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Carto-Crônicas Uma Viagem pelo Mundo da Cartografi a Carto-Crônicas Uma Viagem pelo Mundo da Cartografi a Segunda edição Fortaleza 2013 Jörn Seemann Arte Final da Capa: Francisco Taliba Editoração Eletrônica: Francisco Taliba Revisão: Flávio Queiroz (98) (Os números entre parênteses correspondem às referências na bibliografi a no fi m do livro) Contato com o autor: E-mail para contato: jornseemann@gmail.com FICHA CATALOGRÁFICA Direitos reservados exclusivamente ao autor. Qualquer trabalho deste livro pode ser usado livremente, desde que seja citada a fonte. Os infratores estarão sujeitos às penalidades previstas na Lei Nº 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais). IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL Jorn Typewritten Text ________________________________________________________________________ Seemann, Jorn Carto-crônicas: uma viagem pelo mundo da cartografia/Jörn Seemann .- Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2013. 138 p. ISBN 978-85-420-0184-6 1. Cartografia I. Título CDD: 526 ________________________________________________________________________ O ato de mapear é Uma maneira ou outra de Tomar a medida de um mundo. Confi gurando a medida Tomada de uma maneira assim Para que possa ser comunicada Entre pessoas, lugares ou tempos. A medição do mapeamento Não é restrita ao matemático; Pode ser igualmente espiritual, política ou moral. Pelas mesmas razões, O registro do mapeamento Não é confi nado ao que é para arquivar, Mas também inclui o que é lembrado, imaginado, contemplado. O mundo fi gurado através do mapeamento Pode ser então Material ou imaterial, Existente ou desejado, Inteiro ou em partes, Experimentado, lembrado ou projetado em várias maneiras. Conforme a sua escala, O mapeamento pode traçar uma linha Ou delimitar e defi nir um território De qualquer comprimento ou tamanho, Da totalidade da Criação Aos menores fragmentos; Noções de formas e áreas São, por eles mesmos, de certa forma, O produto de processos de mapeamentos. Atos de mapear são criativos, Às vezes inquietos, Momentos de obter conhecimento sobre o mundo, E o mapa é ao mesmo tempo Uma materialização da cognição E um estímulo para novos compromissos com o conhecimento. Denis Cosgrove, 1948-2008, minha inspiração para essas “cartografi as culturais” (13) Esse livro é para Selma e Oliver, cartógrafa e cartógrafo do meu coração. SUMÁRIO Prefácio - Mapas, cosmologias e paradoxos: a arte de soltar pipas .......................................................... 9 Introdução ........................................................................ 13 O Trauma Cartográfi co na Sala de Aula .................... 15 Correntes e Acorrentados na Cartografi a ................. 24 História(s) da Cartografi a I: Em Busca do Mapa Mais Antigo do Mundo ..................... 32 História(s) da Cartografi a II: A Busca pela Longitude ..................................................... 38 História(s) da Cartografi a III: A Invenção do Primeiro Meridiano ................................... 43 (Con)fusos Horários I: Produzindo Tempo e Espaço............................................. 49 (Con)fusos Horários II : Quem Faz a Hora no Brasil? .............................................. 57 (Con)fusos Horários III: O Horário de Verão ........................................................... 61 A Escala Como Chave do Tamanho ............................. 66 A Guerra das Projeções Cartográfi cas ...................... 72 O Mapa de Cabeça para Baixo .................................... 78 Minha Cabeça é um Mapa ............................................. 83 Crianças, Mapas-Múndi e a Visão de Mundo ........... 89 Lendo entre as Linhas dos Mapas ............................... 97 O Mapa como Biografi a ................................................ 102 Mapas e a Poética do Espaço ...................................... 108 A Cartografi a - Baseada em Fatos Reais ................... 113 Posfácio A Vida ao Rés do Mapa...................................................... 123 Referências bibliográfi cas ............................................ 131 9 Carto-Crônicas Prefácio Mapas, cosmologias e paradoxos: a arte de soltar pipas Pelo recorte do mapa Pela restinga Pela praia [...] Pela areia afora A tarde inteira Pela borda [...] (Maritmo – Adriana Calcanhoto) A Paixão é como um Deus que quando quer me toma todo o pensamento. Dirige os meus movimentos [...] Meu pulso é desse todo poderoso sentimento. (Paixão - Maria Rita) À medida que o vejo avançar, meu olhar dilata-se. Estávamos em um desses contextos de reunião científi ca que, agora, não me lembro ao certo se num congresso, simpósio ou colóquio. Já o conhecia pelos seus escritos acerca dos recortes dos mapas e das imaginações espaciais sugeridas por eles. De uma escrita experimental - embalada pelo desejo em lidar com o pensamento espacial. De uma escrita afetuosa - a conquista do leitor. De uma escrita-maritmo – as viagens e escritos por lugares cartografados e não cartografados. De uma escrita apaixonante – a potência imaginativa. Essas são as Carto-crônicas: uma viagem pelo mundo da cartografi a, de Jörn Seemann. Trata-se de um conjunto de narrativas sobre a linguagem cartográfi ca e os seus paradoxos, cujo autor aponta, de maneira cuidadosa e descontraída, tanto 10 Carto-Crônicas os limites e “pontos cegos”, quanto às potências política e poética dos mapas, conquistando o pensamento do leitor, pois não é qualquer autor/pessoa que ao bater à nossa porta está autorizado entrar em nossa casa/nossa morada – estado passageiro de um espaço-tempo marcado por trajetórias de histórias até agora – em decorrência dos engajamentos assumidos por nós ao longo de nossa história. Cada crônica deste livro apresenta as marcas de um geógrafo cultural genuíno (“geonuíno”) como é Jörn Seemann que aprendeu “a deixar-se ensinar por uma outra cultura, pois, doravante, possuí um novo órgão de conhecimento, voltou a se apoderar da região selvagem de si mesmo, que não é investida por sua própria cultura e por onde se comunica com as outras”(99), com a fi nalidade de reconhecer as rupturas e desigualdades necessárias das cartografi as já legitimadas e daquelas em aberto – elaboradas na produção contínua do novo. Nascido no norte da Alemanha, Jörn viveu próximo de um riacho que é afl uente do Rio Elba e quando criança costumava andar sobre o dique que protegia a população das águas do riacho..., conforme sua carto-crônica sobre o mapa como biografi a, que nada mais é do que uma tentativa de reconhecer sua verdadeira espacialidade. No Brasil, ele vive em Crato, município localizado na encosta da Chapada do Araripe, extremo-sul do Estado do Ceará, onde também desenvolve suas atividades acadêmicas e de pesquisa na Universidade Regional do Cariri (URCA), “cartografando” por meio de um olhar etnográfi co as imaginações espaciais daqueles que serão professores de geografi a, daqueles que já atuam na educação básica e daqueles que vivem no/o Cariri. 11 Carto-Crônicas Carto-crônicas é uma contribuição importante e necessária para professores (seja da educação básica, seja do ensino superior) e pesquisadores vinculados ao ensino de geografi a e à Cartografi a Escolar brasileira, porque desvenda concepções históricas acerca da abordagem de temáticas como fusos horários; cartas, cálculos e coordenadas geográfi cas; projeções cartográfi cas; história da cartografi a; origem da latitude e longitude; e escala. Além disso, Jörn também aborda “carto- fatos” de um jornal brasileiro que ofereceu aos seus leitores um curso preparativo para o vestibular; obras artísticas como o “mapa invertido”, de 1943, do pintor uruguaio Joaquín Torres Garcia que também constitui a capa de Carto-crônicas; as metáforas espaciais sugeridas ora pelos poemas de Álvaro de Campos (heterônimo do poeta português Fernando Pessoa), ora pelas narrativas da escritora norte americana Maya Sonenberg.Este livro também se constitui como a paisagem de Brodowski (de 1942) de Candido Portinari. 12 Carto-Crônicas Em minha imaginação, as pipas são como os mapas. Prontas e ao mesmo tempo inacabadas. Prisão e liberdade. Nômades e sedentárias. O vento lança as pipas para ajudar a colorir o limite do céu esculpido pelo nosso olhar que as mistura com nuvens e a solidão de quem as empina na esperança de novamente tê-las em mãos para empiná-las. Os mapas aguçam nossa imaginação, potencializam nossos sonhos de viagem, fazem-nos perder em meio às experimentações de percorrer um lugar desconhecido, porque necessariamente o mapa não coincidirá com aquilo que ele pretende ser: a verdade do espaço. Derivar. Eis a potência deste livro. Para isso, o autor de Carto-crônicas não apresenta os mapas em suas grafi as poéticas e políticas em detrimento dos mapas oriundos da cartografi a ofi cial. Experimenta com e não contra estes mapas e por entre suas linhas Jörn Seemann nos convida a seguir com ele, às vezes como Dom Quixote fazia em seus deslocamentos imaginativo-espaciais, adensando ao seu movimento refl exivo as manifestações das grafi as que operam em nosso pensamento acerca dos mapas. Assim, este livro constitui-se uma referência fundamental para quem exerce seus engajamentos nos campos da educação geográfi ca, da cartografi a escolar e da geografi a cultural. Provavelmente o leitor identifi car-se-á com grande parte das crônicas com as quais fomos presenteados ao ganharem existência por meio dos escritos deste geógrafo cultural que solta pipas. Valéria Cazetta Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) Universidade de São Paulo Maio de 2012 13 Carto-Crônicas Introdução Cartografi a = cartas, cálculos e coordenadas? Eis a imagem comum da cartografi a: exata, friamente objetiva e alheia à nossa realidade. Os mapas nos impressionam, parecem representações perfeitas da realidade. Às vezes, confi amos mais no mapa do que na própria realidade. Os manuais de cartografi a enfatizam o lado matemático da ciência: cálculos, coordenadas, fusos horários, convenções cartográfi cas, escalas – corremos o risco de fi carmos presos nas malhas dos meridianos e paralelos. Em vez de ver a cartografi a como técnica esotérica para os aptos em matemática e engenharia, como língua culta para os mais cultos e como um conjunto de ferramentas especializadas que espantam até o último interessado em mapas, precisamos mergulhar no mundo fascinante das representações cartográfi cas e olhar além das suas aparências para alcançar os professores e outros “mortais” com curiosidade potencial de querer saber de mapas. Esta coletânea de textos não é para ofender, ainda menos para desafi (n)ar os profi ssionais da área, mas tem como intuito estabelecer um diálogo entre a cartografi a e a sociedade. Mapas são criações humanas, narrativas, mensagens, ideologias, discursos e construções socioculturais. E seria lastimável se desperdiçássemos o seu potencial como forma de comunicação, expressão e meio para apreender a realidade. Mapas representam, apresentam ou visualizam algum espaço, seja esse imenso ou minúsculo, bonito ou feio, real ou resultado de pura imaginação. O mapa, na verdade, não é um produto, mas um processo (mapeamento) que não se reduz a levantamentos topográfi cos e geodésicos, medidas de precisão e formas materiais, mas que pode ser igualmente espiritual, político ou moral e incluir o que é lembrado, imaginado e contemplado, “existente ou desejado, inteiro ou em partes, experimentado, lembrado ou projetado em várias maneiras” (13). 14 Carto-Crônicas Para estabelecer esse diálogo entre a cartografi a e a sociedade, um texto sobre mapas não pode ser excessivamente acadêmico nem técnico. Por isso, optei pela estratégia de capítulos curtos em estilo de crônicas, cuja ludicidade já foi mostrada por Manoel Fernandes na sua Aula de Geografi a (22), brincando com palavras e poetizando sobre a representação da nossa realidade. Apresento essas crônicas através da utilização de uma linguagem mais leve para falar de outra linguagem “mais pesada”, a cartografi a. Crônicas são diálogos entre o autor e os seus leitores, registros menos formais, comentários e observações sobre acontecimentos “que tanto poderiam ser do conhecimento público como apenas do imaginário do cronista, tudo examinado pelo ângulo subjetivo da interpretação, ou melhor, pelo ângulo da recriação do real” (72). Quero mostrar que a cartografi a é inteiramente humana e faz parte da nossa prática social: queiramos ou não, somos mapeadores da realidade, alguns mais e outros menos. Essa viagem pela cartografi a aborda alguns assuntos importantes da disciplina, desde o sentido e a utilidade da cartografi a e seus princípios (projeção, escala e simbologia) até as cartografi as da nossa realidade com sua(s) história(s), biografi as e poesias. Alguns dos textos são versões simplifi cadas de artigos já publicados, outros são anotações e rabiscos garimpados na gaveta da minha escrivaninha, refl exões inéditas ou apenas relatos das minhas experiências “sofridas” em sala de aula. Jörn Seemann Crato, Ceará, 01 de maio, 2012 15 Carto-Crônicas O Trauma Cartográfi co na Sala de Aula Omã é o quê? Se se cala a memória transcendental? Goya escrevia ou pintava? Não é desleixo esquecer números de telefones. Vidas existiram mesmo que as tenhamos esquecido completamente. Mas se gravar é virtude, se é que deve ser lembrado algo armazenado num ponto ou galeria dum hemisfério cerebral ou do corpo espiritual, por que não começar do necessário-mor? Por que não guardar a chave da memória eterna? Francisco de Freitas Leite - Dúvida do Nunca Lembrado (44) Omã é o quê? Essa pergunta me preocupou bastante quando era um moleque de dez anos na quinta série. Era dia de prova de geografi a que incluía vários exercícios sobre coordenadas geográfi cas. Uma das tarefas era localizar a cidade que estava aproximadamente situada em cima do Trópico de Câncer e na longitude 58°30’ leste. Durante a prova, medi os paralelos e meridianos, estimei a posição, suei, tentei tudo, mas não fui capaz de acertar a localização correta da cidade procurada. Não tirei nota máxima por causa disso e gravei esse incidente na minha memória. O lugar do meu fracasso escolar foi a cidade de Mascate, a capital de Omã, um país pequeno na Península Arábica, pouco conhecido aqui no Brasil e vizinho do Iêmen e dos Emirados Árabes Unidos. Desde então, guardo esse lugar na minha mente: Mascate, Omã, coordenadas de acordo com o Google Earth: 23 graus, 36 minutos e 31 segundos norte e 58 graus, 35 minutos e 31 segundos leste – mas quem vai querer saber? 16 Carto-Crônicas Por que saber as coordenadas de um lugar? Em que essa informação vai contribuir para o meu conhecimento? Ainda me lembro das minhas aulas de geografi a no ensino médio. No primeiro ano, o tema foi o cenário da Guerra Fria (um dos tópicos principais nos anos 80), visando à comparação de diversos aspectos geográfi cos dos então superpoderes do mundo, os Estados Unidos e a União Soviética. Um dos exercícios das provas consistiu na memorização das principais cidades, rios e serras nos dois países. Foi- nos apresentado um mapa-mudo (apenas os rios, serras e “bolinhas” da localização das cidades) de cada país, e nossa tarefa era preencher as lacunas com os topônimos corretos. Memorizar para quê? Será que essa decoreba ajuda a estabelecer uma ligação com a realidade? Essa prática comum nas salas de aula faz lembrar uma história fi ctícia apresentada pela educadora Maria Inez Carvalho. Ela nos conta o que aconteceu a um senhor de idade já avançada que foi assaltado por um ladrão “geófi lo” em plena luz do dia. Encostando a arma na cabeça do idoso, o assaltante gritou: “Diga-me todos os afl uentes do Rio Amazonas, se não você vai morrer!” Angustiado e nervoso, o senhor literalmente disparou: “Javari, Juruá, Purus, Madeira, Tapajós e Xingu”.Diante da sequência correta dos rios, o assaltante cumpriu a sua palavra e baixou a arma, deixando o homem velho em paz. Ainda trêmulo e encharcado de suor, a vítima respirou fundo e disse: “Eu sabia que isso ainda ia servir para alguma coisa!” (08). Quando era criança, fi z competições com os meus amigos para descobrir quem sabia o maior número de capitais no mundo. Mascate estava na minha lista das cidades conhecidas. O decorar até se tornou uma diversão para nós. Os mapas nunca ganharam destaque, mas eles estavam lá, prontos para serem usados. Meu fascínio era passar com o 17 Carto-Crônicas meu dedo sobre os nomes de lugares, imaginando como a vida era lá: Ulan Bator (literalmente “herói vermelho”) na Mongólia, Llanelli (“igreja do Santo Eli”) no País de Gales ou Baton Rouge (“vara vermelha”) nos Estados Unidos. Era o prazer de descobrir lugares. Apenas aprendi a me preocupar com projeções, escalas e símbolos, quando ingressei no curso de geografi a na universidade. Três disciplinas abriram o mundo da cartografi a científi ca para mim: a primeira para decorar defi nições da cartografi a e tipos de projeções, a segunda para interpretar e produzir mapas topográfi cos e temáticos e a terceira para confeccionar mapas com a ajuda do computador. Em 1998, eu me tornei professor universitário da disciplina de cartografi a em uma universidade no Nordeste brasileiro e tive a oportunidade de refl etir mais sobre o misterioso mundo que os mapas escondem (11). No decorrer dos anos desenvolvi várias estratégias para ensinar cartografi a para os estudantes do curso de graduação em geografi a. Nas minhas aulas na universidade, no começo do semestre, costumo aplicar um mini questionário junto com a turma e peço aos alunos que respondam às seguintes perguntas: O que é cartografi a? Qual é a sua utilidade? Como foi a cartografi a que conheci ou aprendi até agora? Como usar a cartografi a na sala de aula? As respostas, em geral, variam bastante, entre a falta absoluta de uma noção sobre a disciplina e a curiosidade incontrolável de querer saber. As observações dos universitários (destacadas neste texto em letras itálicas) chegam a ser provas de um desconhecimento pessoal sobre a cartografi a: Alguns alunos simplesmente admitiram a inexistência de uma discussão cartográfi ca na escola e nunca estabeleceram um contato consciente com a disciplina: 18 Carto-Crônicas Não aprendi, acho que não tinha na escola. Não recordo. Nunca aprendi nada sobre cartografi a. Sinceramente, não lembro se tive aulas de cartografi a. Em outros casos, a cartografi a foi reduzida a um mero exercício de reprodução de um mapa sem sentido e do tipo “vamos pintar o Ceará em cor de laranja, Bahia em azul etc.”, tornando a atividade um mero ato mecânico sem referência ao espaço: “Quantos não têm lembrança de terem feito cópias de mapas, com detalhes de contornos, meandros de rios, nomes de cidades, sem ao menos entenderem ou refl etirem sobre as informações relacionais que estavam sendo copiadas? O capricho era com a arte: cores, traços, letras!” (61). Nas palavras dos próprios alunos, não havia o mínimo sentido nesse exercício de pintar e colorir o espaço geográfi co: Um desenho de mapa puro e simples sem nenhuma interpretação. Somente desenhar mapas, localizar estados e capitais do Brasil. Um conjunto de mapas para decorar e passar de ano. Olhando e reproduzindo. Parece com um exercício de caligrafi a. Dá-se mais atenção à aparência do que aos conteúdos do mapa. As conseqüências da “escrita boa” mostram-se também nas capas dos trabalhos que os alunos entregam ao professor: letra bonita, estética, com toque de artista, mas o conteúdo nem tanto... Dentro do discurso geográfi co, os alunos enquadram a cartografi a como baluarte da geografi a tradicional: 19 Carto-Crônicas Muito defasada Burra /pequena Solta Decoreba Um pouco ultrapassada e distante da prática. Não surpreende que o seu verdadeiro valor e signifi cado simplesmente continuam aguardando sua descoberta. Não é fácil entender por que a exposição aos livros didáticos de geografi a com a sua abundância de mapas não está provocando uma refl exão mais aprofundada sobre a função do mapa, sem ser Apenas uma fi gurinha ilustrativa nos livros didáticos que não chamou a minha atenção Chata sem perspectiva Algo fútil, não se fazendo necessário a sua utilização no nosso dia-a-dia. Até hoje não houve mudanças signifi cativas nos livros didáticos de geografi a que continuam carregados ou sobrecarregados de mapas, mas os autores raramente ligam as imagens ao texto e vice-versa. A cartografi a defi nha com a frase “veja mapa 1” – sem maiores explicações ou instruções de como “ver” e ler entre as suas linhas. A causa dessa situação talvez seja a maneira como os professores ensinam a cartografi a. Uma professora que não domina os conteúdos certamente não vai ensiná-los aos seus alunos. Ela simplesmente “pula” na hora de tratar dos assuntos da cartografi a. Quem por acaso avança e tenta usar mapas na sala de aula, muitas vezes, não passa do exercício de localização, que, na verdade, nem é localização, mas o mero ato de apontar com o dedo a um determinado lugar, rio, serra etc., - tanto que a cartografi a na escola praticamente não foi ensinada e sim mostrada. Muitas vezes, a tradição dessa “subutilização” da cartografi a tem continuidade na universidade quando o professor não explica o sentido, o 20 Carto-Crônicas signifi cado e a utilidade da cartografi a: Na escola: uma cartografi a sem aprofundamento, na universidade: um aprofundamento sem enriquecimento. Diante dessa calamidade cartográfi ca, não surpreende sermos confrontados com visões cartográfi cas como as seguintes: Aprendi que a bússola serve para não se perder, porém só olhando-a, eu me perco. Ou, ainda mais grave, o caso de uma aluna de especialização que defi niu a cartografi a como modelo correto das letras, que posso usar de modo que dê para escrever com o tempo. Pois quando escrevemos em pouco tempo, a letra é uma e quando é em mais tempo, a letra é outra... Entenderam? Eu também não entendi essa resposta até descobrir o sentido verdadeiro muito tempo depois. A aluna tinha confundido a cartografi a com a caligrafi a! Onde está nosso problema? Em um texto intitulado “A reprodução do não-saber: o uso dos mapas por professores e alunos do ensino fundamental”, a geógrafa Ângela Katuta (39) investiga o conhecimento cartográfi co defeituoso nas escolas, chegando à conclusão de que a professora de geografi a, muitas vezes, reproduz na sala de aula o que ela mesma aprendeu quando aluna. Pois ensina aos alunos a ter a mesma relação que ela mesma manteve com os mapas. Pior, a professora está consciente de seu defeito, mas não consegue superar as suas difi culdades didáticas e descartar ou repensar as antigas práticas. Ainda pior, os alunos não serão capazes de entender o sentido de trabalhar com mapas. Continua sendo divulgada a idéia que o mapa serve para fazer, para estudar ou para colocar o nome dos lugares na prova. Trabalhar com mapas signifi ca pensar, representar e interpretar o espaço de uma maneira gráfi ca e não se deve restringir-se à leitura superfi cial de mapas. Aquele olhar de cinco ou dez segundos para identifi car o objeto na nossa frente como um mapa não é sufi ciente. Que tal passar cinco minutos lendo os detalhes e literalmente esfregando o nariz nos rios, morros e estradas? 21 Carto-Crônicas Além desse maior entrosamento com a cartografi a, também precisamos incluir a produção das nossas próprias representações do espaço. A educadora Maria Elena Simielli chama esses desenhos de croquis: representações esquemáticas dos fatos geográfi cos que não são mapas e não se destinam à publicação, mas têm um valor interpretativo por expor questões, não sendo obras de um especialista em cartografi a (80), mas expressões gráfi cas pessoais. Desta maneira, não seremos apenasusuários dos mapas, mas também fazedores. O maior problema, portanto, é como ensinar a representar o espaço? Como se tornar cartografi camente iniciado? A respeito deste questionamento, um aluno do quarto semestre (Alcides é o nome dele) fez a seguinte observação: Difi cilmente somos estimulados a fazer até mesmo um mapa do nosso bairro e concluímos o segundo grau como “analfabetos cartográfi cos” (...) a ponto de ouvirmos falar em carta zoogeográfi ca e perguntarmos se é uma carta escrita por um animal como o macaco. Como resolver o problema diante dos salários achatados das professoras do ensino básico, dos desestímulos fi nanceiros, administrativos e profi ssionais, da sua sobrecarga de trabalho (muitas vezes em dois ou três turnos e sobretudo por serem mães de família e esposas não compreendidas)? Vejam bem, uso o plural feminino para salientar que a maioria do corpo docente nas escolas são mulheres. O que fazer diante de alunos entre os quais se manifesta uma nova forma de analfabeto: aquele que não sabe pensar e apenas reproduz sem investir na busca pelo conhecimento? (19) Será que o mapa perde mais uma vez essa luta? Será que a cartografi a está “perdendo espaço”, tornando-se uma ciência espacial sem referência à realidade? 22 Carto-Crônicas Eu mesmo ando cada vez mais preocupado com a educação cartográfi ca que não é para ser um assunto acadêmico, mas uma prática ou até atitude estreitamente ligada à nossa vida cotidiana. Pouco tempo atrás, elaborei uma prova da disciplina de cartografi a básica que incluía uma pergunta sobre as diferenças entre a cartografi a do século XVI e XVIII e os mapas modernos. Uma aluna escreveu a seguinte resposta que vou reproduzir sem correções (se a correção automática do Word e o revisor deste manuscrito deixarem): Alguns mapas antigos aindam mostra a terra enquanto ainda não separada devido as placas, outros, que devido a religiões, mostram apenas parte do planeta, pois acreditavam que fora dali onde moravam não havia mais nada e quem ousace discordar, tinha pena, pois acriditavam que se saírem dali cairiam direto no inferno. E graças a Cristovam Colobom que discordou e foi ver o que tinha fora de suas terras percebeu que o mundo era redondo e que ao invés de cair você poderia fi car dando voltas e voltas. À primeira vista este texto parece muito engraçado. Portanto, pelo fato de se tratar de uma aluna de licenciatura em geografi a (uma professora futura então!) e eu ser o docente dessa disciplina não há nada animador nessa passagem. Esse episódio me faz lembrar uma das inúmeras historietas do cronista-mestre Rubem Alves (02). Na sua crônica O Rio São Francisco no Paraná, ele nos mostra o caso de uma aeromoça que não precisava colar para passar de ano, sabia direitinho os nomes, sabia olhar os mapas, marcou certo as respostas na prova de geografi a, mas em um voo entre Londrina e São Paulo confundiu o Rio São Francisco com o Rio Paranapanema por não ser capaz de ligar uma representação do espaço ao espaço representado, ou seja, ligar o mapa à realidade e ver pelos símbolos o espaço que representa - um espaço que não 23 Carto-Crônicas é símbolo, mas feito de montanhas, rios de verdade, planícies e mares. O geógrafo crítico Manoel Fernandes descreve essa situação da seguinte maneira: “... na mesa o mapa pode ser apenas um pedaço de papel, mais nada, e no entanto ele signifi ca um grandioso universo cheio de símbolos e legendas, maravilhosamente mudo enquanto fala para quem o olha. O mapa representa para nós, não nós a ele, e assim vai escorregando como se fosse areia colorida entre os nossos dedos. O mapa é uma grande representação, esse é o seu papel, o resto é só impressão” (22). Na verdade, precisamos investigar mais casos como o da minha aluna da cartografi a básica e o da aeromoça do voo entre Londrina e São Paulo para conhecer e entender os nossos problemas com a cartografi a e, possivelmente, mudar a cultura cartográfi ca no Brasil. 24 Carto-Crônicas Correntes e Acorrentados na Cartografi a A maneira de pensar o espaço depende fortemente das infl uências socioculturais, fi losófi cas, políticas e econômicas de cada época e cada povo. Vertentes como o evolucionismo, determinismo ambiental, possibilismo e a geografi a crítica são produtos do seu próprio tempo, e sempre se corre o perigo de interpretar ideias do passado com a visão do presente. Diante de tantas correntes, correntezas, enxurradas e avalanches mentais para pensar o espaço, surpreende que quase nunca se fala em “pensamento cartográfi co”, embora os mapas sejam considerados uma ferramenta essencial para retratar, armazenar e generalizar informações. O famoso geógrafo inglês David Harvey afi rma que “nada é tão caro ao coração e à mente dos geógrafos como os mapas” (35). Mapas são classifi cados como linguagem da geografi a, e eles “derrubam as nossas inibições, estimulam as nossas glândulas (sic), mexem com nossa imaginação, soltam nossas línguas” (75). No entanto, a prática conta outras histórias. Para muitos geógrafos, a cartografi a não passa de uma técnica (muitas vezes terceirizada porque o geógrafo “encomenda” os mapas para os seus trabalhos) que dispensaria qualquer refl exão teórica ou fundamentação epistemológica. O que no tempo da Antiga Grécia era praticado não era cartografi a, mas cosmografi a: O saber geográfi co não dependia de mapas, mas de relatos de viagens, navegações e descrições de determinados países e se referia a questões fi losófi cas e matemáticas da visão do mundo. Cláudio Ptolomeu (aproximadamente 90-168), por exemplo, elaborou um mapa do mundo com uma malha de coordenadas de latitude e longitude. A sua obra-prima Geographia foi escrita por volta de 150 d.C. e devidia-se em oito volumes. O primeiro livro discutia os princípios da cartografi a matemática e os métodos 25 Carto-Crônicas de representar uma superfície esférica no plano. Os outros sete volumes eram “um pouco mais do que uma lista de cerca de 8000 nomes de lugares, cidades, ilhas, montanhas, bocas de rios etc., cujas localizações foram presumivelmente determinadas com uma precisão de minutos e segundos” (85). A “teoria” de Ptolomeu era excelente, mas a prática “ordinária”, porque a determinação das posições baseava- se em algumas medições astronômicas de latitudes e nas estimativas encontradas nos relatos de viajantes. A maioria das posições foi determinada por cálculos matemáticos a partir de um ponto conhecido e não por meio de medições. Depois de quase um milênio de pouca fi losofi a sobre mapas durante a Idade Média, os pensadores do Renascimento começaram a resgatar os valores e visões da Antiguidade, principalmente nas áreas de fi losofi a, arte, literatura e arquitetura. O visual reconquistou o seu lugar, enquanto a representação do espaço ganhou cada vez mais importância. Neste contexto, a primeira descrição formal de um sistema de perspectiva surgiu na cidade italiana de Florença no século XV, quando dois arquitetos apresentaram as suas ideias para transcrever o olhar humano no papel. A invenção da perspectiva linear, dos pontos de fuga e das linhas do horizonte na arte e na arquitetura permitiu criar a ilusão visual do espaço tridimensional numa superfície plana de duas dimensões. A perspectiva, portanto, não é uma transposição das condições supostamente eternas do olhar, mas apenas uma técnica, uma forma simbólica de representação do espaço. É uma construção histórica que tenta simular a visão binocular através de um olhar unifi cado e imobilizado e que identifi ca profundamente um conteúdo intelectual com um modo sensível de representação: “Vemos da forma que não 26 Carto-Crônicas representamos, pois o olhar percebe de modo ligeiramente esférico, enquanto a perspectiva é linear... Existe uma discrepância entre a percepção e a perspectiva linear” (57). O que vemos no papel não é uma transcrição exata do que o olho vê. Trata-se deuma geometrização do olhar (fi gura 1). O mundo é concebido através de uma janela que é subdividida em quadrados ou retângulos. Tudo que é observado pode ser projetado em uma folha de papel. Figura 1: Desenhar com perspectiva: Recorte de uma gravura do Lehrbuch der Malerei (1525) de Albrecht Dürer (http://people.sc.fsu.edu/~jburkardt/latex/asa_2011_images/durer_perspective.png) Essa sistematização do olhar representa a base para ciências como a cartografi a e para manifestações artísticas como a pintura de paisagens. Ao mesmo tempo, a perspectiva linear era responsável pela criação da “aparência objetiva” dos mapas: 27 Carto-Crônicas “O ponto de vista fi xo dos mapas e quadros com perspectiva é elevado e distante, completamente fora do alcance plástico e sensorial. Ele gera um sentimento de espaço friamente geométrico e sistemático, que mesmo assim produz uma sensação de harmonia com a lei natural, acentuando assim a responsabilidade moral do homem no âmbito do universo geometricamente organizado de Deus” (36). Com base no perspectivismo renascentista, os cartógrafos iluministas criaram uma dialética entre a experiência empírica e a razão na cartografi a: é a experiência visual do meio ambiente que produz as informações, mas é a razão que a refi na e estrutura e lhe atribui um signifi cado. As experiências subjetivas, independentemente da sua natureza, foram moldadas de acordo com o racionalismo cartesiano que escolhia a matemática como a ciência verdadeira e a geometria como sua língua ofi cial. A palavra cartografi a é relativamente nova. Foi introduzida nas ciências apenas no século XIX, quando em 8 de dezembro de 1839 o historiador português Manoel Francisco de Barros e Sousa (mais conhecido como Segundo Visconde de Santarém) mandou uma carta para outro visconde (o Visconde de Porto Seguro), o historiador brasileiro Francisco Adolfo Varnhagen, na qual disse: “invento esta palavra, já que ahí se tem inventado tantas”. Um dos biógrafos do Visconde de Santarém comenta o seguinte sobre esse neologismo: “Essa asserção é muito importante. Começamos a verifi car em alguns dicionarios anteriores a 1839 a não existência da palavra cartographia; entretanto, tornar- se-ia indispensável uma investigação mais minuciosa, que não nos foi possível fazer, se por ventura se julgasse necessário ratifi car 28 Carto-Crônicas o que não temos razão alguma para pôr em dúvida até demonstração em contrário. E assim bem se pôde dizer que o Visconde de Santarém é o primeiro crítico da cartografi a, como foi o inventor do próprio termo” (17). Então, a palavra “cartografi a” é mesmo uma invenção brasileira! Para ilustrar esse fato, o geográfo americano Denis Wood atesta que a palavra “cartógrafo” encontrou seu lugar no Oxford English Dictionary apenas em 1859, enquanto o termo “cartográfi co” foi somente mencionado 1880 (94) Com a consolidação da geografi a como ciência na segunda metade do século XIX e a corrida dos países europeus para conquistar a sua “parte” nos outros continentes, principalmente na África, a cartografi a se tornou uma ferramenta importante para os projetos coloniais, porque os mapas bem feitos “facilitaram” a exploração dos recursos naturais dos países “colonizados”. Só a partir da segunda metade do século XX surgiu um engajamento maior dos profi ssionais e pesquisadores com a teoria na cartografi a. Eles começaram a se preocupar com as informações geográfi cas e sua transmissão. Alguns se apegaram a teorias de informação segundo as quais os mapas são concebidos como veículos de informações espaciais. A tarefa dos pesquisadores era investigar a forma da transmissão da mensagem do emissor ao receptor e as interferências (“ruídos”) durante o processo. Outros se apoiavam na teoria dos signos, cuja semiologia gráfi ca procurava estabelecer um padrão para uma espécie de gramática de linguagem visual a partir de símbolos que consistiam em um signifi cado (“sentido”) e um signifi cante (forma gráfi ca para representar o signifi cado). A questão do poder cognitivo dos mapas também chamou mais atenção. O que interessava mais aos seguidores dessa linha não era o fazedor de mapas, mas o usuário cujas operações mentais são estimuladas, provocando uma interação entre o mapa (produto cognitivo do cartógrafo) e os processos cognitivos do usuário. 29 Carto-Crônicas As novas tecnologias, ligadas ao uso do computador e da informática (SIG, Internet, vídeo, imagens digitais etc.) levaram a uma maior refl exão sobre a visualização de informações em face das crescentes quantidades e qualidades das informações e da rapidez na coleta, tratamento, armazenamento e atualização de dados. Sob essa perspectiva, os mapas são concebidos não apenas como forma de comunicação, mas como ferramentas de análise e meios de visualização que servem tanto para estudar as características dos fenômenos geográfi cos e sintetizar informações como também para apresentar resultados. Quanto à cartografi a no Brasil, registrava-se uma infl uência forte da “escola regional” francesa de Vidal de La Blache, que “foi importante matriz da organização da geografi a científi ca no Brasil” (25). De acordo com essa corrente, a cartografi a era o instrumento legitimador do método geográfi co, tendo como fi losofi a uma base regional, positivista e apolítica que “não enganava o olho”. Dava-se preferência à descrição da paisagem e suas marcas visíveis e não à análise e aos fatores invisíveis. Nesta “fase” da cartografi a no Brasil (com seu “auge” entre 1930-1975), o objetivo era auxiliar a localizar e descrever fenômenos geográfi cos e representar fi dedignamente as partes que compunham a realidade sem muita preocupação com a explicação da organização territorial da sociedade (40). Com a renovação da geografi a no Brasil nos anos 70, surgiram duas infl uências marcantes: a tecnologia e a crítica social. No caso da primeira infl uência, os novos avanços tecnológicos encaixaram-se na “revolução quantitativa” do neopositivismo que buscava maior rigor na aplicação da metodologia científi ca, utilizando técnicas matemáticas e estatísticas, abordagens sistemáticas e modelagem. Hoje em dia, esses procedimentos se resumem nas “Geotecnologias” que, entre os próprios cartógrafos, não estão isentas de 30 Carto-Crônicas críticas, já que muitos cartógrafos estão abertos para novas tecnologias e fechados para novos conceitos (86). Vozes críticas na cartografi a alertam que se esse paradigma da cartografi a como “tecnologia persuasiva” (32) prevalecer, muito seria perdido, porque seria um erro “determinar a nossa compreensão e defi nição da cartografi a por um imperativo tecnológico” (86). A segunda infl uência teve um impacto muito signifi cativo quando do emprego da cartografi a na geografi a humana. A crítica marxista na geografi a acusou a função ideológica e manipuladora dos mapas que se tornaram o símbolo da geografi a tradicional ultrapassada. Portanto, essa crítica se limitava à destruição da cartografi a, mas sequer tentou apresentar propostas alternativas. As máscaras dos mapas como distorções ou falsifi cações da realidade foram desvendadas e as representações do espaço não passaram pelo crivo ideológico. Enquanto a geografi a física continuava sua parceria com a cartografi a, a geografi a humana simplesmente a sepultou. Os geógrafos humanos (e críticos) romperam de vez com a chamada geografi a tradicional. Mesmo as tentativas de quebrar essa rotina fracassaram como no caso do importante geógrafo brasileiro Milton Santos, cujas publicações, na maioria, carecem de mapas. Por ocasião da entrega de um texto para publicação, ele chega à conclusão de que “a cartografi a é uma representação. Então há a possibilidade de uma escolha. Num livrinho meu ilustrador pôs o mundo de cabeça para baixo, sugerindo que era o Sul que estava em cima. E o editor, sem desejar perturbar, desobedecer à sugestão do arquiteto quebolou a idéia, pôs a representação costumeira. Porque a cartografi a tem essa idéia de criar um costume, um hábito de viver que tem conseqüências políticas” (73). 31 Carto-Crônicas Ainda nos anos 80, surgiram as primeiras preocupações com os aspectos éticos da cartografi a que não visavam a uma destruição do mapa, mas à sua “desconstrução” para acusar as “falhas éticas” do mapa no processo de mediação entre a sociedade e o mundo, o “isolacionismo teórico” da cartografi a e a “burocratização” do mapa (32). Foi o historiador de cartografi a britânico J.B. Harley (1932-1991) que encorajou uma mudança epistemológica na maneira de interpretar a natureza da cartografi a. Enquanto os marxistas mais dogmáticos se restringiram a desmascarar o poder opressivo e o teor ideológico dos mapas (esquecendo-se que eles próprios também seguiam uma ideologia), Harley tentou tirar novos signifi cados por entre as linhas da representação, agendas escondidas e visões contrastantes do mundo. Na visão dele, para compreender melhor como mapas funcionam, precisamos considerar as maneiras que um mapeador usa para estruturar o conhecimento. O mapa é constitutivo de uma determinada forma da realidade, e não apenas representativo dela (05). O ponto central desta abordagem é que “o mapa não nos deixa ver coisa nenhuma, mas ele deixa-nos saber o que outras pessoas viram ou acharam ou descobriram” (93). Diante dessas correntes de pensamento cartográfi co que costumam “acorrentar” os seus seguidores, a cartografi a não é uma mera técnica ou um simples “fazer mapas”. Existem várias cartografi as com vários paradigmas, embora muitos acadêmicos estejam convencidos que suas próprias ideias sobre a cartografi a sejam as únicas válidas. A professora do ensino básico, portanto, raramente tem contato com o pensamento cartográfi co, porque esses conteúdos não são mencionados nos livros didáticos. Refl etir sobre a cartografi a inserida no contexto da sua época e em relação às tendências nas ciências poderia ser um caminho para compreender a cartografi a como algo mais do que uma técnica inútil e distante da nossa realidade. A cartografi a não serve apenas “para fazer a guerra”, mas também pode se tornar uma contribuição essencial para a construção da cidadania. 32 Carto-Crônicas História(s) da Cartografi a I: Em Busca do Mapa Mais Antigo do Mundo Muitas vezes, as aulas sobre cartografi a começam com o tradicional histórico da disciplina seguindo um esquema evolucionista do mapa “mais antigo” e “mais primitivo” de milhares de anos atrás até os produtos sofi sticados da cartografi a digital do Terceiro Milênio, sem levar em conta que os mapas representam “uma forma de ‘saber’ em geral, ao invés de meros produtos de uma prolongada difusão tecnológica a partir de um foco europeu” (33). Como qualquer outra ciência, a cartografi a se baseia nos seus mitos fundadores: “a crescente complexidade das sociedades humanas levou os homens a se preocupar com a organização social do espaço,” como relata um aluno do curso de geografi a da minha universidade (Romério, terceiro semestre): “Quando o homem conheceu o mundo, não tinha esta forma, estes arranha-céus, estes automóveis, enfi m, não existia nada além de plantas e animais. Então o homem começou a modifi car, chegando a um ponto onde seu espaço era imenso. Então ele sentiu a necessidade de desenhar o espaço conhecido chamando isso de ‘mapa’, o qual veio fi cando cada vez mais moderno com o passar do tempo”. A representação e a imaginação do espaço sempre fi zeram parte da raça humana, mas não necessariamente resultaram em mapas. Um rabisco na parede de uma caverna, um desenho na areia - a expressão gráfi ca sempre tem exercido um papel na comunicação humana de modo que se torna impossível dizer qual é mesmo o mapa mais 33 Carto-Crônicas antigo conhecido (nem falar dos desconhecidos). O geógrafo americano John Krygier não concebe esses rabiscos como mapas, mas como um “cartocacoete”, isto é, “a mania, o desejo incontrolável, a compulsão ou coceira de ver mapas em todos os cantos” (42). Há autores que acham que o “mapa mais antigo” de que temos notícia foi feito aproximadamente 4500 anos. Encontrado em 1930 nas escavações das ruínas de Ga-Sur na Babilônia, hoje Iraque, trata-se, na verdade, de uma placa de barro cozido (e quebrado) do tamanho da palma de uma mão (7,6 cm por 6,8cm) com caracteres cuneiformes e símbolos estilizados que foram carimbados ou arranhados na argila (87). O mapa na fi gura 2 mostra o vale de um rio (delta com três braços, provavelmente o Rio Eufrates) cercado de duas cadeias de montanhas que são representadas como escamas de peixe. As cidades existentes aparecem em forma de círculos, enquanto outros círculos nos cantos da placa indicam os pontos cardeais. Figura 2: O mapa de Ga-Sur (52, 97) 34 Carto-Crônicas Outros autores argumentam que o mapa mais antigo é um desenho de quase três metros de largura, encontrado nas escavações de Çatal Hüyük na região da Anatólia na Turquia. Essas inscrições rupestres mostram a planta de uma suposta cidade, tendo uma idade estimada de aproximadamente 8200 anos (79). Conforme as interpretações, as cerca de 80 casas retangulares parecem como as favas de uma colméia e fi cam em frente de um vulcão em erupção cujos escombros incandescentes ou estão caindo nas encostas de uma montanha ou estão sendo jogados do cone vulcânico, criando nuvens de fumaça e cinzas (fi gura 3). Figura 3: As inscrições rupestres de Çatal Hüyük (http://architecturetraveljournal.blogspot.com.br/2011/08/catal-huyuk-turkey- neolithic-wall.html) O mito das origens da cartografi a e a busca pelo mapa mais antigo da humanidade disfarçam o simples fato de que os seres humanos sempre tiveram uma preocupação com a percepção e representação do espaço, embora nem sempre eles tenham chegado a expressar suas idéias em forma gráfi ca, ainda menos com escala e legenda! No princípio da década de 80 do século passado, iniciou- se uma discussão mais aprofundada sobre o signifi cado e a função de representações (carto)gráfi cas do passado. Essa “nova história da cartografi a” procura compreender os 35 Carto-Crônicas mapas e desenhos no contexto sociocultural, econômico e político da época e do lugar em que eles foram criados. Neste sentido, uma defi nição mais ampla do mapa seria “uma representação gráfi ca que facilita a compreensão espacial de coisas, conceitos, condições, processos ou acontecimentos no mundo humano” (34). Em vez de ser considerado um produto pronto e inquestionável, o mapa deveria ser interpretado como uma forma de comunicação que só pode ser compreendida dentro do seu próprio contexto. Por muito tempo, a cartografi a moderna cometeu o erro de julgar os mapas mais “antigos”, “primitivos” e “indígenas” de acordo com as normas e convenções do modelo moderno da ciência. Uma “vítima famosa” desse julgamento sem conhecimento do contexto é aquele mapa esquemático da Idade Média (mapa “T no O” ou “mapa de roda”) que costuma ser citado em muitos livros didáticos e manuais de cartografi a como testemunho do misticismo religioso da Idade Média quando todas as atividades científi cas (inclusive a cartografi a) sucumbiram à religiosidade (fi gura 4). Figura 4: Representação esquemática do Mapa “T no O” (97) 36 Carto-Crônicas Portanto, quando analisamos esse mapa, descobrimos que o “T no O” não se preocupava com convenções cartográfi cas tais como legenda, escala e projeção. Sua função não era o registro preciso de fatos geográfi cos, mas a representação de mistérios religiosos e acontecimentos históricos. Esses conceitos de espaço e tempo foram fundidos para compreender a vida cristã e providenciar uma narrativa visual da historia cristã com um pano de fundo geográfi co (95). Informações sobre a superfície terrestre foram secundárias para os cristãos da Idade Media cuja mente se preocupava com esferas espirituais e nãocom cenários terrestres. O mapa não servia para localização e orientação, mas era um recurso didático para explicar e corroborar a fé cristã. Com uma exceção, não há referências a mapas na Bíblia Sagrada. A única alusão pode ser encontrada em Ezequiel 4,1 que declara: “Tu, pois, ó fi lho do homem, toma um tijolo, põe-no diante de ti e grava nele a cidade de Jerusalém”. O “T no O” tem a forma de um simples disco com uma subdivisão das massas terrestres nos três continentes Ásia, Europa e África, os quais representavam os três fi lhos de Noé. Sem, por ser o fi lho mais velho, fi cou com a partilha maior, a Ásia, enquanto Cam recebeu a África e Jafé a Europa. Os continentes foram divididos através dos cursos de dois grandes rios, o Nilo e o Tanais (Rio Don na atual Rússia). A cidade sagrada de Jerusalém sempre fi gurava como centro do mapa, uma transcrição direta das palavras da Bíblia, porque em Ezequiel 5,5 está escrito onde deveria fi car o lugar dessa cidade: “Assim diz o SENHOR DEUS: esta é Jerusalém; pu-la no meio das nações e terras que estão ao redor dela”. A própria forma do mapa pode ser interpretada como uma alusão à fé cristã: enquanto o T simboliza a cruz, a tripartição das terras pode ser um testemunho da perfeição divina, relacionando- se ao dogma da Santa Trindade. 37 Carto-Crônicas Muitos mapas desse tipo foram enfeitados com desenhos que mostravam cenas bíblicas como o Paraíso, o Juízo Final ou episódios da vida de Jesus. O Paraíso se tornava um lugar real nos mapas, ainda que inacessível devido a barreiras insuperáveis como imensas muralhas ou de montanhas de fogo. Foi só por volta de 1500 que o Paraíso defi nitivamente desapareceu nas representações cartográfi cas. Seria totalmente errado julgar esses artefatos antigos do espaço como “inferior’ à cartografi a do presente. Como manifestações humanas, eles precisam ser contextualizados. Muitos mapas do passado não foram compreendidos por serem interpretados à luz da norma de que um mapa – para ser um verdadeiro mapa – precisava mostrar a realidade geográfi ca estruturada conforme um sistema de coordenadas e uma escala. Não é para negar a necessidade de produzir mapas friamente objetivos. O espaço geométrico é essencial para o planejamento urbano, o monitoramento ambiental e o ordenamento territorial em geral. A mente humana, portanto, não pensa em “linha reta”. Por isso, os mapas medievais e “primitivos” e outros “desenhos cartografi camente rejeitáveis” com a sua falta de rigor se aproximam mais da experiência humana e precisam ser apreciados pela sua capacidade de dialogar com o leitor. Trata-se de narrativas no tempo e no espaço que exigem uma leitura “entre as suas linhas”. 38 Carto-Crônicas História(s) da Cartografi a II: A Busca pela Longitude Os conceitos de latitude e longitude geográfi cas provavelmente foram discutidos pela primeira vez por volta de 300 a.C. na antiga Grécia para defi nir posições geográfi cas na superfície terrestre. O matemático grego Hiparco (cerca de 190 a 120 a.C.) é considerado o inventor de uma “rede” geográfi ca para determinar posições no globo terrestre, o que Cláudio Ptolomeu mais tarde ia explorar para o seu sistema de coordenadas. Os gregos, portanto, pensaram menos em aplicações práticas para a navegação e mais em medições astronômicas para determinar, entre outros cálculos, o número de horas de sol no dia mais longo do ano em determinada latitude. A medição das posições geográfi cas para fi ns práticos apenas se tornou essencial com o aumento das viagens marítimas a partir do século XVI. A atração pelo Novo Mundo estimulou ambiciosos projetos de exploração, colonização e comércio, de modo que as navegações em alto mar se tornaram uma preocupação crescente para as maiores nações navegantes da Europa. A determinação da latitude nunca constituiu um problema sério para os astrônomos, porque o Equador, como o único círculo máximo entre os paralelos, representava com naturalidade a origem de todas as latitudes, tanto para o norte quanto para o sul. Assim foi que já em meados do século XVI havia dois métodos para o estabelecimento da latitude, tanto em terra como no mar: a determinação da altura do sol acima do horizonte e a determinação da altura da Estrela Polar (no hemisfério sul é o Cruzeiro do Sul) mediante instrumentos como astrolábio, quadrante, sextante, octante e balestilha (báculo de São Tiago). 39 Carto-Crônicas Figura 5: Instrumentos para medir a latitude: Astrolábio, sextante e balestilha (http://etc.usf.edu/clipart/25100/25161/astrolabe2_25161.htm http://michaeldinges.blogspot.com.br/2008/01/sextant-project.html http://www.hirondino.com/historia-de-portugal/balestilha/) A determinação da longitude, ao contrário, foi muito mais difícil. A escritora americana Dava Sobel (81) relata algumas tentativas de medição da longitude, realizadas na fase mais “quente” no fi m do século XVII, quando “inúmeros excêntricos e oportunistas publicaram panfl etos para promulgar suas próprias soluções loucas para determinar a longitude no mar”. Entre os inúmeros esforços destacavam- se as seguintes tentativas: - A medição da longitude através do movimento da lua e sua posição em relação às estrelas, realizada em 1514 pelo astrônomo e astrólogo alemão Johannes Werner (1468-1522). O problema principal desse método foi que as posições das estrelas não estavam muito bem conhecidas e que não havia instrumentos precisos para medir as distâncias entre a lua e as estrelas a bordo de um navio. - A medição da longitude com base nas quatro luas do Júpiter (os chamados “satélites de Galilei”), feita por Galileu Galilei em 1610. Os mais de 1000 eclipses anuais permitiram a previsão e o ajuste dos relógios com base nas tabelas das aparições e desaparições dos satélites. 40 Carto-Crônicas Infelizmente, as medições somente podiam ser realizadas à noite e com a ajuda de um capacete desengonçado com telescópio embutido, deixando o observador em um estado bastante desconfortável. - A determinação da hora local a partir dos estrondos de canhões que, acionados em determinado horário em determinado lugar com a hora local conhecida, poderiam servir como pontos de referência “audíveis”. Portanto, era praticamente impossível e economicamente inviável estabelecer tais redes de canhões. - A tentativa mais curiosa e absurda foi a chamada “teoria do cão ferido”, que se baseava na aplicação de um pó milagroso, chamado de “pó de simpatia” ou “pó de Digby” (segundo seu inventor). Conforme a propaganda desse remédio, o pó de Digby poderia curar feridas a distância. Bastava aplicá-lo em uma peça de roupa qualquer da pessoa enferma. Transferindo esse “raciocínio” para o problema da longitude, a solução era a seguinte: 1) Mande um cão ferido a bordo quando o barco zarpar para o oceano. 2) Deixe uma pessoa de confi ança na terra fi rme. Essa pessoa seria encarregada de mergulhar uma bandagem usada pelo cão na tintura do pó todos os dias quando o relógio marcar meio dia. 3) No mesmo horário, o cão no barco iria latir e dar uma noção da hora local ao capitão, porque o latido do cão ferido signifi caria que seria meio-dia em Londres. 4) Ao comparar a hora local com a hora de Londres seria possível deduzir a longitude. Evidentemente, como comentam ironicamente alguns críticos, os capitães precisavam acreditar que o efeito do pó de Digby pudesse ser sentido a uma distância de milhares de quilômetros e que a ferida do cão não sarasse durante uma viagem de vários meses – senão os navegantes fi cariam obrigados a ferir o cão de novo para “garantir o efeito”! 41 Carto-Crônicas A construção de cronômetros permitia medir a hora local em dois lugares diferentes ao mesmo tempo. O astrônomo e matemático holandês Christiaan Huygens (1629-1695) elaborou o primeiro destes instrumentos em 1657. Infelizmente, como funcionava com um pêndulo, não tinha utilidade no mar, porque o movimento do navio impediaum funcionamento regular do aparelho. Para determinar a longitude em alto mar era preciso saber a hora a bordo do navio e a hora no porto de partida ou qualquer outro lugar com a longitude conhecida. Desta maneira, todos os dias em alto-mar, o navegador corrigia o relógio do barco para o meio dia local (= o sol no seu ponto mais alto no céu), comparando-o com o relógio que indicava a hora local do porto de partida Assim foi possível determinar a longitude da posição do navio. Cada hora de diferença correspondia a mais quinze graus de longitude (360 graus divididos por 24 horas resultam em fusos de 15°). No entanto, o problema foi a construção de um cronômetro adaptado às navegações, porque em alto-mar os relógios com pêndulo iriam acelerar, atrasar ou até parar conforme o movimento das ondas e a sua mecânica fi caria comprometida devido às mudanças da temperatura do ambiente, da pressão barométrica ou das variações tênues da gravidade em diferentes latitudes. O óleo lubrifi cante poderia engrossar ou dilatar e as partes metálicas se esticariam ou se contrairiam. Em outras palavras, a medição da longitude era menos uma questão metodológica e mais um problema técnico. Ou como observa o escritor italiano Umberto Eco (21) no seu romance A Ilha do Dia Anterior: 42 Carto-Crônicas “Mas se não é difícil determinar a hora do lugar em questão, é deveras difícil ter a bordo um relógio que continue a dar a hora certa, depois de meses de navegação num navio sacudido pelos ventos, cujo movimento induz ao erro os mais engenhosos dentre os instrumentos modernos, para não falar dos relógios de areia e de água, que para bem funcionar deveriam repousar num plano imóvel”. O Parlamento Britânico chegou a oferecer um prêmio de 20 000 libras esterlinas para a descoberta de um “meio prático e útil de determinar a longitude”. Afi nal de contas, foi o inglês John Harrison (1693-1776) que em 1773, depois de vários modelos mais ou menos bem sucedidos, conseguiu elaborar um cronômetro com a confi abilidade necessária para a navegação. Uma vez resolvido o problema da medição da longitude, surgiu outro problema: qual seria a referência para todas as longitudes do mundo? Mas isso já será outra “história” da cartografi a a ser contada na próxima crônica. 43 Carto-Crônicas História(s) da Cartografi a III: A Invenção do Primeiro Meridiano “... para que latitude ou longitude será que estou indo?” (Alice não tinha a menor idéia do que fosse latitude, nem do que fosse longitude, mas lhe pareciam palavras imponentes para se dizer. (Lewis Carroll – Alice no País das Maravilhas (07)) As coordenadas geográfi cas representam um dos temas mais traumatizantes nas aulas de geografi a. Como Alice no País das Maravilhas, muitos alunos pacientemente se expõem às explicações (muitas vezes mal feitas) sobre latitude e longitude e até reconhecem a sua “imponência”, mas ignoram o seu signifi cado. Os mapas representam não apenas os elementos visíveis da realidade, mas também fenômenos da mente. Fronteiras, divisas, limites, fusos horários, paralelos e meridianos parecem ser marcas verdadeiras tanto no papel como na paisagem, embora sejam apenas linhas imaginárias, isto é, construções da mente humana, que se tornam “naturais” e fatos consumados no discurso dos livros didáticos de geografi a e dos manuais de cartografi a. Quanto à latitude e à longitude, surge a questão de como “dividir” o mundo em hemisférios. Monteiro Lobato (52), por exemplo, deixa a Dona Benta a falar sobre a linha do Equador, cuja invenção a senhora idosa vê como mérito dos geógrafos: “Os geógrafos dividiram o globo por meio de um círculo que o rodeia pela parte mais barriguda. Esse círculo, chamado Equador, tem todos os seus pontos a igual distância dos pólos. Quer dizer que o Equador divide o globo terrestre em duas metades igualzinhas, os dois Hemisférios”. Como Narizinho (que está dialogando com a Dona Benta), podemos imaginar o globo terrestre “como uma laranja que a gente parte em cuias 44 Carto-Crônicas do mesmo tamanho”. Existe apenas uma maneira de cortar a laranja em duas metades iguais. Quanto aos meridianos, Dona Benta observa “que eles são círculos, dividindo a Terra em sentido contrário. Em vez de serem linhas paralelas ao Equador, elas cortam o Equador e são círculos que passam pelos pólos e lá se cruzam”. À pergunta da Narizinho sobre quantos meridianos havia, Dona Benta responde: “Quantos você quiser. Desde que são círculos imaginários, você poderia traçar milhões de milhões deles, cada qual cortando o Equador num pontinho”. Enquanto o Equador serve como divisora natural do Norte e do Sul, não existe um único corte válido para partir uma laranja (quer dizer, o globo terrestre) na sua vertical (hemisférios leste e oeste). Na história da cartografi a e dos mapas constam inúmeros meridianos de referência para o ponto inicial da longitude. O primeiro meridiano de origem foi supostamente estabelecido por Cláudio Ptolomeu no século II, quando escolheu as Ilhas Afortunadas (hoje Ilhas Canárias) como referência longitudinal e limite do mundo conhecido. Muitos países tinham os seus meridianos “caseiros”, porque com o aparecimento dos movimentos nacionalistas no século XVII, cada nação tomou para si como meridiano de origem o da sua própria capital. Assim surgiram os primeiros meridianos de Londres, Lisboa, Madri, Paris, Filadélfi a e Washington. Até o Brasil usava seu próprio meridiano fi xado no observatório do Castelo no Rio de Janeiro, além do meridiano da Ilha do Ferro nas Ilhas Canárias. A existência paralela de diferentes meridianos, portanto, tornou a navegação confusa, porque exigia a conversão das longitudes de um sistema de referência para outro. Em 1871, por ocasião do Primeiro Congresso Internacional de 45 Carto-Crônicas Geografi a em Antuérpia na Bélgica, a plenária recomendou a adoção do Observatório de Greenwich como meridiano zero para todas as longitudes e todas as cartas marítimas para os próximos quinze anos. Muitos países adotaram o meridiano de Greenwich como referências para suas cartas marítimas, mas ainda tiveram a liberdade de referenciar as suas cartas terrestres de acordo com seus próprios meridianos nacionais. A Rússia, por exemplo, usava três diferentes referências de longitude para suas cartas marítimas e quatro para as suas cartas terrestres. Para garantir uma padronização do primeiro meridiano, o presidente dos Estados Unidos, Chester Arthur “em prosseguimento de uma provisão especial do Congresso” (37) convidou os governos de todas as nações com as quais mantinha relações diplomáticas a mandarem delegados para Washington (DC) para realizar uma conferência internacional no começo de outubro de 1884. O objetivo era discutir e, se caso possível, estabelecer um meridiano a ser empregado como marco zero para a longitude e para a medição da hora no mundo inteiro (estabelecimento de fusos horários). Participaram 41 delegados de 25 países, dos quais treze mandaram representantes científi cos (diretores de observatórios, engenheiros civis, ofi ciais da Marinha etc.). Entre os participantes encontravam-se todos os países de importância política e econômica naquela época: Áustria- Hungria, Alemanha, França, Grã-Bretanha, Rússia e Estados Unidos, diversos representantes da América Latina (Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, México, Paraguai, Salvador (El Salvador), Venezuela e também o Brasil) e até delegações da Libéria, do Havaí e de São Domingos (Haiti)). O Brasil foi representado pelo diretor do Observatório Imperial no Rio de Janeiro, Louis Cruls, um belga naturalizado brasileiro. 46 Carto-Crônicas Todos os congressistas se manifestaram a favor da defi nição de um meridiano único para todos os países. A escolha do lugar para o primeiro meridiano, portanto, foi um assunto mais polêmico. Foi proposta aos governos participantes a adoção do meridiano de Greenwich como meridiano inicialpara a longitude. A França defendia a posição de que o meridiano proposto deveria ser novo e neutro sem cortar nenhum dos continentes como Europa e América, propondo que o assunto deveria ser levado para uma conferência de cunho mais técnico (o que foi rejeitado pelos presentes). A Grã-Bretanha e os Estados Unidos, por sua vez, argumentaram que não era possível que um meridiano fosse absolutamente neutro e que era importante o meridiano passar na longitude de um observatório astronômico. Por esta razão, meridianos naturais como ilhas (Ferro, Açores), cumes de montanhas (Tenerife) ou até obras monumentais como as pirâmides no Egito ou o Templo em Jerusalém não satisfariam esses critérios. Sobraram as propostas de Paris, Berlim, Greenwich e Washington. A França, em contrapartida, queria chamar a atenção que junto com a padronização dos meridianos e da hora universal, todos os países deveriam adotar o sistema métrico com suas respectivas unidades, o que a Grã-Bretanha ainda não tinha aceitado. Indiretamente, tratava-se de um pedido para substituir os minutos e segundos (estreitamente ligados à milha náutica) pela fração decimal do grau, utilizando-se 400 grados em vez de 360° (sendo 1 grado = 100 minutos e 1 minuto = 100 segundos). Os Estados Unidos, portanto, calaram as ressalvas da França, argumentando que o sistema métrico também não era um sistema neutro, mas uma convenção inventada pela França. O delegado britânico Sandford Flemming (representante do Canadá, então Território do Império Britânico) alegava que 47 Carto-Crônicas um meridiano neutro era bom na teoria, mas impossível na prática. Por isso seria melhor escolher o meridiano com o maior peso econômico, o que ele procurou mostrar através de uma tabela, na qual constava a relação do número de navios e suas respectivas tonelagens nos portos e cidades que eram candidatas a serem meridiano inicial naquela época. Segundo os cálculos de Flemming, o meridiano de Greenwich era usado por 65% dos navios, sendo a cidade de Londres responsável por 72 % da tonelagem mundial do comércio naval. Os seus maiores concorrentes como Paris (10% dos navios, 8% da tonelagem) e Cadiz na Espanha (5% dos navios, 3% da tonelagem) tinham apenas uma importância comercial muito inferior, tanto que a escolha de Greenwich poderia benefi ciar um maior grupo de pessoas (e também ceder a certos interesses econômicos). Na votação em favor do meridiano de Greenwich, houve 22 votos a favor, duas abstenções (França e Brasil) e um voto contra. São Domingos (ex-colônia francesa, hoje Haiti) não concordava com o argumento comercial e queria (aparentemente em solidariedade com a França) que o meridiano não fosse escolhido pela dominância econômica, mas pelo progresso intelectual, “qualidade inquestionável” da França que se destacava pela sua produção cultural naquela época. Para abrandar a discussão, foi salientado que as resoluções da conferência seriam meras recomendações para os respectivos governos e não convenções absolutas – tanto que a França, que não tinha muita pressa de introduzir o meridiano de Greenwich nos seus mapas, levou mais algumas décadas para a adoção do novo primeiro meridiano ofi cial. 48 Carto-Crônicas Outro assunto foi a medição da longitude, querendo- se estabelecer que a longitude fosse contada até 180° para o leste (positivo) e 180° para o oeste (negativo) a partir do meridiano zero. A proposta gerou uma polêmica e uma votação mais acirrada (14 votos a favor, 5 votos contra e 6 abstenções), porque vários países como a Suécia se apoiavam nas decisões de uma Conferência anterior segundo a qual a contagem dever-se-ia realizar do leste para o oeste de 0° a 360°. A Espanha, por sua vez, defendia o contrário (contagem do oeste para o leste) e a Grã-Bretanha sugeria 180° para cada lado. As decisões tomadas na Conferência de Washington vigoraram até o presente e fazem parte dos “fatos consumados” nas aulas sobre cartografi a. Ninguém nega a necessidade de se ter um meridiano universal como base para todos os países. Hoje em dia seria politicamente impossível mudar a localização do Primeiro Meridiano para outra longitude, embora haja diversos países no cenário geopolítico mundial querendo ser o centro do mundo. Os meridianos continuam como linhas imaginárias, ou, como formulou o cientista medieval Sacrobosco, “o meridiano é um círculo que passa pelos polos do mundo e por nosso zênite” (29). A escolha do primeiro meridiano se baseava em decisões humanas (econômicas, políticas, fi losófi cas etc.). Os mapas que usamos diariamente mostram uma malha de coordenadas “perfeita”, de modo que e os processos que são responsáveis pela sua criação fi cam no esquecimento. A cartografi a sempre foi humana e continua sendo uma refl exão consistindo em realidades objetivas e elementos subjetivos ao mesmo tempo. E os meridianos continuam sendo linhas imaginárias. 49 Carto-Crônicas (Con)fusos Horários I: Produzindo Tempo e Espaço Para que servem os dias? Os dias são o lugar que vivemos. Eles chegam, nos acordam, Sempre e de novo. Existem para sermos felizes neles: Onde podemos viver senão nos dias? Ah, a resposta a esta questão Traz o padre e o doutor (Em seus casacos longos) Correndo pelos campos. Philip Larkin – Dias (43) Fusos horários - tema temido e fútil nas aulas de geografi a? Parece que as pessoas apenas se interessam pelas diferentes zonas de tempo a cada dois anos - só para saber a que hora assistir às diversas modalidades esportivas nas Olimpíadas na Ásia ou torcer pela seleção brasileira de futebol na Copa do Mundo na Europa, Ásia ou África. Ninguém se esforça para explicar a utilidade desse conhecimento. Por que saber que um fuso horário é uma “área que, em qualquer lugar da faixa teoricamente limitada por dois meridianos, conserva a mesma hora referida ao meridiano de origem” (59)? Semelhantes aos meridianos, os fusos horários são linhas imaginárias para dividir o espaço. Neste caso específi co, utiliza-se o tempo para produzir estruturas espaciais e gerar uma ordem espacial coerente (60). O tempo se torna um “marca-passo” para determinar o ritmo e a velocidade do comportamento humano. Portanto, se os relógios num mesmo lugar marcassem horas diferentes, não haveria uma referência com validade universal. Daí a necessidade de uma padronização. 50 Carto-Crônicas Imagine a Inglaterra em meados do século XIX quando os relógios das cidades foram ajustados ao horário de Greenwich. Antes dessa reforma, havia uma medição do tempo conforme a hora local, muitas vezes com uma diferença pequena de um minuto de povoado para povoado, com base nas características do sol (amanhecer, pôr-do-sol). Contudo, com o surgimento e crescimento da rede ferroviária na Inglaterra surgiu a necessidade de padronizar o tempo devido a questões de pontualidade nos horários, o que se tornou mais eminente ainda com os serviços dos Correios e Telégrafos Britânicos que precisavam de uma hora universal. Por volta de 1846 iniciou-se o processo de implantação do horário de Londres (Greenwich) para todas as estações ferroviárias que antes usavam a hora local e exigiam uma correção da hora e um ajuste do relógio em cada parada, de modo que até havia surgido um mercado de demanda e oferta para a venda de relógios com duas faces, uma para indicar a hora local e a outra para a “hora ferroviária”. As primeiras cartilhas contendo os horários dos trens incluíam uma tabela de conversão da hora local para Greenwich Mean Time e vice-versa. A hora universal, portanto, não foi aceita em todas as cidades. Principalmente nas paradas em lugares que fi caram nas costas leste e oeste, isto é, cidades mais afastadas do meridiano de Greenwich, essa mudança implicava um ajuste muito grande da hora local. A população desses lugares interpretou essa medida como imposição. No entanto, em 1862, quase todas as estações ferroviárias aderiram à “hora padrão”, enquanto o restoda cidade em torno da estação continuava com o seu horário local! Quem saía do prédio ferroviário viu os relógios marcando um horário diferente. É difícil de imaginar: dois tempos diferentes no mesmo espaço! Foi só em 1880 que o parlamento britânico conseguiu ofi cializar nacionalmente o tempo estandardizado no Reino Unido. 51 Carto-Crônicas A Conferência de Washington (1884) fortaleceu a posição de Londres quando os delegados de 25 países escolheram Greenwich não apenas como referência universal para a longitude, mas também como marco zero para a medição do tempo. Alguns países, portanto, levaram mais uma ou duas décadas para implantar esse sistema de fusos horários. Argélia, por exemplo, então colônia da França, adotou o fuso zero de Greenwich, chamando-o de “Horário de Paris, diminuído por 9 minutos e 21 segundos”, enquanto os holandeses mantiveram seu “horário de Amsterdã” até 1940. A Libéria apenas corrigiu seu “atraso” de 44 minutos e 30 segundos em relação á Hora Média de Greenwich em 1972 (77). Igual à fi xação do primeiro meridiano, a escolha dos fusos horários na Conferência de Washington foi motivada por interesses econômicos e políticos. Essa divisão imaginária da terra colocava a Grã-Bretanha no centro do mundo e as Américas e o Japão nas margens. Os limites dos fusos horários não seguem rigorosamente os meridianos. Eles raramente coincidem com as linhas simétricas e geométricas nos planisférios, mas costumam acompanhar o traçado de fronteiras políticas, barreiras naturais e contornos costeiros. Se houvesse uma divisão rigorosa com base na longitude, o limite entre dois fusos horários no Nordeste Brasileiro fi caria em 37° 30’ Oeste (só para lembrar, o meridiano central de cada fuso é divisível por 15, enquanto os seus limites possuem 7°30’ a mais no lado oeste e 7°30’ a menos na sua margem oriental). A consequência seria a implantação de um fuso horário separado nas cidades mais orientais como João Pessoa, Recife e Natal (todas com uma longitude em torno de 35° Oeste) e de outro em Fortaleza e Salvador (longitude aproximada: 38°30’ Oeste). 52 Carto-Crônicas Simultaneamente ao estabelecimento do primeiro meridiano, foi criada a sua “contraparte”, o anti-meridiano, outra linha imaginária a 180° de longitude. Embora nunca ofi cializada, essa linha começou a servir como Linha Internacional de Mudança de Data (LIMD). É lá no meio do Oceano Pacífi co e não na Europa onde “nascem” os dias. Seria uma confusão econômica se a linha de tempo cortasse a Grã-Bretanha da Europa continental impondo dias (e não apenas horas) diferentes aos países. Por exemplo, em uma viagem de Londres a Paris, o viajante ganharia um dia nesse percurso de aproximadamente 350 quilómetros! Para evitar essa confusão, o começo de cada dia foi fi xado na imensidão do Oceano Pacífi co, porque “afeta” poucas pessoas. O anti-meridiano permite uma viagem no tempo. O romance A Volta ao Mundo em 80 Dias do francês Júlio Verne (90) serve como um bom exemplo: um aristocrata inglês excêntrico arriscou toda a sua fortuna numa aposta com alguns lordes esnobes de um clube londrino, garantindo que seria capaz de dar uma volta ao mundo em 80 dias. Depois de várias aventuras, tentativas de sabotagem e mal- entendidos políticos e culturais, o nosso herói pensava que havia perdido a aposta, voltando à capital britânica com alguns minutos de atraso. No entanto, quando leu o jornal do dia, reparou que havia ganhado um dia na sua trajetória, porque atravessou a LIMD em direção leste, chegando ao extremo oeste e seguindo a sua viagem para a América. Viajar do leste ao oeste e vice-versa sempre é também uma viagem no tempo. Por exemplo, um turista que visita Fernando de Noronha também pode literalmente reduzir o voo de Fernando de Noronha a Recife (duração: cerca de uma hora) a segundos. O avião de uma das companhias aéreas (sobraram poucas no Brasil) levanta vôo às 15:00 horas e chega ao Aeroporto Internacional de Guararapes na 53 Carto-Crônicas mesma hora, às 15:00, porque o arquipélago e o Estado de Pernambuco fi cam em dois fusos diferentes! Em uma viagem do leste para o oeste “ganha-se” tempo. Através deste “truque” é possível viver o mesmo dia duas vezes. Pode-se passar o reveillon nas Ilhas Fiji (12 horas a mais do que o horário de Greenwich) e embarcar num avião na manhã seguinte para atravessar a linha e viajar para as Ilhas Samoa para celebrar o ano novo em dose dupla. Pelo menos isso foi possível até recentemente. No dia 29 de dezembro de 2011, as Ilhas Samoa tinham um atraso de 11 horas em relação à Hora Média de Greenwich (GMT). Portanto, quando tocava meia noite, os calendários nesse arquipélago no Oceano Pacífi co marcavam como data o dia 31 de dezembro, suprimindo o dia 30. Como isso pode acontecer? Como um dia simplesmente pode sumir da história? Em 1892, comerciantes do oeste dos Estados Unidos convenceram os governantes de Samoa a se alinhar com o horário das ilhas vizinhas da Samoa Americana, situados no lado oeste da LIMD para facilitar o comércio com a Califórnia que tinha uma diferença de três fusos (56). A mudança se realizou no dia 4 de julho, feriado de independência nos Estados Unidos, e com esse “pulo no tempo” a população de Samoa podia celebrar essa data duas vezes. No entanto, mais do que cem anos depois dessa decisão, a economia mundial passou por muitas transformações devido aos processos de globalização. No presente, os maiores parceiros comerciais de Samoa são Austrália e Nova Zelândia que fi cam no lado leste da LIMD, um dia mais adiantado. O comércio com esses países fi cou difícil pela diferença de um dia, sobretudo nos fi nais de semana. Em Samoa, 98% da população se identifi ca como cristãos e o domingo é o dia em que os samoanos costumam frequentar a igreja. 54 Carto-Crônicas Enquanto era domingo em Samoa, o calendário marcava segunda-feira em Sydney e Melbourne – um dia útil comum, mas perdido para o comércio. Como se pode ver, o estabelecimento dos fusos horários também serve a fi nalidades políticas e econômicas de cada país, porque qualquer nação independente tem a liberdade de defi nir e instituir a sua hora legal e fi xar os seus próprios fusos. Conforme as peculiaridades territoriais e naturais e os interesses nacionais, um país pode estabelecer as fronteiras dos fusos horários de acordo com a sua própria conveniência. Por exemplo, no decorrer das preparativas para a comemoração do novo milênio no ano 2000, havia um arquipélago no Oceano Pacífi co que encontrou uma “brecha” nos acordos internacionais dos fusos horários para estimular o turismo nas suas ilhas. Como não existe nenhuma convenção para defi nir a LIMD (nem a Conferência de Washington em 1884 havia estabelecido uma resolução), o pequeno país de Kiribati (pronunciado “Kiribas”, antigamente chamado de Ilhas Gilbert) aproveitou da situação. É um arquipélago de 33 atóis com área total de um pouco mais do que 800km², espalhados em uma vastidão de 3,5 milhões de km² de oceano. Kiribati decidiu “inventar” dois novos fusos horários (GMT+13 e GMT+14) em dezembro de 1994 para que a sua ilha mais remota, Caroline (longitude 150°13’W), um atol fragmentado de um pouco menos do que quatro quilômetros quadrados pudesse se tornar o primeiro lugar habitado do mundo para receber os primeiros raios solares do ano 2000 (veja o contorno de uma bigorna perto da linha do Equador na fi gura 6). A ilhota mudou de nome para Ilha Millenium, e havia muitos turistas estrangeiros abastados que não perderam essa oportunidade! 55 Carto-Crônicas A fi gura 6 mostra a confusão dos fusos horários no Oceano Pacífi co. O mapa contém algumas curiosidades. Por exemplo, o extremo leste da Sibéria está com 12 horas adiantadas em relação à hora de Greenwich, enquanto seu vizinho no outro lado do Estreito de Bering, o Estado de Alasca, está nove horas atrasadas. Os fusos -10, -11 e -12 simplesmente não existem entre a
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