. O objetivo 
era discutir e, se caso possível, estabelecer um meridiano 
a ser empregado como marco zero para a longitude e para 
a medição da hora no mundo inteiro (estabelecimento de 
fusos horários). Participaram 41 delegados de 25 países, dos 
quais treze mandaram representantes científi cos (diretores 
de observatórios, engenheiros civis, ofi ciais da Marinha etc.). 
Entre os participantes encontravam-se todos os países de 
importância política e econômica naquela época: Áustria-
Hungria, Alemanha, França, Grã-Bretanha, Rússia e Estados 
Unidos, diversos representantes da América Latina (Chile, 
Colômbia, Costa Rica, Guatemala, México, Paraguai, Salvador 
(El Salvador), Venezuela e também o Brasil) e até delegações 
da Libéria, do Havaí e de São Domingos (Haiti)). O Brasil foi 
representado pelo diretor do Observatório Imperial no Rio 
de Janeiro, Louis Cruls, um belga naturalizado brasileiro. 
46
Carto-Crônicas
Todos os congressistas se manifestaram a favor da 
defi nição de um meridiano único para todos os países. A 
escolha do lugar para o primeiro meridiano, portanto, foi 
um assunto mais polêmico. Foi proposta aos governos 
participantes a adoção do meridiano de Greenwich como 
meridiano inicialpara a longitude. A França defendia a 
posição de que o meridiano proposto deveria ser novo e 
neutro sem cortar nenhum dos continentes como Europa e 
América, propondo que o assunto deveria ser levado para 
uma conferência de cunho mais técnico (o que foi rejeitado 
pelos presentes). A Grã-Bretanha e os Estados Unidos, 
por sua vez, argumentaram que não era possível que um 
meridiano fosse absolutamente neutro e que era importante 
o meridiano passar na longitude de um observatório 
astronômico. Por esta razão, meridianos naturais como ilhas 
(Ferro, Açores), cumes de montanhas (Tenerife) ou até obras 
monumentais como as pirâmides no Egito ou o Templo 
em Jerusalém não satisfariam esses critérios. Sobraram as 
propostas de Paris, Berlim, Greenwich e Washington. A 
França, em contrapartida, queria chamar a atenção que junto 
com a padronização dos meridianos e da hora universal, 
todos os países deveriam adotar o sistema métrico com 
suas respectivas unidades, o que a Grã-Bretanha ainda não 
tinha aceitado. Indiretamente, tratava-se de um pedido para 
substituir os minutos e segundos (estreitamente ligados à 
milha náutica) pela fração decimal do grau, utilizando-se 400 
grados em vez de 360° (sendo 1 grado = 100 minutos e 1 
minuto = 100 segundos). 
Os Estados Unidos, portanto, calaram as ressalvas da 
França, argumentando que o sistema métrico também não era 
um sistema neutro, mas uma convenção inventada pela França. 
O delegado britânico Sandford Flemming (representante do 
Canadá, então Território do Império Britânico) alegava que 
47
Carto-Crônicas
um meridiano neutro era bom na teoria, mas impossível na 
prática. Por isso seria melhor escolher o meridiano com o 
maior peso econômico, o que ele procurou mostrar através 
de uma tabela, na qual constava a relação do número de 
navios e suas respectivas tonelagens nos portos e cidades 
que eram candidatas a serem meridiano inicial naquela 
época. Segundo os cálculos de Flemming, o meridiano de 
Greenwich era usado por 65% dos navios, sendo a cidade 
de Londres responsável por 72 % da tonelagem mundial do 
comércio naval. Os seus maiores concorrentes como Paris 
(10% dos navios, 8% da tonelagem) e Cadiz na Espanha 
(5% dos navios, 3% da tonelagem) tinham apenas uma 
importância comercial muito inferior, tanto que a escolha de 
Greenwich poderia benefi ciar um maior grupo de pessoas (e 
também ceder a certos interesses econômicos).
Na votação em favor do meridiano de Greenwich, 
houve 22 votos a favor, duas abstenções (França e Brasil) 
e um voto contra. São Domingos (ex-colônia francesa, hoje 
Haiti) não concordava com o argumento comercial e queria 
(aparentemente em solidariedade com a França) que o 
meridiano não fosse escolhido pela dominância econômica, 
mas pelo progresso intelectual, “qualidade inquestionável” 
da França que se destacava pela sua produção cultural 
naquela época.
Para abrandar a discussão, foi salientado que as 
resoluções da conferência seriam meras recomendações 
para os respectivos governos e não convenções absolutas – 
tanto que a França, que não tinha muita pressa de introduzir 
o meridiano de Greenwich nos seus mapas, levou mais 
algumas décadas para a adoção do novo primeiro meridiano 
ofi cial. 
48
Carto-Crônicas
Outro assunto foi a medição da longitude, querendo-
se estabelecer que a longitude fosse contada até 180° para 
o leste (positivo) e 180° para o oeste (negativo) a partir do 
meridiano zero. A proposta gerou uma polêmica e uma 
votação mais acirrada (14 votos a favor, 5 votos contra e 
6 abstenções), porque vários países como a Suécia se 
apoiavam nas decisões de uma Conferência anterior segundo 
a qual a contagem dever-se-ia realizar do leste para o oeste 
de 0° a 360°. A Espanha, por sua vez, defendia o contrário 
(contagem do oeste para o leste) e a Grã-Bretanha sugeria 
180° para cada lado.
As decisões tomadas na Conferência de Washington 
vigoraram até o presente e fazem parte dos “fatos consumados” 
nas aulas sobre cartografi a. Ninguém nega a necessidade 
de se ter um meridiano universal como base para todos os 
países. Hoje em dia seria politicamente impossível mudar 
a localização do Primeiro Meridiano para outra longitude, 
embora haja diversos países no cenário geopolítico mundial 
querendo ser o centro do mundo. Os meridianos continuam 
como linhas imaginárias, ou, como formulou o cientista 
medieval Sacrobosco, “o meridiano é um círculo que passa 
pelos polos do mundo e por nosso zênite” (29). A escolha 
do primeiro meridiano se baseava em decisões humanas 
(econômicas, políticas, fi losófi cas etc.). Os mapas que 
usamos diariamente mostram uma malha de coordenadas 
“perfeita”, de modo que e os processos que são responsáveis 
pela sua criação fi cam no esquecimento. A cartografi a sempre 
foi humana e continua sendo uma refl exão consistindo em 
realidades objetivas e elementos subjetivos ao mesmo tempo. 
E os meridianos continuam sendo linhas imaginárias.
49
Carto-Crônicas
(Con)fusos Horários I:
Produzindo Tempo e Espaço
Para que servem os dias?
Os dias são o lugar que vivemos.
Eles chegam, nos acordam,
Sempre e de novo.
Existem para sermos felizes neles:
Onde podemos viver senão nos dias?
Ah, a resposta a esta questão
Traz o padre e o doutor
(Em seus casacos longos)
Correndo pelos campos.
Philip Larkin – Dias (43)
Fusos horários - tema temido e fútil nas aulas de 
geografi a? Parece que as pessoas apenas se interessam pelas 
diferentes zonas de tempo a cada dois anos - só para saber 
a que hora assistir às diversas modalidades esportivas nas 
Olimpíadas na Ásia ou torcer pela seleção brasileira de futebol 
na Copa do Mundo na Europa, Ásia ou África. Ninguém se 
esforça para explicar a utilidade desse conhecimento. Por 
que saber que um fuso horário é uma “área que, em qualquer 
lugar da faixa teoricamente limitada por dois meridianos, 
conserva a mesma hora referida ao meridiano de origem” 
(59)? 
Semelhantes aos meridianos, os fusos horários são 
linhas imaginárias para dividir o espaço. Neste caso específi co, 
utiliza-se o tempo para produzir estruturas espaciais e gerar 
uma ordem espacial coerente (60). O tempo se torna um 
“marca-passo” para determinar o ritmo e a velocidade do 
comportamento humano. Portanto, se os relógios num 
mesmo lugar marcassem horas diferentes, não haveria uma 
referência com validade universal. Daí a necessidade de uma 
padronização.
50
Carto-Crônicas
Imagine a Inglaterra em meados do século XIX 
quando os relógios das cidades foram ajustados ao horário 
de Greenwich. Antes dessa reforma, havia uma medição 
do tempo conforme a hora local, muitas vezes com uma 
diferença pequena de um minuto de povoado para povoado, 
com base nas características do sol (amanhecer, pôr-do-sol). 
Contudo, com o surgimento e crescimento da rede ferroviária 
na Inglaterra surgiu a necessidade de padronizar o tempo 
devido a questões de pontualidade nos horários, o que se 
tornou mais eminente ainda com os serviços dos Correios e 
Telégrafos Britânicos que precisavam de uma hora universal.
Por volta de 1846 iniciou-se o processo de implantação 
do horário de Londres (Greenwich) para todas as estações 
ferroviárias que antes usavam a hora local e exigiam uma correção 
da hora e um ajuste do relógio em cada parada, de modo que 
até havia surgido um mercado de demanda e oferta para a venda 
de relógios com duas faces, uma para indicar a hora local e a 
outra para a “hora ferroviária”. As primeiras cartilhas contendo os 
horários dos trens incluíam uma tabela de conversão da hora local 
para Greenwich Mean Time e vice-versa. A hora universal, portanto, 
não foi aceita em todas as cidades. Principalmente nas paradas 
em lugares que fi caram nas costas leste e oeste, isto é, cidades 
mais afastadas do meridiano de Greenwich, essa mudança 
implicava um ajuste muito grande da hora local. A população 
desses lugares interpretou essa medida como imposição.
No entanto, em 1862, quase todas as estações ferroviárias 
aderiram à “hora padrão”, enquanto o restoda cidade em torno 
da estação continuava com o seu horário local! Quem saía do 
prédio ferroviário viu os relógios marcando um horário diferente. 
É difícil de imaginar: dois tempos diferentes no mesmo espaço! 
Foi só em 1880 que o parlamento britânico conseguiu ofi cializar 
nacionalmente o tempo estandardizado no Reino Unido. 
51
Carto-Crônicas
A Conferência de Washington (1884) fortaleceu a posição 
de Londres quando os delegados de 25 países escolheram 
Greenwich não apenas como referência universal para a 
longitude, mas também como marco zero para a medição 
do tempo. Alguns países, portanto, levaram mais uma ou 
duas décadas para implantar esse sistema de fusos horários. 
Argélia, por exemplo, então colônia da França, adotou o 
fuso zero de Greenwich, chamando-o de “Horário de Paris, 
diminuído por 9 minutos e 21 segundos”, enquanto os 
holandeses mantiveram seu “horário de Amsterdã” até 1940. 
A Libéria apenas corrigiu seu “atraso” de 44 minutos e 30 
segundos em relação á Hora Média de Greenwich em 1972 (77).
Igual à fi xação do primeiro meridiano, a escolha dos 
fusos horários na Conferência de Washington foi motivada 
por interesses econômicos e políticos. Essa divisão imaginária 
da terra colocava a Grã-Bretanha no centro do mundo e as 
Américas e o Japão nas margens. 
Os limites dos fusos horários não seguem rigorosamente 
os meridianos. Eles raramente coincidem com as linhas 
simétricas e geométricas nos planisférios, mas costumam 
acompanhar o traçado de fronteiras políticas, barreiras naturais 
e contornos costeiros. Se houvesse uma divisão rigorosa 
com base na longitude, o limite entre dois fusos horários no 
Nordeste Brasileiro fi caria em 37° 30’ Oeste (só para lembrar, 
o meridiano central de cada fuso é divisível por 15, enquanto 
os seus limites possuem 7°30’ a mais no lado oeste e 7°30’ 
a menos na sua margem oriental). A consequência seria a 
implantação de um fuso horário separado nas cidades mais 
orientais como João Pessoa, Recife e Natal (todas com uma 
longitude em torno de 35° Oeste) e de outro em Fortaleza e 
Salvador (longitude aproximada: 38°30’ Oeste).
52
Carto-Crônicas
Simultaneamente ao estabelecimento do primeiro 
meridiano, foi criada a sua “contraparte”, o anti-meridiano, 
outra linha imaginária a 180° de longitude. Embora nunca 
ofi cializada, essa linha começou a servir como Linha 
Internacional de Mudança de Data (LIMD). É lá no meio do 
Oceano Pacífi co e não na Europa onde “nascem” os dias. 
Seria uma confusão econômica se a linha de tempo cortasse 
a Grã-Bretanha da Europa continental impondo dias (e não 
apenas horas) diferentes aos países. Por exemplo, em uma 
viagem de Londres a Paris, o viajante ganharia um dia nesse 
percurso de aproximadamente 350 quilómetros! Para evitar 
essa confusão, o começo de cada dia foi fi xado na imensidão 
do Oceano Pacífi co, porque “afeta” poucas pessoas. 
O anti-meridiano permite uma viagem no tempo. O 
romance A Volta ao Mundo em 80 Dias do francês Júlio Verne 
(90) serve como um bom exemplo: um aristocrata inglês 
excêntrico arriscou toda a sua fortuna numa aposta com 
alguns lordes esnobes de um clube londrino, garantindo 
que seria capaz de dar uma volta ao mundo em 80 dias. 
Depois de várias aventuras, tentativas de sabotagem e mal-
entendidos políticos e culturais, o nosso herói pensava que 
havia perdido a aposta, voltando à capital britânica com 
alguns minutos de atraso. No entanto, quando leu o jornal 
do dia, reparou que havia ganhado um dia na sua trajetória, 
porque atravessou a LIMD em direção leste, chegando ao 
extremo oeste e seguindo a sua viagem para a América.
Viajar do leste ao oeste e vice-versa sempre é também 
uma viagem no tempo. Por exemplo, um turista que visita 
Fernando de Noronha também pode literalmente reduzir o 
voo de Fernando de Noronha a Recife (duração: cerca de 
uma hora) a segundos. O avião de uma das companhias 
aéreas (sobraram poucas no Brasil) levanta vôo às 15:00 
horas e chega ao Aeroporto Internacional de Guararapes na 
53
Carto-Crônicas
mesma hora, às 15:00, porque o arquipélago e o Estado de 
Pernambuco fi cam em dois fusos diferentes! Em uma viagem 
do leste para o oeste “ganha-se” tempo. 
Através deste “truque” é possível viver o mesmo dia 
duas vezes. Pode-se passar o reveillon nas Ilhas Fiji (12 horas 
a mais do que o horário de Greenwich) e embarcar num 
avião na manhã seguinte para atravessar a linha e viajar para 
as Ilhas Samoa para celebrar o ano novo em dose dupla. 
Pelo menos isso foi possível até recentemente. No dia 29 
de dezembro de 2011, as Ilhas Samoa tinham um atraso de 
11 horas em relação à Hora Média de Greenwich (GMT). 
Portanto, quando tocava meia noite, os calendários nesse 
arquipélago no Oceano Pacífi co marcavam como data o 
dia 31 de dezembro, suprimindo o dia 30. Como isso pode 
acontecer? Como um dia simplesmente pode sumir da 
história? Em 1892, comerciantes do oeste dos Estados Unidos 
convenceram os governantes de Samoa a se alinhar com o 
horário das ilhas vizinhas da Samoa Americana, situados no 
lado oeste da LIMD para facilitar o comércio com a Califórnia 
que tinha uma diferença de três fusos (56). A mudança se 
realizou no dia 4 de julho, feriado de independência nos 
Estados Unidos, e com esse “pulo no tempo” a população de 
Samoa podia celebrar essa data duas vezes. No entanto, mais 
do que cem anos depois dessa decisão, a economia mundial 
passou por muitas transformações devido aos processos de 
globalização. No presente, os maiores parceiros comerciais 
de Samoa são Austrália e Nova Zelândia que fi cam no lado 
leste da LIMD, um dia mais adiantado. O comércio com esses 
países fi cou difícil pela diferença de um dia, sobretudo nos 
fi nais de semana. Em Samoa, 98% da população se identifi ca 
como cristãos e o domingo é o dia em que os samoanos 
costumam frequentar a igreja. 
54
Carto-Crônicas
Enquanto era domingo em Samoa, o calendário marcava 
segunda-feira em Sydney e Melbourne – um dia útil comum, 
mas perdido para o comércio. 
Como se pode ver, o estabelecimento dos fusos 
horários também serve a fi nalidades políticas e econômicas 
de cada país, porque qualquer nação independente tem a 
liberdade de defi nir e instituir a sua hora legal e fi xar os 
seus próprios fusos. Conforme as peculiaridades territoriais e 
naturais e os interesses nacionais, um país pode estabelecer 
as fronteiras dos fusos horários de acordo com a sua própria 
conveniência. Por exemplo, no decorrer das preparativas 
para a comemoração do novo milênio no ano 2000, havia 
um arquipélago no Oceano Pacífi co que encontrou uma 
“brecha” nos acordos internacionais dos fusos horários para 
estimular o turismo nas suas ilhas. Como não existe nenhuma 
convenção para defi nir a LIMD (nem a Conferência de 
Washington em 1884 havia estabelecido uma resolução), o 
pequeno país de Kiribati (pronunciado “Kiribas”, antigamente 
chamado de Ilhas Gilbert) aproveitou da situação. É um 
arquipélago de 33 atóis com área total de um pouco mais do 
que 800km², espalhados em uma vastidão de 3,5 milhões de 
km² de oceano. Kiribati decidiu “inventar” dois novos fusos 
horários (GMT+13 e GMT+14) em dezembro de 1994 para 
que a sua ilha mais remota, Caroline (longitude 150°13’W), 
um atol fragmentado de um pouco menos do que quatro 
quilômetros quadrados pudesse se tornar o primeiro lugar 
habitado do mundo para receber os primeiros raios solares 
do ano 2000 (veja o contorno de uma bigorna perto da linha 
do Equador na fi gura 6). A ilhota mudou de nome para Ilha 
Millenium, e havia muitos turistas estrangeiros abastados que 
não perderam essa oportunidade!
55
Carto-Crônicas
A fi gura 6 mostra a confusão dos fusos horários no Oceano 
Pacífi co. O mapa contém algumas curiosidades. Por exemplo, 
o extremo leste da Sibéria está com 12 horas adiantadas em 
relação à hora de Greenwich, enquanto seu vizinho no outro 
lado do Estreito de Bering, o Estado de Alasca, está nove horas 
atrasadas. Os fusos -10, -11 e -12 simplesmente não existem entre 
a

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