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METODOLOGIA DA PESQUISA CONCEITUAL EM PSICOLOGIA Objeto (texto psicológico); objetivo (construir uma interpretação de textos psicológicos); níveis de análise; escopo; pressupostos filosóficos (vinculados à noção de interpretação) O uso de métodos contribui para dar visibilidade aos critérios que servirão para aferir a plausibilidade das hipóteses ↳ permite reprodução, avaliação e eventual correção dos resultados por diferentes pesquisadores Pesquisa de natureza conceitual → ideia de que esse tipo de pesquisa seria refratário à discussão de aspectos metodológicos Questão: Wittgenstein (1953/1975) “existem na psicologia métodos experimentais e confusão conceitual” 1. Objeto, objetivo, níveis de análise e escopo da pesquisa conceitual O que é pesquisa conceitual? → objeto: Machado, Lourenço e Silva (2000): “investigações conceituais sempre são relativas a uma teoria particular” O termo teoria participa de uma diversidade de controvérsias filosóficas. Uma maneira de não se comprometer com a discussão dessas dificuldades é adotar uma definição mais genérica: uma teoria é um conjunto de enunciados verbais a respeito do campo psicológico (Machado, Lourenço, & Silva, 2000). Na medida em que a trama conceitual que compõe uma teoria é escrita, a teoria psicológica pode ser considerada um texto (Abib, 1996). Desse modo, a pesquisa conceitual pode ser definida como uma interpretação da teoria ou texto psicológico. ☆ O objeto de estudo de pesquisas conceituais em psicologia é a teoria psicológica ou, mais especificamente, o texto psicológico; e o principal objetivo desse tipo de pesquisa é esclarecer os conceitos que compõem esse texto. NÍVEIS DE ANÁLISE CONCEITUAL 1) Análise do uso de um conceito: a investigação conceitual interroga e interpela a teoria psicológica sondando “os conceitos nucleares da teoria, seus significados e suas gramáticas” (Machado, Lourenço, & Silva, 2000, p. 23). Trata-se de fazer um escrutínio da teoria psicológica, explicitando as “regras” que regulam o uso de conceitos da teoria em diferentes contextos. 2) Análise da rede conceitual: a pesquisa conceitual pode partir para um nível de análise sistêmico, mos trando que em uma teoria um dado conceito está associado a outras noções ou conceitos, e que sua compreensão exige justamente a explicitação dessa rede de relações. Ainda nesse nível de análise, o conceito pode ser investigado em diferentes textos de um mesmo autor, dando visibilidade às suas eventuais mudanças e inflexões (isto é, sua evolução). 3) Análise dos compromissos filosóficos: outro nível de análise conceitual seria interpelar os conceitos psicológicos com as categorias da filosofia, dando relevo às afinidades filosóficas do núcleo conceitual de uma teoria psicológica. Isso permitiria filiar o texto psicológico a certos compromissos filosóficos, como determinadas meta físicas (mecanicismo, pluralismo, substancialismo); epistemologias (empi rismo, instrumentalismo, realismo); teorias éticas (utilitarismo, egoísmo ético, hedonismo); ideologias políticas (anarquismo, liberalismo, individualismo, utopismo), e assim por diante. 4) Análise do contexto histórico: o esclarecimento conceitual do texto também pode advir de uma análise histórica dos conceitos, já que eles, e o próprio texto, estão situados em uma dada época e cultura. Nessa perspectiva analítica, o conceito é contextualizado em um dado período histórico ou em diferentes períodos. Situar o núcleo conceitual do texto em sua moldura histórica significa também acionar um exame do Zeitgeist e das visões de mundo que vigoravam em uma dada época (diversas fontes, como em autobiografia e biografias do autor do texto, em documentos (por exemplo, anais e resumos de congressos, participação em associações profissionais), correspondências e testemunhos de colegas e discípulos e até mesmo na investigação da orientação intelectual de colaboradores). A pesquisa conceitual a depender de suas dimensões de análise, envolve uma análise intertextual, na qual são examinadas as inter-relações entre texto psicológico, pressupostos filosóficos e contexto histórico. Pode assumir contornos mais “internalistas”, quando se volta estritamente para uma análise do uso de um conceito, de sua rede conceituai, ou de seus pressupostos filosóficos. Mas quando abrange também a análise histórica dos conceitos, a pesquisa conceitual pode acabar ofuscando os limites entre “internalismo” e “externalismo”. HABILIDADES EXIGIDAS DO PESQUISADOR/INTÉRPRETE Requer um relativo do mínio da teoria psicológica que se quer investigar. A depender do escopo da investigação proposta, mais será mobilizado do intérprete para a pesquisa conceitual. Pode ser demandado: (i) o estudo de um conceito em um único texto de um autor; (ii) a investigação de um conceito em vários textos de um mesmo autor; (iii) o exame de dois ou mais conceitos em um ou vários textos de um mesmo autor. Formação mínima em filosofia e história das ciências: ○ Conhecimento das categorias basilares da filosofia, que, por sua vez, são polissêmicas, exigindo, por vezes, o recurso à história da filosofia para sua elucidação preliminar ○ Análise histórica de conceitos = técnicas de investigação típicas do historiador ○ Cientista, filósofo e historiador 2. Compromissos filosóficos da pesquisa conceitual: notas sobre interpretação O objetivo de uma pesquisa conceitual em psicologia é propor uma interpretação do texto psicológico = a relação com o objeto de estudo (o texto psicológico) ganha matizes distintos a depender da concepção de interpretação que orienta a investigação. Três sentidos emblemáticos de interpretação que podem filiar a pesquisa conceitual a diferentes compromissos filosóficos. A) A concepção mais tradicional de interpretação considera que interpretar é descobrir a intenção do autor do texto; o sentido que ele quis dar ao escrevê-lo. A origem de tal acepção remonta à atividade de exegese dos textos bíblicos, que busca por um sentido Verdadeiro (Ricoeur, 1969/2003). O texto é “fechado”, há apenas um significado ou itinerário possível, cabendo ao intérprete descobri-lo, trilhando o curso interpretativo correto = o significado de um con ceito está latente no texto. Outra característica clássica: a defesa da autoridade, que, nesse caso, é o intérprete qualificado para desvendar o verdadeiro significado do texto. Críticas: é possível que o texto “escape ao controle do autor”, abrindo caminhos interpretativos inicialmente imprevisíveis; entre duas interpretações conflitantes, a quem outorgar a chancela da interpretação verdadeira? = postura dogmática, interpretação canônica B) Em outro extremo, interpretar passa a ser entendido como o processo de invenção ou criação de significados de um texto. Recorrendo às características irremediavelmente ambíguas da linguagem, argumenta-se que tudo que é dito é passível de ser interpretado de modos diversos e até mesmo contraditórios. Desse modo, assume-se que o autor do texto nunca tem controle de todas as possibilidades de significação por parte do seu intérprete. O texto seria infinitamente aberto: o sentido de um texto nunca poderia ser estabelecido de uma vez por todas. "Morte do autor": a “autoridade” do autor é substituída pela liberdade do intérprete (não se exige um “intérprete qualificado”; qualquer leitura é, em princípio, válida). “Morte do texto”: considerado vazio e tão flexível quanto for o processo interpretativo do leitor. Críticas: ênfase exagerada no leitor, a interpretação parece re pousar apenas no processo de imaginação do leitor = difícil encontrar critérios para decisão quanto à adequabilidade da interpretação (não existem interpretações equivocadas ou concorrência) = completo relativismo na pesquisa conceitual (sem análise rigorosa); ecletismo: propostas inconsistentes ou contraditórias entre si podem ser combinadas. C) Interpretar é construir um significado na inter-relação entre autor, leitor e texto. Há uma contribuição positiva do intérprete: ele pode construir sentidos por meio de diversas relaçõestextuais (biográficas, autobiográficas, filosóficas, econômicas, sociológicas, antropológicas etc.). O texto é aberto a uma pluralidade de interpretações, mas não a qualquer interpretação = exibe certa autonomia em relação ao seu autor, mas também em relação ao leitor. O limite entre “várias” e “qualquer” é dado por critérios de avaliação de uma interpretação em termos de: (i) consistência lógico-filosófica (se é isenta de contradições, falácias ou equívocos filosóficos); (ii) natureza das fontes (se são fontes primárias, oriundas de edições confiáveis); (iii) apoio textual (se é possível identificar claramente as partes do texto que justificam a interpretação proposta); (iv) apreciação crítica da comunidade acadêmica (se, depois de publicada, a interpretação proposta resiste às críticas), entre outros. 3. Diretrizes metodológicas da pesquisa conceitual Como qualquer outro tipo de investigação científico-acadêmica, uma pesquisa conceitual precisa ser descrita nos moldes de um projeto de pesquisa (documento sintético que expõe um plano de ação para que se avalie a relevância e a viabilidade de sua execução). A elaboração de um projeto de pesquisa conceitual segue estes mesmos parâmetros: passa pela escolha do assunto, pela delimitação de um tema e pela formulação de uma pergunta de pesquisa. Com base nesses elementos, os demais aspectos de um projeto, como a introdução, os objetivos, a justificativa da pesquisa, o método e o cronograma de execução podem ser redigidos (adaptados à natureza conceitual do objeto). 3.1. Seleção dos textos Recomenda-se que a pesquisa conceitual lide com fontes primárias, ou de “primeira mão”, no caso, o texto do autor na sua língua original (nem sempre as traduções fazem justiça ao pensamento do autor; lacunas). Depende do escopo da investigação e do nível de análise pretendido: uso de um conceito, rede conceitual, compromissos filosóficos, contexto histórico. A escolha das fontes é orientada pelo problema de pesquisa. Em primeiro lugar, é preciso fazer um levantamento da(s) obra(s) do(s) autor(es) do(s) texto(s) analisado(s). No caso de pesquisas conceituais que utilizarão um livro ou conjunto de livros de um autor, há um procedimento suplementar para a seleção dos textos = busca por conceitos em index permite a construção de uma rede conceitual. 3.2. Procedimento de interpretação conceitual de texto: conceituação e etapas É preciso descrever como essa análise será feita. Diferentemente do que acontece com muitas pesquisas empíricas, a descrição de procedimentos metodológicos em pesquisa conceitual não tem a função de garantir a reprodutibilidade dos resultados. Trata-se, isto sim, de mostrar a maneira como uma proposta de interpretação foi construída, o itinerário interpretativo, abrindo a possibilidade de críticas que apontem falhas nesse processo, que, se corrigidas, culminariam em uma interpretação alternativa. O Procedimento de Interpretação Conceitual de Texto (PICT) é uma maneira de construir interpretações e produzir material pertinente ao desenvolvimento de pesquisas de natureza conceitual, além de auxiliar na identificação de seus compromissos e afinidades filosóficas. O procedimento não abarca a dimensão histórica da análise conceitual, que pode ser vislumbrada acrescentando-se algumas diretrizes. À semelhança de pesquisas de outras naturezas, as diretrizes metodológicas de uma pesquisa conceitual não devem ser consideradas um conjunto fixo e rígido de passos (trata-se, tão somente, de explicitar a maneira como os resultados da pesquisa foram alcançados). Considerando que uma pesquisa conceitual geralmente envolve um conjunto de textos (de um mesmo autor ou de diferentes autores), cada texto analisado de acordo com o PICT dará origem a uma síntese interpretativa. É necessário articular todo o material produzido na forma de um texto final, cuja organização (em capítulos ou como um único ensaio) dependerá do nível da pesquisa (iniciação científica, monografia, dissertação, tese), da dimensão de investigação conceitual proposta e do volume de material produzido. O objetivo desse texto final é responder à pergunta de pesquisa, dando elementos para tornar a resposta confiável. ● Primeira etapa: levantamento dos principais conceitos do texto Esta etapa consiste em listar os principais conceitos citados no texto e defini-los pautando-se no próprio texto. O problema de pesquisa é o que estabelece, em um primeiro momento, se um conceito é “principal” ou “secundário”. Como a etapa exige que os conceitos listados sejam definidos pelo próprio texto (o que deve ser feito de modo literal), diminuem-se as chances de uma “superinterpretação”, ao mesmo tempo em que cumpre o critério de apoio textual da interpretação construída. A etapa subdivide-se em quatro passos: Passo 1: grife e enumere, no texto, os conceitos e doutrinas (psicológicas, filosóficas) que julgar importante (o parâmetro desse julgamento é o problema de pesquisa: diferentes problemas de pesquisa demarcam conceitos distintos); Passo 2: tente encontrar a definição de cada conceito e doutrina no próprio texto. Isso significa registrar tudo aquilo que foi dito sobre cada conceito e doutrina, em todas as partes do texto. Às vezes, o autor retoma o conceito em diferentes momentos do texto, acrescentando outros elementos. É preciso ficar atento a esse movimento; Passo 3: anote todos os resultados, ou seja, transcreva as definições entre aspas, citando a(s) página(s) (p.) e o(s) parágrafo(s) (§) nos quais elas podem ser futuramente localizadas. Para tanto, numere todos os parágrafos do texto; Passo 4: faça uma lista dos conceitos e doutrinas cujas definições não foram encontradas no texto. Se um desses conceitos “indefinidos” for prioritário para o seu problema de pesquisa, isso indica que o texto não é apropriado e, portanto, você terá que recorrer a outros textos do mesmo autor. No caso de doutrinas “indefinidas”, você deve buscar definições em obras de referência, como dicionários específicos (de psicologia, filosofia etc.) ou compêndios (de epistemologia, de ética, de metafísica). Anote a definição e registre que ela foi encontrada em outra fonte, diferente do texto. Isso será importante para avaliar, posteriormente, se o autor do texto está considerando ou não essa “definição-padrão”. ● Segunda etapa: caracterização das teses do texto Esta etapa tem o objetivo de apresentar o texto em termos de sua estrutura conceitual, explicitando a articulação de teses. Uma tese é uma afirmação que o autor faz em relação a um determinado assunto, do qual participam os conceitos levantados na primeira etapa. A articulação das teses do texto se dá em termos de: i) teses tradicionais - afirmações feitas por outros autores, teorias ou doutrinas, e que serão discutidas e criticadas pelo autor do texto; ii) críticas - os problemas que o autor do texto menciona em relação às teses tradicionais; iii) teses alternativas - a(s) proposta(s) do autor para substituir as teses tradicionais criticadas evitando seus problemas. A primeira contribuição desta etapa é explicitar o posicionamento do autor em relação aos conceitos investigados, indicando em que sentidos são defendidos e criticados. Além disso, a identificação da estrutura conceitual de um texto evita um dos equívocos interpretativos mais grosseiros: dizer que um autor está defendendo aquilo que ele critica, ou vice-versa (o que é entendido, aqui, como confundir tese tradicional com tese alternativa). Esta etapa também permite uma avaliação crítica do autor, identificando, por exemplo, o uso de argumentos retóricos falaciosos para ● Terceira etapa: elaboração de esquemas Esta etapa consiste em representar na forma de figuras e/ou diagramas, as relações entre teses tradicionais, crítica e teses alternativas identificadas na etapa anterior. Os esquemas ajudam a visualizar a estrutura argumentativa do texto, identificando relações entre conceitos, doutrinas e teorias, bem como eventuais lacunas e equívocos cometidos pelo autor. A ideia é que o esquema sejacapaz de substituir o texto original, de modo que sua visualização seja suficiente para se falar ou escrever sobre o texto sem voltar a ele. Passo único: faça um esquema geral do texto para evidenciar sua estrutura conceituai. Isso pode ser feito na forma de tópicos ou de diagramas/fluxogramas com setas, quadrados e outras figuras. ● Quarta etapa: síntese interpretativa O objetivo desta etapa é realizar uma síntese das relações conceituais construídas ao longo das etapas anteriores. Trata-se de produzir um texto interpretativo pautando-se principalmente nos esquemas elaborados na Etapa 3. Se for necessário consultar a todo momento o texto original, talvez seja o caso de refazer as etapas do procedimento. A ideia é que o pesquisador tenha familiaridade com o texto sob investigação, sem, contudo, reproduzi-lo, no sentido de transcrever suas partes. Portanto, o texto deve ser escrito com linguagem e estilo próprios, discutindo o texto original, valendo-se, quando for oportuno, de citações diretas, que podem ser acessadas nos registros da primeira etapa do método. Esse novo texto deve contemplar as lacunas, as afinidades filosóficas, bem como outros elementos que foram identificados ao longo do procedimento. CONSIDERAÇÕES FINAIS: Além de uma explicitação metodológica, uma pesquisa conceitual precisa produzir conhecimento novo, respondendo a uma pergunta de pesquisa. Portanto, trabalhos conceituais que se resumem a repetições, afirmando aquilo que já se sabe, com palavras diferentes, não seriam propriamente pesquisas. Nesse sentido, a mediocridade de algumas análises conceituais, somada à falta de transparência em relação aos procedimentos metodológicos (ou, em alguns casos, a franca inexistência de tais procedimentos), contribuem para que a investigação conceitual continue não sendo reconhecida como um tipo legítimo de pesquisa acadêmica.
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