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J. Herculano Pires 
O ESPÍRITO 
E O TEMPO
2 – J. Herculano Pires 
O ESPÍRITO E O TEMPO 
José Herculano Pires (1914 – 1979) 
Publicado originalmente em 1964 pela 
Editora Pensamento 
Digitalizada por: 
L. Neilmoris 
© 2009 ­ Brasil 
www.luzespirita.org.br
3 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
J. Herculano Pires 
O ESPÍRITO 
E O TEMPO
4 – J. Herculano Pires 
CONVITE: 
Convidamos você, que teve a opor tunidade de ler  livremente esta obra, a 
par ticipar  da nossa campanha de 
SEMEADURA DE LETRAS, 
que consiste em cada qual comprar um livro espír ita, 
ler  e depois presenteá­lo a outr em,colaborando assim na 
divulgação do Espir itismo e incentivando as pessoas à boa leitura. 
Essa ação, cer tamente, r enderá ótimos frutos. 
Abraço fr aterno e muita LUZ para todos! 
www.luzespirita.org.br
5 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
Índice 
Preliminares – pag. 8 
1ª Parte – Fase pré­histór ica – pag. 11 
I – Horizonte tribal e mediunismo primitivo 
II – Horizonte agrícola: animismo e culto dos ancestrais 
III – Horizonte civilizado: mediunismo oracular 
IV – Horizonte profético: mediunismo bíblico 
V – Horizonte espiritual: mediunidade positiva 
2ª Parte – Fase histór ica – pag. 59 
I – Emancipação espiritual do homem 
II – Ruptura dos arcabouços religiosos 
III – A invasão espiritual organizada 
IV – Antecipações doutrinárias 
V – a falange do consolador 
3ª Parte – Doutr ina Espír ita – pag. 107 
I – O triângulo de Emmanuel 
II – A ciência admirável 
III – A filosofia do Espírito 
IV – Religião em espírito e verdade 
V – Mundo de regeneração 
4ª Parte – A prática mediúnica – pag. 157 
I – Pesquisa científica da mediunidade 
II – As leis da mediunidade 
III – Antropologia espírita 
Bibliografia – pag. 194
6 – J. Herculano Pires 
A HELENA, que me fez escrever este livro. 
Aos  companheiros:  URBANO  DE  ASSIS 
XAVIER, ANSELMO GOMES e EURÍPIDES SOARES 
DA ROCHA que  empregaram o  tempo no estudo destes 
problemas, e hoje o prosseguem, no fluir da duração.
7 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
“A  História,  que  é  essencialmente  História  do  Espírito, 
transcorre ‘no tempo’. Assim, pois, ‘o desenvolvimento do espírito 
cai  no  tempo’.  Hegel,  porém,  não  se  contenta  em  afirmar  a 
‘intratempo­racialidade’ do espírito como um factum, mas trata de 
compreender a possibilidade de que o espírito caia no tempo, que é 
o ‘sensível não­sensível’. O tempo há de poder acolher o espírito, 
por  assim dizer. E  o  espírito  há  de  ser,  por  sua  vez, afim com o 
tempo e com a sua essência.” 
HEIDEGGER, crítica de Hegel, em O SER E O TEMPO.
8 – J. Herculano Pires 
PRELIMINARES 
Um século após a codificação do Espiritismo por Allan Kardec, reina ainda 
grande  incompreensão  a  respeito  da  doutrina,  de  sua  própria  natureza  e  de  sua 
finalidade.  A  codificação,  entretanto,  foi  elaborada  em  linguagem  clara,  precisa, 
sensível a todos. A lucidez natural do espírito francês, Kardec juntava a sua vocação 
e  a  sua  experiência  pedagógicas,  além  da  compreensão  de  tratar  com  matéria 
sumamente  complexa.  Vemo­lo  afirmar,  a  cada  passo,  que  desejava  escrever  de 
maneira  a  não  deixar  margem  para  interpretações,  ou  seja,  para  divergências 
interpretativas. Qual  o motivo,  então,  por  que  os  próprios  adeptos  do Espiritismo, 
ainda hoje, divergem, no  tocante a questões doutrinárias de  importância? E qual o 
motivo  por  que  os  não­espíritas  continuam  a  tratar  o  Espiritismo  com  a  maior 
incompreensão? Note­se que não nos referimos a adversários, pois estes têm a sua 
razão, mas aos “não­espíritas”. Parece­nos que a explicação, para os dois casos, é a 
mesma. O Espiritismo é uma doutrina do  futuro. À maneira do Cristianismo, abre 
caminho  no  mundo,  enfrentando  a  incompreensão  de  adeptos  e  não­adeptos.  Em 
primeiro  lugar,  há  o  problema  da  posição  da  doutrina.  Uns  a  encaram  como 
sistematização de velhas superstições; outros, como tentativa frustrada de elaboração 
científica; outros, como ciência infusa, não organizada; outros ainda, como esboço 
impreciso de filosofia religiosa; outros, como mais uma seita, entre as muitas seitas 
religiosas do mundo. 
Para a maioria de adeptos e não­adeptos, o Espiritismo se apresenta como 
simples  “crença”,  espécie  de  religião  e  superstição,  ao  mesmo  tempo,  eivada  de 
resíduos  mágicos.  Ao  contrário  de  tudo  isso,  porém,  o  Espiritismo,  segundo  a 
definição de Kardec e dos seus principais continuadores, constitui a última fase do 
processo  do  conhecimento.  Última,  não  no  sentido  de  fase  final,  mas  da  que  o 
homem pôde atingir até agora, na sua lenta evolução através do tempo. É evidente 
que  se  trata  do  conhecimento  em  sentido  geral,  não  limitado  a  um  determinado 
aspecto,  não  especializado.  Nesse  sentido  geral,  o  Espiritismo  aparece  como  uma 
síntese dos  esforços humanos para compreensão do mundo e da  vida.  Justifica­se, 
assim, que haja dificuldade para a sua compreensão, apesar da clareza da estrutura 
doutrinária da codificação. De um lado, o povo não pode abarcá­lo na sua totalidade, 
contentando­se com o seu aspecto religioso; de outro, os especialistas não admitem a
9 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
sua  natureza­sintética;  e  de  outro,  ainda,  os  preconceitos  culturais  levantam 
numerosas objeções aos seus princípios. 
No capítulo primeiro de A GÊNESE, número XVIII, Kardec explica que o 
Espiritismo,  do  ponto  de  vista  científico,  tem  por  objeto  um  dos  dois  elementos 
constitutivos  do  universo,  que  é  o  espírito.  O  outro  elemento  é  a matéria.  Como 
ambos  se  entrelaçam,  para  a  constituição  do  todo  universal,  o  Espiritismo  “toca 
forçosamente  na  maioria  das  ciências”,  ou  seja,  está  necessariamente  ligado  ao 
desenvolvimento  das  ciências.  Assim  sendo,  esclarece  o  codificador:  “Ele  não 
poderia aparecer senão depois da elaboração delas, e surgiu por força das coisas, da 
impossibilidade de tudo explicar­se somente com a ajuda das leis da matéria”. Léon 
Denis, sucessor e continuador de Kardec, observa em seu livro LE GENIE CELTIQUE 
ET LE MONDE INVISIBLE, o seguinte: “Pode dizer­se que a obra do Espiritismo é 
dupla: no plano terreno, ela tende a reunir e a fundir, numa síntese grandiosa, todas 
as  formas,  até  aqui  dispersas  e  muitas  vezes  contraditórias,  do  pensamento  e  da 
ciência. Num plano mais  amplo,  une  o visível  e  o  invisível,  essas duas  formas  da 
vida,  que,  na  realidade,  se  interpenetram  e  se  completam,  desde  o  princípio  das 
coisas”.  Logo  a  seguir,  como  prevenindo  a  objeção  de  dualismo  que  se  poderia 
fazer, Denis acentua: “No seu desenvolvimento, ele demonstra que o nosso mundo e 
o Lado­de­Lá não estão separados, mas entrosados um no outro, constituindo assim 
um todo harmônico”. 
Os  estudantes  de  Espiritismo  sabem  que  muitos  outros  trechos,  tanto  de 
Kardec  quanto  dos  seus  seguidores,  podem  ser  citados,  para  se  afirmar  a  tese  da 
natureza sintética da doutrina, bem como a sua posição, de última fase do processo 
do conhecimento. Lembramos particularmente a definição da doutrina em O QUE É 
O  ESPIRITISMO,  de  Kardec,  sobre  a  qual  voltaremos  mais  tarde.  Basta­nos,  no 
momento, esta colocação do problema, para justificar a nossa tentativa de oferecer 
uma visão histórica do desenvolvimento espiritual do homem, como a  forma mais 
apropriada de introdução ao estudo da doutrina. 
Foi o próprio Kardec quem criou a disciplina que procuramos desenvolver 
neste curso, tanto com a INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA DOUTRINA ESPÍRITA, que 
abre O LIVRO DOS ESPÍRITOS,  quanto  com o PRINCIPIANTE ESPÍRITA. O  nosso 
curso  não  dispensa,  antes  requer  o  estudo  desses  trabalhos  do  codificador. Mas  é 
evidente  que  a  introdução  a  qualquer  ramo  do  conhecimento,  como  explica  o 
filósofo  Julián Marias, no  caso  particular  da  Introdução  à Filosofia,  exige  sempre 
novas perspectivas, de acordocom o fluir do tempo. A introdução, diz Marias, é o 
“agora”, o circunstancial, o ato de introduzir alguém em alguma coisa. Essa alguma 
coisa,  seja  a  Filosofia  ou  seja  o Espiritismo,  é  uma realidade  histórica,  uma  coisa 
que  existe  de  maneira  concreta.  Sendo  o  Espiritismo  uma  realidade  histórica, 
afirmada pelo codificador e seus sucessores, tem ele o seu passado e o seu presente, 
como terá o seu futuro.
10 – J. Herculano Pires 
No  tempo  de  Kardec,  introduzir  alguém  no  estudo  do  Espiritismo  era 
introduzi­lo  numa  realidade  nascente,  numa  verdadeira  problemática  em  ebulição, 
num  processo  histórico  em  princípio  de  definição,  e  principalmente  “numa  nova 
ordem de  ideias”. Hoje,  é  introduzir esse alguém num processo  já definido, e não 
apenas numa ordem de ideias, mas também no quadro histórico em que essa ordem 
surgiu. Dessa maneira, é introduzi­lo também na própria introdução de Kardec. Esse 
o motivo por que escrevemos, para a nossa tradução de O LIVRO DOS ESPÍRITOS, 
editado  pela  LAKE,  uma  introdução  à  obra.  Sem  o  exame  histórico  do  problema 
mediúnico,  por  exemplo,  os  estudantes  de  hoje  estarão  ameaçados  de  flutuar  no 
abstrato. Introduzindo­se numa ordem de ideias, sem o conhecimento de suas raízes 
históricas,  arriscam­se  a  confundir,  como  fazem  os  leigos,  mediunismo  e 
Espiritismo,  ou  seja,  o  processo  mediúnico  de  desenvolvimento  espiritual  do 
homem,  com  o  Espiritismo.  Arriscam­se,  ainda  mais,  a  aturdir­se  com  fatos 
mediúnicos  rudimentares,  considerando­os,  por  sua  aparência  extravagante,  como 
novidade.  Por  outro  lado,  dificilmente  compreenderão  a  aparente  contradição 
existente no fato de ser o Espiritismo, ao mesmo tempo, uma doutrina moderna e um 
processo  histórico  provindo  das  eras mais  remotas da humanidade. Existe  ainda  o 
problema  religioso,  e  particularmente  o  das  ligações  do  Espiritismo  com  o 
Cristianismo, que somente uma introdução histórica pode esclarecer. 
Por  tudo  isso,  foi  que  nos  propusemos  a  dar  este  curso —  a  convite  da 
União  da Mocidade Espírita  de S.  Paulo —,  a  partir  do “horizonte  primitivo”,  ou 
seja, das manifestações mediúnicas entre os homens primitivos, examinando as fases 
históricas que nos conduziram até ao momento presente. Para isso, servimo­nos da 
bibliografia doutrinária, como fundamental, e de outros livros, de reconhecido valor 
cultural,  como  subsidiários.  Daremos  a  indicação  bibliográfica,  para  facilitar  aos 
interessados maior aprofundamento do assunto.
11 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
I PARTE 
FASE PRÉ­HISTÓRICA
12 – J. Herculano Pires 
CAPÍTULO I 
HORIZONTE TRIBAL E 
MEDIUNISMO PRIMITIVO 
1 – Mediunismo e Espiritismo 
As  ciências  sociais  têm  uma  grande  contribuição  a  dar  ao  estudo  do 
Espiritismo.  Quem  viu  isso  com  mais  clareza,  segundo  nos  parece,  foi  Ernesto 
Bozzano. O grande discípulo italiano de Herbert Spencer, profundamente ligado ao 
desenvolvimento  dos  estudos  sociológicos,  uma  vez  atraído  para  o  campo  dos 
estudos espíritas, soube aplicar a este o conhecimento adquirido em outros campos. 
Seus  trabalhos  sobre  as  manifestações  supranormais  entre  os  povos  selvagens, 
publicados na revista milanesa “Luce e Ombra”, em 1926, posteriormente reunidos 
no  livro  POPOLI  PRIMITIVI  E  MANIFESTAZIONI  SUPERNORMALI,  representam 
uma das mais poderosas contribuições para o esclarecimento histórico do problema 
espírita. Kardec já havia esclarecido que os  fatos espíritas são de todos os tempos, 
uma vez que a mediunidade é uma condição natural da espécie humana. Mas é com 
Bozzano  que  temos  a  primeira  penetração  espírita  no  exame  antropológico  e 
sociológico  do  homem  primitivo,  revelando­nos,  com  base  em  investigações 
científicas, as  formas  pré­históricas  do  fenômeno mediúnico. Aliás,  os  estudos  de 
Bozzano  levam­nos  mais  longe,  pois  revelam  também  as  origens  mediúnicas  da 
religião. 
Temos assim uma teoria espírita da gênese da crença na sobrevivência, que 
se apresenta como uma síntese das teorias opostas da teologia e da sociologia. Para 
maior clareza do nosso estudo, servimo­nos do esquema que nos fornece o chamado 
“método cultural”, dos antropólogos ingleses, aplicado por John Murphy, com pleno 
êxito, em seus estudos sobre as origens e a história das religiões. Método usado na 
antropologia cultural e no estudo das religiões comparadas, aplica­se perfeitamente 
às  necessidades  de  clareza  do  nosso  estudo.  Seu  esquema  é  constituído  pelos 
“horizontes  culturais”,  dentro  dos  quais  o  desenvolvimento  humano  pode  ser 
analisado na amplitude de cada uma das suas fases. É evidente que não vamos muito 
além do esquema. Nosso intuito não é o estudo antropológico, nem o das religiões 
comparadas,  mas  apenas  o  esclarecimento  do  problema  espírita.  Os  “horizontes 
culturais”  são  os meios  em que  se  desenvolveram as  diferentes  fases  da  evolução 
humana.
13 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
A expressão é metafórica. Chama­se, por exemplo, “horizonte primitivo”, o 
mundo do homem primitivo. A palavra horizonte mostra que devemos encarar esse 
homem dentro  dos  limites  da nossa  visão,  de  todas  as  condições  do meio  físico  e 
social  em que  ele  vivia, na  paisagem cultural  fechada  pelos  horizontes  do mundo 
primitivo.  Podemos  assim  examinar  cada  fase  em  seu meio,  cada  homem em  seu 
mundo, compreendendo­os melhor. 
O  estudo  de  Bozzano,  embora  anterior  a  esse método,  integra­se  nele.  O 
“horizonte  primitivo”  é  geralmente  dividido  em  três  formas:  o  primitivo 
propriamente  dito,  o anímico  e  o  agrícola. Em nosso  esquema,  reduzimos  as  duas 
primeiras formas a uma única: o “horizonte tribal”, que nos permite abranger numa 
visão  geral  o  problema  mediúnico  do  homem  primitivo,  e  destacamos  a  terceira 
forma,  dando­lhe  autonomia.  Isso  porque  o  “horizonte  agrícola”  tem  interesse 
especial no tocante à mediunidade. 
Assim,  nosso  esquema  da  fase  pré­histórica  do  Espiritismo  é  o  seguinte: 
horizonte  tribal,  agrícola,  civilizado,  profético  e  espiritual.  Até  o  “horizonte 
profético”,  segundo  Murphy.  O  “horizonte  espiritual”  é  uma  formulação  nova, 
exigida  pelo  Espiritismo.  O  horizonte  tribal  caracteriza­se  pelo  mediunismo 
primitivo. Adotamos  a  palavra mediunismo,  criada  por Emmanuel  para  designar a 
mediunidade  em  sua  expressão  natural,  pois  é  evidente  que  ela  corresponde  com 
precisão ao nosso objetivo. Mediunismo são as práticas empíricas da mediunidade. 
Dessa  maneira,  temos  as  formas  sucessivas  do  mediunismo  primitivo,  do 
mediunismo oracular e do mediunismo bíblico, só atingindo a mediunidade positiva 
no horizonte espiritual, que surge com o Espiritismo. Somente com o Espiritismo a 
mediunidade  se  define  como  uma  condição  natural  da  espécie  humana,  recebe  a 
designação  precisa  de  “mediunidade”  e  passa  a  ser  tratada  de maneira  racional  e 
científica.  Convém  deixar  bem  clara  a  distinção  entre  fatos  espíritas  e  doutrina 
espírita, para compreendermos o que Kardec dizia, ao afirmar que o Espiritismo está 
presente em todas as fases da história humana. Os fatos espíritas — assim chamados 
os  fenômenos  ou  as  manifestações  mediúnicas  —  são  de  todos  os  tempos.  As 
práticas  mágicas  ou  religiosas,  baseadas  nessas  manifestações,  constituem  o 
Mediunismo, pois são práticas mediúnicas. A doutrina espírita é uma interpretação 
racional  das  manifestações  mediúnicas.  Doutrina  ao  mesmo  tempo  científica, 
filosófica  e  religiosa,  pois  nenhum  desses  aspectos  pode  ser  esquecido,  quando 
tratamos  de  fenômenos  que  se  relacionam  com  a  vida  do  homem  na  terra  e  sua 
sobrevivência após a morte, sua vida e seu destino espiritual. É enorme a confusão 
feita pelos sociólogos neste assunto, seguindode maneira desprevenida a confusão 
proposital feita pelos adversários do Espiritismo. 
Os estudos sociológicos do mediunismo referem­se sempre ao espiritismo. 
Entretanto, a palavra Espiritismo, criada por Allan Kardec, em 1857, e por ele bem 
explicada na introdução de O LIVRO DOS ESPÍRITOS, designa uma doutrina por ele
14 – J. Herculano Pires 
elaborada,  com  base  na  análise  dos  fenômenos  mediúnicos  e  graças  aos 
esclarecimentos que os Espíritos lhe forneceram, a respeito dos problemas da vida e 
da  morte.  As  práticas  do  chamado  “sincretismo  religioso  afro­brasileiro”,  por 
exemplo,  não  são  espíritas.  O  sincretismo  religioso  é  um  fenômeno  sociológico 
natural.  O  Espiritismo  é  uma  doutrina.  Defrontamo­nos,  neste  ponto,  com  uma 
complexidade que também tem dado margem a confusões. Os fatos mediúnicos são 
fatos  espíritas,  assim  chamados  pelo  próprio  Kardec,  mas  não  são  Espiritismo. 
Porque  o  Espiritismo  se  serve  dos  fatos mediúnicos  como  de  uma matéria­prima, 
para a elaboração de seus princípios, ou como de uma força natural, que aproveita de 
maneira racional. Exatamente como a hidráulica se serve das quedas d’água ou do 
curso dos rios para a produção de energia. 
Esclarecidos  estes  pontos;  podemos  passar  à  análise  dos  fenômenos 
mediúnicos no horizonte tribal. 
2 – Origem sensória da crença na sobrevivência 
Bozzano  apóia­se  especialmente  nas  pesquisas  do  antropólogo  Andrew 
Lang e do etnólogo Max Freedom Long, realizadas entre as tribos da Polinésia, para 
mostrar a existência dos  fenômenos espíritas no horizonte  tribal. Serve­se  também 
de outras fontes, não esquecendo os estudos de seu mestre Herbert Spencer. Andrew 
Lang é o autor da tese espírita da origem mediúnica da religião, tese que lançou em 
seu  livro  THE  MAKING  OF  RELIGION.  Bozzano  esposa  essa  tese  e  procura 
esclarecê­la,  confrontando­a  com  a  tese  spenceriana,  na  qual  encontra,  aliás,  os 
germes da explicação espírita do problema. A primeira afirmação de Bozzano é a da 
universalidade da crença na sobrevivência. Vejamos como  ele  inicia o seu  estudo: 
“Se  consultamos as obras dos mais eminentes antropólogos e  sociólogos, notamos 
que  todos  concordam  em  reconhecer  que  a  crença  na  sobrevivência  do  espírito 
humano se mostra universal”. 
Esse  fato  é  confirmado  por  várias  citações  textuais.  A  seguir,  Bozzano 
analisa as explicações que lhe dão os sociólogos e antropólogos, para concluir pela 
inoperância das mesmas. Somente Spencer encontra intuições seguras, que são mais 
tarde desenvolvidas por Lang. Este realizou um trabalho de análise comparada dos 
fenômenos do mediunismo primitivo com as experiências metapsíquicas, concluindo 
pela  realidade  daqueles  fenômenos,  que  constituem  a  base  concreta  da  crença  na 
sobrevivência. O primeiro fato concreto a surgir no horizonte primitivo, no tocante a 
esse problema, é o da existência de uma força misteriosa que  impregna ou  imanta 
objetos e coisas, podendo atuar sobre criaturas humanas. É a força conhecida pelos 
nomes polinésicos de mana e orenda. Considerada em geral como imaginária, essa 
força  produz  os mais  estranhos  fenômenos. Bozzano  lembra  a  resposta  de Marcel
15 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
Habert a Goblet D'Alviella,  sobre a natureza  imaginária dessa  força. Dizia Habert: 
“Passa­me  pela mente  uma  nuvem  de  dúvida.  Mana  e  Orenda  não  seriam  talvez 
concepções  demasiado  abstratas,  para  podermos  considerá­las  o  princípio  de  que 
partiram os selvagens, para chegar aos espíritos?” A dúvida de Habert é considerada 
por Bozzano “fundamental  e  psicologicamente”  justa,  uma vez  que  conhecemos  a 
natureza  concreta  do  pensamento  primitivo,  incapaz  dos  processos  de  abstração 
mental  que  caracterizam  o  homem  civilizado. Mana  ou  Orenda  não  é  uma  força 
imaginária, mas uma força real, concreta, positiva, que se afirma através de ampla 
fenomenologia,  verificada  entre  as  tribos  primitivas,  nas mais  diversas  regiões  do 
mundo.  Essa  força  primitiva  corresponde  ao  ectoplasma  de  Richet,  a  força  ou 
substância  mediúnica  das  experiências  metapsíquicas,  cuja  ação  foi  estudada 
cientificamente  por  Crawford,  professor  de  mecânica  da  Universidade  Real  de 
Belfast, na Irlanda. O método comparativo, seguido por Lang, oferece­nos aí o seu 
primeiro resultado. A imaginária força dos selvagens encontra similar nas pesquisas 
dos  sábios  europeus  e  americanos,  empenhados  nos  estudos  espíritas  e 
metapsíquicos. 
O  etnólogo  Max  Freedom  Long,  que  era  também  mitólogo,  realizou 
demoradas  pesquisas  entre  as  tribos  da  Polinésia,  e  particularmente  das  ilhas  do 
Havaí,  convivendo  durante  anos  com  os  selvagens,  para  verificar  a  realidade  e  a 
natureza  dessa  força  primitiva.  Conclui  que  os  kahunas,  curandeiros  polinésios, 
consideravam  a  existência  de  três  formas  de  Mana,  ou  três  frequências,  três 
voltagens  dessa  força,  à  semelhança  da  corrente  elétrica.  A  mais  baixa  voltagem 
correspondia à força emitida pelos corpos materiais do cristal ao organismo humano; 
a  voltagem  média,  à  proveniente  da  mente  humana;  e  a  voltagem  superior,  à 
proveniente  de  uma  espécie  de  centro  espiritual  da mente  humana,  permitindo  ao 
homem  prever  o  futuro  e  realizar  fenômenos  físicos  a  distância,  bem  como 
materialização e desmaterialização de objetos. Outra curiosa conclusão de Freedom 
Long  é  a  de  que  os  kahunas  consideravam  essa  força  como  susceptível  de 
acumulação.  Os  curandeiros,  que  usavam  de  feitiçaria,  podiam  prender  espíritos 
inferiores  que,  a  seu  mando,  faziam  provisões  de  Mana  para  atuar  em  ocasiões 
oportunas.  Bozzano  mostra  que  as  conclusões  do  etnólogo  correspondem  às  de 
Andrew  Lang  e  aos  relatos  e  observações  de  numerosos  outros  estudiosos  do 
assunto, bem como de viajantes e missionários que conviveram com tribos diversas, 
em  diferentes  épocas  e  várias  regiões  do  globo.  Por  outro  lado,  estabelece  as 
relações entre essa força e o ectoplasma, o que também fizera Freedom Long. 
O  segundo  fato  concreto,  de  ordem  espírita,  do  horizonte  tribal,  é  o  da 
existência dos próprios espíritos, também universalmente afirmada. Antropólogos e 
etnólogos  costumam  estabelecer  arbitrariamente  certa  distância  de  tempo  entre  o 
aparecimento  de  um  e  outro  fato.  Bozzano,  entretanto,  rejeita  essa  tese,  para 
sustentar a simultaneidade de ambos. Lembra que nenhuma pesquisa ou observação
16 – J. Herculano Pires 
revelaram essa pretensa sucessão dos fatos, e assevera. “A verdade, pelo contrário, é 
que essas duas concepções aparecem sempre associadas”. Uma das provas está nas 
próprias conclusões de Freedom Long, onde vemos os espíritos operarem através de 
mana,  ou  seja,  servindo­se  dessa  força. A  coexistência  das  duas  concepções,  a  da 
força misteriosa  e  a  dos  espíritos,  impõe­se  também  diante  da multiplicidade  dos 
fenômenos mediúnicos no meio primitivo, onde, como acentua Bozzano, a presença 
de  “agentes  espirituais”  se  impunha,  de  maneira  positiva.  Vemos,  assim,  que  as 
superstições dos selvagens, as suas práticas mágicas, não eram nem podiam ser de 
natureza abstrata, imaginária. Decorriam, como tudo na vida primitiva, de realidades 
positivas e de fatos concretos, conhecidos naturalmente dos selvagens, como sempre 
foram e são conhecidos dos homens civilizados, em todas as épocas e em todas as 
latitudes da terra. Somente nos momentos de grande refinamento intelectual, quando 
os homens constroem o seu mundo próprio, de abstrações mentais, e se encastelam 
nas suas tentativas de explicação racional das coisas, é que essas realidades passam a 
ser negadas, por uma reduzida elite. O materialismo é, portanto, uma espécie de flor 
de estufa, artificial,  cultivada em compartimentosde vidro, que  isolam a mente da 
realidade  complexa  da  natureza.  O  aparecimento  desses  dois  fatos  espirituais  no 
horizonte  primitivo  —  a  ação  de  uma  força  misteriosa  e  a  ação  de  entidades 
espirituais  —  deve  ser  considerado,  entretanto,  juntamente  com  o  problema  do 
antropomorfismo. 
De  uma  posição  positivista,  como  a  que  Bozzano  assumia,  antes  de  se 
tomar  espírita,  esses  dois  fatos  se  explicariam  pelo  próprio  antropomorfismo.  De 
uma  posição  espírita,  entretanto,  tal  explicação  se  toma  insuficiente.  Porque  o 
antropomorfismo  é  a  característica  psíquica  do  mundo  primitivo,  a  maneira 
rudimentar  de  interpretação  da natureza  pelo  homem. Reduzir  todo  o  processo  da 
vida primitiva a esse psiquismo nascente, limitá­lo apenas à mente embrionária de 
criaturas semi­animais, é um simplismo que o Espiritismo rejeita. 
3 – Da litolatria ao politeísmo mitológico 
O antropomorfismo é uma espécie de fase preparatória do animismo. A fase 
em que o homem primitivo ainda não desenvolveu suficientemente o seu psiquismo, 
e em que interpreta todas as coisas em termos exclusivamente humanos. Quer dizer, 
aplica  ao  exterior  as  noções  rudimentares  que  possui  da  natureza  humana,  dando 
forma humana aos elementos naturais. 
Podíamos  aplicar­lhe  o  principio  de Protágoras,  o  sofista: “O homem é  a 
medida de todas as coisas”. Mas uma medida por assim dizer afetiva, sem o controle 
da razão. É pelo sentimento, e não pelo raciocínio, que o homem primitivo humaniza 
o mundo.
17 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
Estamos certamente no alvorecer da razão, e mais do que isso, no subsolo 
do processo do conhecimento. As teorias materialistas não enxergam nada mais do 
que a luta dessa razão nascente com o mundo exterior. Para elas, as manifestações 
supranormais  não  são  outra  coisa  além  de  projeções  desse  poder  psíquico,  visões 
alucinatórias  da  mente  primitiva.  Murphy,  citando  Rodolfe  Otto,  lembra  que 
estamos  diante  de  um processo  de  adoração  rudimentar,  em que  o  homem parece 
adorar­se a si mesmo nas coisas exteriores. Veremos como o antropomorfismo, por 
este aspecto, se enquadra na “lei de adoração”, que Kardec estuda em O LIVRO DOS 
ESPÍRITOS.  O  antropomorfismo  se  revela  por  duas  formas,  que  tanto  podem  ser 
sucessivas  como  simultâneas,  o  que  é  difícil  precisar.  Admitindo  que  sejam 
sucessivas,  podemos  citar  como  primeira  forma  a  vital,  ou  seja,  aquela  em  que  o 
homem primitivo  projeta  nas  coisas  o  seu  sentimento  vital,  dando  vidas  às  coisas 
inanimadas. 
A segunda forma é a volitiva, esse “segundo grau do antropomorfismo”, de 
acordo  com Murphy,  em que  o  homem projeta  também a sua  vontade,  e  por  isso 
mesmo personaliza as coisas. Neste grau já nos defrontamos com o desenvolvimento 
do animismo, a fase em que o homem vai dar não apenas vida e vontade aos objetos 
e coisas, mas a sua própria alma. Bozzano já nos mostrou o absurdo de admitir­se 
um processo  tão  complexo de abstração mental em homens primitivos. Somente a 
tese espírita pode, portanto, socorrer as teorias materialistas, que tateiam no caminho 
certo, mas não conseguem firmar­se nele. A tese espírita nos mostra que o processo 
do  antropomorfismo  é  auxiliado  pelos  fenômenos  mediúnicos.  O  simplismo  da 
projeção anímica nas coisas exteriores complica­se, com a resposta dessas coisas ao 
homem,  através  da  ação  natural  dos  espíritos. É  evidente  que  o  homem primitivo 
tem de  interpretar as coisas de acordo com as suas experiências vitais. A razão se 
forma  na  experiência.  O  homem  enquadra  o  mundo  nas  categorias  nascentes  da 
razão,  enche  essas  categorias,  como  queria Kant,  com  o  conteúdo  das  sensações. 
Mas as categorias, como explica hoje o Relativismo Crítico, e particularmente René 
Hubert,  não  são  fixas  ou  estáticas,  mas  dinâmicas.  São  a  própria  experiência  em 
movimento, e não um resultado da experiência. E essa experiência implica os fatos 
supranormais, o contato do homem primitivo com forças estranhas, como no caso de 
mana ou orenda, e com os “agentes espirituais” de que fala Bozzano. 
Podemos formular uma verdadeira escala da adoração no mundo primitivo. 
Embora  seus  graus  possam  ser  simultâneos  e  não  sucessivos,  o  simples  fato  de 
existirem esses graus, mostra que a adoração, resultando de um sentimento inato no 
homem,  desenvolve­se  num  verdadeiro  processo.  No  grau  mais  baixo,  temos  a 
litolatria  ou  adoração  de  pedras,  rochas  e  relevos  do  solo;  no  grau  seguinte,  a 
fitolatria  ou  adoração  vegetal,  de  plantas,  flores,  árvores  e  bosques;  logo  acima, a 
zoolatria  ou  adoração  de  animais;  e  somente  num grau mais  elevado,  a mitologia 
propriamente dita, com a sua forma clássica de politeísmo. O processo da adoração
18 – J. Herculano Pires 
se desenvolve, assim, a partir do reino mineral até o humano ou hominal. Cada uma 
dessas fases é ligada à outra por uma interfase, em que os elementos de adoração se 
misturam. E os resíduos das várias fases, desde a litolátrica, permanecem ainda nos 
sistemas  religiosos  da  atualidade.  O  homem  carrega  consigo  as  suas  heranças, 
através  do  tempo.  Se  encararmos  todo  esse  processo  dentro  apenas  da  teoria  do 
antropomorfismo, ou mesmo do animismo, será difícil ou impossível explicar a sua 
persistência nas  fases  superiores  do  desenvolvimento humano.  Porque  o  natural,  e 
até mesmo o dialético, no desenvolvimento, é o homem libertar­se progressivamente 
daquilo  que  o  ajudou  numa  fase  e  o  atrapalha  em  outra.  A  persistência  do 
antropomorfismo  e  do  animismo,  nas  próprias  elites  culturais  da  atualidade, 
demonstra  que neles havia alguma  coisa além da  simples projeção  do  homem nas 
coisas. Essa “alguma coisa”, como já vimos, é a presença dos “agentes espirituais” 
atuando  incessantemente  sobre  o  homem e as  comunidades humanas,  em  todas as 
fases da pré­história e da história. 
Kardec  dedicou  o  segundo  capítulo  da  terceira  parte  de  O  LIVRO  DOS 
ESPÍRITOS  à  Lei  da  Adoração.  Os  Espíritos  Superiores,  que  o  ajudaram 
mediunicamente na elaboração do livro, ensinaram­lhe que “a adoração é o resultado 
de um sentimento inato no homem”, como o sentimento da existência da divindade. 
Acrescentaram  que  ela  faz  parte  da  lei  natural,  ou  seja,  do  conjunto  de  forças 
naturais que constituem o mundo, ao qual o homem naturalmente pertence. A seguir, 
mostraram como a lei de adoração se desenvolve nas sociedades humanas, a partir 
da  adoração  exterior  de  objetos  materiais,  até  atingir  aquela  fase  superior  que 
definiram  com estas  palavras:  “A verdadeira  adoração  é  a  do  coração”.  Já  vimos, 
anteriormente,  que  esses  ensinamentos  espirituais  concordam  com  a  interpretação 
antropológica de Murphy e Rodolfe Otto, de que o antropomorfismo é uma forma de 
“adoração rudimentar”. 
Lembremos  ainda,  para  evitar  confusões,  que  os  Espíritos  não  falavam a 
Kardec  por  meio  de  visões  ou  de  outras  formas  místicas  de  revelação.  Quando 
dizemos  que  os  Espíritos  Superiores  ajudaram  Kardec  a  elaborar  O  LIVRO  DOS 
ESPÍRITOS, os chamados “homens cultos” costumam torcer o nariz, lembrando que 
também  a  Bíblia,  os  Evangelhos  e  o  Alcorão  foram  ditados  por  Deus  ou  por 
Espíritos.  Acontece,  porém,  que  as  antigas  escrituras  pertencem  às  fases  do 
mediunismo  empírico,  enquanto  a  codificação  espírita  pertence  à  fase  da 
mediunidade  positiva.  Os  Espíritos  Superiores  (superiores  em  conhecimento  e 
refinamento espiritual, precisamente como os homens superiores), conversavam com 
Kardec  e  o  auxiliavam  através  da  prática  mediúnica.  Quer  dizer:  através  de 
comunicações mediúnicas sujeitas a controle, e não de revelações místicas, aceitas 
de  maneira  emotiva.  Por  outro  lado,  quandoacentuamos  a  natureza  racional  do 
Espiritismo,  não  negamos  o  valor  do  sentimento.  O  velho  debate  filosófico  entre 
razão  e  sentimento,  traduzido  no  plano  religioso  pelo  dualismo  de  razão  e  fé,
19 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
encontra no Espiritismo a sua solução natural, pelo equilíbrio de ambos, na fórmula 
clássica de Kardec: “a fé raciocinada”. 
No  estudo  do  antropomorfismo,  com  suas  formas  rudimentares  de 
adoração, encontramos todo um esquema elucidativo do velho e debatido problema. 
Razão e fé se apresentam como as formas de contradição de um processo dialético. 
4 – Ampliação da teoria de Spencer  
O materialismo  do  século XVIII  negou  a  ação  dos  “agentes  espirituais”, 
tanto  sobre  as  comunidades  primitivas,  quanto  sobre  as  coletividades  civilizadas. 
Bozzano,  que  foi  positivista  durante  anos,  explicava  a  crença  na  sobrevivência 
através  da  teoria  de  Spencer,  o  filósofo  que  chegou  a  considerar  como  um 
Aristóteles moderno.  Em  que  pese  toda  essa  admiração,  a  realidade  inegável  dos 
fatos espíritas mostrou a Bozzanoque a tese spencereana estava errada, que não era 
possível  explicar­se  a  gênese  da  crença  universal  na  sobrevivência  por  alguns 
fenômenos  comuns,  sensoriais,  que  exigiriam  do  homem  primitivo  uma 
reelaboração  mental,  no  plano  abstrato.  Não  obstante,  Bozzano  reconheceu  que 
Spencer “pusera os pés no caminho certo”. Chega a ser emocionante a maneira por 
que  o  antigo  discípulo  corrige  o  mestre,  reconhecendo­lhe  os  méritos.  Entende 
Bozzano  que  faltou  a  Spencer  o  conhecimento  das  experiências  metapsíquicas. 
Dessa maneira, o gênio de Spencer viu­se  obrigado a  tatear no plano das ciências 
materiais.  Apesar  disso,  precisamente  por  ser  um  gênio,  Spencer  tocou  no  ponto 
central  do  problema,  indicando  os  rumos  certos  de  sua  solução.  A  crença  na 
sobrevivência  decorre  de  experiências  concretas  do  homem  primitivo,  e  não  de 
formulações  do  pensamento  abstrato.  Sua  origem  está  nas  sensações,  e  não  na 
cogitação filosófica. Esse o ponto central, que Spencer soube ver. Usando o método 
comparativo,  Bozzano  mostra  como  a  tese  de  Spencer  pode  ser  desdobrada  ou 
ampliada,  com  o  acréscimo  dos  fatos  metapsíquicos,  para  tomar­se  plenamente 
verdadeira. Vejamos como isso é possível. 
As  origens  da  crença  na  sobrevivência,  para  Spencer,  são  estes  fatos 
comuns da vida primitiva: o sonho, quando o selvagem se sentia liberto do corpo e 
agindo  em  lugar  distante;  a  sombra  que  o  seguia  nas  caminhadas  ao  sol  e  a  sua 
imagem refletida na água, quando se debruçava nas bordas de um lago; o eco de sua 
voz,  repetida  pelos  desfiladeiros  e  as  cavernas.  Bozzano  acrescenta,  ao  sonho 
comum,  o  sonho  premonitório,  que  faz  ver  com  antecedência  um  acontecimento 
futuro; ao fenômeno da sombra e do reflexo na água, os fenômenos de vidência, de 
aparição  e  de  materialização  de  espíritos;  ao  eco,  o  fenômeno  da  voz­direta.  E 
acrescenta,  ainda,  à  força  imaginária  de  mana  ou  orenda,  a  prova  concreta  das 
ectoplasmias. Como se vê, a tese spencereana desdobra­se, amplia­se, atingindo os
20 – J. Herculano Pires 
fatos metapsíquicos,  que  escapavam a Spencer. Com essa  ampliação,  a  gênese  da 
crença na  sobrevivência não  deixa  o  terreno  do  concreto, dos  fatos  sensoriais,  em 
que Spencer a colocara. Mas, ao mesmo tempo, o problema da indução, que implica 
o uso do pensamento abstrato, é substituído pela experiência imediata, mais acorde 
com  a  mentalidade  primitiva.  O  selvagem  não  precisava  induzir,  dos  vários 
fenômenos  citados  por  Spencer,  uma  supra­realidade,  pois  esta  se  impunha  a  ele 
através dos fenômenos espíritas ou metapsíquicos, direta e imediatamente. 
Quanto  ao  problema  das  ectoplasmias,  convém  lembrarmos  que  o 
ectoplasma,  emanação  fluídica  do  corpo  do  médium,  é  hoje  uma  realidade, 
cientificamente  comprovada.  Não  somente  as  experiências  clássicas  de  Richet, 
Crookes,  Schrenck­Notzing  e  outros  a  comprovaram,  como  também  e 
principalmente os estudos experimentais do Prof. W. J. Crawford, da Universidade 
de Belfast,  Irlanda, que  já  referimos. Esses  estudos  foram realizados  entre  1914  e 
1920,  com  a  médium  Kathleen  Goligher.  Verificou  Crawford  a  existência  de 
alavancas  de  ectoplasma,  produzindo  os  fenômenos  de  levitação.  Mais  tarde, 
chamou essas alavancas de “estruturas psíquicas”. 
No  TRATADO  DE  METAPSÍQUICA,  entretanto,  Richet  se  refere  a  essas 
estruturas  como  “Alavancas  de  Crawford”.  Gustavo  Geley  realizou  também 
numerosas experiências com o ectoplasma, servindo­se da médium Eva Carrière, a 
mesma  que  realizara  sessões  com  Richet,  em  Argel,  na  casa  do  General  Noel, 
produzindo as excelentes materializações de Bien Boas, um árabe. Richet publicou, 
no “Tratado”, uma fotografia dessas materializações, vendo­se o  fantasma de Bien 
Boas pairando no ar e  ligado por uma “alavanca” ao corpo da médium. Constatou 
Geley,  com o mais  rigoroso critério científico, as  formas de emanação  fluídica do 
ectoplasma, que descreveu como “uma substância esbranquiçada que sai do corpo da 
médium”. Aconselhamos os interessados neste assunto a lerem o capítulo intitulado 
“Ectoplasma”,  do  livro  HISTÓRIA  DO  ESPIRITISMO,  editado  em  português  pela 
Livraria O Pensamento, de S. Paulo, em 1960, em tradução de Júlio Abreu Filho. 
Mas  o  que  nos  interessa,  quanto  ao  ectoplasma,  neste momento,  é  a  sua 
relação  com  as  forças  mágicas  de  mana  ou  orenda.  Além  da  emanação  fluídica 
esbranquiçada, a que se refere Geley,  o ectoplasma apresenta­se  também de  forma 
invisível. Assemelha­se, então, a uma força imponderável,como o magnetismo ou a 
eletricidade. O Prof.  Imoda,  italiano, nas  experiências  de  ideopIastia,  que  realizou 
com a médium Linda Gazzera, em conjugação com Richet, expõe uma curiosa teoria 
das  três  formas  do  ectoplasma:  a  invisível,  a  fluídica­visível  e  a  concreta,  no  seu 
livro  FOTOGRAFIAS  DE  FANTASMAS.  Geley,  por  sua  vez,  constatou  que  o 
ectoplasma, em forma invisível, girava em torno das pessoas, nas sessões, antes da 
produção de fenômenos. O mais curioso, porém, é a comparação dos dados colhidos 
sobre a força mana ou orenda, na Polinésia, por Freedom Long, e as observações do 
Prof.  Crawford,  em  Belfast,  sobre  o  ectoplasma.  Verifica­se  então  a  plena
21 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
correspondência  entre  as  duas  forças.  Os  selvagens  polinésicos  diziam,  como  já 
referimos, que o ectoplasma humano é produzido pela mente. O Prof. Geley afirma, 
por sua vez, que os Espíritos, nas sessões experimentais realizadas por ele e outros 
cientistas,  na  Europa  e  na  América,  agiam  sobre  o  cérebro  dos  médiuns  e  dos 
participantes da reunião, para provocar a emanação do ectoplasma. 
A  observação  vulgar  dos  selvagens,  traduzindo  uma  simples  opinião, 
coincide,  assim,  com  a  observação  científica  de  Geley.  Como  em  tantos  outros 
casos;  a  ciência  confirma,  dessa  maneira,  um  conhecimento  vulgar,  adquirido  na 
experiência  comum.  Provocada  a  emanação,  o  ectoplasma  gira  em  torno  dos 
assistentes, flui em redor do grupo, aumentando pouco a pouco sua intensidade e sua 
força, para a final se dirigir ao médium. Liga­se ao sistema nervoso deste, formando 
aquilo que Geley considera “um suprimento”. É graças a este “suprimento” que os 
Espíritos,  chamados  por Geley  de “operadores”,  conseguem produzir,  em  seguida, 
os vários fenômenos de levitação, movimento de objetos e materialização. A teoria 
científica  do  “suprimento”  de  ectoplasma  corresponde  também  à  “superstição” 
polinésica  de  acumulação  ou  armazenamento  de mana  ou  orenda,  para  operações 
mágicas posteriores. 
Resta  acentuar  que  o  processode  seleção  do médium  e  de  realização  de 
sessões é praticamente o mesmo, entre selvagens e civilizados. Bozzano explica que 
os selvagens se utilizam de indivíduos sensitivos, depois de prová­los quanto a essa 
qualidade, e realizam suas sessões à noite ou ao entardecer, evitando a luz excessiva 
do  sol.  Freedom Long  chega  a  pormenores  curiosos. Os  selvagens  se  dispõem ao 
redor  de  uma  pequena  cabana  de  palhas,  para  cantar  e  dançar,  ao  entardecer.  O 
médium  fica  no  interior  da  cabana.  Esta  corresponde,  como  vemos,  à  cabina 
mediúnica das experiências científicas, onde o médium se livra da incidência da luz 
na sala de sessões. As experiências de Crookes, por exemplo, feitas a plena luz, com 
as famosas materializações de Katie King, eram desse tipo. A médium ficava num 
gabinete  ou  cabina,  onde  se  processa  a  elaboração  ectoplásmica.  Só  depois  de 
materializado,  o  espírito  sai  para  a  sala  iluminada.  Os  fenômenos  produzidos  nas 
selvas são naturalmente mais grosseiros, violentos  e  fortes, que  os produzidos nas 
experiências  científicas.  Isso  se  explica  pela  qualidade mental  dos  assistentes,  do 
próprio médium,  e  consequentemente  dos  “operadores”  ou  espíritos  que  atuam no 
meio selvagem. Os fenômenos do meio civilizado são mais sutis, revestindo­se, por 
vezes,  de  inegável  harmonia  e  beleza,  como  ocorria  nas materializações  de Katie 
King,  com Crookes,  e  nas  famosas  sessões  com  o médium Douglas Home,  onde 
havia encantadoras materializações de mãos. As mãos grosseiras da selva, porém, e 
as  delicadas  mãos  inglesas  das  sessões  de  Home,  revelam  a  mesma  coisa:  a 
sobrevivência do homem após a morte do corpo e a possibilidade de comunicação 
entre encarnados e desencarnados. As mãos produzidas por mana ou orenda indicam
22 – J. Herculano Pires 
aos  homens  o  mesmo  caminho  de  espiritualização  indicado  pelas  mãos  de 
ectoplasma. 
Das selvas à civilização, os Espíritos ensinam aos homens que a vida não se 
encerra no túmulo, como não principia no berço.
23 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
CAPÍTULO II 
HORIZONTE AGRÍCOLA: 
ANIMISMO E CULTO DOS 
ANCESTRAIS 
1– Racionalização anímica 
Quando estudamos o “horizonte agrícola”, ou seja, o mundo das primeiras 
formas sedentárias de vida social, vemos o animismo tribal desenvolver­se no plano 
da racionalização. Estamos naquele momento hegeliano, e por isso mesmo dialético, 
em que a razão se desenrola no processo histórico, entendido este como progresso 
do homem na terra. A domesticação de animais e de plantas, a invenção e o emprego 
de  instrumentos, a criação da  riqueza, processam­se de maneira  simultânea com o 
aumento  demográfico  e  o  desenvolvimento mental  do  homem. É  precisamente  do 
desenvolvimento  mental  que  vai  surgir  uma  consequência  curiosa:  o 
aprofundamento  da  crença  tribal  nos  espíritos,  num  sentido  de  personalização, 
envolvendo os aspectos e os elementos da natureza. 
A  experiência  concreta,  que  deu  ao  homem primitivo  o  conhecimento  da 
existência dos espíritos, alia­se agora ao uso mais amplo das categorias da razão. As 
duas formas gerais de racionalização do Universo, que aparecem nesse momento, e 
que  devem  constituir  a  base  de  todo  o  processo  de  racionalização  anímica,  são  a 
concepção  da  Terra­Mãe  e  a  do  Céu­Pai.  Essas  formas  aparecem  bem  nítidas  no 
pensamento chinês, que conservou até os nossos dias os elementos característicos do 
“horizonte  agrícola”.  O  céu  é  o  deus­pai,  que  fecunda  a  terra,  deusa­mãe.  Em 
algumas  regiões,  como  podemos  ver  no  estudo  da  civilização  egípcia,  há  uma 
inversão  de  posições:  o  céu  é  mãe  e  a  terra  é  pai.  Essa  inversão  não  tem  outra 
significação que a de maior  importância da  terra ou do céu para a vida das  tribos. 
Quando as inundações do Nilo não dependem das chuvas locais, não parecem provir 
do céu, mas das próprias entranhas da terra. Esta encarna, então, o poder fecundante, 
cabendo ao céu, tão­somente, o papel materno de proteger as plantações. Os estudos 
materialistas  confundem  o  problema  da  racionalização  com  o  da  experiência 
concreta da sobrevivência. Tomam, pois, a Nuvem por Juno, ao concluírem que o 
homem primitivo atribui à terra e ao céu uma feição humana, unicamente para tornar 
o mundo exterior acessível à compreensão racional.
24 – J. Herculano Pires 
Os estudos espíritas mostram que há uma distinção a fazer­se, nesse caso. O 
processo de  racionalização decorre da experiência concreta, e por  isso mesmo não 
pode ser encarado de maneira exclusivamente abstrata. Procuremos esclarecer isto. 
De  um  lado,  temos  a  experiência  concreta,  constituída  pelos  contatos  do  homem 
com  realidades  objetivas.  De  outro  lado,  temos  o  processo  da  racionalização  do 
mundo,  ou  seja,  de  enquadramento  dos  aspectos  e  dos  elementos  da  natureza nas 
categorias  da  razão  ou  categorias  da  experiência.  Da  mesma  maneira  porque  o 
contato  do  homem  com  o  espaço  físico  lhe  fornece  uma  medida  para  aplicar  às 
coisas exteriores — a categoria espacial, o conceito de espaço — assim também o 
contato  com  os  fenômenos  espirituais  lhe  fornece  uma  medida  espiritual,  que  é 
conceito  de  espírito.  Este  conceito  é  usado  no  processo  de  racionalização,  como 
qualquer  outro.  Mas  é  absurdo  querermos  negar  os  fatos  concretos  que  deram 
origem  à  categoria  racional,  ou  querermos  atribuir  a  essa  categoria  uma  origem 
abstrata, diferente das outras. 
Somos levados, assim, a concluir que o animismo do “horizonte agrícola” 
apresenta três aspectos distintos, quando encarados sob a luz do Espiritismo. Temos 
primeiramente o aprofundamento do animismo tribal na personalização da natureza, 
que chamaremos, Fetichismo, com os  fetiches básicos da Terra­Mãe e do Céu­Pai. 
Depois,  temos  a  fusão  da  experiência  e  da  imaginação,  com  o  desenvolvimento 
mental do homem, no progresso natural do Mediunismo. Dessa  fusão vai nascer a 
mitologia  popular,  impregnada  de  magia.  E  em  terceiro  lugar  encontramos  a 
primeira forma de religião antropomórfica, consequência da experiência concreta de 
que fala Bozzano, com o culto dos ancestrais. Deuses­lares, manes e deuses­locais, 
como  os  deuses  dos  “pomos”  egípcios,  por  exemplo,  são  entidades  reais  e  não 
formas de  racionalização. Nos deuses dos pomos  egípcios,  ou seja, das regiões do 
antigo Egito, temos já o momento de transição dos deuses reais para o processo de 
racionalização.  A  transição  se  efetua  por  uma  maneira  bastante  conhecida.  É  um 
processo de fusão, que encontramos ao longo de todo o desenvolvimento espiritual 
do homem.
O Fetichismo se funde com o Culto dos Ancestrais, através do Mediunismo. 
Os fetiches, como a terra e o céu, misturam­se aos ancestrais, identificam­se a eles, 
na  imaginação  em  desenvolvimento.  A  mente  rudimentar  não  sabe  ainda  fazer 
distinções precisas. Assim, por exemplo, Osíris, que foi um antepassado e como tal 
recebeu um culto  familiar,  transforma­se numa personificação da  terra, com o seu 
poder de fecundação, ou no próprio Nilo, cujas águas sustentam a vida. A projeção 
anímica  se  realiza,  nesse  caso,  através  de  uma  experiência  concreta.  A mitologia 
nasce  da  história,  pois  a  existência histórica  de Osíris  é  convertida  em mito,  pela 
necessidade de racionalização do mundo. 
Nada melhor  que  os  estudos  de Sir  James Frazer  sobre  o mito de Osíris, 
para nos mostrar isso. Kardec esclarece este problema, ao comentar a pergunta 521
25 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
de O LIVRO DOS ESPÍRITOS, afirmando: “Os antigos haviam feito desses Espíritos 
divindades especiais. As Musas não eram mais do que personificação alegórica dos 
Espíritos protetores das ciências e das artes, como chamavam pelos nomes de lares e 
penates os Espíritos protetores da família. Entre os modernos,as artes, as diferentes 
indústrias, as cidades, os países, têm também os seus patronos, que não são mais do 
que os Espíritos Superiores, mas com outros nomes”. 
Ao fazerem dos Espíritos “divindades especiais”, como assinala Kardec, os 
antigos procediam à racionalização do mundo, o que não quer dizer que os Espíritos 
fossem  apenas  formas  racionais.  Essas  formas,  pelo  contrário,  decorriam  de  fatos 
concretos, de  realidades naturais. Como vemos, ao  tratar do animismo primitivo  e 
seu desenvolvimento no “horizonte agrícola”, não podemos negar a existência real 
dos  espíritos,  a  pretexto  de  explicar  o mecanismo  do  processo  de  racionalização. 
Este  mecanismo  torna­se  mesmo  inexplicável,  quando  lhe  suprimimos  a  base 
concreta  dos  fatos,  como  dizia  Bozzano,  na  qual  se  encontram  os  espíritos 
comunicantes. 
Vê­se claramente a distorção da realidade, a guinada do pensamento para os 
rumos do absurdo, quando os cientistas materialistas tentam explicar o processo de 
racionalização,  ignorando  as  experiências  mediúnicas  do  homem  primitivo.  O 
Espiritismo  restabelece  a  verdade,  ao  mostrar  a  importância  do  mediunismo  no 
desenvolvimento humano. 
2 – O exemplo egípcio 
A China e a Índia são os dois países que conservaram até os nossos dias a 
estratificação  religiosa  do  horizonte  agrícola. Mas  não  são  os  únicos.  Aquilo  que 
chamamos  de  horizonte  agrícola,  o  mundo  das  grandes  civilizações  agrárias, 
constitui  uma  espécie  de  subconsciente  coletivo  das  civilizações  modernas.  Os 
resíduos mágicos, anímicos e mitológicos do horizonte tribal e do horizonte agrícola 
apresentam­se  ainda  bastante  fortes  no  inundo  contemporâneo.  Nossas  religiões 
mostram­se  poderosamente  impregnadas  desses  resíduos.  Mas  o  antigo  Egito 
oferece­nos,  talvez,  o  quadro  que  melhor  demonstra  a  passagem  dos  deuses­ 
familiares para a categoria dos deuses­cósmicos ou universais. O exemplo egípcio é 
fecundo em vários sentidos. Não só demonstra essa transformação dos deuses, como 
também  nos  fornece  as  raízes  históricas  de  vários  dogmas,  sacramentos  e 
instituições das religiões dominantes em nosso mundo. 
Já estudamos, embora rapidamente, o caso de Osíris, cuja existência real é 
transformada  em  mito.  Esse  caso  nos  coloca  numa  posição  semelhante  a  de 
Evêmero, para quem os deuses mitológicos haviam sido personagens reais. Mas é 
essa,  exatamente,  a  posição  espírita,  como  já  vimos  em  Kardec.  A  mitologia,
26 – J. Herculano Pires 
encarada atualmente  como uma  forma de  racionalização,  é  para  o Espiritismo um 
pouco mais do que isso. Porque é também uma prova da participação dos Espíritos 
na História,  ao mesmo  tempo  em  que  uma  poderosa  fonte  de  esclarecimento  dos 
problemas religiosos. Vemos no Egito duas categorias de deuses, bem definidas: a 
dos  deuses­cósmicos  e  a  dos  deuses­familiares. Na primeira,  encontramos  a  tríade 
familiar  constituída  por  Osíris,  Ísis  e  Hórus,  com  toda  a  sua  corte  de  divindades 
consanguíneas  e  de  outras  divindades.  Na  segunda,  encontramos  casos  curiosos, 
como  os  referentes  aos  deuses  Imhotep,  Amenhotep  e  Bês,  o  anão. Estes  deuses­ 
familiares oferecem­nos o exemplo de divinização cósmica e universal que justifica 
a tese evemerista. Imhotep, médico do rei Dsejer, da terceira dinastia, e Amenhotep, 
arquiteto e médico de Amenofis III, da décima oitava dinastia, passam lentamente da 
categoria  de  deuses­familiares  para  a  de  deuses­universais,  adorados  como 
entidades­terapeutas,  para  chegarem  depois  ao  limiar  da  categoria  superior  de 
deuses­cósmicos,  encarnando  a  própria  medicina  ou  os  poderes  curadores  da 
natureza. Quando vemos todo esse processo de transformação realizar­se aos nossos 
olhos, através dos estudos históricos, compreendemos a maneira por que a  família 
cósmica  de  Osíris,  Ísis  e  Hórus,  o  deus­pai,  a  deusa­mãe  e  o  deus­filho,  foram 
elevados  da  terra  ao  céu.  Assim  como  Imhotep  e  Amenhotep,  anteriormente 
adorados  na  família  real,  como  deuses­familiares,  depois  se  tornam  deuses­ 
populares, e por fim se transformam em divindades mitológicas ou deuses­cósmicos, 
assim  também aconteceu,  forçosamente, com a  família osiriana. E isso quer dizer, 
pura e simplesmente, o seguinte: que aquilo que hoje chamamos, no Espiritismo, de 
espíritos­familiares,  ou  seja,  a  manifestação  mediúnica  dos  parentes  e  amigos 
mortos, que velam pelos nossos lares, é a fonte da mitologia, a base do processo de 
racionalização e a própria origem das religiões. 
O caso do anão Bês é também bastante elucidativo. Esse anão tornou­se um 
espírito­popular, isto é, passou do culto  familiar para o culto do povo. Costumava 
aparecer  cercado  de  macacos.  Devia  ter  sido  um  anão  que  tratava  de  macacos 
sagrados. Depois de morto, seu espírito aparecia aos videntes, ou nos momentos de 
aparição mediúnica, da mesma maneira por que ele vivera. E como possuía virtudes 
que  interessavam  ao  povo,  além  de  apresentar­se  de  maneira  curiosa,  em  breve 
rompeu  os  limites  do  culto  familiar.  Os  macacos  que  o  cercavam  eram 
remanescentes  da  zoolatria,  aliás  muito  abundante  no  Egito,  onde  a  zoolatria 
imperou até o fim da civilização. O anão Bês é um caso típico de universalização de 
um  deus­familiar.  O  fato  de  não  ter  esse  processo  atingido  à  categoria  do  deus­ 
cósmico  nada  tem  de  extraordinário.  Os  processos  naturais  nem  sempre  se 
completam. Os egípcios mantiveram­se apegados à zoolatria, como os  indianos se 
mantêm até hoje. O escaravelho dos amuletos, a adoração do Boi Apis em Mênfis, 
de Ibis na bacia do Nilo, dos Crocodilos em Tebas e do Bode de Mendes no Delta, 
são exemplos da arraigada zoolatria egípcia. Mas há casos de ambivalência, como o
27 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
do Crocodilo, que era adorado em Tebas e na região do Lago Noeris, mas caçado em 
Elefantina. A zoolatria passa por uma fase de humanização, que culmina na fusão de 
elementos  animais  com as  figuras humanas. O  caso  da  deusa Hator  é  típico. Essa 
deusa, que equivale à Ceres dos romanos e à Demeter dos gregos, ora é apresentada 
com orelhas de vaca, ora com chifres, ora com o  bucrânio, ou ainda com este e  o 
sistro. 
A  lei  de adoração  de  que  fala Kardec,  evolui  dos  animais para  as  formas 
humanas, mas de maneira lenta. Os resíduos animais se conservam ainda nas figuras 
dos  deuses  antropológicos,  como  nas  próprias  imagens  de Horus,  com  cabeça  de 
falcão. A humanização dos deuses animais, que é fatal, pois a zoolatria não é mais 
que uma projeção anímica, vai implicar também a organização  familiar do panteão 
divino. Os deuses são reunidos em famílias, e a forma mais simples destas famílias é 
a tríade, constituída pelo pai, a mãe e o filho, como vimos no caso de Osíris. Essa 
tríade  familiar,  derivada  do  sistema  patriarcal  do  horizonte  agrícola,  é  uma  das 
formas mais antigas da trindade divina. O conceito de espírito, entretanto, fará sentir 
a  sua  influência  nesse  processo  de  socialização  dos  deuses.  Assim  como,  de  um 
lado, os elementos animais  serão  fundidos nas  figuras humanas das divindades, de 
outro, o conceito de espírito, ou seja, a ideia de espírito como forma sobre­humana 
de  existência,  fará  a  sua  intervenção,  em  sentido  contrário,  na  organização  das 
famílias humanas. 
Digamos  isto  de  maneira  mais  clara,  se  possível.  No  processo  de 
desenvolvimento da lei de adoração, os resíduos animais são projetados nas figuras 
humanas dos deuses, como no caso das orelhas e dos chifres da deusa Hator. Mas, 
ao  mesmo  tempo,  o  conhecimento  que  o  homem  obteve,  através  da  experiência 
mediúnica,  da  existência  de  seres  espirituais,  semelhantes  aos  seres  humanos, 
permitirá  o  agrupamento  dos  deuses  em  famílias  e  fará  que  as  famíliashumanas 
sofram a  intervenção divina. É o caso dos deuses gregos,  que se  enamoravam das 
“filhas dos homens”. O caso de Pitágoras, que não era filho de seu pai humano, mas 
do deus Apolo. O caso da teogamia egípcia, de que derivam as doutrinas teogâmicas 
das religiões cristãs. A teogamia egípcia atingiu sua forma perfeita, ou pelo menos a 
mais  definida,  com  a  rainha Hatsepshut,  cerca  de  1.500  a.  C.,  conservando  o  seu 
vigor até os Ptolomeus, no IV século a. C. Segundo essa doutrina, os Faraós eram 
portadores de dupla natureza, a humana e a divina, porque eram filhos da rainha com 
o  deus­solar.  Não  eram,  portanto,  filhos  de  um  homem,  e  nem  mesmo  de  um 
homem­deus, mas  do  próprio Deus,  que  através  de  processos  divinos  fecundava a 
rainha. 
O  conhecimento  desses  processos  históricos  é  indispensável  ao  espírita, 
para  imunizá­lo  contra  as  deturpações  místicas  ou  supersticiosas  da  doutrina,  tão 
comuns num mundo que, apesar  de  se  orgulhar  do  seu  progresso  científico,  ainda 
não se libertou de sua pesada herança mitológica.
28 – J. Herculano Pires 
3 – Os Mitos Agrários 
A  vida  agrária,  como  já  acentuamos,  marcou  profundamente  o  espírito 
humano, em seu desenvolvimento, nos rumos da civilização. Os mitos do horizonte 
agrícola exercem ainda poderosa influência em nosso mundo. Isso contribui para o 
descrédito das religiões, em face dos  estudiosos de história, e mais ainda, dos que 
tratam de mitologia. 
Osíris, por exemplo, como típico deus agrário, parece constituir uma prova 
das  origens  míticas  do  dogma  da  ressurreição.  Quando  os  cristãos  proclamam  a 
ressurreição de Cristo, os estudiosos sorriem com desdém, lembrando a ressurreição 
de Osíris. Vejamos porque. Osíris, filho da Terra e do Céu, cresce, viceja, esplende, 
e então é ceifado, retalhado ou moído, e por  fim enterrado. Mas da terra, como as 
sementes, Osíris renasce, para começar novo ciclo, semelhante ao anterior. Morto e 
espostejado por Set,  seu  irmão, é  ressuscitado por  sua esposa e  irmã, a deusa  Ísis, 
através de ritos especiais. Está bem visível a analogia agrária. Osíris é como o trigo, 
que depois da ceifa sofre a debulha, volta a ser enterrado na semeadura, e por  fim 
renasce. Às vezes, associado ao Nilo, é um deus  fluvial. Cresce com a  inundação, 
declina e morre na vazante, mas depois ressuscita e faz nascerem as plantas, com o 
poder mágico das águas. Osíris, deus­fluvial, está naturalmente ligado ao cultivo da 
terra.  No  seu  aspecto  fluvial,  porém,  apresenta­nos  um  elemento  novo,  que  é  a 
magia  da  água.  Vemos  nele  a  “água  pura”,  que  serve  para  purificar  a  terra  seca, 
estéril, poeirenta, e com ela os homens e os animais; a “água da renovação”, usada 
largamente nas abluções  sagradas  e  utilizada nas  formas  batismais,  como no  caso 
clássico de João Batista; e, por fim, a “água fecundante”, que representa a virilidade 
do deus­fluvial, fecundando a terra. Por isso, na sua mais alta expressão mitológica, 
o Nilo  flui  das mãos  de Osíris,  para  se  derramar  como  uma  bênção  sobre  a  terra 
árida. “Deus­agrário, — diz John Murphy— deus da inundação e de uma vida nova, 
a todos levava a esperança da ressurreição”. Essa esperança mantinha o prestígio do 
deus.  Assim  como  ele morrera  para  ressuscitar,  através  dos  ritos  agrários  de  Ísis, 
assim também os homens, uma vez submetidos a ritos semelhantes, ressuscitavam. 
Essa crença ingênua faz lembrar o dogma cristão, nas palavras do apóstolo 
Paulo:  “Se  não  há  ressurreição  dos  mortos,  também  Cristo  não  ressuscitou”.  (I. 
Coríntios,  15:12.)  O  sentido  osírico  da  ressurreição  cristã  toma­se  mais  evidente, 
quando  os  ritos  agrários  são  exigidos  para  que  a  alma  se  salve,  ou  seja,  para  que 
realmente  possa  ressuscitar.  Por  outro  lado,  há  um  paralelismo  histórico  bastante 
comprometedor. Osíris, graças à ressurreição, mostrou­se capaz de superar os outros 
deuses  egípcios,  da mesma maneira  por  que, mais  tarde,  graças  à  ressurreição,  o 
Cristianismo  superaria  as  demais  religiões  orientais  que  invadiram  o  Império 
Romano.  O  dogmatismo  religioso  não  consegue  furtar­se  ao  impacto  dessas
29 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
comparações. A  fé  ingênua,  imposta pela autoridade e a  tradição, derrete­se como 
cera frágil, ao fogo da razão. 
Somente  a  fé  racional,  ou  a  “fé  raciocinada”,  como  queria Kardec,  pode 
enfrentar serenamente essa análise histórica, sem perder­se na negação ou extraviar­ 
se  na  dúvida.  De  outro  lado,  a  razão  cética,  por  mais  cultivada  que  seja,  não 
consegue penetrar a essência do mito agrário. Assim como a fé necessita da luz da 
razão, esta luz, por sua vez, necessita do pavio da fé. O Espiritismo demonstra que o 
mito agrário é essencialmente analógico, nasce do poder comparativo da razão. Esse 
poder assimilou, desde a era tribal, a ressurreição humana, demonstrada pelos fatos 
mediúnicos, à ressurreição vegetal. Sem a prova material da existência do espírito, 
da sobrevivência do homem, o mito agrário se reduz ao seu aspecto analógico, não 
deixando  perceber  os motivos  profundos  da  analogia. Daí a  descrença  e  o  sorriso 
irônico dos “sábios”, que na verdade deviam esperar para sorrir mais tarde, uma vez 
que os que riem por último riem melhor. 
Agrário, também, é o mito da Virgem­Mãe, que adquire amplitude social e 
política  na  doutrina  da  teogamia  egípcia,  como  já  vimos.  A  terra,  deusa­mãe,  é 
virgem antes e depois do parto, pois não sai maculada da fecundação e está sempre 
em estado de pureza. Fecundada pelo deus celeste, floresce nas messes, embalando 
no  seu  colo materno  o Messias,  ou  seja,  o  deus­solar,  que  traz  a  luz,  a  vida  e  a 
fartura das colheitas, após o inverno. O mito agrário da Virgem­Mãe tem ainda o seu 
aspecto astronômico, à semelhança de todos os deuses­agrários, uma vez que a terra 
e o céu se conjugam no mistério da fecundação. 
A constelação da Virgem é a primeira a aparecer no céu, após o solstício do 
inverno.  Dela  nasce  o  Sol,  o  Messias.  E  a  constelação  continua  virgem,  após  o 
nascimento.  A  palavra  messe,  como  se  vê,  tem  um  grande  poder  mítico:  dela 
derivam o nome do Messias e do culto que lhe atribuem, mais tarde representado na 
liturgia da Missa. Assim também o mistério do pão e do vinho. O pão representava 
nos mistérios gregos a deusa Demeter, ou a Ceres para os romanos, mãe dos cereais. 
O vinho  representava Baco ou Dionísio,  deuses  da  alegria,  da  vida,  e  portanto  do 
espírito. Comer o pão e beber o vinho era simbolizar a fecundação da matéria pelo 
poder do espírito. A matéria impregnada pelo poder do espírito era representada, nas 
cerimônias  religiosas  pagãs,  pelo  pão  embebido  de  vinho.  Quando  os  hebreus 
chegaram  a  Canaã  encontraram  essa  prática  entre  os  cananitas.  Todo  o  horizonte 
agrícola se mostra dominado por essa simbologia mágica do pão e do vinho, de que 
o próprio Cristo se serviu, não para sujeitar os homens ao símbolo, mas para ilustrá­ 
los através dele. 
Bastam esses exemplos, para vermos a intensidade da impregnação mítica 
do  pensamento  religioso  contemporâneo.  O  Espiritismo  luta  contra  essa 
impregnação,  libertando  o  homem do  peso  esmagador  do  horizonte  agrícola,  para 
conduzi­lo ao horizonte espiritual, que Jesus anunciou à mulher samaritana.
30 – J. Herculano Pires 
4 – Jeová, Deus Agrário 
Quando estudamos  religião comparada, ou história das religiões, o  exame 
do “horizonte agrícola” nos revela a natureza agrária do deus bíblico Iavé ou Jeová. 
As  diferenças  fundamentais  existentes  entre  o Deus  bíblico  dos  hebreus  e  o Deus 
evangélico  dos  cristãos  decorre  da  diferença  de  horizontes.  Jeová  é  um  deus 
mitológico, em fase de transição para o horizonte espiritual. Nasceu, como todos os 
deuses agrários, por um processo sincrético. Nele se fundema experiência concreta 
da  sobrevivência  humana,  obtida  através  dos  fatos  mediúnicos,  e  a  exigência  de 
racionalização  do  mundo,  manifestada  nas  elaborações  mitológicas.  Ao  mesmo 
tempo, concepções várias, e até mesmo contraditórias, originadas ao longo da vida 
tribal  e  da  vida  agrícola,  também  se  misturam  nessa  figura  bíblica.  Daí  as  suas 
contradições,  que  dão  margem  a  tantas  críticas,  oriundas  da  incompreensão  do 
fenômeno  e  da  ignorância  do  processo  histórico.  Encontramos  em  Jeová,  num 
verdadeiro  conflito,  as  características  de  deus­tribal  e  deus­universal,  de  deus­ 
familiar e deus­popular, de deus­lar e deus mitológico. Como deus­tribal, Jeová é o 
guia e o protetor das tribos de Israel, e como deus­universal, pretende estender suas 
leis  a  todos  os  povos.  Como  deus­familiar,  é  o  clássico  “Deus  de Abrão,  Isaac  e 
Jacó”, protetor de uma linhagem de pastores, e como deus­popular, é o protetor de 
todos os descendentes de Abrão. Como deus­lar, é o Espírito que falava a Terá e a 
Abrão em Ur, à revelia dos deuses­nacionais dos caldeus, e como deus­mitológico, é 
aquele que declara na Bíblia “Eu sou o que sou”, tendo a terra por escabelo de seus 
pés  e  o  céu  por  morada  infinita  de  sua  grandeza  sobre­humana.  O  mesmo 
sincretismo que já estudamos no caso dos deuses egípcios aparece no deus hebraico. 
Se  a  deusa  Hator,  por  exemplo,  tinha  orelhas  de  vaca,  Jeová  ordena 
matanças, misturando  em  sua  natureza  características  humanas  e  divinas.  Protege 
especialmente  um povo,  uma  raça,  com  ferocidade  tribal,  e  se  não  exige mais  os 
antigos sacrifícios humanos, entretanto exige os sacrifícios animais e vegetais. Suas 
monumentais  narinas,  embora  invisíveis,  dilatam­se  gulosas,  como  as  de  Moloc, 
aspirando  o  fumo  dos  sacrifícios.  No  Templo  de  Jerusalém,  à  maneira  do  que 
acontecia  com  os  templos  gregos,  havia  locais  especiais  para  os  sacrifícios 
sangrentos  e  os  incruentos. Assim  como Pitágoras,  vegetariano,  podia  oferecer  ao 
deus  Apoio,  na  ara  especial  do  templo,  sacrifícios  vegetais,  assim  também  os 
hebreus podiam escolher a espécie de homenagens que deviam prestar a Jeová. 
A  história  dos  sacrifícios  ainda  está  por  ser  escrita,  embora  muito  já  se 
tenha escrito a respeito. No dia em que a tivermos, na extensão e na profundidade 
necessárias, veremos uma nova confirmação histórica do desenvolvimento da lei de 
adoração. Dos sacrifícios humanos passamos aos de animais, destes aos vegetais, e 
destes  aos  cilícios,  às  penitências  e  aos  simples  ritos  devocionais.  Correrá muita 
água por baixo das pontes, antes que Paulo, apóstolo, possa proclamar, apoiado no
31 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
ensino espiritual de Jesus, que existe um culto racional, consistente em oferecermos 
a  Deus  nosso  próprio  corpo,  como  “Hóstia  imaculada”.  No  entanto,  Jeová  já 
proclamara:  “Misericórdia  quero,  e  não  sacrifício”,  demonstrando  a  sua  evolução 
irrevogável para o “horizonte espiritual”, que raiaria mais tarde. 
Muitos estudiosos estranham a afirmação espírita de que o Deus bíblico é o 
mesmo Deus de Jesus. Fazendo uma distinção, que nos parece natural e necessária, 
entre a Bíblia, como Velho Testamento, e os Evangelhos, corno Novo Testamento, 
diremos que o Deus bíblico é o mesmo Deus evangélico. As diferenças entre ambos 
se  explicam  através  da  lei  de  evolução.  Se  os  homens  do  horizonte  agrícola  não 
podiam  conceber  o  Deus­único  senão  por  uma  forma  sincrética,  uma  mistura  de 
Deus e de Homem, os do horizonte espiritual irão concebê­lo de maneira mais pura. 
Não  se  trata,  porém,  de  dois  Deuses,  e  sim  de  um  mesmo  Deus,  visto  de  duas 
maneiras. Por trás de todas as formas de Deus, encontra­se uma realidade única, que 
é o próprio Deus.  Isso  o que permitia a  Jesus dizer­se filho de Jeová e ao mesmo 
tempo  apontar  o  seu  Pai  como  pai  universal,  em  espírito  e  verdade.  Da  mesma 
maneira,  os  princípios  fundamentais  da  Bíblia  não  são  negados, mas  confirmados 
pelos  Evangelhos.  A  Lei  não  é  destruída, mas  confirmada. Mais  de  uma  vez  nos 
servirá  de  esclarecimento  a  afirmação  de  Paulo:  “A  lei  era  o  pedagogo,  para  nos 
conduzir  a  Cristo”.  A  Torá  judaica  não  valia  pelas  suas  normas  exteriores  e 
transitórias,  circunstanciais,  mas  pela  sua  substância.  Essa  substância  é  que 
prevalece, sendo confirmada por Jesus, nos dois mandamentos principais: “Amar a 
Deus sobre  todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”. O processo histórico 
não  é  contraditório, mas  progressivo.  Quando não  sabemos  enxergar  as  linhas  da 
evolução,  em  seu  desenvolvimento  natural,  enxergamos  apenas  as  aparentes 
contradições das coisas. Assim como a ideia de Deus evolui com os homens, desde a 
litolatria  até  as  formas  mitológicas,  e  destas  à  concepção  espiritual  que  hoje 
aceitamos,  assim  também  os  princípios  e  os  postulados  bíblicos  vão  atingir  sua 
verdadeira expressão nos Evangelhos, e por fim sua espiritualização no Espiritismo. 
Há  um  encadeamento  perfeito  no  processo  histórico,  que  não  podemos 
perder  de  vista. Graças a  esse  encadeamento  os Espíritos  puderam dizer  a Kardec 
que o Espiritismo é o restabelecimento do Cristianismo, o que vale dizer: a última 
fase  do  desenvolvimento  histórico  do  Cristianismo.  Quando  sabemos  que  este 
originou­se  no  solo  do  Judaísmo,  representando  um  desenvolvimento  natural  da 
religião  judaica,  então  compreendemos  que  o  Espiritismo,  como  queria  Kardec  e 
como sustentava Léon Denis, é o ponto mais alto que podemos atingir, até hoje, em 
nossa  evolução  religiosa.  Jeová,  o  deus­agrário,  transforma­se  no  Pai  evangélico, 
para chegar à “Inteligência Suprema”, no Espiritismo. Jeová se depura, e com ele se 
depuram os ritos do seu culto, que por fim se transformam na “adoração em espírito 
e verdade”, de que falava Jesus.
32 – J. Herculano Pires 
O horizonte agrícola permanece subjacente em nossa mentalidade moderna. 
Ainda não conseguimos libertar­nos de suas fórmulas agrárias, de seus deuses e seus 
cultos,  carregados  de  sacrifícios  animais  e  vegetais.  O  “horizonte  civilizado” 
desenvolve­se sob  os signos agrícolas. Mas virá, por  fim, o momento de  transição 
para  o  “horizonte  espiritual”,  que  assinalará  uma  fase  de  transcendência  na  vida 
humana.
33 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
CAPÍTULO III 
HORIZONTE CIVILIZADO: 
MEDIUNISMO ORACULAR 
1 – Os estados teológicos 
Os  grandes  impérios  da  antiguidade,  as  chamadas  civilizações  orientais, 
passaram  lentamente  do  horizonte  agrícola  para  o  horizonte  civilizado.  O mesmo 
aconteceu  com  os  impérios  ocidentais,  que  constituiriam mais  tarde  a  civilização 
clássica  greco­romana.  Os  gregos,  e  posteriormente  os  romanos,  tiveram  bem 
marcado o seu horizonte agrícola. Roma nunca se  livrou das marcas profundas da 
sua origem camponesa. Mas antes que a Grécia e Roma superassem a fase agrária, já 
as civilizações orientais haviam desenvolvido todo um ciclo evolutivo, atingindo o 
horizonte civilizado, com as gigantescas estruturas de seus Estados Teológicos. 
Realmente,  os  grandes  impérios  do  Egito,  da  Assíria,  da  Babilônia,  da 
China, os reinos da índia, o pequeno reino de Israel, o fabuloso império da Pérsia, 
constituem verdadeiros Estados Teológicos, em que o humano e o divino se fundem 
e  se  confundem,  numa  estrutura  única.  A  Pérsia  vai  assinalar  o  apogeu  das 
civilizações  orientais,  que  encontrarão  na  sua  grandeza  e  no  seu  esplendor,  ao 
mesmo  tempo,  a  síntese  e  o  arremate  desse  espantoso  ciclo  evolutivo.  O  império 
persa será o último elo da grande cadeia, e com ele começará uma fase nova, cujo 
desenvolvimento, entretanto, caberá aos gregos e aos romanos: a fase de libertação 
do Estadodo domínio teológico. Essa libertação não se processará com rapidez, mas 
de maneira lenta. Assim, a própria civilização grega, e sua herdeira direta, a romana, 
apresentarão ainda, no horizonte civilizado, acentuado aspecto teológico. Mas com 
os persas já se inicia a separação dos dois poderes, o político e o religioso. Curioso 
notar­se  que  essa  separação,  iniciada  pelos  persas  no  terreno  da  educação,  vai 
projetar­se na Grécia em duas formas diferentes de estrutura estatal: Esparta será o 
Estado Político por excelência, com a religião submetida aos interesses temporais, e 
Atenas o Estado Teológico, dominado pelos deuses, mas já impulsionado, graças ao 
desenvolvimento econômico e cultural, nos rumos da emancipação política. Esparta 
recebe, por assim dizer, a herança persa como um impacto, que a modela de maneira 
rígida. Atenas, pelo contrário, absorve lentamente a contribuição persa e a reelabora 
através da crítica. A separação dos dois poderes, o civil e o religioso, se acentuará 
em  Atenas  com  o  desenvolvimento  da  democracia.  Esparta  oporá  ao  domínio
34 – J. Herculano Pires 
teológico a  supremacia estatal. Atenas, pelo contrário, oporá a  reflexão crítica e o 
individualismo, ou seja, os direitos do homem, como indivíduo. 
Os Estados Teológicos das civilizações orientais nos oferecem, portanto, o 
primeiro panorama desse novo ciclo da evolução humana, que chamamos horizonte 
civilizado. Analisando esses Estados, verificaremos que sua estrutura é herdada do 
horizonte  tribal.  O  monarca  egípcio,  babilônico,  hindu  ou  chinês,  é  um  cacique 
tribal, cujas dimensões  foram aumentadas quase ao infinito. Suas prerrogativas são 
as mesmas  da  vida  tribal:  domínio  absoluto  sobre  o  povo,  que  o  deve  respeitar  e 
adorar, como a um deus. A evolução econômica e técnica do horizonte agrícola, que 
determinaram  acentuado  desenvolvimento  do  animismo,  darão  estrutura  racional, 
mais  sutil  e  complexa,  a  essas  prerrogativas.  Mas  as  civilizações  orientais, 
dominadas  pelo  absolutismo  tribal,  serão  estruturas  teológicas  asfixiantes,  em que 
não haverá lugar para o indivíduo. O homem civilizado, à maneira do homem­tribal, 
será  apenas  uma  peça  da  gigantesca  engrenagem  do  Estado  Teológico,  que  lhe 
determinará,  de maneira  irrevogável,  as  formas  de  pensar e  de  sentir. O  estatismo 
espartano  será  uma  espécie  de  reação  política  a  esse  absolutismo  teológico,  mas 
servindo­se do mesmo processo de absorção. Somente a democracia ateniense abrirá 
possibilidades  a  um  individualismo,  tão  novo  e  tão  fascinante,  que  acabará  por 
embriagá­la, fazendo­a perder­se nos excessos do liberalismo. 
Nos  Estados  Teológicos,  a  estrutura  política  assemelha­se  à  estrutura 
metafísica ou divina. A Religião e o Estado se modelam reciprocamente, uma sobre 
o  outro,  e  vice­versa.  A  classe  sacerdotal,  racionalmente  organizada,  elabora  os 
mitos no plano intelectual, criando a teologia, estruturando ritualismo, estabelecendo 
a genealogia dos deuses e as formas de relações entre estes e os homens. A teogamia 
egípcia,  de  que  já  tratamos,  é  um  dos  mais  perfeitos  exemplos  dessas  formas  de 
relações: a genealogia divina se prolonga na genealogia humana dos faraós, graças à 
fecundação da rainha por um deus. Amalgamados assim os dois poderes, o temporal, 
o  divino,  na  própria  carne  dos  monarcas,  os  Estados  Teológicos  tornam­se 
monolíticos. Ainda  na Grécia  vemos  isso:  a  figura humana  de Zeus,  na  sua  corte 
olímpica,  refletindo  no  espaço  a  estrutura  política  da nação. Murphy  acentua  esse 
aspecto do horizonte civilizado, da seguinte maneira: “No horizonte que chamamos 
civilizado, a religião reflete o sistema político e social: é em geral politeísta, com um 
grupo de deuses semelhante ao Senado de uma República ou, mais frequentemente, 
à  corte  de  um  monarca  supremo  e  mais  ou  menos  autocrata.  Os  deuses  são 
principalmente  as  forças  da natureza,  como  anteriormente,  sob  horizonte  agrícola, 
mas,  agora,  mais  profundamente  personalizadas  e  dotadas  de  uma  realidade 
dramática,  que  resulta  do  progresso  da  reflexão  mental,  entre  as  classes  que 
dispuseram de lazer nessas antigas nações civilizadas”. 
Os Espíritos presentes nesse horizonte — devemos acentuar, por nossa vez 
—  são  ainda  os  da  tribo  e  os  do  horizonte  agrícola,  mas  enriquecidos  pela
35 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
experiência  e  pelo  desenvolvimento  do  pensamento  abstrato.  Um  novo  Espírito, 
entretanto, marcará  esse  horizonte. Murphy  considera  o  seu  aparecimento,  e  com 
razão,  como  “acontecimento  de  imensa  importância”.  Trata­se  do  “Espírito 
Civilizado”,  como  o  chama  Murphy,  ou  o  que  poderíamos  chamar  Espírito  de 
Civilização. Esse Espírito se caracteriza por três funções especiais: a capacidade de 
formulação  de  conceitos  abstratos,  de  formulação  de  juízos  éticos  e morais,  e  de 
formulação de princípios jurídicos. Dessas funções surgirá o indivíduo, como a mais 
bela afirmação do horizonte civilizado. 
Como vemos, o homem se  liberta de si mesmo, da sua condição humana, 
construída  penosamente  através  das  estruturas  sociais  do  horizonte  tribal  e  do 
horizonte agrícola, procurando uma forma mais precisa de definição de sua natureza. 
Na  organização  tribal,  ele  se  libertou  da  condição  animal  e  do  jugo  absoluto  das 
forças da natureza, para elaborar a  sua condição própria. Na organização agrícola, 
ele aprendeu a dominar a natureza e submetê­la ao seu serviço, mas caiu prisioneiro 
da  estrutura  social.  No  horizonte  civilizado,  ele  começa  a  romper  os  liames  da 
organização social, para descobrir­se a si mesmo, o que só fará quando se tornar um 
indivíduo.  A  evolução  do  Espírito  está  bem  clara  nesse  imenso  processo  de 
desenvolvimento histórico da humanidade. O homem se eleva progressivamente da 
selva  à  civilização,  através  de  períodos  históricos  que  podem  ser  definidos  como 
“horizontes”, ou seja, como universos próprios, nos quais os diferentes poderes da 
espécie  vão  sendo  treinados  em  conjunto,  até  que  o  desenvolvimento  da  razão 
favoreça  o  processo  de  individualização.  Primeiramente,  o  homem  se  destaca  da 
natureza através do conjunto tribal; depois, reafirma a sua independência através dos 
conjuntos  mais  amplos  das  civilizações  agrárias;  e,  depois,  ainda,  constrói  os 
conjuntos  mais  complexos  das  grandes  civilizações  orientais.  Nestes  conjuntos, 
porém,  o  homem  descobre  a  possibilidade  de  destacar­se  individualmente  da 
estrutura social. O espírito humano se afirma como individualidade, como entidade 
autônoma, capaz de superar não somente a natureza, mas a própria humanidade. 
2 – O espírito de civilização 
O homem supera a Natureza desde o momento em que  se  torna capaz de 
organizar­se em sociedade. Nesse momento, ele deixa de ser o animal gregário das 
cavernas,  para  adquirir  uma  nova  natureza,  tornando­se  o  animal  político  de 
Aristóteles,  ou  seja:  um  ser  social. Dessa maneira,  o  ser  biológico  é  superado  por 
uma  forma  nova  de  ser.  O  desenvolvimento  humano  é  um  processo  de 
transcendência.  Cada  fase  do  processo  representa  uma  superação  da  anterior. 
Superar a Natureza, portanto, não quer dizer apenas dominá­la, adquirir poder sobre 
as  coisas  exteriores,  mas  superar­se  a  si  mesmo.  Quando  falamos  da  Natureza,
36 – J. Herculano Pires 
referimo­nos, em geral, ao binômio Homem­Natureza, que é um contraste dialético. 
De  um  lado  colocamos  o Homem,  como um poder  oposto  ao  que  se  encontra  do 
outro  lado,  representando  o  mundo  exterior.  Essa,  entretanto,  é  uma  concepção 
simplista, pois a verdade é bem mais complexa. O Homem não se opõe à Natureza 
como  uma  potência  contrária,  mas  como  parte  dela  mesma.  A  oposição  nãoé 
externa, mas interna. Pelo seu corpo, o Homem pertence à rés extensa cartesiana, é 
uma  espécie  animal.  Pelo  seu  espírito,  pertence  à  rés  cogitans,  é  uma  substância 
pensante. 
Podemos  dizer,  com Espinosa,  que  o  Homem  é  uma  simples  afecção  do 
Todo, em que se conjugam as modalidades extensa e pensante da Substância, o que 
equivale  a  dizer,  com  o  apóstolo  Paulo,  que  “em  Deus  estamos  e  em  Deus  nos 
movemos”. À Natureza Universal, portanto, devemos opor a Natureza Humana, que 
é uma simples diferenciação daquela. O processo  evolutivo explica essa  oposição, 
mostrando­nos  que  a  matéria  e  o  espírito,  ou  o  que  Kardec  chama  o  princípio 
material e o princípio inteligente do Universo, modificam­se através do tempo. Essa 
modificação  é  progressiva,  assinalando  um  desenvolvimento  qualitativo,  como 
podemos verificar pela evolução física do planeta e das espécies vegetais e animais 
que  o  povoam.  Esta  evolução,  por  sua  vez,  encontra  no  Homem  o  seu  ponto 
culminante.  Quando  dizemos,  pois,  que  o  Homem  supera  a  Natureza,  podemos 
acrescentar que essa superação não é apenas do Homem, mas da própria Natureza, 
que  atinge  na  espécie  humana  a  sua  mais  elevada  expressão.  Isso  nos  permite 
compreender,  também,  o  que  queremos  dizer,  quando  falamos  da  superação  da 
Humanidade. Nessa  fase superior, a evolução está alcançando um novo plano, e o 
homem que avança além da craveira comum, superando a sua época,  supera a  sua 
própria espécie. 
O  Espírito  de  Civilização,  cujo  aparecimento  Murphy  assinala  como 
consequência do horizonte agrícola, marca a  fase de superação do animal­político, 
com a transformação do ser­social do Homem num ser­moral, e consequentemente a 
transformação  da  espécie  humana  num  processo  histórico.  Simone  de  Beauvoir 
adverte,  com  razão,  que  a  humanidade  não  é  uma  espécie,  mas  um  devir.  Não 
obstante, devemos acentuar que ela já foi uma espécie, e que por isso mesmo guarda 
as marcas da sua animalidade ancestral. As características do Espírito de Civilização 
constituem os carismas dessa transformação profunda, que assinalam a passagem da 
espécie humana para o devir, ou seja, do concreto para o abstrato, da forma animal 
para  a  forma  espiritual.  Analisemos  rapidamente  essas  características,  que  se 
apresentam  como  três  funções  do  Homem  numa  fase  superior  da  sua  evolução. 
Temos  primeiramente a  capacidade  de  formulação  de  conceitos  abstratos,  que  é  o 
resultado  de  uma  longa  evolução  da  rés  cogitans,  da  coisa  pensante  cartesiana. A 
História  da Matemática  nos  ajuda  a  compreender  esse  processo, mostrando­nos  o 
desenvolvimento  da  capacidade  de  contar,  na  vida  primitiva.  O  pensamento  do
37 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
homem selvagem revela a  sua natureza concreta na  incapacidade para contar além 
do número dos dedos das mãos ou dos pés, nas tribos mais atrasadas. Somente nas 
tribos mais evoluídas o homem se torna capaz de utilizar­se de números abstratos. 
A abstração mental é, portanto, uma conquista da evolução. E a História da 
Filosofia nos mostra que, apesar do enorme desenvolvimento intelectual dos gregos, 
foi Sócrates quem descobriu o conceito e revelou a sua importância. Depois de haver 
conquistado  o  conceito,  ou  seja,  a  capacidade  de  conceituar,  de  formular  a 
concepção dos objetos materiais, o homem se torna capaz de ajuizar, de comparar, 
medir e julgar as coisas. Somente nesse momento ele se torna apto a formular juízos 
éticos e morais, a elaborar regras para a sua conduta moral e a esboçar um panorama 
ético  das  relações  humanas  e  divinas.  É  evidente  que  uma  função  não  decorre 
imediatamente  da  outra.  A  capacidade  de  abstração  evolui  lentamente  para  a  de 
julgamento das coisas, e só numa fase adiantada da evolução intelectual atinge a de 
formulação de juízos éticos e morais. É o que nos mostra, por exemplo, a evolução 
do pensamento grego, ao passar dos antigos fisiólogos para os sofistas, e destes para 
os filósofos da linha socrática. 
A  capacidade  de  formular  princípios  jurídicos,  ou  normas  reguladoras  da 
vida social, aparece bem cedo, antecedendo a capacidade de formulação dos juízos 
éticos  e morais. Essa  precedência  é  natural  e  decorre  das  exigências materiais  da 
vida  em  sociedade.  Entretanto,  suas  primeiras  fases  são  ainda  inconscientes, 
determinadas  pelo  mecanismo  das  exigências  sociais.  Somente  no  horizonte 
civilizado a função se define, permitindo a elaboração verdadeira dos princípios, que 
se  incorporam  nos  primeiros  códigos,  como  o  de  Hamurábi,  para  depois  se 
desenvolverem  em  estruturas mais  complexas. As necessidades  de  organização  do 
Império  exigiram dos  romanos  o  aprimoramento  dessa  função,  que  caracterizou  a 
sua  civilização.  Todas  as  dificuldades  de  ligação  das  substâncias  cartesianas,  que 
Espinosa tentou resolver com a sua formulação panteísta, resolveram­se, assim, não 
no plano filosófico, mas no plano histórico. A História nos mostra a conjugação dos 
elementos materiais e espirituais no desenvolvimento do processo evolutivo. 
O Espírito de Civilização, ou o Espírito Civilizado, a que John Murphy se 
refere, é, portanto, um produto da evolução da Natureza Universal, que aparece e se 
desenvolve  no  plano  superior  da  Natureza  Humana.  Ao  atingir  o  horizonte 
civilizado, o homem se transforma no ser moral que supera o ser social, ou o animal 
político  aristotélico,  projetando­se  em  direção  ao  ser  espiritual  do  futuro.  A 
humanidade  deixa  de  ser  uma  espécie,  para  se  transformar  num  devir.  Por  isso 
mesmo, o mediunismo primitivo, o animismo e o culto dos ancestrais se refundem 
numa forma nova de manifestação psíquica, que é o mediunismo oracular. Os juízos 
éticos, morais e jurídicos, remodelam as antigas formas de relações mediúnicas do 
homem  com  os  Espíritos,  as  maneiras  rudimentares  de  intercâmbio  do  mundo
38 – J. Herculano Pires 
humano  com  o  mundo  espiritual,  formalizando  essas  relações  e  cercando­as  de 
cuidados especiais no plano moral. 
3 – Mediunismo oracular  
Os  oráculos  dominam  todo  o  horizonte  civilizado.  Constituem, 
praticamente,  o  centro  de  orientação  de  toda  a  sua  vida  urbana  e  rural,  política  e 
religiosa. Mas que são os oráculos? Sua definição não é muito fácil, o que mostra a 
natureza  transitória  dessas  instituições  religiosas.  As  antigas  formas  de  relações 
mediúnicas estão em trânsito para novas  formas, e por isso mesmo apresentam, na 
sua  constituição  oracular,  evidentemente  sincrética,  motivos  para  diferentes 
interpretações, dificultando a sua definição. 
O oráculo é às vezes a própria Divindade, outras vezes a resposta dada às 
consultas, o santuário ou templo, o médium que atende aos consulentes, ou o local 
das consultas: um bosque sagrado, uma gruta misteriosa, uma fonte miraculosa. A 
palavra  serve  para  designar  todas  essas  coisas,  uma  de  cada  vez,  ou  todas  em 
conjunto. Porque a mentalidade popular não sabe ainda distinguir a força misteriosa 
que age, nem os seus meios de ação. A Divindade pode  falar por si mesma, como 
pode  estar  encarnada  no  santuário,  no  templo,  na  trípode,  na  pitonisa  ou  nos 
elementos da natureza. 
Os  oráculos  são  procurados  por  todos:  reis  e  sábios,  guerreiros  e 
comerciantes, homens  e mulheres  do  povo. Nisso,  estão,  todos  de  acordo,  porque 
todos  reconhecem e  respeitam a presença de uma força sobrenatural nesses.  locais 
sagrados. A “lei de adoração”, de que trata Kardec, atinge fios oráculos uma forma 
de síntese, reunindo as conquistas efetuadas ao longo de sua evolução nos horizontes 
anteriores.  Estão  ali  presentes,  e  mescladas,  as  formas  sucessivas  de 
desenvolvimento  da  lei,  que  encontramos  nos  horizontes  tribal  e  agrícola.  A 
concepçãoanímica  do mediunismo  primitivo,  o  culto  dos  ancestrais,  a  deificação 
dos elementos naturais, podem ser  facilmente identificados. Os próprios elementos 
larvares,  rudimentares,  da  magia  e  da  religião,  estão  ali  presentes:  a  litolatria,  a 
fitolatria,  a  zoolatria,  na  adoração  de  pedras,  de  águas,  de  árvores  e  bosques,  de 
animais  e  divindades  semi­animais.  Por  outro  lado,  as  conquistas  mentais  do 
homem,  na  longa  evolução  que  realizou,  desde  a  era  tribal  até  a  civilização, 
constituem  a  força  aglutinadora  desses  elementos.  A  capacidade  de  abstração 
mental, o desenvolvimento ético e a  formulação de normas  jurídicas, responsáveis 
pela  individualização,  modelam  os  elementos  aglutinados,  dando  assim  uma 
estrutura complexa ao processo de comunicação mediúnica. 
O fenômeno natural, de intercâmbio mediúnico, artificializa­se. O processo 
de racionalização, por outro lado, exige a elaboração de cosmogonias. Os oráculos
39 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
não são, portanto, formas simplórias de culto religioso, ou simples locais de consulta 
mediúnica.  Sua  estrutura,  muitas  vezes  bastante  complicada,  alicerça­se  numa 
concepção  do  mundo.  A  natureza  vaga  dessa  concepção  corresponde  à  própria 
natureza  sincrética  da  instituição  oracular.  O  fenômeno  mediúnico  aparece  nela 
como  um mistério.  Nada  o  explica,  nem  pode  explicá­lo,  nem  deve  atrever­se  a 
tanto.  O  tabu  tribal  se  impõe  de  maneira  mais  vigorosa  e  mais  ampla,  agora 
desenvolvido numa forma racional, que é a concepção do sagrado. A humanidade se 
encontra, nessa fase, como um adolescente, que reelabora em seu íntimo os sonhos, 
os  temores  e  as  esperanças  provenientes  das  primeiras  visualizações  do  mundo 
exterior. 
A  fase  infantil  de  indiferenciação  psíquica,  vivida  coletivamente  no 
horizonte  tribal,  exerce  ainda  a  sua  influência  sobre  as  cosmogonias  oraculares. 
Curioso  notar­se  que  não  há,  nos  oráculos,  aquilo  que  chamaremos  de 
individualização mediúnica. Embora exista o médium, ora chamado de oráculo, ora 
de  pitonisa,  e  embora  exista  uma  entidade  comunicante,  as mensagens  são  dadas 
através de processos impessoais. Às vezes, é o murmúrio da fonte que responde ao 
consulente; de outras vezes, é o rumorejar do bosque ou os sons misteriosos de uma 
gruta;  e  quando  o  médium  responde  diretamente,  sua  resposta  imita  os  rumores 
confusos  da  natureza.  Em  todos  os  casos,  a  resposta  depende  da  interpretação 
sacerdotal. Há, portanto, um corpo de sacerdotes que responde, de maneira coletiva, 
às  consultas  oraculares.  As  exceções  representam  casos  de  avanço  do  processo 
evolutivo, no sentido da individualização. O mediunismo oracular é, portanto, uma 
forma de transição para o culto  individual dos Espíritos, que por  sua vez exigirá a 
individualização  mediúnica,  já  definida  em  casos  típicos,  como  o  da  Pitonisa  de 
Endor, de que nos fala a Bíblia. 
A  História  das  Religiões  nos  mostra  que  o  culto  dos  ancestrais  foi 
inicialmente  coletivo,  os  espíritos  dos  mortos  considerados  em  conjunto  e  assim 
adorados, como no caso dos parentum e dos manes romanos. A individualização se 
efetua  lentamente,  evoluindo  as  coletividades  humanas,  como  crianças  em 
desenvolvimento,  da  “indiferenciação  psíquica”  para  as  fases  superiores  da 
racionalização. Os oráculos representam, no horizonte civilizado, esse momento de 
transição. 
4 – Os arquétipos coletivos 
A  transição  do  mediunismo  coletivo  —  claramente  representado  nos 
oráculos  e  nos  antigos  mistérios  egípcios,  babilônicos  ou  gregos  —  para  o 
mediunismo  individual, mostra­nos  a  existência  de  grandes  idealizações  coletivas, 
que  são  uma  espécie  de  sonhos  da  humanidade.  Esses  sonhos  apresentam­se  em
40 – J. Herculano Pires 
todas  as  épocas,  desde  a  fase  tribal,  e  aprimoram­se  com  o  desenvolvimento  da 
civilização. Jung chamou­os, na sua teoria do inconsciente coletivo, de “arquétipos 
coletivos”. Os céticos e  os materialistas  servem­se desses arquétipos para negarem 
as  grandes  profecias  religiosas  e  a  própria  existência  da  realidade  espiritual. 
Vejamos como o Espiritismo encara esse problema. 
Os arquétipos são, para Jung, os “complexos” da humanidade, produzidos 
por  grandes  traumas  coletivos.  Assim  como  os  traumas  infantis  produzem  os 
chamados  complexos  psicanalíticos,  as  condições  coletivas  por  que  passou  a 
humanidade,  em  suas  fases  de  desenvolvimento  primitivo,  teriam  produzido  os 
arquétipos.  Como  se  vê,  as  analogias  do  organicismo  spenceriano,  tantas  vezes 
ridicularizadas, encontram novas aplicações  em nossos dias. Um desses arquétipos 
de  Jung  é  a  lenda  do  dilúvio  universal  encontrada  nas  mais  diversas  regiões  do 
globo. O dilúvio bíblico de Noé tem o seu correspondente, por exemplo, no dilúvio 
assírio de Gilgamesch ou no dilúvio grego de Deucalião. E este último nos oferece a 
origem  lendária  dos  oráculos  gregos,  que  descendem,  entretanto,  dos  oráculos  de 
civilizações  mais  antigas.  Para  o  materialista,  essas  coincidências  históricas 
desvalorizam por completo a tese espiritualista, que se reduz a um rosário de lendas 
e de superstições mais ou menos racionalizadas pelos grupos sacerdotais, através dos 
tempos. Para o espírita, pelo contrário, essas coincidências revelam a autenticidade 
dos  arquétipos,  como  grandes  visões  coletivas  de  realidades  espirituais,  que  não 
puderam ser compreendidas na infância da humanidade. Assim como a criança, nas 
fases  de  descontrole  emocional  e  insegurança  da  razão,  elabora  interpretações 
fantásticas  de  ocorrências  reais,  assim  também  procedeu  a  humanidade  em  suas 
fases primitivas. 
O  fantástico  das  interpretações  não  nega  a  realidade  dos  fatos,  a 
coincidência histórica serve para confirmar essa realidade. Deucalião, o Noé grego, 
salvou­se  numa  barca,  levando  consigo  sua  esposa  Pirra.  Quando  Zeus  deliberou 
acabar  com  a  espécie  humana,  em  consequência  da  impiedade  que  avassalava  a 
terra,  Deucalião  foi  avisado  e  conseguiu  escapar.  Da  mesma  maneira  que  Noé, 
navegou sobre o dilúvio depois de nove dias aportou nas encostas do Parnaso, como 
aquele no monte Ararat. Deucalião e Pirra desceram da montanha para consultar um 
oráculo, que os aconselhou a cobrirem a cabeça e atirarem pedras para trás. A terra 
estava despovoada pelo dilúvio. As pedras que Deucalião atirou converteram­se em 
homens, e as de Pirra em mulheres. Assim, o mundo pôde ser novamente povoado. 
Depois,  o  casal  teve  um  filho,  Heleno,  que  deu  origem  à  raça  helênica,  tão 
privilegiada quanto o seria a raça hebraica. 
O  nome  de  Apolo,  o  deus  clássico  dos  oráculos,  recebe  em  Delfos  um 
acréscimo: o cognome Pítico. Esse acréscimo corresponde a outro arquétipo. É que 
após o dilúvio apareceu na região uma serpente gigantesca, que tudo avassalava. A 
serpente  Piton,  que  foi  morta  por  Apolo,  como  São  Jorge,  mais  tarde,  mataria  o
41 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
Dragão. Apolo Pítico tinha uma intérprete humana: a pitonisa, a médium grega dos 
oráculos.  Os  textos  sagrados  do  judaísmo  e  do  cristianismo  referem­se  a  pessoas 
tomadas  pelo  Espírito  de  Piton.  Os  oráculos  gregos,  como  vemos,  nascidos  do 
Dilúvio  de  Deucalião,  projetam­se  no  mundo  hebraico,  através  dos  intérpretes 
píticos,  dos  quais  podemos  apontar,  no Velho  Testamento,  o  caso  da  Pitonisa  de 
Endor,  e  no Novo Testamento,  a  da moça  “tomada”  por Piton,  que  acompanhava 
Paulo, segundo o Livro dos Atos dos Apóstolos. 
Kardec oferece­nos, em O LIVRO DOS ESPÍRITOS, um exemplo da origem 
concreta  dos  arquétipos  de  Jung, ao  considerar, no  capítulo  terceiro  do  Livro  I,  o 
dilúvio bíblico de Noé como uma  inundaçãoparcial. As escavações arqueológicas 
de Sir Charles Leonard Wolley, realizadas muito mais tarde, em 1929, ao norte de 
Basora,  próximo  ao  Golfo  Pérsico,  para  a  descoberta  da  cidade  de  Ur,  parecem 
confirmar a tese de Kardec. Ao encontrar a camada de lodo que cobria as ruínas de 
Ur,  Sir Woolley  declarou  que havia  encontrado  os  restos  do  dilúvio  bíblico  de  há 
quatro  mil  anos.  Esse  dilúvio,  atingindo  uma  vasta  região,  teria  produzido  um 
trauma  coletivo,  de  que  resultaria  o  “complexo”  ou  “arquétipo”  coletivo  da  lenda 
diluviana. Resta­nos perguntar, naturalmente, se essa localização do dilúvio não vem 
contrariar  a  universalidade  da  lenda.  Kardec  explica,  entretanto,  que  “a  catástrofe 
parcial foi tomada por um cataclismo geológico”. O mesmo que aconteceu em Ur, 
podia  ter  acontecido  em  Delfos  e  em  outros  locais,  produzindo  o  mesmo  abalo 
emocional em coletividades diferentes, cada uma das quais considerava a sua região 
particular  como  sendo  o  próprio  mundo.  Sabemos  que  a  falta  de  comunicações 
isolava  os  povos,  e  isso  até  bem  mais  tarde,  como  vemos  pela  história  dos 
descobrimentos marítimos, no início da era moderna. 
A  realidade  concreta  da  inundação,  ferindo  a  imaginação  dos  povos, 
mistura­se com a realidade abstrata ou espiritual, que é a determinação “kármica” da 
“prova”.  A  lenda  do  dilúvio  reproduz,  por  toda  parte,  uma  alegoria  espiritual, 
advertindo  os  homens  quanto  às  exigências  da  evolução,  que  se  traduzem  na 
necessidade de espiritualização.
42 – J. Herculano Pires 
CAPÍTULO IV 
HORIZONTE PROFÉTICO: 
MEDIUNISMO BÍBLICO 
1 – Superação do gregarismo 
O gregarismo primitivo permanece, como vimos, até o horizonte agrícola, 
passando  ao  horizonte  civilizado,  ainda  bastante  vigoroso. Mas  neste  último  já  se 
verifica  a  ruptura  da  homogeneidade  gregária,  com  o  aparecimento  do 
individualismo. Os homens tomam consciência de si mesmos, de sua potencialidade 
individual, e vão aos poucos rompendo as malhas do rebanho. O exemplo e o ensino 
dos mais adiantados estimulam os que vêm na retaguarda, e a fascinação do domínio 
próprio, o prazer e a novidade do controle autônomo, encorajam os que se iniciam 
na individualização. 
O  horizonte  profético,  que  assinala  o  avanço  da  humanidade  além  do 
horizonte  civilizado,  é  o  mundo  da  individualização.  Assim  como  a  criança,  ao 
tomar consciência de si mesma, após a primeira infância, mostra­se encantada com a 
possibilidade  de  se  dirigir  sozinha  e  fazer  o  que  quer,  assim  também  o  homem­ 
gregário,  resultante  natural  da  evolução  do  homem­tribal,  encanta­se  com  as 
possibilidades  da  individualização.  Nada  mais  justo,  portanto,  que  os  excessos  e 
abusos  que  caracterizam  o  indivíduo  greco­romano  e  o  profeta  hebraico.  Eles 
manejam um  instrumento  novo,  uma nova máquina,  e  se  embriagam na  liberdade 
recém­adquirida.  Liberdade  é  bem  o  termo,  pois  a  individualização  representa  a 
libertação  do  rebanho.  O  homem  que  se  individualiza  aprende  a  pensar  por  si 
mesmo,  a  escolher,  a  julgar,  não  se  submetendo  mais  aos  moldes  coletivos.  Ao 
mesmo  tempo,  liberta­se  dos  instintos,  da  força  absorvente  das  necessidades  da 
espécie,  que  o  escravizaram  no  gregarismo.  A  capacidade  de  abstração  mental 
libertou­o do concreto, da sujeição à matéria. A capacidade de formulação de juízos 
éticos, jurídicos e religiosos, transformou­o em juiz da tradição, do meio social e de 
si mesmo. 
O poder de racionalização o erigiu em senhor da sociedade e da natureza. 
Nada mais  justo  que  ele  agora  se  imponha  ao mundo,  em  vez  de  submeter­se  às 
contingências e às circunstâncias. Descobrindo o seu próprio poder, e conquistando 
a habilidade de manobrá­lo a seu talante, o homem civilizado eleva­se ao plano do 
profetismo. Já não é apenas uma ovelha do rebanho humano. É alguém que ergueu a
43 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
sua cabeça sobre a  turba e viu­se capaz de  julgá­la. Essa nova condição explica o 
aparecimento, no mundo que se estende, mais ou menos, do século nono ao terceiro, 
antes de Cristo, das grandes individualidades de sábios, místicos, poetas e profetas, 
numa  vasta  área  de  grande  desenvolvimento  da  civilização. Murphy  entende  que 
essa área abrange o chamado Fértil Crescente, que vai da Grécia e o Egito, passando 
pela Palestina e a Mesopotâmia, até a índia e a China. Nos limites de tempo e espaço 
assim  configurados,  vemos  brilharem  a  filosofia  grega,  o  profetismo  hebraico,  o 
misticismo hindu e o moralismo chinês. Atrás deles, como pano de  fundo, estão o 
patriarcalismo mesopotâmico, o sacerdotismo egípcio e o magismo persa. 
Abrão,  como  já  vimos,  era  um  herdeiro  do  horizonte  civilizado 
mesopotâmico, levando consigo, ao deixar a cidade de Ur, a bagagem dos bens­de­ 
cultura ali adquiridos. Moisés, por sua vez, era um herdeiro da civilização egípcia. 
Aquenáton e Zoroastro projetavam suas luzes sobre os patriarcas hebreus, através da 
poderosa influência das civilizações egípcia e persa. Muito natural, portanto, que os 
hebreus,  ao  implantarem o  seu  domínio  em Canaã,  estabelecessem  ali,  ao mesmo 
tempo,  o  horizonte  civilizado,  que  traziam  como  herança,  em  mistura  com  o 
horizonte agrícola encontrado na  terra, e  sobre ambos abrissem as perspectivas do 
horizonte  profético. Murphy  assinala  essa  curiosa  simultaneidade,  que  confirma  a 
tese  de Augusto Comte,  sobre  a mistura  de  elementos  dos  três  estados:  teológico, 
metafísico e positivo, em cada um desses mesmos estados. 
O horizonte profético atingiu, entre os hebreus, a sua culminância, mas nem 
por isso se apresenta em estado de pureza ideal. Muito pelo contrário, nos momentos 
de  maior  brilho  do  profetismo  hebraico,  os  resíduos  do  horizonte  agrícola  fazem 
sentir poderosamente a  sua presença. E assim tinha de ser, pois a evolução social, 
mental e espiritual do homem se desenvolve  como um continuum, sem solução de 
continuidade. A nossa razão é que a fragmenta, como no caso da duração e do tempo 
bergsonianos,  para  atender  às  deficiências  do  nosso  poder  de  percepção  e 
compreensão do processo  total. Os motivos da culminância do horizonte profético 
entre  os  hebreus,  segundo  nos  parecem,  e  considerando­se  a  hereditariedade 
histórica já apontada, podem ser assim discriminados: 
1)  Aceitação  popular  do  monoteísmo,  pela  primeira  vez  na  história,  e 
consequente individualização da ideia de Deus; 
2)  Acentuação dos atributos éticos de Deus; 
3)  Estabelecimento  de  ligações  diretas  do Deus  individual  com  o  indivíduo 
humano; no caso, o profeta. Essas mesmas razões farão do profeta hebreu, 
como veremos logo mais, um indivíduo tridimensional, de individualização 
mais poderosa que o indivíduo grego e o seu herdeiro romano.
44 – J. Herculano Pires 
2 – As dimensões do profeta 
A aceitação do monoteísmo por todo um povo, acorrida pela primeira vez 
na história, quando os hebreus, após a relutância inevitável, admitiram que o deus 
familiar de Abrão, Isaac e Jacó, era o Ser Supremo, assinala o advento do horizonte 
profético.  Desse  momento  em  diante,  os  médiuns  antigos  adquiriram  uma  nova 
dimensão, e por isso mesmo uma nova' qualidade. Não eram mais os instrumentos 
submissos  de  espíritos  dominadores,  como o  de Piton, a  serpente délfica,  possível 
representação  alegórica  de  um  antigo  tirano,  e  não  caíam  mais  nos  transes 
inconscientes.  Pelo  contrário,  instrumentos  conscientes  de  um  Deus  universal, 
supremo, racional, passaram a falar como intérpretes e não como simples aparelhos 
de  transmissão  de  mensagens  vocais.  A  nova  qualidade  que  adquiriram  foi  a 
dignidade  individual.  Fácil  perceber­se  a  diferença  existente  entre  a  pitonisa,  que 
caía em transe e proferia palavrasdesconexas, e o profeta hebreu, cheio de dignidade 
pessoal, de consciência da sua missão divina, que não temia apostrofar os poderosos 
do tempo. 
Vemos que a  individualização social, produzida pelo horizonte civilizado, 
atinge  sua  culminância no  horizonte  profético,  para  redundar numa  forma nova: a 
individualização  mediúnica.  O  profeta  é  um  médium  que  rompeu  o  gregarismo 
psíquico, arvorou­se em senhor de si mesmo, passou a responder pessoalmente pelos 
seus pronunciamentos mediúnicos. Acima dele, paira a razão suprema, o Deus único 
e universal, com o qual ele pode confabular através da mediunidade. E nele mesmo 
brilha a razão humana, a inteligência individualizada, senhora de si, capaz de julgar­ 
se a si própria e julgar o mundo e os homens. 
A  individualização  da  ideia  de  Deus,  o  conceito  de  um  Ser  Supremo, 
decorre  da  própria  individualização  humana.  O  homem,  desprendendo­se  do 
rebanho,  destacando­se  da  massa  gregária,  torna­se  “egrégio”,  importante,  e  não 
pode  mais  admitir  a  sua  submissão  a  deuses  gregários.  Tem  de  eleger  um  deus 
“egrégio”,  um  deus  que,  como  ele,  supere  o  rebanho  olímpico.  Este  é  o  fato  que 
justifica  o  engano materialista, que  inspirou  um belo  soneto  a Antero  de Quental, 
segundo o qual não foi Deus quem fez o homem à sua imagem e semelhança, mas 
este  quem  fez  Aquele.  Realmente,  o  monoteísmo  é  uma  projeção  do  homem  ao 
infinito, como queria o poeta. Daí o antropomorfismo bíblico da concepção de Deus. 
Mas  esse  antropomorfismo  não  nega  a  existência  do  Ser  Supremo.  Antes,  como 
afirmava Descartes, é a prova mais profunda e universal dessa existência, a marca 
indelével  do Criador na  criatura. O Deus Único,  feito  à  imagem e  semelhança  do 
Homem Único, do indivíduo que se desprendeu da turba, deve possuir os atributos 
que caracterizam esse novo homem. Assim como os deuses múltiplos do politeísmo, 
formando  o  rebanho  olímpico,  reproduzem  os  vícios  e  as  paixões  do  homem 
múltiplo do gregarismo, assim também o Deus Único reproduz a dignidade pessoal
45 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
do homem “egrégio”, que se destacou da grei. Acentuam­se então os atributos éticos 
de  Deus.  A  dignidade  humana  do  indivíduo  social  projeta­se  no  infinito, 
expandindo­se  na  Suprema  Dignidade.  Nada  mais  justo,  portanto,  que  a  relação 
inversa  também  se  verifique.  O  Deus  Único  se  projeta  no  homem  individual, 
estabelecendo­se a relação direta da Pessoa Divina com a pessoa humana. 
O profeta é o elo entre a terra e o céu. A individualização social produziu a 
individualização mediúnica, e esta, por sua vez, produz a individualização espiritual, 
através  do  aprimoramento  dos  atributos  éticos  do  profeta.  A  simbiose  metafísica 
resulta em benefícios recíprocos. O pensamento materialista, mesmo o dialético, não 
alcança  a  grandeza  dessa  relação  dialética,  semelhante  a  do  homem  que,  pelo 
trabalho,  modifica  a  natureza  e  é  por  esta  modificado.  O  pensamento  espírita 
consegue abranger as dimensões do  fato, mostrando que, por  traz da aparência, há 
uma realidade profunda. Na verdade, a projeção do homem ao infinito não é mais do 
que  uma  aproximação  humana  da  realidade  divina.  A  projeção  psíquica  do 
monoteísmo  é  simplesmente  uma  resposta  do  indivíduo  humano  ao  apelo  do 
Indivíduo Divino, que através dos séculos e dos milênios esperou a compreensão do 
indivíduo gregário. 
Podemos aplicar ao caso os versos de Rainer Maria Rilke: “Mesmo que não 
o queiramos, Deus nos faz amadurecer”. O amadurecimento social nos torna capazes 
de abranger maiores dimensões da ideia de Deus, pela maior amplitude mental que 
nos  proporciona.  O  profeta  se  apresenta,  assim,  como  um  indivíduo  em  três 
dimensões.  Na  primeira,  temos  o  indivíduo  social;  na  segunda,  o  indivíduo 
mediúnico; na terceira, o indivíduo espiritual. Por esta terceira dimensão, o profeta 
revela uma individualização mais poderosa que a do indivíduo grego, que apesar de 
libertar­se do gregarismo terreno, continuou politeísta, e que a do indivíduo romano, 
que se fechou no casulo social da cidadania. O profeta hebreu, que tem a sua réplica 
nos  sábios,  artistas  e místicos  dos  demais  povos  da  época,  rompe  a  estreiteza  das 
relações  terrenas e estabelece aquela  forma transcendente de  relação que,  segundo 
uma  feliz  expressão  de Denis  de Rougemont,  o  toma  “mais  livre  que  o  indivíduo 
grego,  mais  entrosado  que  o  cidadão  romano,  mais  liberto  pela  própria  fé  que  o 
entrosa”. 
3 – Individualização mediúnica 
A concomitância dos horizontes agrícola, civilizado e profético, no mundo 
hebraico,  proporciona  as  condições  necessárias  ao  aparecimento  do  horizonte 
espiritual.  Essa  a  razão  histórica,  mesológica  e  psicológica  do  imenso  poder  do 
Cristianismo, transformador e renovador do mundo. Nenhuma das religiões orientais 
que invadiram o mundo greco­romano, como nenhuma das correntes filosóficas do
46 – J. Herculano Pires 
helenismo, trazia consigo essa perspectiva nova, que oferecia ao homem a ampliação 
do  seu  poder  conceptual,  permitindo­lhe  enxergar  além  dos  horizontes  que 
circundavam  o  mundo  agrário,  o  mundo  civilizado  e  o  próprio  mundo  profético. 
Todas  as  explicações  materialistas  sobre  a  vitória  do  Cristianismo,  a  partir  da 
derrocada do mundo antigo, sofrem da mesma estreiteza visual que caracterizava os 
povos  da  época,  em  face  da  espiritualidade hebraica. Assim  como  os  “goyn”  não 
compreendiam  Israel,  e  assim  como  os  próprios  israelitas  não  compreenderam  o 
Cristo, assim também o pensamento pragmatista, positivista ou materialista, de hoje, 
não  pode  compreender  o  sentido  e  a  natureza  do  Cristianismo,  que  atinge  no 
Espiritismo  a  sua  mais  perfeita  expressão,  e  os  cristãos  formalistas  não 
compreendem a natureza e o sentido libertários do movimento espírita. 
Da  mesma  maneira  por  que  o  grego  e  o  romano  consideravam 
supersticiosas as práticas religiosas judeu­cristãs, e o judeu, por sua vez, considerava 
heréticas as ideias libertárias do Cristianismo, os homens “cultos” e os “religiosos” 
de hoje  formulam acusações semelhantes aos espíritas. Tudo se explica pela  teoria 
dos horizontes culturais. O homem que se mantém fechado no círculo do horizonte 
civilizado,  apegando­se  aos  “bens  de  civilização”,  segundo  a  expressão  de 
Kerchensteiner,  não  abre  os  seus  olhos  e  a  sua  mente  para  as  perspectivas  mais 
amplas do horizonte espiritual. O esquematismo cultural e o dogmatismo religioso, 
com  seus  respectivos  sistemas  rituais,  oferecendo­lhe  uma  riqueza  concreta  e 
imediata, muito superior à do passado, absorvem­lhe a atenção. A individualização 
social,  longa  e  dolorosamente  conquistada,  defende­se  de  qualquer  ameaça  de 
desequilíbrio ou dispersão. O instinto de conservação do indivíduo­social ajuda­o a 
concentrar­se nos bens de cultura da civilização, mas ao mesmo tempo impede­lhe o 
avanço na espiritualização. 
Nada melhor, para nos esclarecer esse  fenômeno, que a teoria dialética da 
cultura, formulada por Kerchensteiner, com as teses da cultura objetiva e subjetiva. 
O indivíduo­social é um produto da cultura objetiva, cercado dos bens de cultura que 
constituem objetivamente a civilização. Mas acima da civilização pairam os ideais e 
as aspirações do espírito humano, sôfrego por evoluir e se libertar dos esquemas por 
ele  mesmo  construídos.  À  ideologia  dominante  opõe­se  a  utopia  desejada,  no 
contraste  histórico  de Mannheim.  E  somente  os  indivíduos  capazes  de  romper  o 
círculo  dos  bens  de  cultura  podem  conceber  a  utopia  como  alguma  coisa 
transcendente  e  não  imanente  a  esses  bens.  Essa  capacidade  de  transcendência  é 
comum a  todos  os homens, mas só atinge a  sua plenitude na proporção  em queo 
indivíduo­social  rompe  o  casulo  das  convenções,  em que  gostosamente  se  fechou, 
para abrir as asas de borboleta da individualização mediúnica. Depois disso, poderá 
tornar­se,  e  forçosamente  se  tornará,  um  indivíduo  espiritual.  Foi  o  que  aconteceu 
com os profetas hebraicos. O horizonte agrícola da Palestina, com a vida agrária dos 
cananitas, não foi abafado pela invasão judaica. O próprio Abrão, ao partir de Ur, na
47 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
companhia de seu pai Terá, já conjugava em sua mente os dois horizontes. Segundo 
acentua  Woolley,  no  século  XII  antes  de  Cristo,  os  hebreus  que  residiam  nas 
proximidades  de  Ur  constituíam  uma  pequena  colônia  de  pastores  e  agricultores. 
Viviam no  horizonte  agrícola, mas  ao  lado  de  urna  grande  cidade,  cujos  bens  de 
cultura  naturalmente  absorveram.  Assim,  os  hebreus  não  tiveram  dificuldade  em 
construir na Palestina,  sobre  o mundo agrícola ali encontrado, o mundo civilizado 
que  haviam  herdado  lá  fora.  Mas  a  cultura  subjetiva  dos  hebreus,  desenvolvida 
através de um processo religioso mais profundo que o mesopotâmico, propiciou­lhes 
o avanço imediato para o horizonte profético. 
A  tônica  da  tendência  religiosa  hebraica  responde  pela  característica 
espiritual do profetismo, que atinge a sua maior amplitude graças ao fato histórico 
da vulgarização do monoteísmo. Aquilo que não pôde ocorrer na Pérsia, na índia, na 
Grécia ou na China, — em virtude da dispersão das forças espirituais no politeísmo 
— ocorreu na Palestina, em virtude da concentração dessas forças no monoteísmo. 
Os bens de cultura das civilizações orientais, concretizados nas suas  fórmulas, nos 
seus  ritos  e  nos  seus  deuses,  consolidavam  a  individualização  social  e  davam  ao 
indivíduo  uma  rigidez  mental  que  não  lhe  permitia  a  visão  espiritual.  A  cultura 
subjetiva  dos  hebreus,  ou  seja,  o  seu  refinamento  espiritual,  que  os  conduzia  à 
concepção  universal  do  Deus  Único,  favorecia­lhes,  ao  contrário,  a  transição  do 
indivíduo­social  para  o  indivíduo­mediúnico.  Foi  por  isso  que  Isaías  conseguiu 
enxergar  além  da  utopia  “concreta”,  que  os  hebreus  puderam  sonhar  com  a 
Jerusalém Celeste, enquanto os outros povos sonhavam com o paraíso persa, cheio 
de prazeres e delícias terrenas, e o próprio Platão idealizava uma República terrena, 
concreta. 
A  individualização  mediúnica  abriu  as  portas  da  espiritualidade  para  os 
hebreus,  permitindo  a  criação,  na  Palestina,  do  clima  necessário  ao  advento  do 
Messias, d’Aquele que devia trazer, não mais as “messes” da terra, mas as do céu. O 
Evangelho representou a grande ceifa desses bens celestes, bens subjetivos, na seara 
mediúnica da cultura subjetiva. Isso explica por que o povo hebreu podia considerar­ 
se  eleito  e  por  que  o  seu  domínio  devia  estender­se  a  todos  os  povos.  Deus 
multiplicaria,  graças  à  individualização mediúnica,  os  filhos  de Abrão  por  toda  a 
terra.  A  simbologia  bíblica  encontra  a  sua  interpretação  histórica  nos  estudos 
espíritas da  evolução  humana. Os  estudos materialistas, não  atingindo  a  dimensão 
espiritual do homem, encravam no concreto, na cultura Objetiva, e não encontram 
outra  saída  senão  a  superstição,  para  explicarem  os  sonhos  judaicos  de  expansão 
universal.
48 – J. Herculano Pires 
4 ­­ Individualização espiritual 
Para  bem  compreendermos  o  problema  da  individualização  espiritual, 
analisemos  rapidamente as  formas  anteriores:  a  biológica  e  a  social. O homem  se 
destaca,  individualmente,  da  massa  animal  da  espécie,  no  momento  em  que  se 
reconhece a si mesmo como unidade que se opõe ao múltiplo. Seu corpo é um, em 
conflito  com  muitos  corpos,  que  o  cercam  por  todos  os  lados.  O  gregarismo 
biológico é superado pelo narcisismo, e esse narcisismo se repete em cada indivíduo, 
no processo do desenvolvimento biológico individual, como ensina a psicologia da 
infância  e  da  adolescência.  Não  obstante,  a  individualização  biológica  é  apenas  o 
primeiro  passo  da  individualização  social,  e  por  isso mesmo não  pode  ser  tomada 
como  uma  dimensão  espiritual.  No momento  em  que Narciso  se  debruça  sobre  o 
espelho  das  águas,  e  aprende  a  se  contemplar,  descobre  também  que  merece  a 
admiração dos outros. O vínculo social se estabelece. A fórmula de Sartre, sobre as 
três  dimensões  ontológicas  do  corpo,  esclarece  precisamente  o  que  estamos 
estudando. Podemos  resumi­la assim: “Existo no meu corpo, é esta a  sua primeira 
dimensão;  meu  corpo  é  utilizado  e  conhecido  por  outro,  e  esta  é  a  sua  segunda 
dimensão; eu existo por mim como conhecido por outro a título de corpo, e esta é a 
terceira dimensão ontológica do meu corpo”. 
Ao reconhecer a existência do seu corpo, na massa da espécie, o homem já 
se  projeta  fora  de  si mesmo,  na  relação  social. Mas,  com  isso,  não  se  devolve  à 
espécie.  Pelo  contrário,  supera­a,  iniciando  a  facticidade  do  social,  entrando  para 
uma nova forma de gregarismo, de ordem superior, que é o gregarismo psíquico. A 
terceira dimensão ontológica do corpo é o indivíduo social, que no plano do espírito 
representa  apenas  a  primeira  dimensão.  O  indivíduo  social  é  uma  transcendência 
imediata  do  indivíduo  biológico,  segundo  o  demonstra  o  próprio  Sartre.  E 
reportando­nos à definição, já citada, de Simone de Beauvoir, sobre a humanidade, 
podemos dizer que esta deixa de ser uma espécie, para se transformar num devir, no 
momento exato em que Narciso se olha no espelho das águas. Pisando no limiar do 
espírito, com a individualização social, o homem avança na espiritualidade através 
do  lento  e  vasto  processo  da  individualização mediúnica, que  estudamos  ao  tratar 
dos horizontes tribal, agrícola e civilizado. Neste último é que surge o conflito entre 
o social e o mediúnico, porque o espiritual se impõe, a cultura subjetiva se define e 
se  destaca  da  objetiva. Os  deuses materiais  do  politeísmo  se  reúnem numa  forma 
única e superior, a do monoteísmo, que é abstrata, espiritual. 
A utopia leva Platão a sonhar com a República, Francis Bacon com a Nova 
Atlântida, Karl Marx com a sociedade sem classes. Mas depois de Platão e antes dos 
outros, Jesus também pregara o Reino de Deus, para confirmar a natureza espiritual 
do homem, que transcende a material. E Kardec, mais tarde, daria sentido espiritual 
à lei da evolução, que o século dezoito descobriu, para mostrar que o Reino de Deus
49 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
é uma conquista progressiva, um avanço da humanidade, através do deserto ilusório 
dos bens materiais, na direção da Canaã espiritual. 
Ao atingir a individualização mediúnica, o profeta se põe em relação direta 
e  pessoal  com  Deus.  Dois  indivíduos  se  defrontam:  o  divino  e  o  humano.  Os 
intermediários, quer sociais, quer espirituais, são afastados. O profeta não necessita 
mais  dos  sacerdotes,  nem  dos  deuses.  Abrão,  por  exemplo,  é  amigo  de  Deus  e 
confabula  com  Ele.  Despreza  os  deuses  mesopotâmicos  e  os  de  todos  os  povos 
idólatras,  porque  elevou­se  acima  do  gregarismo  psíquico  e  descobriu  que  a  sua 
individualização  não  é  apenas  um  processo  terreno,  pois  corresponde  a  uma 
realidade  espiritual,  que  é  a  individualização  de Deus.  Ninguém  explicou melhor 
esse fato do que Descartes, ao descobrir, no fundo do cogito, no mais profundo de si 
mesmo, a ideia do Ser Supremo. De onde viria essa ideia, que não encontra apoio na 
realidade  exterior,  onde  só  encontramos  os  seres  falíveis  e  imperfeitos  da 
individualização  social?  Só  poderia  vir  de  uma  realidade  interior,  e  portanto 
espiritual. 
O Ser Supremo não corresponde aos produtos objetivos da evolução, mas 
aos subjetivos. E como é ele o modelo único da espiritualidade, aquele ímã divino deque falava Aristóteles, que atrai o mundo para a sua perfeição absoluta, o indivíduo 
espiritual não pode dirigir­se senão a ele. Daí a energia e a firmeza, a intransigência 
com que os profetas hebreus rejeitavam a idolatria. O indivíduo espiritual, que neles 
se  desenvolvia,  recusava­se  a  aceitar  a  própria  diluição  nos  cultos  formais  do 
politeísmo.  Esses  cultos  constituem  um  perigo  para  a  integridade  espiritual  do 
profeta. A afirmação de John Murphy em seu  tratado, ORIGENS E HISTÓRIA DAS 
RELIGIÕES, ajuda­nos a compreender todo esse processo: “O homem é o produto da 
evolução,  tanto  no  seu  corpo,  quanto  no  seu  espírito”. Murphy  acrescenta:  “O  ser 
humano passou por graus sucessivos de evolução, e foi o seu espírito que o tornou 
especificamente humano”. 
As formas de individualização a que nos referimos oferecem a linha dessa 
evolução. Narciso levanta a cabeça do espelho das águas para contemplar o mundo 
com  olhos  sonhadores.  A  descoberta  de  si  mesmo,  de  sua  especificidade,  de  sua 
beleza própria, descortina­lhe unia visão diferente das coisas dos seres. O corpo de 
argila  que  recebeu  o  sopro  do  Criador,  segundo  o  imito  bíblico,  revelou  um 
conteúdo  espiritual, que supera a realidade  imanente e  leva o homem ao plano do 
transcendente.  A  individualização  espiritual  é,  portanto,  o  ápice  do  processo 
evolutivo que se iniciou com a individualização biológica. Ao atingi­la, o homem se 
iguala a Deus, e pode falar a Ele como de igual para igual. Não era assim que faziam 
os  profetas? Ouviam  a Deus,  e Deus  os  ouvia. A  criação  do  homem à  imagem e 
semelhança de Deus não é, portanto, uma simples alegoria, e não se refere ao plano 
material. O deus antropológico é apenas uma concepção aproximativa da realidade 
espiritual, que se converte no deus­sem­forma de Israel ou dos místicos indianos.
50 – J. Herculano Pires 
Deus é amor, diz João, evangelista, e essa afirmação nos leva a um plano 
conceptual  que  paira  muito  acima  do  antropomorfismo  religioso.  Não  obstante, 
devemos  precaver­nos  das  ilusões.  O  deus  conceptual  é  apenas  um  reflexo  da 
realidade suprema. O indivíduo espiritual confabula com entidades superiores, certo 
de falar com o próprio Deus, como ocorreu com Moisés no Sinai ou com Elias no 
Carmelo.  A  individualização  espiritual  é  ainda  uma  fase  da  evolução,  que  se 
prolonga  nos  planos  da  espiritualidade,  muito  além  das  nossas  possibilidades  de 
concepção e imaginação.
51 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
CAPÍTULO V 
HORIZONTE ESPIRITUAL: 
MEDIUNIDADE POSITIVA 
1 – Transcendência humana 
A  individualização  espiritual  representa  o  momento  de  transcendência 
humana,  ou  seja,  aquele  em  que  o  homem  supera  as  condições  da  própria 
humanidade.  Até  esse  momento,  ser  humano  é  estar  ligado  a  condições  animais, 
diferenciando­se  das  outras  espécies  apenas  pela  razão.  Há  deuses  e  homens.  Os 
deuses são entidades espirituais,  superiores, que vivem nos  intermúndios, gozando 
do  privilégio  da  imortalidade.  Os  homens  são  criaturas  efêmeras,  escravizadas  ao 
solo, “bichos da terra, tão pequenos”, segundo a expressão de Camões. Mas, quando 
a  evolução  mediúnica  abre  as  perspectivas  do  horizonte  espiritual,  o  homem 
descobre  que  ele  e  os  deuses  são  semelhantes,  e por  isso mesmo  se  eleva  sobre  a 
condição humana, atingindo a divina. 
Na  antiguidade  e  na  Idade Média,  o  dualismo  humano­divino  se  mostra 
bem  claro.  Um  fenômeno  mediúnico  de  possessão  é  sempre  tomado  como 
manifestação  demoníaca  ou  sagrada.  O  homem,  não  tendo  ainda  atingido  o 
horizonte  espiritual,  não  pode  conceber  que  o  espírito  comunicante  seja  da  sua 
mesma natureza. Para ele, trata­se de uma entidade estranha, boa ou má. Entretanto, 
no horizonte  profético  de  Israel,  já aberto  às  perspectivas espirituais, aparecem  as 
declarações  insistentes  de  que  os  espíritos  comunicantes  são  de  natureza humana, 
como vemos nos casos espíritas da Bíblia, Velho e Novo Testamentos. Somente na 
era  moderna,  porém,  essa  compreensão  irá  se  tornar  efetiva.  Porque  só  então  o 
espírito humano amadureceu  o suficiente, para que a promessa do Consolador, do 
Paráclito,  do  Espírito  da Verdade,  possa  cumprir­se. É  por  isso  que  o  espírito  de 
Charles Rosma, ao comunicar­se em Hydesville, através da mediunidade das irmãs 
Fox, numa família metodista, não é mais tomado como demônio ou deus, mas como 
o  espírito  de  um  homem. Assim  aceito,  Rosma  pode  falar  do  seu  estado,  do  seu 
passado, e dar as indicações de sua passagem ocasional pela residência em que foi 
morto, bem como das condições dessa morte e dos  indícios existentes no subsolo, 
que serão  encontrados mais  tarde. Rosma pode  ser  tomado  como um exemplo  do 
fenômeno da transcendência humana, que assinala o aparecimento concomitante da 
mediunidade positiva. Não encontramos mais, em Hydesville, o profeta bíblico, nem
52 – J. Herculano Pires 
o  oráculo  ou  o  pagé, mas  o médium,  ou  seja,  o  indivíduo  humano  que  se  tornou 
capaz de servir de intermediário entre seres espirituais e carnais, ambos da mesma 
natureza.  Rosma,  o  mascate,  morto  na  casinha  de  Hydesville,  transcende  sua 
condição material humana, mas continua humano no plano espiritual. De mascate, 
passa a espírito, e como espírito se comunica, graças à mediunidade das meninas da 
família Fox. Já não estamos mais no plano místico e misterioso do mediunismo, mas 
no plano científico, racional, da mediunidade positiva. 
Vemos assim que o aparecimento do horizonte espiritual é uma decorrência 
natural  da  evolução mediúnica. Mas  vemos  também,  como  assinala Kardec  em A 
GÊNESE,  que  essa  evolução  se  realiza  num  contexto  histórico,  juntamente  com  a 
evolução  mental, moral  e  espiritual  do  homem,  no  processo  de  desenvolvimento 
econômico­social  da  humanidade.  Sem  o  desenvolvimento  científico,  assinala 
Kardec, não se criaria no mundo o clima necessário à compreensão do Espiritismo: 
Quando  tratamos,  pois,  de  mediunidade  positiva,  não  fazemos  abstração  das 
condições  históricas  que  propiciaram  o  seu  aparecimento.  Temos.  de  encarar  o 
problema no seu contexto, para bem compreendê­lo. A transcendência humana que 
caracteriza o horizonte espiritual não significa, por isso mesmo, uma fuga ou uma 
deserção  das  condições  humanas.  Pelo  contrário,  significa  o  aparecimento  dessas 
condições, permitindo a superação da animalidade e a transferência do homem para 
o  plano  antigamente  reservado  às  divindades,  fossem  elas  benéficas  ou maléficas. 
Por  outro  lado,  essa  superação  não  representa  um  passe  de  mágica,  um  fato 
sobrenatural, uma descontinuidade no processo histórico, mas o seu prosseguimento 
natural.  Tornar­se  divino  é  o  próprio  destino  do  homem.  O  divino,  como  já 
dissemos, é aquilo que está acima do humano, assim como o humano é o que está 
acima  do  animal.  Deste  ao  homem  há  a  distância  de  uma  superação,  mas  essa 
distância  não  é  vazia.  Do  homem  ao  divino  há  também  uma  distância,  que  se 
prolonga através de fases evolutivas bem definidas. 
Podemos  falar,  lembrando  Einstein,  de  um  continuum  do  processo 
evolutivo, englobando matéria e espírito. Porque nesse processo não há solução de 
continuidade. Já vimos as fases evolutivas inferiores, em que o homem sobe, pouco 
a pouco, do plano biológico para o social e deste para o profético e o espiritual. Mas 
nos  dois  últimos,  o  profético  e  o  espiritual,  já  se  iniciam  as  fases  evolutivas 
superiores. Veremos como essas fases se definem no plano mental, ao analisarmos a 
série de concepções que constituem, no seu conjunto, o processo de transcendência 
cio  horizonte  espiritual.  É  pelo  pensamento  que  o  homem  se  eleva,  supera  as 
condições  da  vida  humana  noplano  físico,  atingindo  as  possibilidades  de 
sublimação humana no plano espiritual. Ortiga y Gasset definia o homem como um 
drama.  Nada  nos  oferece  melhor  visão  desse  drama,  em  sua  extensão  e  em  sua 
profundidade, do que o estudo da evolução humana à luz dos princípios espíritas.
53 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
2 – Inteligência suprema 
Em  seu  famoso  estudo  sobre  a  consciência  metafísica  do  Ocidente, 
Wilhelm  Dilthey  assinala  três  motivos  fundamentais  para  a  nova  concepção  do 
mundo  que  surgiu  a  partir  dos  gregos.  “Como  uma  fuga  se  compõe  de  poucos 
motivos  fundamentais,  assim  esses  três  motivos  dominam  toda  a  metafísica 
humana”, declara Dilthey, acrescentando: “Foram transmitidos pelos povos antigos, 
unificando­se  no  Império  Romano,  no  mundo  em  declínio  abarcado  por  esse 
império, e nele se fundiram intimamente. Dessa união surgem as obras dos Pais da 
Igreja e as dos últimos autores pagãos. Na obra de Agostinho, A CIDADE DE DEUS, 
encontramos  sua máxima unificação”. Os motivos  fundamentais  de Dilthey  são:  a 
ideia  grega  de.  Deus  como  inteligência  suprema,  arquiteto  do  universo;  a  ideia 
romana  do  mundo  como  um  sistema  de  relações  jurídicas;  e  a  ideia  judaica  da 
criação  do  mundo.  Vemos  que  essa  observação  de  Dilthey  concorda  com  a 
proposição de John Murphy sobre o aparecimento do horizonte profético. Mas não 
devemos  esquecer­nos  de  que  nesse  horizonte  já  começa  a  raiar  uma  nova 
perspectiva, a do horizonte espiritual. Aliás, é exatamente nesse novo horizonte que 
a  consciência  metafísica  de  Dilthey  vai  se  definir,  como  o  processo  de 
transcendência  que  já  assinalamos,  e  que  o  próprio  Dilthey  menciona  no  seu 
trabalho. Três motivos, também, nada mais que três notas fundamentais, constituem 
a base e a substância dessa fuga musical que, a partir dos gregos, dos romanos e dos 
judeus, arrebatará os espíritos e os conduzirá à epopéia da Renascença, eclodindo na 
forma de uma verdadeira alvorada espiritual, no século dezenove. 
Se Dilthey  fosse  espírita,  teria alcançado, com sua extraordinária argúcia, 
os  contornos  mais  sutis  dessa  nova  conjugação  de  motivos,  que  não  se  processa 
apenas  no  imanente,  mas  também  no  transcendente.  Ou  seja:  que  não  se  refere 
apenas  ao  homem,  e  à  ideia  de Deus  por  ele  formulada, mas  também  ao  próprio 
Deus, e às relações do céu com a terra. Dilthey, historicista, permaneceu no plano 
histórico, analisando apenas os movimentos de ideias ao longo do tempo. Quando, 
porém, aplicamos a mesma análise às consequências do processo histórico, entramos 
na resultante metafísica e presenciamos o fato transcendente da libertação espiritual 
do homem.
As três notas da grande fuga se confundem com as assinaladas por Dilthey, 
mas  num  outro  plano.  A  primeira  é  a  da  concepção  de  Deus  como  inteligência 
suprema,  centro  mental  do  universo,  não  apenas  o  artista  divino  de  Platão  ou  o 
artesão  bíblico,  mas  a  própria  inteligência  universal.  Esta  concepção  aparece 
simultaneamente  no  período  histórico  e  nos  limites  geográficos  assinalados  por 
Murphy para o horizonte profético. Não se limita aos gregos. Podemos encontrá­la 
na  índia,  na  China,  na Mesopotâmia  e  na  Judeia. Mesmo  na  China  de  Confúcio, 
quando a ideia de Deus parece apagar­se ou substituir­se pela concepção moralista,
54 – J. Herculano Pires 
numa  forma  jurídica  semelhante  a  dos  romanos,  vemo­la  brilhar na  ideia  do Tao. 
Mas é na Judeia que ela vai atingir a sua definição, e a partir de Jesus é que ela se 
derrama  sobre  os  homens  de maneira  abundante,  graças  à analogia Deus­Pai,  que 
impregna  a  sua  pregação.  A  segunda  nota  é  a  concepção  do  Homem  como 
inteligência  finita,  submetida  a  Deus,  mas  em  desenvolvimento,  filha  de  Deus, 
evoluindo universalmente para Ele. 
A terceira é a concepção jurídico­espiritual do mundo, uma forma em que 
se  fundem o pensamento  jurídico dos  romanos e os anseios espirituais dos  judeus. 
Nessa  forma,  as  relações  entre  Deus  e  o  Homem  aparecem  como  espirituais, 
independendo  de  fórmulas  e  cultos.  As  relações  diretas,  já  estabelecidas  pelos 
profetas  bíblicos,  atingem  sua  culminância  na  permanente  ligação  do  Pai  com  o 
Filho,  explicada  por  Jesus  e  que  dará  motivo,  mais  tarde,  para  interpretações 
místicas do mistério da Divindade. 
Essas três notas fundamentais: Deus como inteligência suprema, o Homem 
como  filho  de  Deus,  e  as  relações  diretas  entre  o  Pai  e  o  Filho,  se  fundem  na 
característica  do  horizonte  espiritual,  que  é  a  transcendência.  A  fuga  musical  se 
consuma. O espírito humano se liberta dos liames terrenos, para alçar­se acima de si 
mesmo  e  projetar­se  num  futuro  sem  limites.  A  música  nos  toca  através  dos 
sentidos, mas está além dos sentidos. Embora os sons que a compõem pertençam ao 
domínio  da  percepção,  a harmonia  que  deles  resulta  e  a  emoção  que  provocam,  a 
mensagem que traduzem, extravasam do concreto. A música é sempre uma fuga ao 
real,  sublimação,  transcendência.  Daí  a  felicidade  da  comparação  de  Dilthey, 
principalmente quando a aplicamos à evolução espiritual do homem. Mas nenhuma 
doutrina consubstancia mais clara e poderosamente as notas dessa fuga musical, do 
que  a Doutrina Espírita,  que  por  isso mesmo  assinala  a  culminância  do  horizonte 
espiritual. A definição  de Deus,  em O LIVRO DOS ESPÍRITOS,  é  como  a  pancada 
sonora da primeira tecla ou da primeira corda, para o início da fuga. 
“O  que  é  Deus?”,  pergunta  Kardec.  E  o  Espírito  da  Verdade  responde: 
“Deus  é  a  inteligência  suprema,  causa  primária  de  todas  as  coisas”. Mais adiante, 
quando Kardec pede uma definição minuciosa, Espírito o adverte : “Não vos percais 
num labirinto, de onde não poderíeis sair”. Está assim colocada a premissa maior da 
nova  concepção  do  mundo,  que  assinala  o  horizonte  espiritual.  Deus  não  é  uma 
forma humana, não é uma figura mitológica, não é um símbolo. Deus é a realidade 
fundamental, a Inteligência Suprema, a fonte de que surgem todas as coisas, assim 
como da inteligência finita do homem surgem as coisas que constituem o seu mundo 
finito. Não é possível dar forma a Deus, limitá­lo, restringi­lo, dominá­lo pela nossa 
razão, como não é possível dar forma a nossa própria inteligência. Deus e Homem 
superam o mundo formal, o plano das aparências. E, assim, o horizonte espiritual se 
abre  sobre  todos  os  horizontes  anteriores,  como  o  alargamento  infinito  de  uma 
realidade finita, em que os homens vinham se arrastando, através dos milênios.
55 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
3 – Inteligência finita 
Procuremos  aprofundar  o  tema  da  inteligência  finita  em  relação  com  a 
Inteligência Suprema ou infinita. As mais antigas concepções religiosas, do Oriente 
e  do  Ocidente —  como  o  Vedismo  indiano  ou  Druidismo  gaulês — mostram­se 
impregnadas de emanatismo. As almas humanas são apresentadas como emanações 
da  Divindade.  A  inteligência  finita  do  homem  nada mais  é  que  uma  centelha  da 
Inteligência Suprema, que dela provém e a ela voltará. Ainda hoje, no meio espírita 
e nos meios espiritualistas mais diversos, essa concepção encontra defensores, e não 
raro  é  apresentada  corno novidade. Há mesmo quem pretenda,  com  ela,  superar  a 
concepção espírita ou “melhorá­la”, afirmando que somente o emanatismo pode dar 
explicação cabal do processo da Criação. 
O Espiritismo, entretanto, não pretende dar explicações cabais, definitivas e 
absolutas. Seu objetivo é a penetração gradual no desconhecido, que a razão humana 
não  pode  tomar  de  assalto.  Por  isso  mesmo,  sua  posição  é  científica,  como 
assinalava Kardec, não religiosa ou mística, ao tratar dos problemas fundamentais da 
vida  humana.  Concebido  como  inteligênciafinita,  o  homem  não  se  apresenta  no 
Espiritismo  como  emanação  de Deus, mas  como  sua  criação.  Se  fosse  emanação, 
seria parte do próprio Deus. Sendo criação, é obra de Deus. 
No  capítulo  primeiro  da  segunda  parte  de  O  LIVRO  DOS  ESPÍRITOS 
encontramos  a  pergunta  77, assim  formulada:  “Os Espíritos  são  seres  distintos  da 
Divindade, ou não seriam mais do que emanações ou porções da Divindade, por essa 
razão chamados  filhos de Deus?” E a resposta é clara e  incisiva: “Meu Deus! São 
obra sua, precisamente como acontece com um homem que faz uma máquina. Esta é 
obra do homem, e não ele mesmo. Sabes que o homem, quando faz uma coisa bela e 
útil,  chama­a  sua  filha,  sua  criação.  Dá­se  o  mesmo  com  Deus.  Nós  somos  seus 
filhos, porque somos sua obra”. Num capítulo anterior, o primeiro da parte primeira 
do livro, encontramos, na pergunta inúmero 10, a explicação de que o homem não 
pode  compreender  a  natureza  íntima  de  Deus,  porque:  “para  tanto,  falta­lhe  um 
sentido”" Somente com a evolução, esclarece o  livro, o homem desenvolverá esse 
sentido, aproximando­se  gradativamente  do  conhecimento  de Deus. A  inteligência 
finita  é,  portanto,  uma  criação  da  Inteligência  Suprema.  Criação  universal,  a  que 
Deus concedeu, por toda parte, a mesma natureza. 
Como  essa  natureza  é  essencialmente  evolutiva,  a  inteligência  finita,  em 
todo  o  universo,  avança  para  Deus,  através  de  uma  incessante  expansão  de  suas 
faculdades, de um contínuo aprimoramento de si mesma. Aristóteles já notara esse 
movimento  ascensional  Ias  coisas  e  dos  seres,  colocando  o  seu  Deus  na 
impassibilidade de um  ímã universal, que a  tudo e a  todos atrai, “como a criatura 
amada atrai o amante”. Esta segunda nota da fuga musical a que Dilthey se refere, e 
que  interpretamos  aqui  à  luz  do  Espiritismo,  constitui  uma  das  características
56 – J. Herculano Pires 
fundamentais do horizonte espiritual. Podemos encontrá­la, como acabamos de ver, 
tanto entre os gregos, na  idade de ouro da Grécia, quanto entre os  indianos ou  os 
judeus,  ou  ainda  entre  os  gauleses  e  os  bretões,  no  Ocidente.  A  concepção  do 
homem  como  filho  de  Deus,  e  ao  mesmo  tempo  como  sua  obra,  sem  nenhuma 
explicação  pretensiosa  da  maneira  ou  da  técnica  da  criação,  apresenta­se  no 
Espiritismo como provisória com todas as características de uma teoria científica, a 
ser  confirmada mais  tarde. Há, naturalmente,  um profundo mistério  por  trás  dessa 
alegoria. O Espiritismo  está  consciente disso, mas  também está  consciente  de  que 
não há outra maneira racional de enfrentar o mistério, senão essa. A razão demonstra 
ou exige um processo  criador, e consequentemente uma força criadora. A  intuição 
humana, latente em cada homem e imanente na espécie, desde todos os tempos, faz 
pulsar o coração diante do mistério, como nas bordas de um abismo. E todo aquele 
que não teme equilibrar­se nas bordas, “sabe”, por intuição e por exigência da razão, 
que uma Inteligência Suprema atua no Universo. 
Não  há,  pois,  como  deixar  de  admiti­la.  E  os  próprios  Espíritos, 
comunicando­se através da mediunidade, confirmam essa intuição humana. Filha de 
Deus e obra de Deus, a  inteligência  finita reúne em si a explicação emanatista e a 
explicação artística. É uma concepção dialética, uma síntese histórica. De um lado, o 
emanatismo védico, e, de outro, a arte platônica e o artesanato bíblico, chocam­se e 
se  fundem  no  processo  da  criação.  Deus  não  expende  centelhas  nem  fabrica 
inteligências. É antes uma fonte criadora, um Pai Supremo, que gera filhos na matriz 
misteriosa do Universo. 
Vemos  que  já  existe,  nesse  aprofundamento  da  ideia,  um  avanço  na 
concepção  do  poder  criador  de  Deus,  primeiramente  interpretado  como  luz  a 
irradiar­se,  depois,  como  artista  ou  artesão  a  construir,  e,  por  fim,  como um  ser a 
procriar.  Da  exterioridade  à  interioridade,  a  concepção  do  poder  criador  parte  da 
analogia objetiva, a luz a irradiar; para a analogia operacional, o artista a plasmar a 
sua obra; e atinge a analogia orgânica, com o Pai Supremo a gerar os filhos humanos 
e finitos. Estes filhos, porém, herdam as qualidades paternas. Para serem legítimos, 
não podem e não devem permanecer num plano de  inferioridade constante. Assim 
como  os  filhos  humanos  nascem pequeninos  e  frágeis, mas  crescem  e  igualam­se 
aos  pais,  assim  também  os  filhos  divinos,  embora  inferiores  no  início,  trazem no 
íntimo o poder de crescer e  igualar­se ao Pai. Embora estejamos, nesse ponto, em 
pleno  terreno  hipotético,  a  observação  das  leis  naturais  autoriza  a  hipótese.  A 
biologia,  a  psicologia,  a  sociologia,  a  história,  a  antropologia,  a  arqueologia  e  a 
paleontologia,  oferecem bases  seguras à hipótese  do  crescimento  humano, a  partir 
das  formas  inferiores  da  animalidade,  até  alcançar  as  superiores  expressões  da 
consciência espiritual. Mas ninguém, talvez, tenha expressado melhor esse princípio 
do que o apóstolo Paulo, ao afirmar que somos “herdeiros de Deus e co­herdeiros de 
Cristo”.
57 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
4 – Mediunidade positiva 
Jesus assinala o aparecimento do horizonte espiritual, marcando o início de 
um novo  ciclo  histórico no Ocidente. Com o  seu  ensino,  amplamente divulgado  e 
aceito, as grandes concepções do passado, limitadas a pequenos círculos de iniciados 
ou  eleitos,  modelam  uma  nova  mentalidade  coletiva.  O  Deus­Pai  de  Jesus 
transcende o Deus­Familiar de Abrão, Isaac e Jacó, supera a natureza tutelar dessa 
concepção  judaica.  Por  isso,  o  Deus  evangélico  não  é  guerreiro,  mas  amoroso  e 
justo;  não  faz  discriminações,  não  exige  culto  externo,  não  quer  intermediários. 
Como Pai Universal, o antigo Javé tribal atinge dimensões cósmicas, é o Deus dos 
homens e dos anjos, da terra e das “outras moradas” que existem no infinito. 
Paulo, que exemplifica o drama da transição da consciência judaica para a 
cristã,  adverte  que Deus não  deseja  cultos  externos,  semelhantes  aos  dedicados  às 
divindades  pagãs, mas  “um culto  racional”,  em que  o  sacrifício  não  será mais  de 
plantas  ou  animais,  mas  da  animalidade,  ou  seja,  do  ego  inferior  do  homem.  A 
religião se depura dos resíduos tribais, despe­se dos ritos agrários e da complexidade 
que esses ritos adquiriram no horizonte civilizado. Torna­se espiritual. Os próprios 
apóstolos  do  Cristo  não  compreendem  de  pronto  essa  transição.  Pedro  chefia  o 
movimento que Paulo chamou “judaizante”, tendendo a fazer do Cristianismo uma 
nova seita judaica. Mas Paulo é a flama que mantém o ideal do Cristo. Inteligente e 
culto, é um dos poucos homens capazes de compreender a nova hora que surge, e 
por isso o Cristo o retira das hostes judaicas, para colocá­lo à frente do movimento 
cristão.  A  religião  espiritual,  desprovida  de  culto  externo,  iluminada  pela  razão, 
individualiza­se.  O  cristão  não  precisa  do  sacramento  de  um  sacerdote,  do 
beneplácito de unia igreja, mas tão­somente da pureza da sua própria consciência. O 
rito do batismo, que Pedro exige dos novos adeptos, juntamente com a circuncisão, 
repugna a Paulo,  que  o  substitui  pelo “batismo do espírito”,  ou  seja,  a  elucidação 
evangélica,  seguida  do  desenvolvimento  mediúnico.  O  mediunismo  profético  se 
generaliza, porque “o espírito se derrama sobre toda a carne”, e a fé, iluminada pela 
razão, deixa o terreno primário da crença, para elevar­se ao da convicção, através do 
conhecimento direto da realidade espiritual, tão clara e positiva quanto a material. 
A  mediunidade  desenvolvida  encoraja  os  apóstolos,  que  se  mantêm  em 
contato  com  as  forças  espirituais,  para  poderem  enfrentar  o  poder  temporal.  Os 
mártires, os santos e os sábios encherão o mundo de espanto, com as luzes de uma 
nova  e  vigorosa  concepçãoda  vicia,  que  eleva  o  homem  acima  de  si  mesmo.  É 
evidente que tudo isso não se realiza de um dia para outro, mas através de um lento 
processo de evolução social, econômica, cultural e espiritual. Jesus se chamava a si 
mesmo de semeador, porque conhecia o lento processo da semeadura e germinação 
das ideias. Sabia, também, que os princípios da sua doutrina, do seu ensino, teriam 
de sofrer as deformações naturais desse processo. Por isso anuncia, como vemos no
58 – J. Herculano Pires 
Evangelho  de  João,  a  vinda  do Consolador,  do Paráclito, do Espírito  da Verdade, 
incumbido de restabelecer a pureza da seara, separando o joio do trigo. O horizonte 
espiritual  se  abre  em  espirais  crescentes  sobre  o  mundo:  primeiro,  num  círculo 
restrito  de  apóstolos  e  adeptos,  oferece  o  modelo  de  uma  nova  ordem;  depois, 
espalha­se pela terra, modificando as consciências, mas comprometendo­se com os 
elementos da velha ordem; por fim, domina o mundo, mas impregnado das heranças 
mitológicas; e só então consegue romper as perspectivas apocalípticas de “um novo 
céu  e  uma nova  terra”,  através  da  Reforma  e  do  Espiritismo. Quando  os  homens 
atingiram  o  nível  necessário  de  conhecimentos,  para  voltarem  à  verdadeira 
concepção cristã, tomando­se capazes de compreender o que o Cristo havia ensinado 
e o que não pudera ensinar na sua época, segundo as suas próprias palavras, então a 
revolta sacudiu a Igreja e o Espírito derramou­se fartamente sobre toda a carne. 
Lutero  encarnou  a  luta  contra  o  paganismo  idólatra  que  invadira,  como 
terrível  joio,  a  seara  cristã. Combateu  corajosamente  o  comércio  de  indulgências. 
Reclamou e impôs a volta a Cristo e aos textos esquecidos do seu Evangelho. Mas 
depois de Lutero  viria o Espírito da Verdade, para impor o  retorno não somente à 
letra,  aos  textos,  e  sim  ao  próprio  espírito  do  Evangelho,  à  essência  espiritual  do 
Cristianismo.  E  Kardec  iniciaria  o  grande  movimento  doutrinário  de 
restabelecimento do ensino de Jesus, sob a égide da Falange do Espírito da Verdade. 
É por isso que vemos, na propagação do Espiritismo, repetirem­se os milagres da fé 
e da coragem dos cristãos primitivos. Completa­se, com a era do Consolador, o ciclo 
espiritual iniciado há dois mil anos, pelo próprio Cristo. Os mártires se entregavam 
às chamas e às feras, porque sabiam existir uma realidade supraterrena, e não apenas 
por  crerem nessa  realidade. Entre  os  espíritas,  veremos  a mesma  coisa. O  escritor 
inglês  Denis  Bradley  conclui  o  seu  livro,  RUMO  ÀS  ESTRELAS,  declarando 
peremptoriamente: “Eu não creio. Eu sei”. É essa convicção poderosa, resultante do 
desenvolvimento  da mediunidade  positiva,  que  faz  o movimento  espírita  enfrentar 
todas as forças organizadas do mundo, desde o púlpito até à cátedra, para sustentar 
uma nova concepção da vida e do mundo. Kardec explica, em A GÊNESE, capítulo 
primeiro, por que o Espiritismo só poderia  surgir em meados do século dezenove, 
depois  da  longa  fermentação  dos  princípios  cristãos  da  Idade  Média  e  do 
desenvolvimento  das  ciências na Renascença. Escreveu  ele:  “O Espiritismo,  tendo 
por  objeto  o  estudo  de  um  dos  elementos  constitutivos  do  Universo,  toca 
forçosamente  na  maioria  das  ciências.  Só  poderia,  pois,  aparecer,  depois  da 
elaboração delas. Nasceu pela força mesma das coisas, pela impossibilidade de tudo 
explicar­se apenas pelas leis da matéria”. Como se vê, da conjugação dos elementos 
materiais  e  espirituais,  em  evolução  simultânea,  resulta  o  clima  que  permite  ao 
mundo  atingir a  plenitude  do horizonte  espiritual,  onde  a mediunidade  positiva  se 
torna a fonte de esclarecimento e orientação dos problemas do espírito. Graças a ela, 
o homem se emancipa da tutela dos ritos e cultos primitivos.
59 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
II PARTE 
FASE HISTÓRICA
60 – J. Herculano Pires 
CAPÍTULO I 
EMANCIPAÇÃO ESPIRITUAL 
DO HOMEM 
1 – Imanência e transcendência 
Colocando  o  problema  da  evolução  humana  em  termos  de  imanência  e 
transcendência,  segundo  a  acepção  moderna  desses  vocábulos,  podemos 
compreender  melhor  a  natureza  transcendente  do  horizonte  espiritual.  Os  quatro 
horizontes  que  o  antecedem:  o  tribal,  o  agrícola,  o  civilizado  e  o  profético, 
representam  o  período  de  imanência  do  processo  evolutivo.  Nesse  período,  de 
acordo com o “princípio da imanência”, de Le Roy, toda a potencialidade espiritual 
do  homem  encontra­se  em  desenvolvimento,  tudo  o  que  nele,  é  implícito  transita 
para  o  explícito.  A  experiência  da  magia,  dos  mitos  agrários  e  da  mitologia 
civilizada, das religiões organizadas e da eclosão profética, nada mais é do que uma 
sequência de fases do período imanente, em, que o homem acorda em si mesmo as 
forças latentes da alma, preparando­se para a fase de transcendência que virá com o 
horizonte espiritual. Esse é um dos motivos por que a Revelação Cristã  se mostra 
mais poderosa e atuante que as anteriores. 
Já vimos que o horizonte espiritual aparece com Jesus, com ele se define. 
Vimos também que Israel representou, mais do que os outros países, o momento em 
que as forças desenvolvidas no período da imanência atingiram a sua culminância. 
Assim,  o  próprio  desenvolvimento  histórico  explica  e  justifica  as  afirmações 
místicas,  aparentemente  dogmáticas,  da  supremacia  espiritual  de  Israel  e  do  seu 
papel de povo eleito. Para a mentalidade mística dos horizontes anteriores, a posição 
de  Israel  não  poderia  ser  interpretada  senão  como  uma  determinação  celeste.  A 
própria alegoria da Aliança confirma isto. O pacto firmado entre Deus e seu povo é a 
simples  divinização  de  um  sistema  agrário  de  compromissos  humanos.  Mas  era 
através dessa alegoria que os antigos conseguiam entender e explicar urna realidade 
inexplicável,  qual  fosse  a  supremacia  espiritual  do  povo  hebraico  e  o  seu  dever 
indeclinável de liderança mundial. A incompreensão do fato permanece ainda hoje, 
tanto  no  seio  das  religiões  cristãs,  quanto  no  próprio  judaísmo.  A  expectativa 
milenária do Messias, e a ambição de domínio universal e absoluto, das seitas cristãs 
provindas do judaísmo, nada mais são do que resíduos do período de imanência. A 
destinação messiânica de  Israel não  foi e não é  encarada no  seu  sentido histórico,
61 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
mas no  seu  antigo  aspecto  teológico.  Daí  a  razão  do  povo  eleito  esperar  ainda  o 
cumprimento  da  promessa  divina,  e  das  seitas  cristãs  modernas,  que  se  julgam 
herdeiras  da  mesma  promessa,  insistirem  tão  firmemente  nos  seus  direitos  de 
dominação e orientação exclusiva das consciências, para salvação das almas. 
O Espiritismo, doutrina  livre, dinâmica,  sem dogmas de  fé,  sem  intenções 
exclusivistas  ou  pretensões  salvacionistas,  corresponde  precisamente  à  fase  de 
esclarecimento  do  horizonte  espiritual.  Por  isso  é  que  ele  se  apresenta  como 
desenvolvimento  natural  do  Cristianismo,  sequência  inevitável  do  processo 
histórico, enfrentando o problema da salvação em termos de evolução, e procurando 
explicar  as  alegorias  do  passado  à  luz  da  compreensão  racional.  Curioso  notar­se 
que,  nesse  ponto,  os  adversários  do  Espiritismo  o  acusam  de  racionalismo, 
sustentando  a  tese  imanente,  ou  seja,  a  tese  provinda  do  período  de  imanência, 
segundo  a  qual  existem mistérios  que  a  razão  não  alcança.  Entre  esses mistérios, 
figura o da destinação messiânica de Israel, que, como vimos, não era explicável no 
período anterior, mas hoje é perfeitamente compreensível. No período de imanência, 
o homem não havia atingido a emancipação espiritual que lhe permitiria encarar os 
grandes  problemas  da  sua  própria  destinação.  Possuindo,  entretanto,  o  sentimento 
intuitivo  desses  problemas,  procurava  racionalizá­losatravés  de  símbolos,  de 
alegorias. No período de transcendência, o homem, já espiritualmente desenvolvido, 
possui  os elementos necessários para enfrentar esses problemas e  resolvê­los.  Isso 
não  quer  dizer,  entretanto,  que  o  Espiritismo  se  considere,  ou  que  os  espíritas  se 
considerem  como  novos  detentores  da  verdade  absoluta.  Pelo  contrário:  o 
Espiritismo proclama a existência de problemas que são ainda insolúveis, como a da 
própria natureza de Deus. Insolúveis, porém, no momento presente, uma vez que o 
processo  evolutivo  levará  o  homem,  progressivamente,  a  desvendar  os  novos 
mistérios  que  lhe  forem  sendo  propostos  pela  própria  evolução.  As  reservas 
modernas  quanto  ao  racionalismo  são  explicáveis,  diante  da  experiência  que 
conduziu  os  homens  ao  ceticismo,  à  descrença,  ao  materialismo,  e 
consequentemente a uma posição  incômoda, de negativismo explícito  ou  implícito 
dos valores da vida. Mas o racionalismo espírita representa precisamente o reajuste 
da  posição  racionalista.  Porque  a  razão  aplicada  ao  julgamento  do  passado,  em 
função  das  conquistas  ainda  recentes  do  presente,  provoca  o  desequilíbrio  do 
espírito, quando se pretende estabelecer o absolutismo racional. 
No Espiritismo, a razão é apresentada como uma função do espírito, um dos 
seus  instrumentos de ação, e não corno o próprio espírito. O absolutismo da razão 
não  existe,  embora  a  razão  se  apresente  como  instrumento  indispensável  para  o 
esclarecimento espiritual. Por outro  lado, é necessário considerar que a razão  foi a 
escada de que o homem se serviu, para superar os horizontes anteriores, libertando­ 
se  do  domínio  das  foras  naturais  ou  instintivas.  A  razão  é,  por  assim  dizer,  a 
alavanca  espiritual  que  elevou  o  homem  do  período  de  imanência  para  o  de
62 – J. Herculano Pires 
transcendência,  permitindo­lhe  julgar­se  a  si mesmo  e  delinear  as  perspectivas  da 
sua própria libertação. O Espiritismo, como doutrina que corresponde exatamente às 
aspirações e às exigências do horizonte espiritual, não pode abrir mão da razão, nem 
mesmo em favor da intuição, que pertence a um período futuro do desenvolvimento 
humano. 
2 – Desenvolvimento da razão 
O horizonte  profético  assinalou  a  fase  culminante  de  desenvolvimento  da 
razão. Já tivemos ocasião de estudar os motivos dessa ocorrência, no vasto período 
histórico  que  vai  do  IX  ao  III  século  antes  de  Cristo,  segundo  a  teoria  de  John 
Murphy.  Resta­nos  apreciar  a  maneira  por  que  a  razão  vai  progressivamente 
impondo  os  seus  direitos,  até  conquistar  a  supremacia  necessária,  para  libertar  o 
espírito humano dos liames terríveis do passado. Podemos observar com segurança o 
vigoroso  surto  da  razão  no  horizonte  profético,  a  começar  da  própria  agitação 
profética na Palestina. Os conquistadores de Canaã carregavam no espírito a herança 
das  civilizações  mesopotâmica  e  egípcia.  Os  germes  da  razão  estavam  bem 
desenvolvidos naquelas mentes inquietas, que procuravam construir um novo mundo 
para si mesmas e anunciar aos demais povos o advento de uma nova  ordem. Mas 
foram os profetas de Israel os corifeus desse movimento renovador, quer levantando 
sua  voz  contra  o  apego  aos  velhos  hábitos,  quer  anunciando  com  insistência  a 
aproximação dos novos tempos. Os debates teológicos de Israel aparecem como uma 
preparação da efervescência medieval. Os profetas agitam a pasmaceira teológica do 
povo  eleito,  propondo questões  que  perturbam a  própria  ordem  social. Ao mesmo 
tempo, na Grécia, a filosofia se desprende da sua matriz órfica, supera o pensamento 
místico do orfismo tradicional, e ensaia os primeiros passos da perquirição racional. 
Na  própria  China  estagnada  surge  a  inquietação  provocada  pela  introdução  do 
Budismo  e  pelo  aparecimento  do  Confucionismo.  Na  índia  védica,  submetida  ao 
jugo  das  tradições,  a  renovação  budista  mistura­se  às  influências  procedentes  do 
pensamento grego, cujo poder de irradiação não conhece barreiras, no Ocidente ou 
no Oriente. No mundo romano, a infiltração grega submetia as tradições do Império 
e o politeísmo dominante ao julgamento progressivo, que a contribuição judeu­cristã 
iria acelerar de maneira decisiva. 
O  Cristianismo  aparece  como  o  verdadeiro  remate  desse  vasto  processo. 
Jesus não se  limita a condenar o apego ao  ritualismo religioso no mundo  judaico. 
Ele proclama a natureza espiritual de Deus, e consequentemente a do homem, filho 
de Deus. Ensina a universalidade do espírito, rompendo assim as barreiras de todos 
os preconceitos tribais, que dividiam a humanidade em grupos raciais ou religiosos. 
Mostra  que  o  samaritano  podia  ser  melhor  que  um  príncipe  da  igreja  judaica,  e
63 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
adverte à mulher  samaritana que Deus devia ser adorado, não através de  fórmulas 
exteriores, em locais considerados sagrados, mas “em espírito e verdade”. 
Quando  observamos  o  fenômeno  do  aparecimento  e  da  propagação  do 
Cristianismo,  primeiramente  ria  Palestina,  e  depois  no mundo,  verificamos  que  se 
tratava  de  uma  verdadeira  revolução.  Mas  a  característica  dessa  revolução  é 
precisamente o apelo à razão. O Cristianismo exigia das criaturas o uso desse poder 
misterioso  do  raciocínio,  que  as  fazia  senhoras  de  si mesmas,  responsáveis  pelos 
seus atos. Contra a autoridade das Escrituras e dos Rabinos, bem como da própria 
tradição, Jesus proclamava a soberania da consciência. Limpar o vaso por dentro, e 
não  apenas  por  fora;  servir­se  do  sábado,  em  vez  de  escravizar­se  a  ele;  orar 
conscientemente, sabendo que Deus, sendo Pai, não dá pedra a quem lhe pede pão, 
nem cobra a quem lhe pede peixe. 
Os  homens  ainda  não  estão  preparados  para  compreender  todos  os 
princípios  dessa  revolução.  Continuarão  apegados,  por  muito  tempo,  aos  velhos 
moldes  autoritários,  subjugados  pelos  antigos  preceitos.  Mas  o  fermento  está 
lançado  na  medida  de  farinha,  e  inevitavelmente  a  fará  levedar.  Os  próprios 
apóstolos não assimilarão suficientemente as lições do Mestre. Procurarão ajustar o 
Cristianismo  aos  velhos  moldes  judaicos,  retê­lo  nas  sinagogas,  prendê­lo  ao 
Templo  de  Jerusalém.  Pedro,  o  velho  pescador,  não  admitirá  cristão  que  não  se 
submeta  a  ser  circuncidado.  Mas  Jesus  conhece  um  homem  que  amadureceu  o 
suficiente  para  fazer  prevalecer  a  razão  sobre  o  costume,  o  uso,  a  tradição.  Esse 
homem  é  Paulo  de  Tarso,  que  promoverá  no  Cristianismo  nascente  o movimento 
vivo  de  repulsa  ao  predomínio  do  passado.  A  reforma  grega  do  Orfismo  pelo 
Pitagorismo, a reforma indiana do Hinduísmo pelo Budismo, a reforma chinesa do 
Taoísmo pelo Confucionismo, e a reforma síria do Judaísmo pelo Cristianismo, eis 
os  grandes  eventos  históricos  que  assinalam  o  advento  mundial,  no  horizonte 
profético, da era da razão. 
Pitágoras  é  o  primeiro  a  ensaiar, na Grécia  do  século  sexto,  e  no mundo 
inteiro,  a  união  do  pensamento  místico  ao  racional.  E  a  partir  dos  pitagóricos,  o 
grande drama da evolução humana, durante milênios, se desenvolverá nesse plano: a 
luta  pela  racionalização  da  fé. A  crença  pela  crença, a  fé  pela  fé,  a  obrigação  e  a 
necessidade  de  aceitar  a  tradição,  como  verdade  absoluta,  acabada  e  perfeita,  são 
característicos dos horizontes primitivos, das  fases de predomínio do  instinto e do 
sentimento. Na proporção em que a razão se desenvolve, em que o homem aprende a 
pensar  e  a  julgar,  a  fé  cega,  tradicional,  já  não  pode  satisfazê­lo.  A  fórmula 
comodista: “Creio porque creio”, exigirá um substituto dinâmico e fecundo: “Creio 
porque  sei”.  O  horizonte  profético  se  encerra  com  o  predomínio  da  razão.  Ao 
contrário do que se costuma dizer, arazão não aparece como exclusivamente grega, 
não  obstante  a  contribuição  da  Grécia  seja  a  mais  decisiva  para  o  seu 
desenvolvimento.
64 – J. Herculano Pires 
Encontramos, como já vimos acima, o florescimento da razão ao longo de 
todo  o  horizonte  profético,  prenunciando  a  supremacia  mundial  que  ela  deverá 
assumir, com o advento do horizonte espiritual. Mas haverá ainda uma grande fase 
histórica de reação, de luta profunda e morosa, entre a razão e a fé, embora aquela 
tenha de sair triunfante. 
3 – O drama medieval 
A Idade Média é a fase dramática do desenvolvimento da razão. A tentativa 
pitagórica  renova­se  nesse  vasto  e  sombrio  período  da  história  europeia, mas  em 
condições  completamente  diversas.  O  Cristianismo  nascente  recebera,  desde  a 
Palestina, um duplo impulso de racionalização: de um lado, a insistência do Cristo 
em libertar os homens do dogmatismo fideísta dos judeus; de outro, a influência do 
pensamento grego, bem patente nos próprios evangelhos. “Religião do livro”, como 
mais  tarde  a  chamariam  os  muçulmanos,  penetrou  essa  nova  religião  no  Império 
Romano  em  meio  à  efervescência  da  decadência,  incentivando  e  acalorando  os 
debates em  torno dos problemas da  fé. Mas no próprio Cristianismo a contradição 
dialética  se  acentuava  de  maneira  ameaçadora.  Com  o  correr  do  tempo,  a  fé 
conseguiu  superar  sua  antagonista,  a  razão,  e  submetê­la  ao  seu  império.  Nada 
exprime  melhor  esse  fato  do  que  a  fórmula  medieval:  “A  filosofia  é  serva  da 
teologia”. 
Os  que  ainda  hoje  acusam  o  Cristianismo  de  religião  reacionária  e 
obscurantista,  em  virtude  do medievalismo  e  suas  consequências,  esquecem­se  de 
que  foi ele a única religião capaz de  incentivar o desenvolvimento da razão, e até 
mesmo  de  preservar  a  herança  cultural  greco­romana  através  do  período  bárbaro. 
Esquecem­se de que próximo a Nazaré existia a Decápolis grega, e que o próprio 
nome da nova religião derivou de uma palavra grega. Esquecem­se ainda dos fatos 
históricos  fundamentais  do  desenvolvimento  do  Cristianismo  na  Europa,  entre  os 
quais  devemos  assinalar  a  aproximação  constante  com  o  pensamento  grego,  o 
interesse  pelas  suas  contribuições  filosóficas,  a  tentativa  de  “pensar  o  evangelho 
através da lógica grega”, e até mesmo a de platonizar e aristotelizar os fundamentos 
da  nova  religião.  A  reação  do  fideísmo,  entretanto,  quase  fez  recuar  o  ímpeto  da 
razão. O passado mítico e místico da humanidade pesou fundamente na balança. O 
próprio  Cristo  foi  transformado  em  novo  mito,  e  suas  expressões  alegóricas, 
empregadas sempre num sentido racional, esclarecedor, converteram­se em dogmas 
de  fé.  “O  cordeiro  que  tira  o  pecado  do mundo”,  imagem explicativa,  referente  à 
crença  judaica na  eficácia mágica do  sacrifício  de  animais;  o  resgate  dos  pecados 
pelo sangue, alegoria ligada à antiga superstição da era agrária, de purificação pela 
efusão  de  sangue;  a  transubstanciação  do  pão  e  do  vinho  em  corpo  e  sangue  do
65 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
Cristo, ideia mágica, de sentido alegórico, proveniente dos antigos “Mistérios” das 
religiões orientais; e assim tantas outras, adquiriram a força de preceitos literais, de 
ordenações  divinas.  Ao  mesmo  tempo,  as  formas  do  culto  exterior,  das  religiões 
pagãs e judaicas, e as próprias festas do paganismo, foram adaptadas à nova religião. 
O  processo  de  sincretismo  religioso,  hoje  tão  bem  conhecido  e  estudado 
pelos  sociólogos,  transformou  o  Cristianismo  em  novo  domínio  do  mito  e  da 
mística. Apesar de todo esse gigantesco esforço de asfixia da razão, esta, entretanto, 
continuou a se desenvolver. Submetida ao  império da  fé, constrangida a  servir aos 
dogmas, em vez de criticá­los, transformada em “serva da teologia”, nem por isso a 
razão pôde ser esmagada. Porque, mesmo para servir ao dogmatismo, ela conseguia 
agitar  e  inquietar  os  espíritos.  As  heresias  surgiram  do  chão  “como  cogumelos”, 
segundo a expressão de Tertuliano, e mesmo depois que o  princípio de usucapião, 
do  direito  romano,  foi  empregado  racionalmente  contra  a  razão,  em  defesa  do 
fideísmo asfixiante, a razão continuou a abrir as suas brechas na muralha dogmática. 
O próprio Tertuliano acabou como herege, e foram muitos os padres e doutores que, 
embriagados  pelo  vinho  grego  da  dialética,  resvalaram  para  o  abismo  das 
condenações. 
A  famosa  Querela  dos  Universais,  provocada  pelo  desafio  de  Porfírio, 
discípulo de Plotino, marcará a fase decisiva do desenvolvimento da razão, no mais 
agudo  período  da  consolidação  da  dogmática  medieval.  Figuras  brilhantes  de 
pensadores  cristãos,  como  estrelas  perdidas  no  céu  escuro  do  medievalismo, 
assinalarão o roteiro da razão, como um traço de giz no quadro­negro da época. A 
partir dos hereges dos quatro primeiros séculos,  sufocados pela violência ortodoxa 
dos  que  se  julgavam  herdeiros  exclusivos  da  era  apostólica,  podemos  gizar  no 
quadro urna linha que passa por Agostinho, no século V; por Erígena e Alcuino, no 
século VIII; pelo dialético Beranger de Tours, do século XI, que negava a Eucaristia; 
por Abelardo, com seu “Sie et Non”; pelo trabalho dos “mestres de sentença”, entre 
os quais  se destaca Pedro Lombardo; para, afinal, chegarmos a Tomás de Aquino, 
que  representa  a  codificação  das  contradições  medievais,  com  sua  “Suma 
Teológica”. O drama da razão na Idade Média empolga pelos seus lances heróicos, 
mas ao mesmo tempo assusta, pelo trágico de seus episódios cruéis. Abelardo é uma 
das figuras mais representativas, senão a própria encarnação desse drama. Em pleno 
século XI, aceitava a supremacia da fé, mas chegou a tentar uma explicação racional 
do dogma da Trindade, caindo na condenação de heresia. Duas vezes foi condenado 
pelos Concílios. E para que não faltasse, no simbolismo da sua vida, o colorido das 
paixões humanas da época, temos o seu romance com Heloísa e o desfecho cruel a 
que é levado. 
Dilthey considerou a  Idade Média como um caldeirão, em que  ferviam as 
ideias,  misturando,  num  gigantesco  processo  de  fusão,  as  contribuições  do 
pensamento greco­romano com os princípios judeu­cristãos. Esse imenso “cozido”,
66 – J. Herculano Pires 
que teve de ser preparado através de um milênio, só estaria completo nos albores do 
século XIV, logo após a codificação da “Suma Teológica”. A luta entre a razão e a 
fé  encontra,  portanto,  o  seu  epílogo,  na  Renascença.  Embora  tenhamos  de 
reconhecer a sua continuidade, mesmo em nossos dias, a verdade é que ela agora se 
processa em plano secundário, como simples  resíduo natural de épocas superadas. 
Descartes foi o espadachim que deu o golpe final nesse duelo de milênios. Inspirado 
pelo  Espírito  da  Verdade,  segundo  a  sua  própria  expressão,  o  filósofo  do  cogito 
libertou  a  filosofia  da  servidão medieval  e  preparou  o  terreno  para  o  advento  do 
Espiritismo. Mais  tarde,  Kardec  poderia  exclamar,  como  vemos  no  pórtico  de O 
EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO, que “Fé inabalável é somente aquela que 
pode encarar a razão face a face, em todas as etapas da humanidade”. 
O que hoje se condena como racionalismo não é propriamente a razão, mas 
o  absolutismo  racional.  A  luta  filosófica  que  se  travou  e  ainda  se  trava  no  nossa 
tempo  já não se  refere mais ao problema antigo e medieval de  razão e  fé, mas às 
questões modernas, tipicamente metodológicas, de razão e  intuição. É uma batalha 
que  se  trava  no  campo  da  teoria  do  conhecimento,  e  não  mais  no  campo  da 
superstição e do dogmatismo fideísta. Para o Espiritismo, essa batalha está superada. 
A  razão  é  apenas  o  instrumento  de  que  o  Espírito,  o  Ser,  em  sua  manifestação 
temporal,  se  serve  para  dominar  o  mundo.  A  intuição  é  o  processo  diretode 
conhecimento, de que o Espírito dispõe em seu plano próprio de ação — o espiritual 
— e que desenvolverá no plano material, na proporção em que o dominar pela razão. 
Mas  a  importância  da  razão,  no  processo  evolutivo  do  homem,  como  forma  de 
libertação  espiritual,  jamais  poderá  ser  negada.  Ao  estudar  o  Renascimento, 
compreendemos o papel do racionalismo, na emancipação espiritual do homem, e o 
motivo por que o Espiritismo não pode abdicar de suas características racionalistas, 
para realizar a sua missão emancipadora total. 
4 – A maturidade espiritual 
O Renascimento assinala o momento histórico de emancipação espiritual do 
homem. O processo de desenvolvimento da razão aparece completo, nesse homem 
novo que, com Descartes, refuta o dogmatismo medieval e proclama os direitos do 
pensamento. Não importa que o fenômeno cartesiano pertença ao século dezessete, 
quando  os  albores  da  nova  era  já  haviam  surgido  no  catorze,  no  Quattrocento 
italiano. 
O processo,  como vimos  anteriormente,  vinha  de muito  antes. Mas assim 
como Abelardo encarna o drama medieval em todas as suas cores, Descartes é quem 
encarna a epopeia do Renascimento, a vitória da razão sobre o  fideísmo medieval. 
Nele  e  através  dele  é  que  a  razão  triunfa  para  sempre, marcando  os  rumos  de  um
67 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
novo  mundo,  para  uma  humanidade  renovada.  Mas  o  episódio  histórico  que 
assinalará, como verdadeiro marco no tempo, o momento de emancipação espiritual 
do  homem,  somente  ocorrerá  em  fins  do  século  dezoito,  na  efervescência  da 
Revolução  Francesa.  O  estabelecimento  do  Culto  da  Razão,  por  Pierre  Gaspar 
Chaumette,  com  a  entronização  da  bailarina  Candeille,  da  Ópera  de  Paris,  na 
presença de Robespierre, em 1793, na Catedral de Notre Dame, é um episódio que 
representa  verdadeira  invasão  do  processo  histórico  pelo  mito.  Aliás,  toda  a 
Revolução Francesa apresenta esse curioso aspecto de uma revivescência mítica em 
pleno domínio da história. Foi um movimento histórico que se desenrolou no plano 
da alegoria. Cada uma das suas fases, e ela inteira, no seu conjunto, aparecem como 
símbolos. Nesse vasto enredo alegórico, o Culto da Razão é a simbologia específica, 
o  episódio  lendário,  que  marca  a  vitória  do  homem  sobre  a  lenda  e  o  mito. 
Chaumette foi guilhotinado em 1794. Pagou caro e sem demora a ofensa cometida 
contra  os  poderes  celestes,  ao  substituir  em Notre Dame o  culto  da Mater Divina 
pelo  da  Razão  Humana.  Assim  entenderam,  e  ainda  hoje  o  entendem,  os 
supersticiosos  adversários  do  progresso  espiritual  do  homem.  Mas  o  sentido  do 
episódio  não  estava  na  heresia.  Chaumette  não  era  um  iconoclasta,  nem  um 
profanador  de  templos. Era apenas  um  intérprete  do momento  histórico  em que  a 
Razão  Humana  proclamava  a  sua  libertação  da Mater  Divina,  ou  seja,  em  que  o 
homem se libertava da Fé Dogmática, para usar o raciocínio, duramente conquistado 
através  dos milênios.  Fácil  compreender­se  o  horror  que  a  audácia  revolucionária 
provocou no mundo. A bailarina Candeille foi conduzida à Catedral de Notre Dame 
sobre  um  andor,  vestida  de  azul,  com  barrete  frígio  na  fronte,  precedida  de  um 
cortejo  de  moças  vestidas  de  branco,  ostentando  faixas  tricolores.  A  Convenção 
decidira substituir a religião tradicional por essa religião racionalista, e Robespierre 
presidiu a cerimônia. Uma estátua do Ateísmo foi queimada durante a festa que se 
seguiu.  A  religião  de  Chaumette  era  espiritualista,  rejeitava  o  ateísmo  e  o 
materialismo. Mas quem poderia entender esse espiritualismo que não se submetia 
aos  dogmas  e  aos  sacramentos?  Até  hoje,  o  episódio  do  Culto  da  Razão  causa 
arrepios aos próprios historiadores, que passam rapidamente sobre ele. É qualquer 
coisa  de  monstruoso,  que  deve  ser  esquecido.  Durante  dois  meses,  novembro  e 
dezembro  de  1793,  o  Culto  da  Razão  se  estendeu  pela  França.  As  igrejas  foram 
desprovidas  de  seus  aparatos  tradicionais  e  a  Deusa  Razão  foi  entronizada  em 
cerimônias  festivas.  Carlyle,  referindo­se  à  cerimônia  de  Notre  Dame,  exclama 
indignado  que  a  bailarina  Candeille  era  levada  em  procissão,  e  acrescenta: 
“escoltada  por  música  de  sopro,  barretes  frígios,  e  pela  loucura  do  mundo”. 
Realmente, tudo parecia loucura, naquele momento irreal. A tradição se esboroava. 
Os  ídolos  caíam.  Bispos  e  padres  renunciavam.  Carlyle  acentua  que  surgiam,  de 
todos os lados: “curas com suas recém­desposadas freiras”. E uma bailarina da ópera 
era transformada em deusa, embora apenas de maneira simbólica.
68 – J. Herculano Pires 
Mas  toda  essa  loucura  nada  mais  era  que  a  reação  do  espírito  contra  a 
asfixia  das  tradições.  Qual  o  momento  de  libertação  que  não  traz  consigo  esses 
arroubos?  Passadas,  porém,  as  emoções  do  início,  o  coração  se  acalma  e  a  razão 
restabelece  as  suas  leis.  Por  outro  lado,  a  “loucura  do  mundo”,  a  que  Carlyle  se 
refere,  pode  ser  historicamente  identificada  com  a  própria  razão,  pois  vemo­la 
sempre  denunciada  pelos  tradicionalistas,  pelos  conservadores  renitentes,  nos 
momentos  cruciais  da  evolução  humana.  Os  homens  velhos,  como  as  castas  e  os 
povos envelhecidos — ensina Ingenieros — vivem esclerosados em suas armaduras 
ideológicas  e  não  podem  compreender  senão  como  loucura  as  verdadeiras 
revoluções  sociais,  que afetam os  interesses  estabelecidos  e  transformam as  ideias 
dominantes. A vitória da razão, na sua luta milenar contra o obscurantismo fideísta, 
não podia deixar de parecer um momento de loucura. Porque, desenvolvida através 
de  um  laborioso  processo  de  acúmulo  de  experiências,  de  geração  a  geração,  de 
civilização a civilização, o seu crescimento se assemelha ao das plantas que rompem 
o calçamento das ruas, para afirmar o poder da vida sobre as construções artificiais. 
Sabemos  hoje,  pelo  aprofundamento  que o  relativismo  crítico  realizou  na 
doutrina  das  categorias, de Kant,  que  a  razão  é  o  sistema dessas  categorias  vitais, 
forjadas  no  processo  da  experiência  sempre  renovada.  Assim  como  a  planta, 
rompendo  o  calçamento,  afirma  as  exigências  vitais  da  natureza,  em  toda  parte, 
assim  também a  razão, violentando as estruturas das velhas convenções, afirma as 
exigências vitais da consciência humana. A primeira dessas exigências é a liberdade, 
fundamento  e  essência  do  homem,  que  asfixiada  durante  um milênio no  caldeirão 
medieval,  explodiu  com  o  fragor  de  uma  detonação  atômica,  no  período  da 
Revolução Francesa. Devemos ainda lembrar que o episódio do Culto da Razão tem 
o seu lugar no centro de uma linha de acontecimentos históricos. Não  foi um caso 
isolado. Mesmo porque, na história, não  existem  casos  dessa  espécie.  Já Tivemos 
ocasião de  lembrar o antecedente pitagórico da  luta medieval entre a razão e a  fé. 
Jérome  Carcopino  estabeleceu  as  ligações  entre  o  pitagorismo  e  o  cristianismo 
primitivo, nos seus estudos sobre a conversão do mundo romano. 
No período medieval  já  traçamos  a  linha  que  assinala  o  desenvolvimento 
dessa  luta.  Basta  que  a  retomemos  agora  em  Descartes,  para  vermos  a  sua 
continuidade  no  mundo  moderno.  Mas  o  mais  curioso  é  vermos  como  essa  luta 
sugeriu, no pensamento francês, tão afeito à síntese, a ideia de uma religião racional, 
que teve também o seu lento desenvolvimento. Sem procurarmos entrar em maiores 
indagações, acentuemos que Descartes fundava o seu racionalismo na inspiração do 
Espírito  da Verdade. Aparente  contradição,  que mais  tarde  se  esclarecerá. Logo  a 
seguir, temos o caso de Espinosa, que estabelece ao mesmo tempo a forma racional 
de uma interpretação panteísta do cosmos e lança as bases, segundo Huby,“do mais 
radical  racionalismo  escriturístico”. Dessas  tentativas,  surgem muitas  derivações  e 
paralelismos,  que  parecem  desembocar  na  Convenção. Clootz  propõe  que  o Deus
69 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
Único seja o povo, e a Deusa Razão, de Chaumette, levará na mão o cetro de Júpiter­ 
Povo.  Fracassada  a  tentativa  revolucionária,  e  retomadas  as  igrejas,  não  tardará 
muito  a  aparecer  a  tentativa  de  Auguste  Comte,  de  fundação  da  Religião  da 
Humanidade. Nessa linha milenar se insere o racionalismo espírita, que surge com 
Kardec,  em meados  do  século  dezenove,  como  a  síntese  definitiva  de  um  grande 
processo histórico. O Espiritismo representa o triunfo decisivo da razão. Não sobre a 
fé, com a qual se estabelece o equilíbrio, mas sobre o dogmatismo fideísta, que em 
nome da última asfixiava a primeira.
70 – J. Herculano Pires 
CAPÍTULO II 
RUPTURA DOS 
ARCABOUÇOS RELIGIOSOS 
1 – Rumo à religião 
Com  a  vitória  da  razão,  ou  seja,  com  o  amadurecimento  espiritual  do 
homem,  a  religião  começa  a  avançar  nos  rumos  da  sua  completa  libertação.  O 
fermento  racional  do Cristianismo,  que  levedara  a massa  da  civilização medieval, 
leva  à  ruptura  inevitável  os  arcabouços  religiosos  forjados  através  dos  horizontes 
tribal,  agrícola  e  civilizado.  A  partir  do  Renascimento,  e  particularmente  da 
Revolução  Francesa,  as  estruturas  asfixiantes  da  “religião  estática”,  definida  por 
Bergson, serão rompidas pelos impactos da “religião dinâmica”. Esses impactos são 
tanto  mais  irresistíveis  e  incontroláveis,  quanto  provêm  do  próprio  interior  dos 
arcabouços religiosos. 
Quando analisamos o processo à luz dos próprios textos evangélicos, apesar 
das  deformações  que  sofreram  através  das  cópias,  das  traduções  e  das  várias 
adaptações,  compreendemos  que  essa  fase  de  libertação  corresponde  ao  triunfo 
histórico dos princípios cristãos. Lembrando a figura do Semeador, usada por Jesus, 
podemos  dizer  que  a  semeadura  racional  do  Cristo,  vencendo  a  laboriosa 
germinação medieval,  brotou  com  toda  a  sua  força  a  partir  do Renascimento. Daí 
por  diante,  a  seara  crescerá  com  rapidez  espantosa,  lançará  os  pendões  que 
rebentarão  em  flores  anunciadoras  dos  novos  tempos,  e  começará  a  dar  as  suas 
primeiras  espigas.  Étienne  Gilson,  historiador  católico  da  filosofia  medieval, 
explica­nos, no  capítulo  final  da  sua  obra  clássica, LE PHILOSOPHIE AU MOYEN 
ÂGE:  “Desde  as  origens  patrísticas  até  o  fim  do  século  XIV,  a  história  do 
pensamento  cristão,  a  de  um  esforço  incessantemente  renovado  para  revelar  o 
acordo entre a razão natural e a fé, onde ele existe, e para realizá­lo, onde ele não 
existe. Fé e razão, os dois temas com os quais se construirá toda essa história, são 
propostos desde o princípio e se reconhecem claramente ao longo da Idade Média, 
em todos os filósofos que vão de Escoto Erígena a São Tomás”. E Gilson conclui o 
capítulo  com  um  período  luminoso,  em  que  afirma  a  prioridade  da  França  no 
episódio  da  vitória  da  razão,  acrescentando  que  a  sua  pátria  “impregnou­se  para 
sempre  do  sonho messiânico  de  uma humanidade  organizada  e  ligada  pelos  laços 
puramente  inteligíveis  de  uma  mesma  verdade”.  Esses  laços  inteligíveis,  que
71 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
caracterizam o pensamento francês, não se referem, entretanto, a qualquer forma de 
pensamento dogmático, fideísta. São, pelo contrário, a característica da era nova que 
se  iniciou  a  partir  da  ruptura  dos  arcabouços  do  dogmatismo  religioso. Não  é  por 
acaso que encontramos algumas significativas coincidências históricas, como estas, 
por exemplo: a data de 10 de novembro de 1619, que marca o momento da rebelião 
cartesiana contra o dogmatismo escolástico, e a de 10 de novembro de 1793, em que 
a  Razão  é  entronizada  na  Catedral  de  Notre  Dame;  a  proposta  de  Clootz,  na 
CONVENÇÃO,  de  se  adotar  o  Povo  como  Deus  único,  e  a  tentativa  de  Augusto 
Comte,  no  século  dezenove,  de  fundar  a  Religião  da  Humanidade;  os  sonhos  de 
Descartes,  que  o  convenceram  de  estar  inspirado  pelo  Espírito  da  Verdade,  e  a 
manifestação desse mesmo Espírito a Kardec, incumbindo­o de iniciar a construção 
daquela mesma  “ciência  admirável”  com  que  o  filósofo  sonhara  em  seu  retiro  de 
ULMA.  A  trama  histórica,  como  se  vê,  parece  assinalada  por  repetições  que  se 
assemelham  ao  pontilhar  de  uma  agulha,  buscando  aqui  e  ali  os  ajustamentos 
necessários, para  firmar em definitivo a  sua urdidura. Aqueles princípios  racionais 
que  assinalamos no Cristianismo Primitivo, na  reação  decisiva  do  ensino  de  Jesus 
contra o fideísmo dogmático do Judaísmo, desenvolvem­se de maneira dialética no 
processo histórico. De sua pureza revolucionária, eles se precipitam no compromisso 
com  os  interesses  conservadores  das  formas  estáticas  da  religião.  Mas  o 
compromisso  não  é  mais  do  que  um  “mal  necessário”,  o  que  vale  dizer  um mal 
aparente, uma vez que constitui simples fase de transição para a libertação universal 
do futuro. A religião humana caminha, embora penosamente, ruma à religião divina 
ou espiritual. 
Jesus explicara que a semente de trigo não renasce, se antes não morrer, não 
se desfizer na terra. Ensinara  também que um pouco de  fermento  faz  levedar uma 
medida de  farinha. Todas essas  referências  indicam a segurança do semeador, que 
sabia o que estava fazendo, ao lançar suas sementes no solo. O processo dialético se 
revela na oposição entre os ensinos do Cristo e  sua desfiguração medieval, com a 
síntese  consequente  da  “religião  em  espírito  e  verdade”,  que  virá mais  tarde,  em 
meados do século dezenove. A ruptura dos arcabouços religiosos não se fará, porém, 
de um momento para outro, nem ocasionará a derrocada imediata desses arcabouços. 
Pelo  contrário,  será  todo  um  complexo  processo  histórico,  ainda  em 
desenvolvimento no nosso século. As rebeliões do Renascimento, que marcarão uma 
espécie de revivescência da época das heresias, aparecerão como gigantescas fendas 
abertas na poderosa muralha da Igreja. 
De  Lutero  a  Zwinglio,  Calvino  e  Henrique VIII,  o  processo  da  Reforma 
refletirá, no plano  religioso, os poderosos anseios de  libertação  já manifestados na 
arte, na  ciência  e na  filosofia. Não  importam os  pretensos motivos  circunstanciais 
desses movimentos. Muitos desses motivos são falsamente alegados, mas ainda que 
fossem  reais,  nada  mais  seriam  do  que  os  meios  necessários  ao  pleno
72 – J. Herculano Pires 
desenvolvimento  das  forças  da  evolução  espiritual.  A  verdade  fundamental  está 
demasiado  evidente  no  processo  histórico,  e  tanto  se  confirma  no  plano  das 
investigações  antropológicas,  dos  estudos  culturais,  quanto  da  própria  exegese 
bíblica e evangélica, quando procedida sem as restrições do pensamento sectário. 
O anúncio de Jesus à mulher samaritana, de que chegaria o tempo em que 
os  verdadeiros  adoradores  de  Deus  o  adorariam  “em  espírito  e  verdade”,  e  a 
promessa  do  Consolador,  constante  do  Evangelho  de  João  —  simples  sanções 
evangélicas  às  referências  do Velho Testamento  a  uma  era  espiritual — oferecem 
confirmação escriturística à evidência histórica. A “religião espiritual” é a meta que 
será  fatalmente  atingida  pelo  desenvolvimento  do  Cristianismo,  através  do 
Espiritismo. 
2 – A luta contra os símbolos 
Aquilo a que chamamos “arcabouços religiosos" pode ser definido como a 
série de estruturas  simbólicas que  recobre o  sentimento  religioso. Essas estruturas, 
como  o  madeiramento  ou  o  esqueleto  metálico  de  uma  construção,  mantêm  os 
edifícios  religiosos.  E  nenhum  edifício  mais  bem  estruturado,  mais  solidamente 
sustentado  por  seus  arcabouços,  do  que  o  daigreja  medieval.  Tanto  a  estrutura 
doutrinária,  constituída  pela  dogmática  cristã,  quanto  a  estrutura  litúrgica  e  a 
sacerdotal,  representavam  poderosos  arcabouços,  que  pareciam  construídos  de 
maneira  a  enfrentar  os  séculos  e  os  milênios.  Mas  foram  precisamente  esses 
arcabouços que sofreram as primeiras rupturas, quando o impacto do Renascimento 
atingiu a homogeneidade religiosa da Idade Média. Os símbolos representam ideias, 
servem  para  transmiti­las,  mas  por  isso  mesmo  se  colocam  entre  as  ideias  e  o 
intelecto,  e  não  raro  encobrem  e  asfixiam  aquilo  que  deviam  exprimir.  Trata­se, 
evidentemente, de um processo dialético. 
Os  símbolos  são  úteis  durante  o  tempo  necessário  para  a  transmissão  da 
ideia, mas  tornam­se  inúteis  e  perniciosos  quando  passam  do  tempo. No  caso  do 
cristianismo  medieval,  essa  deterioração  da  simbólica  religiosa  era  tanto  mais 
inevitável,  quanto  os  chamados  símbolos­cristãos  haviam  sido  tomados  de 
empréstimo  às  religiões  anteriores,  superadas  pelas  ideias  cristãs.  Símbolos 
adaptados,  que  representavam mal  as  ideias  encobertas,  uma  vez  esgotada  a  sua 
função representativa, revelaram o seu indisfarçável vazio interior. A Reforma pode 
ser considerada como uma  luta contra os símbolos. Destituídos de significação, os 
símbolos perduraram nas estruturas, como perduram ainda hoje, mantidos pelo valor 
social  e  econômico  de  que  se  revestiram.  À  maneira  dos  mitos  antigos,  da 
civilização  greco­romana,  que  se  mantiveram  em  uso  muito  tempo  depois  de 
haverem perdido o seu conteúdo significativo, os  símbolos medievais continuavam
73 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
dominando.  A  primeira  grande  figura  a  se  levantar  contra  eles  foi  Erasmo  de 
Rotterdam. Vivendo no período de transição que caracterizou a passagem do século 
XV para o XVI, Erasmo sentiu as transformações profundas que abalavam a época, 
e graças à sua sensibilidade e agudeza mental, pôde captar facilmente os reclamos da 
evolução  no  campo  religioso. Curioso  notar­se  o  sentido  reformista  da  posição  de 
Erasmo,  dentro  da  própria  Igreja. Era um  evolucionista,  e  não  um revolucionário. 
Pretendeu promover as  transformações necessárias de maneira pacífica, através da 
razão,  abalando  a  dogmática  medieval  pela  simples  força  do  raciocínio.  Chegou 
mesmo a se declarar disposto a sofrer por mais tempo a asfixia dos símbolos, para 
evitar  qualquer  convulsão.  Daí  suas  divergências  com  Lutero,  que  representava 
precisamente  o  contrário  da  sua  posição. Mas não  se  pode  tratar da Reforma  sem 
uma referência a Erasmo, essa figura estranha, que equivale, no campo da teologia, à 
figura  de  Descartes  no  da  filosofia.  Ambos  dotados  de  enorme  capacidade 
intelectual, de profunda cultura, lutaram contra a simbólica medieval com prudente 
firmeza. Confiavam de maneira inabalável no poder da razão. Martinho Lutero vivia 
ainda  na  obscuridade,  como  um  monge  agostiniano,  em  Witternberg,  quando 
Erasmo  já  exercia  enorme  influência  em  toda  a Europa, na  luta  contra  o  fideísmo 
dogmático. Em 1516, Erasmo teve conhecimento da existência de Lutero, através de 
uma  carta  de  Spalatinus.  Já  nessa  ocasião,  o  reformador  alemão  discordava  de 
Erasmo, no  tocante  ao  dogma do  pecado  original. Essa  discordância  se acentuaria 
mais tarde e se estenderia a outros pontos. Em 1517, quando Lutero afixou, na porta 
da igreja de Wittemberg, as suas noventa e cinco teses, desencadeando a revolução 
reformista,  Erasmo  assustou­se  com  a  audácia  e  a  violência  do  movimento 
germânico. Alegrou­se com a ampliação da luta, mas ao mesmo tempo encheu­se de 
temor,  chegando mesmo  a  lamentar  aquilo  que  considerava  como  os  exageros  de 
Lutero. 
Na verdade, a luta contra os símbolos não poderia processar­se no plano do 
simples raciocínio, como desejava Erasmo. Era indispensável a ação revolucionária. 
Porque  os  símbolos,  convertidos  em  formas  de  valor  social  e  econômico, 
representavam  interesses  em  jogo,  principalmente  no  perigoso  campo  da  vida 
política. Lutero, temperamento diverso de Erasmo, espírito prático, homem de ação, 
compreendeu  logo  a  natureza  da  batalha  que  devia  travar.  Repugnavam­lhe  as 
hesitações  intelectuais  de  Erasmo,  os  temores  sibilinos  do  humanista  holandês. 
Lutero  compreendia,  com  extraordinária  lucidez,  que  era  necessário  atacar  sem 
demora  e  sem  receio  as  estruturas  poderosas  do  dogmatismo medieval.  Por  outro 
lado, as circunstâncias históricas o favoreciam, dando­lhe como aliados os príncipes 
alemães, cujos interesses políticos se voltavam contra o império romano do papado. 
Vemos assim corno o processo histórico se desenvolve, em meio de suas próprias 
contradições,  preparando  o  terreno  para  a  libertação  religiosa.  Stephan  Zweig,  no 
seu  belo  livro  sobre  Erasmo,  lembra  uma  feliz  comparação  de  Zwinglio,  o
74 – J. Herculano Pires 
reformador  suíço,  que  vale  a  pena  repetir.  Erasmo  foi  comparado  a  Ulisses,  o 
prudente, que somente o acaso arrastara para a  luta, e que  logo  voltara para o seu 
mundo contemplativo, na ilha de Ítaca. Lutero, pelo contrário, era Ajax, o guerreiro 
que  carregava  a  guerra no  próprio  sangue. Apesar  das  diferenças,  entretanto,  cada 
qual desempenhou o seu papel no drama histórico. A força serena do pensamento de 
Erasmo  abriu  caminho,  e  construiu  o  clima  de  segurança  indispensável  ao  ímpeto 
revolucionário de Lutero. 
Esses  dois  homens  encarnaram  a  luta  contra  os  símbolos.  Erasmo  atacou 
serenamente, e  seu pensamento se  infiltrou de maneira dissolvente nos arcabouços 
religiosos, minando­os pela base. Lutero desfechou os golpes decisivos, para que a 
ruptura  se  verificasse.  Depois,  nas  fendas  abertas,  surgiram  os  colaboradores  da 
grande obra reformista. Muitos deles não estavam, como Calvino, à altura dos ideais 
libertadores.  Mas  nem  por  isso  deixaram  de  contribuir  vigorosamente  para  a 
derrocada  necessária.  A  liquidação  dos  hereges  pela  violência,  como  acontecera 
anteriormente  com  os  albigenses,  os  valdenses  e  os  hussistas,  já  não  era  mais 
possível. A autoridade intelectual e moral de Erasmo, de um lado, e o apoio político 
dado a Lutero, de outro lado, conjugados com as condições da época, permitiam ao 
movimento da Reforma o seu pleno desenvolvimento. 
Zweig  lembra,  no  seu  livro,  um  episódio  que  nos  mostra  a  perfeita 
conjugação de esforços entre Erasmo e Lutero, não obstante as divergências que os 
separavam. Nas vésperas da reunião da Dieta em Worms, Frederico da Saxônia, que 
protegia  Lutero  mas  tinha  dúvidas  quanto  à  legitimidade  de  sua  luta,  interpelou 
Erasmo  a  respeito.  O  encontro  do  príncipe  com  o  humanista  verificou­se  em 
Colônia, a 5 de novembro de 1520. Erasmo respondeu honestamente que “o mundo 
suspirava pelo verdadeiro Evangelho”, e que não se devia negar a Lutero o direito de 
defender as suas teses. Nesse momento, como assinala Zweig, o destino de Lutero 
dependia da palavra de Erasmo. E esta não  lhe  faltou. Os dois  lutadores, que nem 
sequer  chegaram  a  se  conhecer  pessoalmente,  e  apesar  de  tão  diversos  quanto  ao 
temperamento  e  às  posições  assumidas,  marcharam  juntos  na  luta  contra  os 
símbolos, forçados pelas contingências históricas. Prepararam juntos o terreno, para 
o advento do Espiritismo. 
3 – Fragmentação da igreja 
A partir da rebelião  luterana, os arcabouços  religiosos medievais cederam 
ao impacto do espírito renovador. A Igreja fragmentou­se. Rompidos os arcabouços, 
o  edifício  gigantesco  ameaçou  ruir.  Aquilo  que  Erasmo  temia,  verificou­se  de 
maneira  inapelável.  Durante  séculos,  o  mundo  não  gozaria  mais  da  unidade 
religiosa, e consequentemente, da pax romana da Idade Média.
75 –O ESPÍRITO E O TEMPO 
A  timidez  de  Erasmo,  os  seus  excessos  de  prudência,  não  lhe  haviam 
deixado perceber o sentido profundo das próprias palavras evangélicas, atribuídas ao 
Cristo:  “Não  julgueis  que  vim  trazer  paz  à  terra; não  vim  trazer­lhe  a  paz, mas  a 
espada”. (Mateus, 10:34.) Ou ainda: “Eu vim trazer fogo à terra, e que mais quero, 
senão que ele sé acenda?” (Lucas, 12:49) A mesma espada que dividiu os judeus na 
era apostólica, a partir da pregação do Cristo, o mesmo fogo que lavrou no seio do 
Judaísmo, devastando a sua unidade apática, haviam também de dividir os cristãos e 
calcinar  o  dogmatismo  fideísta  da nova  estagnação  religiosa. A  “religião  estática” 
cederia lugar aos impulsos revitalizadores da “religião dinâmica”; desse “élan vital” 
que  teria  de  romper  as  estruturas  materiais,  para  que  a  “religião  em  espírito  e 
verdade”  pudesse  triunfar  dos  formalismos  dominantes.  Lutero  sentira 
profundamente  essa  verdade;  embora  ainda  não  pudesse  compreendê­la  em 
plenitude.  Erasmo  a  compreendeu, mas  não  a  sentiu  com a  intensidade  suficiente 
para  impulsioná­lo  à  ação.  Esse  desajuste,  entretanto,  era  necessário  ao 
desenvolvimento  do  processo  histórico,  que  não  poderia  prescindir  das  fases  que 
caracterizam o desenrolar da história. 
A revolução luterana consolidou­se com o código de vinte e oito artigos da 
Confissão de Augsburg, elaborado por Melanchton, e expandiu­se rapidamente pela 
Alemanha  e  os  países  nórdicos,  tornando­se  religião  estatal.  Lutero  pretendia 
substituir os símbolos medievais pela verdade evangélica, substituir o aparelhamento 
do  culto  pela  presença  do  Cristo.  Era  um  impulso  decisivo  de  volta  às  origens 
cristãs.  Mas  as  próprias  circunstâncias  apresentavam  obstáculos  diversos  a  esse 
retorno  ideal.  O  luteranismo  não  conseguiu  abolir  completamente  a  simbólica 
religiosa  do  catolicismo­romano  e  terminou  adaptando  uma  parte  da  mesma. 
Conservou os três sacramentos que considerava fundamentais: batismo, a comunhão 
e a penitência, e manteve a organização sacerdotal. Mas o mais curioso da Reforma 
foi a substituição de uma idolatria por outra. Em lugar dos ídolos, das relíquias, do 
instrumental variado do culto, do dogmatismo dos concílios e da autoridade papal, o 
luteranismo consagrou a idolatria da letra, a infalibilidade dos textos sagrados. 
Paulo, o apóstolo, já havia ensinado que a letra mata e somente o espírito 
vivifica. Mas também a liberdade subitamente conquistada pode matar. Livrando­se 
do  peso  morto  dos  ídolos  materiais  que  atravancam  a  religião  medieval,  os 
reformadores da Renascença deviam apegar­se  forçosamente a alguma coisa. Essa 
nova base, sobre a qual deviam firmar­se para prosseguir na luta, foi a “Palavra de 
Deus”, consubstanciada nos  textos da Escritura. A Reforma estabeleceu  o  império 
do  literalismo,  o  domínio  da  letra.  Jamais Cristianismo  europeu  fizera  tanto  jus  à 
denominação  de  “religião  do  livro”,  que  os  maometanos  lhe  haviam  dado.  Nos 
templos reformados, a Bíblia substituiu a imagem. É fácil compreendermos que um 
grande  passo  estava  dado,  pois  libertar  a  letra  era  a  medida  indispensável  para 
conseguir­se a libertação do espírito, nela encerrado.
76 – J. Herculano Pires 
O “verdadeiro  evangelho”, de  que Erasmo  falara a Frederico  da Saxônia, 
surgiu sobre a Europa nas múltiplas traduções para as línguas nacionais, a partir da 
germânica. Os  textos  ocultos,  até então  privilégio  dos  clérigos,  eram retirados  das 
criptas  e  oferecidos  ao  povo,  que  os  recebia  com  sofreguidão. A possibilidade  de 
contato direto com a Escritura, o direito de sentir o seu poder inspirador nos próprios 
textos, sem as interpretações clericais, eis a novidade que abalava o Cristianismo e 
abria  perspectivas  imprevisíveis  para  o  seu  desenvolvimento.  Foi  essa  a  missão 
espiritual  da  Reforma.  Sem  o  florescimento  da  seara  cristã,  sem  essa  floração 
magnífica do Evangelho, por toda parte, não poderíamos chegar ao tempo dos frutos 
e da colheita, que viria mais tarde, quando se cumprisse a Promessa do Consolador. 
Na  França  e  na  Suíça,  Zwinglio  e  Calvino  se  incumbiram  de  dar 
prosseguimento  à  Reforma,  que  se  estendeu  rapidamente  aos  Países  Baixos  e  à 
Escócia. Calvino parece ter sentido ainda mais fundamente que Lutero a necessidade 
de libertar o Cristianismo da asfixia dos símbolos. Apegou­se, entretanto, ao dogma 
da  predestinação,  e  seu  fanatismo  atingiu  às  raias  clã  brutalidade,  com  terríveis 
episódios de violência. Não obstante, sua contribuição resultou no vigoroso surto do 
liberalismo  protestante,  iluminado  pela  influência  do  criticismo  kantiano.  Na 
Inglaterra, a libertação do domínio papal, efetuada por Henrique VIII e consolidada 
pela rainha Elisabete, não chegou a atingir a profundidade das reformas de Lutero e 
Calvino. A Igreja Anglicana, dominada pelo soberano nacional, conservou enorme 
acervo da herança medieval. 
De qualquer maneira, a Reforma estendeu­se por  toda parte, deitou  raízes 
na América, e obrigou a Igreja a também se reformar, através do Concílio de Trento, 
em suas três sessões sucessivas. O movimento da Contra­Reforma apresentou duas 
faces  contraditórias:  uma  negativa,  com  a  instituição  do  Santo  Ofício,  o 
estabelecimento  da  Inquisição;  outra  positiva,  com  o  trabalho  educacional  da 
Companhia  de  Jesus.  A  primeira  face  correspondia  à  indignação  do  fanatismo 
ferido;  a  segunda,  à  compreensão  da  inteligência  eclesiástica,  alertada  pela 
prudência  de  Erasmo,  de  que  novos  tempos  haviam  surgido  e  novas  aspirações 
sacudiam  vigorosamente  os  povos.  A  impetuosidade  de  Lutero  produzira  os 
resultados  necessários.  O  fogo  ateado  pelo  Cristo  se  reacendera  nos  corações,  até 
então amortalhados pela rotina secular. Uma nova terra e um novo céu começavam a 
aparecer,  segundo  a  previsão  apocalíptica.  E  a  partir  do  século  dezoito,  o  clima 
estava preparado para o segundo grande passo do Cristianismo, que seria dado com 
a superação do literalismo: a libertação do espírito. Caberia a Kardec, a serviço do 
Consolador, libertar da letra que mata o espírito que vivifica.
77 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
4 – Ruptura do arcabouço literal 
A  posição  do  Espiritismo,  em  face  dos  textos  sagrados  do  Cristianismo, 
parece ambígua. Ao mesmo tempo em que se apóia nos textos, a doutrina, a partir de 
Kardec,  e  por  seus mais  autorizados  divulgadores,  também  os  critica.  Nada mais 
coerente  com  a  natureza  declaradamente  racional  do  Espiritismo,  com  a  sua 
orientação analítica, e portanto científica. A ambiguidade apontada pelos opositores 
não é mais do que o uso da liberdade de exame, sem o qual o Espiritismo teria de 
submeter­se  ao  dogmatismo  literalista,  incapaz  de  libertar,  da  prisão  da  letra,  o 
espírito que vivifica. Admitir o absolutismo das Escrituras seria frustrar a evolução 
do Cristianismo, nos rumos da plena espiritualidade, que constitui ao mesmo tempo 
a sua essência e o seu destino, o seu objetivo. 
O Cristianismo Primitivo aprendera a libertar das escrituras judaicas e o seu 
conteúdo  espiritual,  como  vemos  nas  epístolas  apostólicas  e  nos  próprios  textos 
evangélicos. Estes  textos, por  sua vez, apresentam­se na  forma livre de anotações, 
testemunhando  a  liberdade  espiritual  o  ensino  do  Cristo,  que  não  se  prendia  a 
nenhum  esquema  literal  dotado  de  rigidez.  Não  obstante,  o  cristianismo medieval 
construiu  um  rígido  arcabouço  literal,  no  qual  prendeu  e  abafou,  sob  os  demais 
arcabouços  da  imensa  construção  da  Igreja,  a  essência dos  ensinos  cristãos,  o  seu 
livre  espírito.  A  Reforma,  rompendo  os  arcabouços  da  superestrutura,  não  teve 
forças para romper o da infra­estrutura, por entender queneste se encontrava a base 
do  Cristianismo.  Romper  o  arcabouço  literal  seria  como  destruir  os  alicerces  do 
edifício. Era natural que assim acontecesse, pois os reformadores do Renascimento 
não  poderiam  ir até  as  últimas  consequências.  Primeiro,  porque  a  sua ação  estava 
naturalmente  limitada  pelas  possibilidades  da  época;  e,  depois,  porque  ela  se 
destinava  a  preparar  condições  para  o  novo  impulso  a  ser  dado.  Somente  o 
reconhecimento  das  manifestações  espíritas,  o  estudo  desses  fenômenos  e  a 
aceitação  racional  das  comunicações  esclarecedoras,  dadas  por  via  mediúnica, 
poderiam levar ao rompimento do arcabouço literal, última forma concreta em que o 
espírito cristão se refugiava. 
Podemos compreender o apego dos literalistas à “Palavra de Deus”, quando 
nos lembramos dessa lei de inércia que nos amarra aos velhos hábitos. Melhor ainda 
o compreendemos, ao pensar na sensação de insegurança que devem ter sentido os 
reformistas,  na  proporção  em  que  demoliam  os  arcabouços  do  velho  e  poderoso 
edifício, no qual por tantos séculos se abrigara a fé de seus antepassados e a deles 
mesmos. O Cristo ensinara, com absoluta clareza, segundo as anotações evangélicas, 
que precisávamos perder a nossa vida, para encontrá­la. “Porque o que quiser salvar 
a sua vida, perdê­la­á, mas o que a perder por amor de mim, esse a salvará”. (Lucas, 
9,  24) Ou  ainda:  “O que  acha  a  sua  vida,  a  perde; mas  o  que  a  perde  por minha 
causa, esse a acha”. (Mateus, 10, 39)
78 – J. Herculano Pires 
A  lição  individual  se  aplica  no  plano  coletivo.  Os  cristãos  medievais  se 
apegaram àquilo que consideravam como a  sua própria vida: os hábitos  religiosos 
antigos, os formalismos que pareciam dar­lhes segurança. Os cristãos reformistas se 
apegaram  aos  textos. Mas,  para  encontrar  a  vida,  era  necessário  ainda  um  último 
desapego,  a  libertação  final,  que  devolveria  ao  Cristianismo  a  sua  essência 
desfigurada  pelas  amoldagens  humanas.  O Cristianismo  tinha  também  de  ouvir  a 
lição  do  Cristo:  perder  a  sua  vida  formal  e  literal,  para  encontrá­la  em  espírito  e 
verdade.  Coube  ao  Consolador,  como  o  próprio  Cristo  anunciara,  a  tarefa  de 
produzir  esse  rompimento  final.  “Em verdade  vos  digo — anunciou  o Espírito  da 
Verdade  —  que  são  chegados  os  tempos  em  que  todas  as  coisas  devem  ser 
restabelecidas no seu exato sentido, para dissipar as trevas, confundir os orgulhosos 
e glorificar os justos.” Em O LIVRO DOS ESPÍRITOS, nas respostas dadas à pergunta 
627,  encontramos  a  mesma  afirmação,  com  maiores  esclarecimentos.  Não  só  os 
textos  sagrados  do Cristianismo, mas  todos  os  grandes  textos  sagrados  e  sistemas 
filosóficos,  afirma  o  Espírito,  “encerram  os  germens  de  grandes  verdades”,  que 
podem ser libertados, “graças à chave que o Espiritismo fornece”. Na introdução de 
O  EVANGELHO  SEGUNDO  O  ESPIRITISMO,  logo  nas  primeiras  linhas,  Kardec 
oferece um exemplo da maneira pela qual o Espiritismo “quebra a noz para tirar a 
amêndoa”, segundo uma sua expressão. O respeito aos textos não se refere à forma, 
mas ao conteúdo. O Espiritismo respeita a essência, os ensinos contidos na letra, o 
espírito  que  nelas  se  incorpora,  e  não  a  própria  letra.  Analisando  os  textos 
evangélicos, Kardec  afirma: “A matéria  contida nos Evangelhos  pode  ser  dividida 
em cinco partes: os atos ordinários da vida do Cristo; os milagres; as profecias; as 
palavras  que  serviram  para  o  estabelecimento  dos  dogmas  da  Igreja;  e  o  ensino 
moral.  As  quatro  primeiras  serviram  para  controvérsias,  mas  a  última  subsiste 
inatacável”.  Logo  mais,  esclarece:  “Essa  parte  constitui  o  objeto  exclusivo  da 
presente obra”. 
A noz foi quebrada e a amêndoa retirada. O arcabouço literal foi rompido, 
para  que  o  espírito  se  libertasse  da  letra.  Os  próprios  adeptos  do  Espiritismo,  em 
geral, não percebem a grandeza dessa atitude e lamentam que Kardec não fizesse um 
estudo minucioso  dos  textos,  analisando  vírgula  por  vírgula. Outros,  achando  que 
Kardec fez pouco, preferem embrenhar­se no cipoal de “Os Quatro Evangelhos”, de 
Roustaing,  aceitando  as mais  esdrúxulas  interpretações  de  passagens  evangélicas. 
Tudo por quê? Simplesmente porque continuam “apegados a sua vida”, subjugados 
pela  fascinação  da  letra,  em  vez  de  se  entregarem  ao  espírito  dos  ensinos,  que 
Kardec  libertou,  num  trabalho  inspirado  e  orientado  pelas  mais  elevadas  forças 
espirituais que o nosso mundo já teve a oportunidade de conhecer. As escrituras são 
encaradas  pelo  Espiritismo  como  elaborações  proféticas,  ou  seja,  como  produtos 
mediúnicos das chamadas épocas de  revelação. Nessas épocas, que assinalaram os 
momentos  decisivos,  ou  pelo menos  importantes,  da  evolução  humana,  as  figuras
79 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
proféticas de Hermes, de Moisés, de Buda, de Maomé, revelaram aos homens alguns 
aspectos  ocultos  do  processo  da  vida,  ensinando­lhes  princípios  de  orientação 
espiritual. Todas as escrituras  sagradas, por  isso mesmo, “encerram os germens de 
grandes verdades”. Nos livros do Cristianismo, que incluem os livros fundamentais 
do  Judaísmo,  esses  germens  aparecem  de  maneira  mais  acessível  a  nós,  por  se 
dirigirem especialmente ao nosso tempo, através do processo histórico da evolução 
cristã. É nesse sentido que o Espiritismo respeita as escrituras, e nelas se apóia, para 
confirmar a sua própria legitimidade, mas a elas não se escraviza. Pelo contrário, o 
Espiritismo recebe as escrituras como um acervo cultural, do qual retira as energias 
criadoras, as forças vitais condensadas em suas formas, para reelaborá­las em novas 
expressões de espiritualidade. É assim que o Cristianismo se liberta e se renova, na 
expansão  de  suas  mais  profundas  e  poderosas  energias,  para  libertar  e  renovar  o 
mundo.
80 – J. Herculano Pires 
CAPÍTULO III 
A INVASÃO ESPIRITUAL 
ORGANIZADA 
1 – O CICLO DO FORMALISMO 
Para bem compreendermos o processo de libertação das energias vitais do 
Cristianismo, através do Espiritismo, precisamos  traçar rapidamente o esquema do 
formalismo  cristão.  Em  primeiro  lugar,  temos  a  prédica  do  Cristo,  que,  como  já 
vimos,  era  inteiramente  livre  de  formalismos,  realizada  nas  margens  do  lago  de 
Genesaré, nas estradas, nas ruas, nas praças e nos pátios do Templo de Jerusalém, ou 
nas  próprias  tribunas  das  sinagogas.  Em  segundo  lugar,  a  tentativa  apostólica  de 
formalizar os ensinos, enquadrando­os no sistema judaico. É o caso da exigência de 
circuncisão dos novos adeptos, de  oferta de sacrifícios no  templo, de aplicação do 
batismo,  e  assim  por  diante.  Em  terceiro  lugar,  a  formalização  medieval  do 
Cristianismo,  que  acabou  por  se  enquadrar  na  sistemática  religiosa  das  antigas 
ordens ocultas, por submeter­se aos ritos, ao aparato litúrgico e às formas mágicas 
(sacramentais)  dos  cultos  pagãos.  Em  quarto  lugar,  a  libertação  do  formalismo, 
iniciada  pela  Reforma,  e  que  vem  completar­se  no  Espiritismo.  Esse  esquema, 
limitado ao Cristianismo, enquadra­se num esquema mais amplo, que abrange todo 
o processo religioso da humanidade, em seus mais variados aspectos. 
Vejamos esse esquema maior, em sua amplitude universal: 
Primeiro,  temos  o  mediunismo  primitivo,  em  que  as  relações  entre  o 
homem  tribal  e  os  espíritos  se  processavam  de  maneira  natural,  espontânea,  sem 
necessidade de formalidades especiais, pelo surto inevitável da mediunidade entre os 
selvagens.  Depois,  temos  a  formalização  rudimentar  dessas  relações,  entre  os 
próprios selvagens, que deram início ao culto dos espíritos, seguindo os preceitos da 
reverência  tribal aos caciques  e pagés. Assim, a  formalização começou na própria 
era primitiva, no horizonte  tribal. Massó mais  tarde iria  tomar aspectos definidos, 
no  processo  do  desenvolvimento  da  vida  social.  Partimos,  portanto,  da  liberdade 
mediúnica da vida tribal, para um segundo estágio, que é o da formalização do culto 
familial, no horizonte agrícola, com a instituição progressiva do culto dos ancestrais. 
O terceiro passo é a criação dos sistemas oraculares, no horizonte civilizado, quando 
o culto dos ancestrais se amplia e se complica, para servir à comunidade, à cidade. O 
quarto  estágio  é  o  da  sistematização  das  grandes  religiões,  com  seu  formalismo
81 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
demasiado complexo, apoiado em complexas formulações teológicas, em minuciosa 
racionalização  teórica.  O  quinto  passo,  aquele  que  estamos  dando  no  momento, 
através  do Espiritismo,  é  o  da  volta  à  liberdade primitiva, com o  rompimento  dos 
formalismos religiosos de qualquer espécie. 
Quando o Cristo anunciou, à mulher samaritana, que um dia os verdadeiros 
adoradores  de  Deus  o  adorariam  em  espírito  e  verdade,  sem  necessidade  de  se 
dirigirem  ao  Templo  de  Jerusalém  ou  ao  Monte  Garazin,  nada  mais  fez  do  que 
prever  a  sequência  do  desenvolvimento  histórico  do  processo  religioso.  O  Cristo 
sabia, não em virtude de poderes misteriosos, mas em consequência de sua natural 
elevação  espiritual,  que  a  evolução  religiosa  levaria  o  homem  à  libertação  dos 
formalismos asfixiantes do culto exterior. Sabia também, como os grandes filósofos 
do passado sabiam outras muitas coisas, que o seu próprio ensino seria formalizado, 
asfixiado nas formas do culto, deturpado, para afinal ser libertado e restabelecido. 
Vemos assim que o Espiritismo, ao apresentar­se, na forma de Consolador 
Prometido, de Espírito da Verdade, de Paráclito anunciado pelo Cristo, não precisa 
de  justificações  teológicas  ou  formais.  Sua  justificação  está  no  próprio 
desenvolvimento do processo histórico da evolução religiosa. Conforme ao símbolo 
hindu  da  evolução,  que  a  Sociedade  Teosófica  adotou  no  seu  emblema, —  uma 
cobra em círculo, mordendo a ponta da cauda — o Espiritismo volta à liberdade de 
relações  mediúnicas  da  era  primitiva,  enriquecido  com  a  experiência,  e  o 
conhecimento  das  leis  espirituais.  O  que  leva  os  religiosos  formalistas  a  não 
aceitarem  o  Espiritismo  como  o  Consolador  é  o  preconceito  formal,  esse mesmo 
preconceito que levou os judeus formalistas a rejeitarem o Cristo como Messias. Se 
esses  religiosos  conseguissem  compreender  o  processo  religioso  em  sua  estrutura 
cíclica de evolução, não se perderiam em dúvidas de natureza mística, diante de uma 
realidade natural e historicamente evidente. 
As  relações  mediúnicas  naturais  da  era  primitiva,  quando  homens  e 
espíritos  conviviam  na  natureza,  eram  possíveis  diante  da  naturalidade  da  mente 
primitiva.  Mas  a  evolução  é  um  processo  de  enriquecimento.  Os  homens,  ao  se 
civilizarem, complicaram sua mente, perderam­se no Dédalo dos  raciocínios e das 
suposições, afastaram­se da naturalidade primitiva. Os espíritos, identificados como 
seres  de  outra  espécie,  assumiram,  cada  vez mais,  papel misterioso  no  quadro  da 
natureza. Tudo isso era necessário, pois a evolução exige a sequência de etapas que 
vimos acima. Uma vez, porém, enriquecida a mente, desenvolvida em seus poderes 
de  abstração  e  de  penetração,  o  homem  pode  voltar,  com  conhecimento  das  leis 
naturais, à naturalidade primitiva. É por isso que, no Espiritismo, as relações entre 
homens e espíritos se processam com naturalidade, livres das complicações já agora 
inúteis do culto, do formalismo religioso.
82 – J. Herculano Pires 
2 – Libertação das forças vitais 
A transmissão da cultura se processa através de fases cíclicas. Primeiro, as 
forças  vitais,  as  energias  criadoras,  emanadas  do  espírito,  se  projetam nas  formas 
materiais e nelas se condensam. Depois, essas forças se libertam, para enriquecer o 
espírito. Melhor  compreenderemos  isto,  se  tomarmos  o  exemplo  concreto  de  uma 
obra  literária.  As  energias  criadoras  do  autor  se  projetam  e  se  condensam  nos 
capítulos  de  um  livro.  O  leitor  as  liberta,  ao  ler  e  estudar  a  obra.  As  energias 
libertadas  enriquecem  o  espírito  do  leitor  e  poderão  sugerir­lhe  novas  atividades 
mentais, produzindo a criação de nova obra. 
Temos  assim  os  ciclos  de  criação  e  transmissão  da  cultura.  Estudando 
minuciosamente  esse  processo,  em  seu  ensaio  sobre AS CIÊNCIAS DA CULTURA, 
Ernest Cassirer mostra­nos o exemplo do mundo clássico, cujas forças vitais foram 
condensadas  nas  obras  da  cultura  greco­romana  e  posteriormente  libertadas  pelo 
Renascimento, para a fecundação do mundo moderno. A religião, que é um processo 
cultural,  desenvolve­se  de  acordo  com  esse  mesmo  sistema.  Quando  tratamos, 
portanto, da libertação das forças vitais do Cristianismo, através do Espiritismo, não 
estamos  inventando nenhuma novidade. Nem foi por outro motivo que Emmanuel 
classificou  o  Espiritismo  de  Renascença  Cristã.  As  forças  vitais  do  Judaísmo, 
projetadas e condensadas nas Escrituras e na Tradição Judaica, foram libertadas pelo 
Cristianismo,  que  as  reelaborou  em  novas  formas  de  expressão  religiosa.  Essas 
novas  formas,  por  sua  vez,  se  projetaram  e.  condensaram  nos  Evangelhos  e  na 
Tradição Cristã. O Espiritismo as desperta,  liberta e  renova, para reelaborá­las em 
novas  formas. Entretanto,  como  as  novas  formas  espirituais  devem  ser  livres,  em 
virtude  da  evolução  humana,  elas  se  apresentam quase  irreconhecíveis,  perante  os 
cristãos formalistas. 
A  codificação  de  Allan  Kardec  é  repudiada  pelos  cristãos,  da  mesma 
maneira que a codificação evangélica o foi pelos judeus. Esse problema do repúdio 
das novas formas não é privativo do processo religioso. Em todo o desenvolvimento 
cultural,  ele  sempre  está  presente.  É  o  caso,  por  exemplo,  do  repúdio  das  velhas 
gerações ao modernismo, às inovações dos hábitos e costumes. É o mesmo caso do 
repúdio da poesia e da pintura modernas pelos poetas e músicos apegados às formas 
clássicas. Quando Hegel descreveu a evolução da ideia do Belo através das formas 
materiais,  colocou  precisamente  esse  problema.  O  poeta  Rabindranah  Tagore 
declara,  em  suas  memórias,  que  espantou­se  com  as  regras  do  canto  no  mundo 
ocidental, por achá­las demasiado  livres. Estava habituado à doçura monótona das 
canções  hindus,  e  repelia  os  exageros  guturais  da  nossa  ópera.  No  processo  de 
desenvolvimento  do  Cristianismo,  o  Velho  Testamento,  as  antigas  escrituras 
judaicas,  representam  a  arte  oriental  do  estudo  de  Hegel.  Os  Evangelhos  são  a 
condensação  clássica,  equilibrada,  das  energias  vitais  do  judaísmo,  libertas  e
83 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
reelaboradas. A  codificação  de Allan Kardec  é  a  libertação  romântica  dos moldes 
clássicos. Em Kardec, o espírito rompe o equilíbrio clássico dos Evangelhos, para se 
lançar acima do plano das formas e encontrar o plano da vida. Isso não quer dizer 
que o Cristo fosse formalista. Pelo contrário, já vimos que todo o seu ensino e toda a 
sua  ação  se  desenvolveram no  plano  vital,  superando  as  formas. Acontece  que  os 
homens do seu  tempo não estavam em condições de  entendê­lo, como  ele mesmo 
declarou,  e  somente  na  época  de Kardec  se  tornou  possível  a  libertação  vital  dos 
seus ensinos. Ao atingir a fase de libertação vital, o Cristianismo volta naturalmente 
às suas origens. 
Os  ensinos  de  Cristo,  deformados  ou  velados  pela  vestimenta  formal, 
retomam  a  sua  vitalidade  original.  Da  mesma  maneira  por  que  o  Cristo  podia 
confabular  com  os  espíritos  no  Monte  Tabor  ou  no  Horto  das  Oliveiras,  sem  a 
mediação  de  sacerdotes  ou  de  ritos  especiais,  os  cristãos  libertos  podemhoje 
confabular com os seus entes queridos, os seus guias espirituais, e até mesmo com 
aqueles  espíritos  ainda  perturbados  pela  própria  inferioridade —  como  o  Cristo 
também  o  fez  —  sem  nenhuma  espécie  de  ritual  ou  de  formalismo  religioso.  O 
processo  natural  de  relações,  entre  os  espíritos  e  os  homens,  restabelece­se  na 
atualidade. Claro que esse restabelecimento tem de ser repelido pelos que continuam 
apegados aos  sistemas  formais do passado. Um cristão que se habituou à  ideia da 
natureza  sobrenatural  dos  espíritos  não  pode  ver,  sem  horror,  a  naturalidade  das 
relações mediúnicas. 
Por outro lado, a concepção do sagrado, alimentada longamente na tradição 
cristã, em oposição ao profano, faz que os cristãos formalistas se horrorizem com a 
possibilidade de relações com os mortos. Mesmo algumas pessoas de vasta cultura 
mostram esse escrúpulo. Thomas Man, o grande escritor alemão, admitiu a realidade 
do fenômeno de materialização mediúnica, mas entendeu que ele representava uma 
violação da natureza sagrada da morte. Outros pesquisadores, inclusive cientistas, ao 
verem  que  os  espíritos  podem  romper  o  silêncio  sagrado,  o  mistério  do  túmulo, 
abandonaram suas pesquisas. O formalismo religioso tem o seu poder, e o exerce até 
mesmo sobre aqueles que parecem  libertos de preconceitos  religiosos. Exatamente 
por  isso,  o  Espiritismo  só  pôde  surgir  em meados  do  século  dezenove,  depois  de 
amplo desenvolvimento das ciências, que permitiram a criação de um clima mental 
mais arejado no mundo. As ciências restabeleceram a ideia do natural para todos os 
fenômenos, libertando os homens do temor do sobrenatural. Os fenômenos espíritas, 
encarados como naturais, puderam ser estudados em sua verdadeira natureza. Com 
isso,  as  forças  vitais  do  Cristianismo,  que  emergiam  da  própria  naturalidade  das 
relações mediúnicas, puderam ser libertadas.
84 – J. Herculano Pires 
3 – A volta ao natural 
Partindo do natural, os homens construíram na terra o seu mundo próprio, 
artificial.  O  desenvolvimento  da  inteligência  humana,  cuja  característica  é  o 
pensamento  produtivo,  tinha  forçosamente  de  levar  os  homens  pelos  caminhos  da 
abstração mental, e consequentemente do formalismo. O mundo humano é feito de 
convenções.  Sempre  que  essas  convenções  contrariam  as  leis  naturais,  surge  o 
conflito  entre  o  homem  e  a  natureza.  Uma  das  soluções  encontradas  para  esse 
conflito foi a concepção do sobrenatural. Graças a ela, os homens puderam manter­ 
se  ilusoriamente  seguros  no  seu  mundo  convencional.  Mas  a  finalidade  do 
convencionalismo, e consequentemente do formalismo, não é distanciar o homem da 
natureza, e sim facilitar a sua adaptação a ela. Por isso, mais hoje, mais amanhã, o 
homem  teria  de  voltar  ao  natural,  destruindo  pouco  a  pouco  os  excessos  de 
convencionalismo, os exageros perniciosos do seu artificialismo. O sobrenatural não 
é,  como  querem  os  filósofos  materialistas,  uma  fuga  ao  real,  mas  apenas  uma 
deturpação  do  natural.  Os  Espíritos  não  foram  inventados,  como  já  vimos  em 
estudos  anteriores.  Quando  os  homens  primitivos  encontravam  nas  selvas  os 
fantasmas de seus antepassados, não estavam sonhando, nem sofrendo alucinações, 
e  muito  menos  formulando  abstrações  que  suas  mentes  rudimentares  ainda  não 
comportavam. O que acontecia era bem mais simples, como simples sempre são os 
processos da natureza. Eles apenas se defrontavam com Espíritos, que vinham a eles 
sem a interferência de práticas mágicas ou de ritos sacerdotais, por força das leis da 
natureza.  Temos  na  Idade  Média  a  fase  mais  aguda  de  artificialização  da  vida 
humana.  E  isso  tanto  vale  para  o  medievalismo  europeu,  quanto  para  os  demais. 
Nem é por outro motivo que se considera a Idade Média a fase oriental do Ocidente. 
Porque as grandes civilizações orientais foram também o resultado de condensações 
do formalismo. 
De  tal maneira o  formalismo europeu se  condensou no período medieval, 
que o sobrenatural se transformou em instrumento de poder absoluto, nas mãos das 
classes sacerdotais e aristocráticas. O clérigo e o nobre dispunham do poder mágico 
dos  símbolos,  e  dominavam  o  mundo.  Os  Espíritos  se  tornaram  propriedade  das 
classes  dominantes,  e  as  classes  inferiores  sofreram  a  asfixia  espiritual  do  poder 
convencional. Toda manifestação espiritual ocorrida entre o povo estava condenada. 
Os médiuns  eram  bruxos  e  deviam  ser  torturados  ou  queimados.  Os  excessos  do 
formalismo,  tanto  social  como  religioso,  teriam  de  chegar,  como  realmente 
chegaram,  a  um  ponto  máximo  de  condensação.  E  quando  atingiram  esse  ponto, 
como  acontece  com  os  minerais  radioativos,  começaram  a  libertar  as  próprias 
energias. 
Estão  em  erro  aqueles  que  pensam  que  as  comunicações  mediúnicas  só 
ocorreram  de  maneira  intensa  em meados  do  século  dezenove,  dando  origem  ao
85 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
Espiritismo. Talvez tenham ocorrido em maior número na Idade Média. Os Espíritos 
se  manifestavam  por  toda  parte,  provocando  os  horrorosos  processos  contra  os 
bruxos,  de  que  os  arquivos  da  justiça  eclesiástica  estão  cheios.  Asfixiada  a 
mediunidade natural, pela proibição clerical, pela condenação das autoridades e da 
Igreja, os médiuns eram dominados por entidades rebeldes, que desejavam, a todo 
custo,  romper  o  círculo  de  ferro  das  proibições.  A  mediunidade  irradiava  por  si 
mesma, na crosta mineral das condensações do formalismo. As celas dos conventos 
e  dos  mosteiros  se  transformaram  em  câmaras  mediúnicas,  que  antecipavam  as 
câmaras de tortura. Conan Doyle entendeu que se tratava de “casos esporádicos, de 
extraviados  de  uma  esfera  qualquer”.  Espíritos  extraviados,  que  mergulhavam  na 
terra e provocavam as tragédias mediúnicas. Na verdade, não eram extraviados, mas 
Espíritos  apegados  à  terra,  ligados  à  vida  humana,  sintonizados  com  a  esfera  dos 
homens, e que  legitimamente reivindicavam o seu direito de comunicação. As  leis 
naturais reagiam contra o artificialismo das convenções  religiosas. Quanto mais  se 
queimavam  os  bruxos,  mais  eles  surgiam,  no  próprio  seio  das  ordens  religiosas. 
Tornou­se  necessário  admitir­se  a  realidade  de  algumas  visões,  de  algumas 
comunicações, e intensificar­se a aplicação do exorcismo, para afastar os demônios 
dos conventos, evitando a ceifa exagerada de vidas humanas. Mas isso não impediu 
que os demônios intensificassem suas manifestações, ostensivas ou ocultas, gerando 
as numerosas  formas  de heresias  que  a  inquisição  teve  de  liquidar  a  ferro  e  fogo, 
num desmentido flagrante aos ensinos cristãos de fraternidade universal. 
Os  próprios  horrores  da  luta  formalista  contra  a  natureza  deveriam, 
entretanto,  provocar  as  reações  libertárias  que  se  acentuariam  nos  fins  da  Idade 
Média,  abrindo  perspectivas  para  o  mundo  moderno.  Os  homens  teriam  de 
reconhecer os exageros de seu artificialismo, e buscar novamente a natureza. Nessa 
busca,  poderiam  desviar­se  para  outro  extremo,  entregando­se  excessivamente  à 
natureza  exterior,  esquecidos  de  sua  própria  natureza  interior,  a  humana  ou 
espiritual.  Foi  praticamente  o  que  se  deu  no  mundo  moderno,  com  os  exageros 
cientificistas em que ainda nos perdemos. Para corrigir um exagero, entretanto, era 
necessário o outro. Somente o desenvolvimento científico, segundo assinala Kardec 
em A GÊNESE, poderia libertar a mente humana dos fantasmas teológicos e prepará­ 
la para enfrentar de maneira positiva a realidade da sobrevivência humana, em sua 
simplicidade natural. 
A  volta  à  natureza  começou  pelo  exterior,  no  campo  dos  fenômenos.  A 
investigação  científica  mostrou  o  absurdo  dos  convencionalismos  dominantes, 
fulminou assuperstições seculares. O século dezoito, considerado o século de ouro 
da ciência, já prenunciava o advento do Espiritismo. Um nobre sueco, Swedenborg, 
um  dos  homens  mais  sábios  da  época,  desenvolveu  a  própria  mediunidade,  e  o 
romancista  Honoré  De  Balzac,  muito  antes  da  codificação,  tornou­se  médium 
curador  ou  médium  “passista”,  como  hoje  dizemos.  Os  Espíritos  já  não  eram
86 – J. Herculano Pires 
encarados  como  deuses  ou  demônios,  mas  como  seres  humanos  desprovidos  de 
corpo material. 
4 – Uma invasão organizada 
A  volta  do  homem  à  natureza,  após  o  domínio  do  convencionalismo 
medieval, começou pelo exterior, mas tinha de atingir o interior. A observação dos 
fenômenos físicos, revelando as leis do mundo material, levaria necessariamente ao 
encontro  dos  fenômenos  psíquicos.  O  caso  das  Irmãs  Fox,  em Hydesville,  EUA., 
oferece­nos um exemplo típico desse processo. Primeiro, os “raps”, os sinais físicos, 
materiais,  que  suscitaram  a  atenção  e  a  investigação  de  curiosos  e  homens  de 
cultura. Depois, o intercâmbio, através dos sinais físicos, com as entidades psíquicas 
que  os  provocavam.  Desde  bem  antes  de  Hydesville,  os  Espíritos  já  vinham 
provocando preocupações em toda parte. 
Ernesto Bozzano conta o caso de Jonathan Koons, que construiu no quintal 
de  sua  casa  uma  câmara  espírita. Ao  contrário  das  celas  conventuais,  esta  câmara 
não  antecipava  nenhuma  tortura.  Construída  na  América,  filha  da  Reforma,  em 
ambiente livre, a câmara espírita de Koons prenunciava o advento de uma nova era. 
Comparando as ocorrências mediúnicas da Idade Média com as dos séculos dezoito 
e dezenove, Conan Doyle chama á estas últimas de “uma invasão organizada”. No 
período  medieval,  e  mesmo  depois,  as  manifestações  não  seguiam  uma  diretriz 
segura. Os médiuns foram sacrificados aos milhares, inutilmente. Daí sua conclusão 
de que eram Espíritos “extraviados de uma esfera qualquer'”. 
Nos dois últimos séculos, pelo contrário, as manifestações parecem seguir 
um  grande  plano,  articuladas  entre  si.  De  Swedenborg,  cuja  mediunidade  se 
desenvolve em 1744, a Edward Irving, o pastor escocês, em cuja igreja se verifica, 
em  1831,  um  surto  alarmante  do  dom  de  línguas,  até  o  episódio  curioso  dos 
“shakers”,  na  Califórnia,  em  1837,  e  depois  o  caso  de  Hydesville,  há  toda  uma 
sequência de manifestações, que prepararam o advento do Espiritismo. Conan Doyle 
chega mesmo a notar que a  invasão é precedida dos  “batedores”, das patrulhas de 
reconhecimento  ou  de  preparação  do  terreno.  O  caso  dos  “shakers”  justifica  essa 
tese.  Eram  emigrados  ingleses  de  uma  seita  protestante,  que  se  localizaram  na 
Califórnia. Nada menos de sessenta grupos, formando um grande acampamento, que 
em 1837  foram surpreendidos por uma  invasão de espíritos. Estes penetravam nas 
casas  e  se  apossavam  dos  médiuns,  promovendo  ruidosas  manifestações,  que 
duraram  sete  anos  consecutivos.  Manifestavam­se  como  índios  pele­vermelha,  e 
enquanto demonstravam aos “shakers” a possibilidade do intercâmbio com o mundo 
espiritual, eram por estes evangelizados. Entre os “shakers” havia um homem culto, 
Mr.  Elder  Evans,  que  relatou  os  fatos.  Certo  dia,  os  índios  anunciaram  que  iam
87 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
partir.  Despediram­se,  advertindo  que  voltariam mais  tarde “para  uma  invasão  do 
mundo”.  Quatro  anos  depois,  em  1848,  ocorriam  as manifestações  de Hydesville, 
com as  Irmãs Fox. Os índios haviam dito a Mr. Evans que  fosse até  lá, e o pastor 
obedeceu, estabelecendo assim a ligação terrena entre os dois fatos espirituais. Mais 
curioso  ainda  o  que  aconteceu  com  outro  precursor  do  Espiritismo  nos  Estados 
Unidos, André  Jackson Davis,  cuja mediunidade  se  desenvolveu  em 1844. Conan 
Doyle,  comentando  o  fato,  e  referindo­se  às  obras  de  Davis,  que  ainda  hoje 
constituem um roteiro para os espíritas norte­americanos, acentua: “Ele começou a 
preparar  o  terreno,  antes  que  se  iniciasse  a  revelação”.  A  31  de  março  de  1848, 
Davis escreveu no seu diário: “Esta madrugada um sopro quente passou pela minha 
face  e  ouvi  uma  voz  suave  e  forte  dizer:  Irmão,  um  bom  trabalho  foi  começado. 
Olha,  surgiu  uma demonstração  viva! — Fiquei  pensando  o  que  queria  dizer  essa 
mensagem”. Ora,  exatamente nessa madrugada  começavam os  fenômenos  da  casa 
da  família  Fox,  com as  filhas  do metodista  John Fox,  que marcariam o  início das 
investigações espíritas no mundo. 
Como  se  vê,  a  tese  da  “invasão  organizada”  não  é  gratuita.  Tem  bom 
fundamento  histórico,  e  poderíamos  dizer,  bom  fundamento  profético,  ou 
mediúnico.  Os  “batedores”,  ou  batalhões  de  reconhecimento,  realizaram 
primeiramente  suas  incursões,  preparando  terreno.  Os  anunciadores,  como 
Emmanuel  Swedenborg,  Edward  Irving,  Jackson  Davis,  realizaram  o  papel  dos 
profetas  bíblicos.  E  Davis,  particularmente,  o  de  João  Batista,  o  precursor, 
anunciando  o  advento  do  Consolador.  A  seguir,  a  invasão  organizada  realizou­se 
com  pleno  êxito,  sacudindo  a  terra  de  um  extremo  a  outro,  durante  dez  anos.  De 
1848  a 1858,  os  fenômenos mediúnicos  agitaram o mundo,  provocando  a  atenção 
dos sábios e aturdindo os teólogos. 
Em  1854,  o  Prof.  Hypollite  Léon  Denizart  Rivail  tinha  a  sua  atenção 
despertada  para  as  mesas­girantes,  que  então  pululavam  em  Paris  e  em  toda  a 
França. E em 1857 já dava a público a obra fundamental da codificação espírita, O 
LIVRO  DOS  ESPÍRITOS,  alicerce  inabalável  da  nova  revelação,  obra  básica  do 
Espiritismo. Mais  tarde, em 1868, ao publicar A GÊNESE,  o Prof. Rivail,  já então 
Allan Kardec, diria: “Importante revelação se processa na época atual e nos mostra a 
possibilidade de nos comunicarmos com os seres do mundo espiritual. Não é novo, 
sem dúvida, esse conhecimento, mas ficara até os nossos dias, de certo modo, como 
letra morta, isto é, sem proveito para a humanidade. A ignorância das leis que regem 
essas  relações  o  abafara  sob  a  superstição.  O homem  era  incapaz  de  tirar,  desses 
fatos,  qualquer  dedução  salutar.  Estava  reservado  à  nossa  época  desembaraçá­los 
dos acessórios ridículos, compreender­lhes o alcance, e fazer surgir a luz destinada a 
clarear o caminho do futuro”. (A GÊNESE, Cap. I, Item 11.) Já nessa época a invasão 
organizada  triunfara  plenamente.  O  mundo  conhecia  uma  nova  doutrina,  que 
oferecia aos homens o caminho de retorno à espiritualidade.
88 – J. Herculano Pires 
CAPÍTULO IV 
ANTECIPAÇÕES DOUTRINÁRIAS 
1 – A nebulosa de Swedenborg 
O Espiritismo  formou­se,  como uma  estrela, no  seio  de  uma nebulosa. É 
parte de uma verdadeira galáxia, que se estende pelo  infinito, a partir dos mundos 
inferiores,  até  os  mais  elevados.  Certamente,  nos  perderíamos  se  quiséssemos 
examinar toda a extensão da galáxia, toda a complexidade de doutrinas e teorias que 
precederam  o  Espiritismo.  Somos  forçados,  por  isso  mesmo,  a  limitar  a  nossa 
ambição, procurando o foco mais próximo da sua elaboração. Esse foco, segundo o 
entendeu Conan Doyle,  é  a  doutrina  de  Emmanuel  Swedenborg.  Uma  verdadeira 
nebulosa doutrinária, em que os elementos em fusão nos aturdem, mas de cujo seio 
partem os primeiros raios, nítidos e incisivos, de uma nova concepção da vida e do 
mundo. Ao  tratar dos  fatos que provocaram o desencadear do movimento espírita, 
Conan  Doyle  referiu­se  aos  “batedores”  ou  às  “patrulhas  de  vanguarda”,  que 
prepararam o terreno para a “invasão espiritual organizada” do nosso mundo. 
Do  ponto  de  vista  doutrinário,  encontramos  também  os  “batedores”  ou 
preparadores do terreno. O primeiro deles, que realmente se abalança a elaborar uma 
doutrina,  estribado  em  sua  fabulosa  cultura  e  sua  poderosainteligência,  é 
Swedenborg.  Conan  Doyle  o  chama  de  “pai  do  nosso  novo  conhecimento  dos 
fenômenos  sobrenaturais”. Tendo  sido  um  dos  homens mais  cultos  da  sua  época, 
dotado  de  grande  inteligência  e  de  mediunidade  polimorfa,  esse  vidente  sueco 
antecipou, de maneira confusa, a elaboração da Doutrina dos Espíritos. Ao contrário 
de  Kardec,  que  começou  pela  observação  científica  dos  fenômenos  mediúnicos, 
Swedenborg se inicia como um antigo profeta, recebendo uma revelação divina. Foi 
em abril de 1744, em Londres, que a revelação se verificou. Não obstante a natureza 
física  do  primeiro  fenômeno  por  ele  descrito,  com  evidente  emanação  de 
ectoplasma, não  foi esse aspecto  o que  lhe  interessou. Outro, mais importante, lhe 
chamava a atenção, e ele mesmo o descreveu com as seguintes palavras: “Uma noite 
o mundo  dos  Espíritos,  céu  e  inferno,  se  abriu  para mim,  e  nele  encontrei  várias 
pessoas  conhecidas,  em  diferentes  condições.  Desde  então  o  Senhor  abria 
diariamente os olhos do meu espírito para que eu visse, em perfeito estado de vigília, 
o que se passava no outro mundo, e pudesse conversar, em plena consciência, com 
os  anjos  e  os  espíritos”. A  atitude  profética  de Swedenborg  é  indiscutível. Diante 
dos  fenômenos,  esse  homem  extraordinário,  dotado  de  vastos  conhecimentos  em
89 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
física,  química,  astronomia,  zoologia,  anatomia,  metalurgia  e  economia,  além  de 
outros  ramos das ciências pelos quais  se  interessava, não se coloca em posição de 
crítica e observação, mas de passiva aceitação. Considera­se eleito para uma missão 
espiritual, senhor de uma revelação pessoal, e portanto incumbido, como Moisés ou 
Maomé,  de  ensinar  enfática  e  dogmaticamente  o  que  lhe  era  revelado.  Atitude 
completamente diversa da assumida por Kardec, que não se julgava um profeta, mas 
um pesquisador,  um rigoroso  observador  dos  fatos,  dos  quais  devia  racionalmente 
deduzir a necessária interpretação. 
A primeira elaboração  teórica de Swedenborg não  foi, portanto,  filosófica 
nem científica, mas teológica. Chegou a construir urna complicada interpretação da 
Bíblia, através de um sistema de símbolos, dizendo­se o único detentor da verdade 
escriturística,  que  penetrava  com  o  auxílio  dos  anjos.  Essa  pretensão  o  levou 
naturalmente  à  convicção  da  infalibilidade.  Suas  explicações  deviam  ser  aceitas 
como  lições  indiscutíveis. Swedenborg via o mundo espiritual, conversava com os 
espíritos, recebia instruções diretas, e por isso se julgava capaz de tudo explicar, sem 
maiores preocupações. Tornou­se um místico, distanciado da experiência científica a 
que  se  dedicava  anteriormente. Essa  curiosa  posição  de Swedenborg  o  transforma 
num elo entre dois períodos da evolução espiritual do homem. De um lado, temos o 
horizonte  profético,  carregado  de  misticismo,  impondo­lhe  o  seu  peso.  De  outro 
lado, o horizonte civilizado, que lhe abre suas perspectivas, em direção ao horizonte 
espiritual. O vidente sueco permanece nos  limites desses dois mundos. Através da 
sua  teologia,  firma­se  no  passado,  e  através  de  sua  doutrina  das  esferas,  que 
formulará  a  seguir,  projeta­se  ao  futuro.  Escrevia  em  latim  os  seus  livros 
complicados, mas, apesar disso, apresentava uma visão nova do problema espiritual. 
Não  se  contentou  em  formular  uma doutrina,  e  fundou  urna  religião,  apoiada  nas 
seguintes obras: DE CAELO ET INFERNO EXAUDITIS ET VISIS, NOVA JERUSALÉM 
e ARCANA CAELESTIA. 
O  que  faz  Swedenborg  um  precursor  doutrinário  do  Espiritismo  é  a  sua 
posição em face do mundo espiritual, que ele considera de maneira quase positiva. 
Após  a morte,  os homens  vão  para  esse mundo,  e não  são  julgados  por  tribunais, 
mas  por  uma  lei  que  determina as  condições  em que  passarão  a  viver,  em planos 
superiores  ou  inferiores,  nas  diferentes  “esferas”  da  espiritualidade.  Anjos  e 
demônios  nada  mais  eram,  para  ele,  do  que  seres  humanos  desencarnados,  em 
diferentes  fases  de  evolução.  Suas  descrições  do mundo  espiritual  assemelham­se 
bastante  às  que  encontramos  nas  comunicações  dadas  a  Kardec  ou  recebidas 
atualmente  pelos  nossos médiuns. O  Inferno  não  era  lugar  de  castigo  eterno, mas 
plano inferior, de que os espíritos podiam subir para os mais elevados, purificando­ 
se. A terra, um mundo de depuração espiritual. Uma importante lição devemos tirar, 
entretanto, da vida e da obra de Swedenborg: a de que o Espiritismo está certo ao 
condenar a formulação de teorias pessoais pelos videntes, e encarecer a necessidade
90 – J. Herculano Pires 
da metodologia científica, para verificação da verdade espiritual. Swedenborg foi o 
último  dos  reveladores  pessoais,  e  abriu  perspectivas  para  a  nova  era,  que  devia 
surgir com Kardec. Não é a sua interpretação dos fatos o que vale em sua obra, mas 
os próprios  fatos, posteriormente confirmados pela observação e a experimentação 
espiríticas, oferecendo aos homens uma concepção nova da vida presente e da vida 
futura. 
2 – Restos de nebulosa 
Considerando  a  doutrina  de  Swedenborg  como  uma  nebulosa,  na  qual 
encontramos a solidificação de um pequeno núcleo, que pode ser tomado como uma 
antecipação  da  Doutrina  dos  Espíritos,  não  devemos  esquecer­nos  de  que  aquela 
nebulosa fazia parte de um vasto sistema, de toda uma galáxia. Podemos dizer que 
na  imensa  galáxia  das  doutrinas  espiritualistas,  que  se  estendem  ao  longo  da 
evolução  espiritual  do  homem,  a  nebulosa  de  Swedenborg  marca  o  primeiro 
momento  da  condensação,  para  que  possa  formar­se  a  estrela  do  Espiritismo,  no 
mundo  moderno.  Formada  a  estrela,  entretanto,  a  nebulosa  não  desaparece. 
Continuam no espaço  os seus  restos, muitas vezes empanando o próprio brilho da 
estrela nascente. 
Ninguém explicou melhor esse processo do que Allan Kardec, no primeiro 
tópico  da  “Introdução  ao  Estudo  da  Doutrina  Espírita”,  ao  lançar  a  palavra 
Espiritismo, como o neologismo francês que passaria a designar a nova concepção 
do mundo. De maneira  sintética,  esclarece  o  codificador:  “Como  especialidade,  o 
Livro  dos  Espíritos  contém  a  Doutrina  Espírita;  como  generalidade,  liga­se  ao 
Espiritismo,  do  qual  apresenta  uma  das  fases”.  Essa  fase  é  precisamente  a  que 
apontamos acima, como a de consolidação de uma estrela, de um núcleo positivo de 
espiritualismo, no seio da imensa nebulosa. O que faz do Espiritualismo urna galáxia 
de nebulosas, é a sua própria origem, as condições históricas do seu aparecimento e 
desenvolvimento. Do homem primitivo ao homem civilizado há toda uma gradação 
intelectual, moral e psíquica, assinalando os sucessivos aumentos de capacidade de 
compreensão do espírito humano. 
As  doutrinas  espiritualistas,  indispensáveis  à  evolução  espiritual,  e 
formando, mesmo, parte dessa evolução, apresentam as características dos diversos 
períodos  em  que  surgiram.  Quanto  mais  próximas  do  mundo  primitivo,  mais 
confusas, carregadas de animismo, fetichismo e magia. Quanto mais aproximadas do 
mundo civilizado, avançando para o horizonte­espiritual, mais racionalizadas, com 
disciplinação  racional  dos  próprios  resíduos  mágicos.  As  mais  vigorosas  dessas 
doutrinas  são  as  que  provêm  do  horizonte­profético,  ligadas  ao  processo  das 
profecias ou revelações pessoais, e que resultaram nas chamadas religiões positivas
91 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
do horizonte­civilizado. O caráter pessoal dessas doutrinas, seu sentido explicativo, 
sua  função didática, conferem­lhes o  tom dogmático, que  as  torna  inadequadas na 
era científica. Essa  inadequação ocasionou o desprestígio do Espiritualismo, que o 
progresso das ciências relegou ao plano das superstições. 
Diante  da  “clareza  e  distinção”  cartesianas  das  ciências,a  confusão  e  o 
dogmatismo  das  religiões  e  das  doutrinas  ocultistas,  bem  como  as  suas  cargas 
hereditárias  de  fetichismo  e  magia,  tornavam  o  Espiritualismo,  perante  as  elites 
culturais, um simples amontoado de resíduos primitivos. O Espiritismo representa o 
momento  em  que  o  Espiritualismo,  superando  as  fases  mágicas  do  seu 
desenvolvimento,  atinge  o  plano  da  razão,  define­se  num  esquema  cartesiano  de 
“ideias  claras  e  distintas”. É a  isso  que  chamamos  a  estrela  que  saiu da nebulosa. 
Kardec  explica,  em  A  GÊNESE,  que  o  Espiritismo  tem,  “por  objeto  especial,  o 
conhecimento  das  leis  do  princípio  espiritual”.  E  acrescenta:  “Como  meio  de 
elaboração,  o  Espiritismo  se  utiliza,  como  as  ciências  positivas,  do  método 
experimental”. Essa atitude permitiu­lhe, ainda segundo expressões do codificador, 
“enfrentar o materialismo no seu próprio terreno e com as suas mesmas armas”. 
Foi,  portanto,  o  Espiritismo,  como  doutrina  moderna  e  de  espírito 
eminentemente  científico,  o  processo  de  restauração  do  prestígio  perdido  do 
Espiritualismo, diante do avanço das Ciências. Poucos adeptos do Espiritismo, ainda 
hoje, apesar dos ensinos, das explicações  e das advertências de Kardec a  respeito, 
compreendem  essa  posição  da  doutrina.  Por  isso,  muitos  adeptos  se  deixam 
empolgar  pelos  restos  de  nebulosa  que  ainda  procuram  empanar  o  brilho  da 
doutrina,  através  de  comunicações  mediúnicas  de  teor  profético,  muitas  vezes 
tipicamente apocalíptico, que surgem a  todo  instante no movimento doutrinário. É 
natural  o  aparecimento  constante  e  insistente  dessas  pretensas  reformulações 
doutrinárias. Elas correspondem à permanência, determinada pela lei de inércia, de 
mentes  encarnadas  e  desencarnadas,  no  plano  do  pensamento mágico  do  passado. 
Essas  mentes  se  sintonizam  no  processo  de  comunicação  mediúnica,  repetindo 
inadequadamente,  em  nossa  época,  os  processos  “reveladores”  do  horizonte­ 
profético.  As  “verdades  novas”  que  essas  comunicações  mirabolantes  pretendem 
transmitir são aquelas mesmas afirmações dogmáticas que causaram o desprestígio 
do Espiritualismo no passado. Nada têm de novo, portanto. Pelo contrário, carreiam 
apenas  o  ranço  do  antigo  profetismo,  carregado  de magia  e misticismo. De  certa 
maneira,  e  às  vezes,  mesmo,  de  maneira  direta,  são  resíduos  da  Nebulosa  de 
Swedenborg,  ainda  capazes  de  fascinar  os  adeptos  que  não  se  contentam  com  a 
chamada “frieza científica” do Espiritismo. Seria bom  lembrarmos a esses adeptos 
que essa “frieza” não é suficientemente fria para ser aprovada pelos cientistas, que 
não se cansam de condenar a “crendice” e o “religiosismo” da ciência espírita. 
Como se vê, essa ambivalência da posição doutrinária, acusada ao mesmo 
tempo pelo passado e pelo presente, confirma a sua natureza de marco divisório na
92 – J. Herculano Pires 
evolução do Espiritualismo e de momento de síntese no processo do conhecimento. 
Como estrela que surgiu da nebulosa, o Espiritismo não pode conter os elementos 
infusos  daquela.  Atentemos  para  estas  palavras  de  Kardec,  ainda  do  primeiro 
capítulo  de A  GÊNESE,  para  compreendermos  melhor  a  natureza  do  Espiritismo: 
“Fatos  novos  se apresentam, que não  podem  ser  explicados  pelas  leis  conhecidas. 
Ele os  observa, compara, analisa, e, remontando dos  efeitos às causas, chega à  lei 
que os rege; depois, deduz as suas consequências e busca as suas aplicações úteis”. 
Meditando sobre estas palavras, o estudante compreenderá a razão porque o 
Espiritismo  não  pode  endossar  as  comunicações  mirabolantes,  que  o  fariam 
retroceder ao seio da nebulosa, tirando­lhe a força e o prestígio que o sustentam no 
mundo atual, como um reduto espiritualista que desafia e repele o materialismo, no 
mesmo terreno em que este opera, e com as suas próprias armas. 
3 – O precursor americano 
Considerando a obra de Swedenborg como uma antecipação doutrinária do 
Espiritismo — no seu aspecto histórico, e como “nebulosa doutrinária”, segundo já 
acentuamos —,  temos  de  estabelecer  uma  ligação  entre  ela  e  a  obra  do  médium 
norte­americano Andrew Jackson Davis. 
Enquanto Swedenborg era um sábio, Davis era semi­analfabeto, e além do 
mais, “fraco de corpo e mentalmente pobre”, como assinala Conan Doyle. Apesar 
dessa contradição, Davis foi o continuador de Swedenborg e o precursor americano 
do Espiritismo. E esse fato é tanto mais importante, exatamente pela contradição que 
encerra. Ela demonstra, com absoluta clareza, que o espírito domina a matéria, e que 
o próprio conceito científico de paralelismo psicofisiológico fica abalado, diante do 
impacto  das  manifestações  espíritas.  Andrew  Jackson  Davis  está  distanciado  de 
Emmanuel  Swedenborg  não  apenas no  espaço  e  no  plano mental. Há  entre  eles  a 
distância  exata  de  um  século,  e  além  dessa  distância  temporal,  também  a  que  já 
assinalamos no plano da cultura intelectual. 
Em relação ao tempo, há esta curiosidade a anotar: Swedenborg desenvolve 
seus  poderes mediúnicos  em  abril  de  1744,  e Davis  em março  de  1844. De  um  a 
outro,  saltamos  exatamente  de meados  do  século  dezoito  a meados  do  dezenove. 
Mas não damos o salto sozinhos, porque o espírito de Swedenborg nos acompanha. 
Realmente, na tarde de 6 de março de 1844, Davis é arrebatado, em estado de transe 
mediúnico, para as montanhas de Catskill, a cerca de quarenta milhas de sua casa, na 
cidadezinha  de  Poughkeepsie,  para  receber  instruções  espirituais.  Quem  são  os 
instrutores? Um deles é Galeno, o médico grego, e o outro é Swedenborg, segundo 
declara Davis em sua autobiografia. Como vemos, um curioso episódio, que repete 
na América o encontro do Messias, no Tabor, com os espíritos de Elias e Moisés.
93 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
Mas Davis não está  ligado apenas a Swedenborg. Ele se apresenta, na História do 
Espiritismo, como um poderoso elo mediúnico, que sustenta a unidade do processo 
doutrinário. No passado, ele se liga com o vidente sueco, mas no futuro vai ligar­se 
com  as  irmãs  Fox  e  Kardec.  Quatro  anos  depois  do  encontro  com  Swedenborg, 
vemo­lo  escrever  no  seu  diário  as  anotações  referentes  à  voz  que  lhe  anuncia  os 
fatos  de  Hydesville.  Ora,  como  estes  fatos  se  ligam  diretamente  ao  trabalho  de 
Kardec, Davis também se liga a esse trabalho. 
A  falta  de  visão  de  conjunto  tem  levado  muitas  pessoas  a  considerarem 
Davis  um  caso  à  parte.  Chegou­se  mesmo  a  propor  a  tese  da  existência  de  um 
“espiritismo americano”, iniciado por Davis, em oposição ao “espiritismo europeu” 
de Allan Kardec. Mas os fatos históricos e as ligações mediúnicas são de tal ordem, 
que todas essas proposições nasceram condenadas ao olvido. A unidade do processo 
histórico se evidencia nas poderosas ligações espirituais dos fatos mediúnicos. Davis 
é um elo, jamais um caso isolado, pois a humanidade é una, e a fase das revelações 
parciais já ficou muito para trás. 
A série de livros de Davis, intitulada “Filosofia Harmônica”, teve mais de 
quarenta edições nos Estados Unidos. A esta série seguiu­se, nos anos finais da vida 
de Davis, a das “Revelações Divinas da Natureza”. Num dos seus livros, intitulado 
PRINCÍPIOS  DA  NATUREZA,  ele  prevê  o  aparecimento  do  Espiritismo,  como 
“doutrina e prática mediúnica”. Depois de acentuar que as comunicações espirituais 
se  generalizarão, declara:  “Não decorrerá muito  tempo para  que  essa  verdade  seja 
demonstrada de maneira viva. E o mundo saudará alegremente o alvorecer dessa era, 
enquanto o íntimo dos homens se abrirá, para estabelecer a comunicação espiritual, 
como a desfrutam os habitantes de Marte, Júpiter e Saturno”. 
Além  dessas  previsões,  Davis  desenvolve  a  doutrina  de  Swedenborg, 
estendendo  os  seus  princípios  nos  rumos  da  próximacodificação.  O  mundo 
espiritual  se  lhe  apresenta  com  a  mesma  nitidez  com  que  o  vidente  sueco  o 
descrevia,  e  sujeito  às  mesmas  leis  de  evolução  que  o  Espiritismo  afirmará mais 
tarde.  Ninguém melhor  do  que  Conan  Doyle  para  estabelecer  a  medida  em  que 
Davis avança sobre Swedenborg, caminhando decisivamente em direção de Kardec. 
Vejamos o que diz o grande escritor: “Davis tinha avançado além de Swedenborg, 
embora não dispusesse do equipamento mental deste, para abranger todo o alcance 
da mensagem. Swedenborg  vira  o  céu  e  o  inferno,  como Davis  também os  vira  e 
minuciosamente  os  descrevera.  Mas  Swedenborg  não  tivera  uma  visão  clara  da 
situação  dos  mortos  e  da  verdadeira  natureza  do  mundo  espiritual,  com  a 
possibilidade  de  retorno,  como  ao  vidente  americano  foi  revelado.  Esse 
conhecimento  foi  dado  a Davis  lentamente”.  Acrescenta  Conan Doyle  que,  ao  se 
considerarem  alguns  fatos  da  vida  de Davis,  que  são  inegáveis,  pode­se  admitir  o 
controle de Swedenborg sobre ele. Controle de um Swedenborg evoluído, que vivera
94 – J. Herculano Pires 
um  século  a  mais,  na  vida  espiritual,  o  que  justifica  o  avanço  de  Davis  sobre  a 
doutrina daquele. A posição de Davis se esclarece por si mesma. 
É o próprio Davis quem se coloca no limiar daquilo que podemos chamar a 
“era espírita”, ou, dentro da terminologia que adotamos, o “horizonte espiritual”. Ele 
não se arroga o título de Messias, mas reconhece, pelo contrário, a sua condição de 
instrumento  mediúnico,  a  serviço  de  espíritos  superiores,  que  o  dirigem  e 
esclarecem. Bastaria isso para nos mostrar a impossibilidade de se transformar Davis 
em fundador de um "espiritismo americano", diferente ou contrário ao “espiritismo 
europeu” Da mesma maneira, aquilo que chamamos “espiritismo anglo­saxão”, em 
oposição  ao  “espiritismo  latino”,  nada mais  é  que  uma  fase  do  desenvolvimento 
histórico  do  processo  espírita.  Esse  imenso  processo  abrange  todo  o  mundo 
civilizado, mas tem suas raízes nos mais remotos períodos da vida pré­civilizada ou 
pré­histórica. Na verdade, portanto, abrange a toda a vida humana na terra, desde os 
seus primórdios. 
A  revelação  espírita,  como  afirmou  Kardec,  é  progressiva.  Até  agora 
desenvolveu­se  por  etapas  bem  definidas,  que  podemos  estudar  em  seus  vários 
aspectos, nas diversas regiões do mundo, em diferentes áreas da civilização mundial. 
Daqui para diante, essas etapas tendem a fundir­se num todo. O estudo que tentamos 
fazer,  das  “antecipações  doutrinárias”,  ou  seja,  das  formulações  de  doutrinas 
espirituais  que  podem  ser  consideradas  precursoras  do  Espiritismo, mostram  uma 
linha  evolutiva  que  se  define,  através  dos  princípios  afins  e  progressivos,  num 
sentido  único:  o  da  revelação  do  mundo  espiritual  de maneira  positiva  e  natural. 
Quer dizer, a revelação de outra face da vida e do mundo, que não é sobrenatural, 
mas  natural,  pois  também  faz  parte  da  natureza.  Essa  revelação  se  completa  em 
Kardec, mas teve início em Swedenborg e desenvolveu­se amplamente com Jackson 
Davis. 
4 – Das antecipações às correlações 
A revelação do mundo espiritual, em seu verdadeiro sentido, ou seja, como 
“o  outro  lado da vida” ou “a outra  face da natureza”,  só poderia  ser  feita, como o 
demonstrou Kardec em A GÊNESE, depois do desenvolvimento científico. Antes que 
o  homem  assumisse  o  que  se  pode  chamar  “uma  atitude  científica”,  diante  da 
natureza,  o  mundo  espiritual  só  poderia  ser  encarado  como  algo  misterioso,  e 
portanto  sobrenatural.  Ainda  em  Swedenborg  a  atitude  mística  é  dominante,  e 
mesmo em Davis ela impera, não obstante a maior naturalidade com que o mundo 
espiritual  lhe  é  apresentado.  Entretanto,  Swedenborg  era  um  sábio,  um  homem 
dedicado a estudos científicos, o que mostra a dificuldade com que a mente humana 
se desapega de suas posições anteriores.
95 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
Da ciência de Swedenborg, ainda cercada de grandes zonas de mistério, o 
mundo teria de avançar mais de um século, para atingir o clima científico necessário 
ao  advento  do Espiritismo. Assim  como  a  aparição  de Elias  e Moisés  a  Jesus,  no 
Tabor,  tem  um  sentido  alegórico,  ligando  o Messias  ao  “horizonte  profético”  e  à 
“lei”,  ou  revelação  israelita,  assim  também a  aparição  de Galeno  e Swedenborg  a 
Jackson Davis, nas montanhas de Catskill, pode ser interpretada como uma alegoria. 
Claudius  Galeno,  médico  e  filósofo  do  século  segundo  d.  C.,  é  um 
representante da ciência antiga, e seu nome se tornou sinônimo da palavra “médico”. 
Swedenborg,  como  já  vimos,  apresenta­se  como um profeta moderno, anunciando 
uma renascença profética através da prática mediúnica, já agora esclarecida. Ambos 
transmitem a Davis a ciência e a profecia, preparando­o como o precursor daquele 
que  virá  realizar  a  síntese  das  duas  formas  de  conhecimento:  a  científica  e  a 
profética, ao codificar o Espiritismo. A alegoria moderna de Catskill assemelha­se, 
portanto,  em  sua  significação  espiritual  e  em  suas  consequências  históricas,  à 
alegoria evangélica do Tabor. Ambas anunciam, de maneira  semelhante, mas cada 
qual em sua época e através de seus elementos próprios, o advento de dois novos 
mundos: o cristão e o espírita. E assim como o mundo cristão era um prolongamento 
do  judaico,  o mundo  espírita  é  a  continuidade natural  e  necessária  do  cristão,  em 
cujos princípios se fundamenta. Daí a sequência das três revelações fundamentais, a 
que  se  refere  Kardec,  em  O  EVANGELHO  SEGUNDO  O  ESPIRITISMO.  Ao  nos 
referirmos  a  este  livro  de  Kardec,  devemos  lembrar  que  ele  também  tratou  de 
precursores do Espiritismo, indicando algumas “antecipações doutrinárias”. 
Essas referências vão bem mais longe do que as nossas, pois Kardec aponta 
Sócrates e Platão como os precursores longínquos do Cristianismo e do Espiritismo, 
chegando a formular um resumo da doutrina de ambos, para mostrar suas ligações 
com  as  novas  ideias.  Veja­se,  a  propósito,  a  introdução  de  O  EVANGELHO 
SEGUNDO O ESPIRITISMO. Não há duvida que Kardec  tinha razão, ao estabelecer 
essa  ligação  dos  princípios  filosóficos  do  Espiritismo  com  os  do  Platonismo. 
Entretanto,  quando  tratamos  das  “antecipações  doutrinárias”  de  Swedenborg  e 
Davis,  não  ficamos  apenas  no  plano  filosófico,  mas  abrangemos  toda  a  área 
propriamente “doutrinária” do Espiritismo, com seus aspectos científico, filosófico e 
religioso.  As  antecipações  religiosas  e  filosóficas  do  Espiritismo  se  estendem  ao 
longo de todo o passado humano. Kardec referiu­se a Sócrates e Platão como a uma 
poderosa fonte histórica, de que podia servir­se para reforçar a sua afirmação de que 
o Espiritismo provém da mais  remota antiguidade. De  outras  vezes,  porém,  como 
vemos em O LIVRO DOS ESPÍRITOS, em artigos publicados na REVISTA ESPÍRITA, 
e em vários  trechos de outros  livros da codificação, Kardec  lembra as  ligações do 
Espiritismo  com  os  mistérios  mitológicos  dos  gregos,  as  religiões  do  Egito  e  da 
índia, e particularmente com o Druidismo celta, nas Gálias.
96 – J. Herculano Pires 
Por  toda  parte,  em  todas  as  épocas,  como  acentua  o  codificador, 
“encontramos  as marcas  do Espiritismo”. Mas  essas marcas,  esses  sinais  ou  esses 
traços, só começam a reunir­se, sob poderoso impulso mediúnico, com a finalidade 
clara  de  constituírem  uma  nova  doutrina,  com  as  características  precisas  de  uma 
nova revelação, a partir de Swedenborg, para através de Davis se definirem melhor, 
até  a  sua  completa  e  decisiva  formulação  na  obra  de  Kardec.  As  referências  a 
Sócrates  e  Platão  abrem  um  campo  específico  na  investigação  das  antecipações 
doutrinárias do Espiritismo, que é o campo dos precedentes filosóficos.Kardec nos 
coloca, com essas referências, diante de um vasto panorama a ser investigado, para 
descobrirmos aquilo a que poderemos chamar “as raízes filosóficas do Espiritismo”. 
Trabalho  gigantesco  terá  de  ser  realizado,  a  começar  das  filosofias  orientais, 
passando demoradamente pelos gregos, onde Sócrates, Platão e o próprio Aristóteles 
—  este,  particularmente,  com  sua  doutrina  de  forma  e  matéria  —  têm  muito  a 
oferecer, e seguindo pela era helenística, até a Idade Média e o Mundo Moderno. O 
neoplatonismo,  a  partir  de  Plotino,  parece­nos  um  ramo  fecundo,  e  os  filões 
medievais,  apesar  de  todo  o  peso  asfixiante  do  seu  dogmatismo  fideísta,  também 
apresentam valioso material para definição das raízes filosóficas do Espiritismo. As 
antecipações  filosóficas  mais  recentes  estão  sem  dúvida  no  cartesianismo.  O 
problema dos sonhos de Descartes, da sua  inspiração pelo Espírito da Verdade, da 
sua  tentativa de criar a Ciência Admirável — a que nos referiremos mais tarde — 
exige  pesquisas  que  ainda  não  puderam  ser  realizadas  no  meio  espírita,  dada  a 
exiguidade  de  tempo,  num  movimento  que  tem  apenas  cem  anos.  Depois  de 
Descartes,  é  o  seu  discípulo  e  continuador  Espinosa  quem  se  apresenta  como  um 
verdadeiro precursor filosófico do Espiritismo, a começar da elaboração de seu livro 
fundamental,  A  ÉTICA,  onde  são  numerosas  as  correlações  com  O  LIVRO  DOS 
ESPÍRITOS. Logo mais, a  investigação do Hegelianismo e  suas consequências não 
nos parece menos fecunda. Hegel se revela uma espécie de subsolo, em que as raízes 
filosóficas  do  Espiritismo  penetram  a  grandes  profundidades,  e  o  próprio  Kant, 
contemporâneo e testemunha de Swedenborg, oferece­nos amplas possibilidades de 
estudos, que se prolongam até os nossos dias, nas correntes do neokantismo. Saindo, 
assim,  do  terreno  das  antecipações,  podemos  entrar  também  no  das  correlações; 
encontrando nos filósofos contemporâneos, entre os quais se destacam, ao que nos 
parece, Henri Bergson, Octave Hamelin, Louis Lavelle, Samuel Alexander, Nicolai 
Hartmann,  todo  o  campo  do  Existencialismo,  inclusive  o  próprio  Sartre, 
possibilidades  imensas  de  comparação  e  mesmo  de  ampliação  das  investigações 
espíritas,  em  diversas  direções.  Somente  esse  trabalho,  a  ser  realizado,  poderá 
mostrar,  de maneira  decisiva, as  poderosas  correlações  que  fazem do Espiritismo, 
como  o  assinalaram Kardec,  Léon Denis  e Oliver  Lodge,  uma  síntese  histórica  e 
conceptual do conhecimento, destinada a reformar o mundo.
97 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
CAPÍTULO V 
A FALANGE DO CONSOLADOR 
1 – As Mesas Girantes 
Das  coisas  aparentemente  mais  insignificantes,  surgem  as  mais 
assombrosas. Kardec lembra, na “Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita”, que as 
experiências  de  Galvani  se  iniciaram  com  a  observação  da  dança  das  rãs.  Hoje 
poderíamos  lembrar  que  as  maiores  explosões  do  século  foram  produzidas  pelo 
átomo, a partícula infinitesimal da matéria. Nada há de estranho, portanto, em que a 
“descoberta  do espírito”,  pelo método  científico  experimental,  tenha  por  ponto  de 
partida a observação da dança das mesas. Tudo quanto se  tem dito e  escrito, para 
ridicularizar o Espiritismo, a propósito da dança das mesas, pode ser refutado com 
esta  simples observação de Kardec, no mesmo  texto citado: “É provável que,  se  o 
fenômeno  observado  por  Galvani,  o  tivesse  sido  por  homens  vulgares  e 
caracterizado  por  um  nome  burlesco,  estaria  ainda  relegado  ao  lado  da  varinha 
mágica. Qual, com efeito, o sábio que não se teria julgado diminuído ao ocupar­se 
da dança das rãs?” 
O Prof. Hippolite Léon Denizart Rivail interessou­se pelas mesas girantes 
em 1854, quando um seu amigo, o Sr. Fortier,  lhe  falou a respeito. O Prof. Rivail 
contava então cinquenta anos de idade. Era um conhecido autor de obras didáticas, 
adotadas nas  escolas  francesas, membro  da Academia Real  de Arras,  discípulo  de 
Pestalozzi e propagandista dos princípios pedagógicos do mestre, professor no Liceu 
Polimático, autor de uma gramática francesa e de um manual de preparação para os 
cursos  científicos  da  Sorbonne.  Homem  de  cultura  ampla  e  sólida,  dedicado  aos 
estudos positivos, e não, como querem fazer crer os adversários do Espiritismo, um 
místico de pretensões messiânicas. Muito longe estava disso o Prof. Rivail. E tanto 
assim que, quando o Sr. Fortier  lhe afirmou que as mesas  girantes “falavam”,  sua 
resposta  foi  a  seguinte:  “Só acreditarei  ao  vê­lo,  e  quando me provarem que  uma 
mesa tem cérebro para pensar, nervos para sentir, e que pode tornar­se sonâmbula. 
Até lá, permita­me não ver no caso mais do que uma história para nos fazer dormir 
em pé”. 
A referência ao sonambulismo nos lembra que o Prof. Rivail, como o seu 
amigo  Fortier,  estudava  o magnetismo,  a  cujos  estudos  dedicou,  aliás,  numerosos 
anos,  sempre na mais  rigorosa  linha de observação científica. “Eu estava então na
98 – J. Herculano Pires 
posição dos incrédulos de hoje — anotaria Kardec mais tarde — que negam, apenas 
por  não  ter  visto,  um  fato  que  não  compreendem”.  Logo  mais,  anotaria  ainda: 
“Achava­me  diante  de  um  fato  inexplicado,  aparentemente  contrário  às  leis  da 
natureza,  e  que  a  minha  razão  repelia.  Ainda  nada  vira,  nem  observara.  As 
experiências realizadas na presença de pessoas honradas, dignas de fé, confirmavam 
a minha opinião, quanto à possibilidade de um efeito puramente material. A ideia, 
porém, de uma mesa­falante, ainda não me entrara na mente”. 
Como se vê, os materialistas que hoje negam os  fenômenos espíritas, sem 
estudá­los, e querem tudo atribuir a efeitos materiais, nada fazem de novo. O próprio 
Kardec procedeu assim, quando esses mesmos  fenômenos  exigiram a sua atenção. 
No  ano  seguinte,  em  1855,  o  Sr.  Carlotti  falou  ao  Prof.  Rivail  dos  mesmos 
fenômenos,  com  grande  entusiasmo.  Kardec  anota,  a  respeito:  “Ele  era  corso,  de 
temperamento  ardoroso  e  enérgico,  e  eu  sempre  lhe  apreciara  as  qualidades  que 
distinguem  uma  grande  e  bela  alma,  porém,  desconfiava  da  sua  exaltação.  Foi  o 
primeiro  a  me  falar  da  intervenção  dos  espíritos,  e  me  contou  tantas  coisas 
surpreendentes  que,  longe  de me  convencer,  aumentou­me  as  dúvidas.  Um  dia  o 
senhor  será  dos  nossos,  concluiu.  Não  direi  que  não,  respondi­lhe:  veremos  isso 
mais tarde”. 
Em princípios de maio de 1855, em companhia do magnetizador Fortier, o 
Prof. Rivail dirigiu­se à casa da sonâmbula Madame Roger, onde foi convidado pelo 
Sr.  Fortier  para  assistir  as  reuniões  que  se  realizavam  na  residência  da  Sra. 
Plainemaison,  à  rua  Grange  Batelière.  Numa  terça­feira  de  maio,  às  20  horas 
(infelizmente o lugar do dia ficou em branco nas anotações), teve oportunidade de 
assistir  “a  alguns  ensaios,  muito  imperfeitos,  de  escrita  mediúnica  numa  ardósia, 
com o  auxílio  de  uma  cesta”. É  o  antigo  processo  da  cesta  de  bico,  ou  seja,  uma 
cestinha com um lápis amarrado ao lado, pendurada sobre a mesa, e em cujas bordas 
os médiuns  colocavam as mãos,  produzindo  a  escrita. Viu  também,  pela  primeira 
vez, a dança das mesas, que descreveu nestes  termos: “Presenciei o  fenômeno das 
mesas, que giravam, saltavam e corriam, em condições tais que não havia lugar para 
qualquer dúvida”. Acentuemos que esta expressão de Kardec: “não havia lugar para 
qualquer  dúvida”  é  de  grande  importância,  dado  o  seu  rigoroso  critério  de 
observação. Algumas pessoas contrárias ao Espiritismo, entre as quais se destacam 
vários sacerdotes hipnotizadores, esforçam­se até hoje para demonstrar que a dança 
das mesas é produto de fraude ou mistificação. 
Quem tiver a oportunidade de assistir a uma experiência desse tipo, numa 
sala,  com  pessoas  amigas  ou  insuspeitas—  e  elas  podem  ser  feitas  em  qualquer 
lugar, desde que em ambiente tranquilo e sadio — verificará sem dificuldades que a 
fraude é impossível. A mesa se move por si, muitas vezes com violência, chegando 
mesmo a levitar, erguer­se no espaço, sem contato ou apenas com um leve contato 
das mãos.  Basta  que  exista  um médium  de  efeitos  físicos,  e  que  se  observem  as
99 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
condições  necessárias,  deixando­se  a  mesa  o  mais  livre  possível  do  contato  das 
pessoas,  em plena  luz,  para  que  a  suspeita  de  fraude  se  torne até mesmo ridícula, 
diante da evidência do fenômeno. 
As experiências malfeitas, por pessoas de boa­fé, que não tomam as devidas 
cautelas,  é  que  dão  motivo  às  suspeitas,  de  que  se  servem  os  adversários  do 
Espiritismo. Na casa da Sra. Plainemaison o Prof. Rivail travou conhecimento com a 
família Baudin, e passou a frequentar as sessões semanais que o Sr. Baudin realizava 
em  sua  residência, à  rua Rocheehouart. As médiuns  eram duas meninas,  filhas  do 
dono  da  casa,  Julie  e  Caroline  Baudin,  de  14  e  16  anos,  respectivamente.  As 
reuniões eram frívolas, e Kardec as define assim: “A curiosidade e o divertimento 
eram  os  objetivos  capitais  de  todos”.  O  espírito  que  presidia  os  trabalhos  dava  o 
nome simbólico de Zéfiro, “nome perfeitamente de acordo com o seu caráter e o da 
reunião”, dizem as notas. Não obstante, mostrava­se bondoso e dizia­se protetor da 
família.  Kardec  acrescenta:  “Se,  com  frequência,  fazia  rir,  também  sabia,  quando 
necessário,  dar  conselhos  ponderados  e  utilizar,  quando havia  ensejo,  o  epigrama, 
espirituoso e mordaz”. 
O  Prof.  Rivail  não  comparecia  às  reuniões  com  o  objetivo  frívolo  de 
divertir­se.  Queria  observar  os  fenômenos  e  tirar  as  suas  deduções.  Bastou  a  sua 
presença, para que o teor das reuniões se modificasse. Submetido a perguntas sérias, 
Zéfiro  mostrou­se  capaz  de  respondê­las,  senão  por  si  mesmo,  pelo  menos 
assessorado  por  outras  entidades.  Vejamos,  pelas  suas  próprias  anotações,  como 
Kardec  conseguiu  fazer  que  a  dança  das  mesas  e  a  própria  dança  da  cesta  se 
transformassem,  de  coisas  aparentemente  insignificantes,  nos  instrumentos  de 
transmissão  da  poderosa  mensagem  espiritual  que  o  mundo  recebeu,  no 
cumprimento da promessa messiânica do Cristo: “Foi nessas  reuniões — dizem as 
notas — que  comecei  os meus  estudos  sérios  de Espiritismo, menos  por meio  de 
revelações, do que de observações. Apliquei a essa nova ciência, como o fizera até 
então,  o  método  experimental.  Observava  cuidadosamente,  comparava,  deduzia 
consequências;  dos  efeitos  procurava  remontar  às  causas,  por  dedução  e  pelo 
encadeamento  lógico  dos  fatos,  não  admitindo  por  válida  uma  explicação,  senão 
quando resolvia todas as dificuldades da questão. Foi assim que procedi sempre, em 
meus trabalhos anteriores, desde a idade entre 15 e 16 anos”. 
2 ­­ A mensagem da cesta 
A  revelação  mosaica,  lendariamente  ou  não,  nasceu  de  uma  cesta  —  a 
cestinha de vime em que a princesa egípcia encontrou Moisés nas águas do Nilo — 
e a  revelação cristã, das palhas de uma manjedoura. Da mesma maneira, podemos 
dizer  que a  revelação  espírita nasceu  da  cesta­de­bico  ou  cesta­escrevente.  Se nos
100 – J . Herculano Pires 
dois  primeiros  casos  a  distância não  nos  permite  afirmar a  realidade  ou  o  sentido 
puramente alegórico da cesta e da manjedoura, no caso da revelação espírita não há 
dúvida possível. 
Assim,  de  certa maneira,  a  origem  simbólica  das  revelações  anteriores  se 
confirma no simbolismo real da revelação moderna. O vime e a palha são produtos 
da  terra,  mas  a  cesta  e  a  manjedoura  são  manufaturas.  A  natureza  leve  desses 
produtos  vegetais  dá­lhes  a  aparência  de  uma  emanação:  a  vida  que  rompe  a 
densidade  material  do  solo,  buscando  a  fluidez  atmosférica.  O  trabalho  de 
modelagem do homem é um socorro do espírito a essa matéria em ascensão. A cesta 
ou a manjedoura, concluídas, consubstanciam o impulso de transcendência da vida e 
a resposta da consciência humana a esse impulso. Estamos diante de um fetiche, de 
uma  obra  de  magia,  de  um  artefato  em  que  se  misturam  as  forças  da  terra  e  os 
poderes  da  mente.  A  impregnação  espiritual  da  matéria  pelo  espírito,  através  do 
trabalho, resultando na síntese dialética do  instrumento, permite a integração deste 
num plano superior da vida, que é o plano social. 
O  Messias,  que  revela  novas  dimensões  do  processo  vital,  pode  então 
apoiar­se  nesse  instrumento  dúctil  e  vibrátil,  para  ofertar  aos  homens  a messe  de 
uma nova  revelação. A cesta­escrevente é a mais aprimorada  forma desse símbolo 
da transcendência. Quando as meninas Baudin punham as mãos angélicas nas suas 
bordas  —  mãos  de  criança,  impregnadas  mediunicamente  pelo  magnetismo 
espiritual —, a  cesta­escrevente  ascendia  ao  plano  da  inteligência,  inserindo­se na 
fronteira do visível com o invisível. Então, rompia­se docemente a grande barreira, 
para que a mensagem do Espírito fluísse sobre a Matéria, e as Inteligências libertas 
pudessem confabular com as inteligências escravizadas no cérebro humano. Foi esse 
o mistério que o Prof. Rivail soube ver, com intuição plena de suas consequências, 
ao interpelar os Espíritos nas sessões da casa do Sr. Baudin, e mais tarde na casa do 
Sr. Roustan, com a médium Srta. Japhet. Ninguém poderia dizer melhor, de maneira 
mais sintética e mais profunda, o que  foi esse momento, do que o próprio Kardec, 
neste  breve  trecho  de  suas  anotações  particulares:  “Compreendi,  antes  de  tudo,  a 
gravidade da exploração que ia empreender. Percebi, naqueles  fenômenos, a chave 
do problema tão obscuro e controvertido, do passado e do futuro da humanidade, a 
solução que eu procurara em toda a minha vida. Era, em suma, toda uma revolução 
nas  ideias  e  nas  crenças.  Fazia­se  necessário,  portanto,  andar  com  maior 
circunspecção,  e  não  levianamente;  ser  positivista  e  não  idealista,  para  não  me 
deixar  iludir”.  Como  se  vê,  a  cautela  do  homem  maduro,  experiente,  culto, 
acostumado a tratar os problemas humanos com os pés bem firmados na terra, mas 
de olhos atentos ao brilho do céu. Moisés havia enfrentado, na antiguidade bíblica, 
os  problemas  da mediunidade,  a  partir  dos  “Mistérios”  egípcios,  levando  consigo 
pelo deserto um grupo de médiuns, à frente dos quais se mantinha, nas ligações com 
o mundo espiritual. Jesus fizera o mesmo, com o seu grupo de apóstolos, chegando
101 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
ao  episódio  das  materializações  do  Tabor,  e  mais  tarde  das  suas  próprias 
manifestações  nas  reuniões  apostólicas.  Mas,  para  ambos,  faltara  a  condição 
ambiente, a receptividade da mente humana para a compreensão exata do processo 
mediúnico.
Moisés  e  Jesus  haviam  trabalhado  o  barro  místico  do  mundo  antigo, 
modelando­o, com dificuldade, na possível vasilha destinada a receber, mais tarde, o 
conteúdo  do  espírito.  O  Prof.  Rivail  surgia  muito  depois  da  Idade  Média  e  da 
Renascença,  depois  do  Mundo  Moderno,  no  limiar  do  Mundo  Contemporâneo. 
Tinha diante dos olhos a vasilha preparada, e ao alcance das mãos o conteúdo que a 
ela se destinava. Estava livre das injunções do misticismo, em plena era da razão, e 
podia não  somente  encarar, mas  também e  principalmente apresentar  ao mundo o 
problema, em sua verdadeira natureza. Armado dos instrumentos culturais da época, 
e da  intuição necessária a  superá­los, quando preciso, o Prof. Rivail  soube  tirar da 
cesta­escrevente,  para  o  novo  mundo  em  que  se  encontrava,  as  mesmas 
consequências,  já  agora  com  maiores  possibilidades  de  desenvolvimento  e 
aproveitamento, que a antiguidade bíblica e a antiguidade clássica haviam tirado da 
cesta­flutuantedo Nilo e da cesta­resplendente de Belém. 
Se Moisés e  Jesus  ouviam o Mundo Espiritual e ofereciam aos homens a 
orientação  para a  transcendência,  o Prof. Rivail  viu­se  em condições  de  interpelar 
esse mundo, penetrar nos seus segredos, dialogar  com ele e convidar os homens a 
acompanhá­lo nesse diálogo. A cesta­escrevente foi apenas o ponto de partida de um 
imenso  diálogo,  no  plano  da  inteligência,  da  razão,  e  da  própria  experimentação 
científica, entre o Visível e o  Invisível, que se prolongaria pelo  futuro. A natureza 
desse  diálogo  não  é mística, não  é messiânica, porque  os  tempos  são  outros,  e  as 
portas do antigo mistério se abriram ao  impacto do  raciocínio e da  linguagem dos 
homens. 
Vejamos  ainda  as  anotações  íntimas  de  Rivail:  “Um  dos  primeiros 
resultados que colhi das minhas observações,  foi que os Espíritos, não sendo mais 
do que as almas dos homens, não possuíam nem a plena sabedoria, nem a ciência 
integral.  Que  o  saber  de  que  dispunham  se  reduzia  ao  grau  de  adiantamento  que 
haviam  atingido,  e  que  suas  opiniões  só  tinham  o  valor  das  opiniões  pessoais. 
Reconhecida esta verdade, desde o princípio, ela me preservou do grave escolho de 
acreditar na infalibilidade dos Espíritos, e me impediu ao mesmo tempo de formular 
teorias prematuras, com base no que  fosse dito por um ou por alguns deles”. Esta 
posição  de  Kardec  é  de  importância  fundamental  para  a  compreensão  do 
Espiritismo. Por não a conhecerem, ou por terem propositalmente fechado os olhos e 
os ouvidos diante dela, espíritas, não­espíritas e anti­espíritas, têm cometido as mais 
graves injustiças ao codificador da doutrina e á sua obra. 
Partindo da constatação de um fato: a existência de um mundo invisível que 
circundava o visível, o Prof. Rivail iniciou a exploração desse mundo. A mensagem
102 – J . Herculano Pires 
da cesta­escrevente lhe abrira as portas desse aspecto desconhecido da natureza, que 
uns  fantasiavam  e  outros  negavam,  em  virtude  mesmo  da  impossibilidade  de 
conhecê­lo.  Dali  por  diante,  a  alma não  seria mais  do  “outro mundo”, mas  deste 
mundo,  e  os  mistérios  do  além­túmulo  estariam  abertos  à  investigação  positiva. 
Pouco importa que os céticos tenham acusado Kardec de precipitação, enquanto os 
místicos  o  acusavam  de  andar  demasiado  lento.  O  próprio  tempo  se  incumbiu  de 
mostrar  com  quem  estava  a  razão.  Das  investigações  espíritas  do  Prof.  Rivail 
surgiram as experiências da Metapsíquica, as Sociedades de Pesquisa Psíquica, e em 
nossos dias as investigações da Parapsicologia, em pleno campo universitário, todas 
elas confirmando — esta última pelos métodos mais modernos e rigorosos — aquilo 
que podemos chamar “a mensagem da cesta”. 
3 – O Espírito Verdade 
A mensagem da cesta­escrevente, como podemos ver no estudo da obra de 
Kardec,  é  a  da natureza  positiva  da  alma,  da  sobrevivência  do  homem, não  como 
fantasma, mas na plenitude de sua personalidade. Ela tornou possível a investigação 
do mundo espiritual, através dos próprios métodos da ciência experimental. Mas a 
ciência nada mais é que uma forma de relação, pela qual o sujeito conhece o objeto. 
Se  a mensagem da  cesta­escrevente  não  fosse  além disso,  estaríamos  tão­somente 
em  face  de  um  novo  capítulo  do  desenvolvimento  científico  —  exatamente  o 
capítulo  que  coube  a  Richet,  no  século  passado,  e  a  Rhine,  neste  século, 
desenvolverem,  com  a  elaboração  sucessiva  da Metapsíquica  e  da  Parapsicologia. 
Em outras  palavras:  o Espiritismo não  seria mais  do  que  um  capítulo  da Ciência. 
Muito mais profunda, porém, se apresenta a mensagem da cesta­escrevente, quando 
o Prof. Rivail, na sessão de 25 de março de 1856, em casa do Sr. Baudin, pergunta 
ao  Espírito  que  o  orienta  qual  é  a  sua  identidade.  A  resposta  foi  registrada  nas 
anotações particulares de Kardec, e hoje podemos lê­la em OBRAS PÓSTUMAS. Foi 
a  seguinte:  “Para  ti,  chamar­me­ei  Verdade”.  No  momento,  certamente,  ninguém 
percebeu  o  sentido  dessa  resposta.  O  próprio  Kardec  anotará,  mais  tarde:  “A 
proteção  desse  Espírito,  cuja  superioridade  eu  estava,  então,  longe  de  imaginar, 
jamais, de fato, me faltou”. 
Kardec acentua ainda, nas anotações sobre a sessão de 8 de abril do mesmo 
ano,  que  o  Espírito  Verdade  lhe  prometera  ajuda,  para  a  realização  da  sua  obra, 
inclusive  no  tocante  à  vida material.  A  resposta  do Espírito,  nesse  ponto,  encerra 
uma lição de amor: “Nesse mundo, a vida material tem de ser levada em conta, e não 
te ajudar a viver seria não te amar”. A análise destes fatos é suficiente para destruir 
algumas tentativas de confusão sobre a obra de Kardec, lançadas no meio espírita, e 
segundo as quais o Espírito Verdade só o teria auxiliado na elaboração de O LIVRO
103 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
DOS  ESPÍRITOS.  Veja­se  a  anotação  do  próprio Kardec,  de  que  a  proteção  desse 
Espírito  jamais  lhe  faltou.  E  veja­se  a  declaração  do  próprio  Espírito,  de  que  o 
protegeria  até  mesmo  no  tocante  aos  problemas  da  vida  material,  para  que  ele 
pudesse desincumbir­se da missão que lhe era confiada. 
O Espírito Verdade não era apenas um símbolo, mas o Guia Espiritual de 
toda  uma  falange  de  Espíritos  Superiores,  incumbida  de  dar  cumprimento  à 
promessa do Cristo sobre o advento do Consolador. Essa falange, por sua vez, não 
se  restringe  ao  plano  espiritual,  mas  se  projeta  na  vida  material,  através  da 
encarnação dos seus elementos, incumbidos de atuarem neste plano. Daí a referência 
do Espírito Verdade ao amor que o ligava a Kardec e lhe impunha a necessidade de 
assisti­lo ao longo de sua vida. 
Na  sessão  de  30  de  abril  de  1856,  em  casa  do  Sr.  Roustan,  através  da 
mediunidade da Srta. Japhet, o Prof. Rivail tem, como ele mesmo anotou, a primeira 
revelação  da  sua  missão.  Conversava­se,  numa  reunião  “muito  íntima”,  sobre  as 
transformações  sociais  em  perspectiva,  quando  a  médium,  tocando  na  cesta, 
escreveu  espontaneamente  uma  bela  mensagem,  em  que  anunciava  uma  fase  de 
destruição,  seguida  de  outra  para  reconstrução.  A  interpretação  dos  presentes, 
inclusive a do Prof. Rivail, como se vê pelas suas notas, foi imediatista. As coisas 
anunciadas,  entretanto,  deviam  realizar­se  em  plano  mais  amplo.  Vejamos  este 
trecho:  “Deixará  de  haver  religião;  uma,  entretanto,  se  fará  necessária,  mas 
verdadeira,  grande,  bela  e  digna  do  Criador.  Seus  primeiros  alicerces  já  foram 
colocados.  Quanto  a  ti,  Rivail,  tua missão  se  refere  a  esse  ponto”.  Participava  da 
reunião  um moço  que Kardec  designa  apenas  pela  inicial M.,  explicando  que  era 
dotado “de  opiniões  radicalíssimas,  envolvido  nos  negócios  políticos  e  obrigado  a 
não se colocar muito em evidência”. Um revolucionário, portanto. 
O Espírito toma esse moço como símbolo da primeira fase, a de destruição, 
e aponta para ele o lápis da cesta, afirmando: “A ti, M., a espada que não fere, mas 
que  mata;  és  tu  que  virás  primeiro.  Ele,  Rivail,  virá  a  seguir;  é  o  obreiro  que 
reconstrói o que  foi demolido”. Ao dirigir­se a Kardec, a cesta apontou para ele o 
lápis, novamente, “como o  teria  feito uma pessoa que me apontasse com o dedo”, 
segundo a anotação. Kardec informa que M., “acreditando tratar­se de uma próxima 
subversão, aprestou­se a tomar parte nela e a combinar planos de reforma”. 
A  mensagem,  porém,  tinha  sentido  mais  amplo  e  mais  profundo,  e  suas 
profecias ainda se realizam, ainda se processam aos nossos olhos. André Moreil, em 
seu livro recente sobre a vida e a obra de Allan Kardec (Éditions Sperar, Paris, 1961 
— LA VIE ET LOEUVRE D'ALLAN KARDEC), acentua que o obreiro escolhido para 
a  reconstrução  se  pôs  a  trabalhar, mas  era  “um obreiro  que  tinha  atrás  de  si  uma 
longa experiênciapedagógica, que sabia tratar do problema, realizar as experiências 
necessárias,  enquadrá­lo  num  conjunto  harmonioso  e  aquitetural”.  Conclui 
afirmando: “Esse pensador laborioso é um arquiteto, e o edifício por ele construído
104 – J . Herculano Pires 
não  poderá  jamais  ser  destruído  pela  crítica  ou  o  assalto  dos  adversários”.  Essa 
proclamação de Moreil, feita com pleno conhecimento da causa espírita, nas letras 
francesas  de  hoje,  reafirma  a  perenidade  da  obra  de Kardec  e  a  sua  vitalidade  na 
França, de onde os adversários querem nos convencer que ela foi excluída. A obra 
de Moreil  tem  ainda  outro  sentido,  ou  seja,  o  de  mostrar  que  a  interpretação  do 
Espiritismo em seu tríplice aspecto, segundo o apresentaram Kardec, Sausse, Denis 
e  outros —  como  ciência,  filosofia  e  religião —,  conserva  sua  plena  e  vigorosa 
validade no moderno pensamento espírita da França. 
Com  respeito  ao  Espírito  Verdade,  Moreil  sustenta  a  reivindicação 
kardeciana:  “A  obra  espírita  de  Allan  Kardec,  no  seu  aspecto  religioso,  aparece 
como  um  ditado  do  Espírito  da  Verdade,  que  é  justamente  o  Consolador.  O 
Espiritismo  é,  portanto,  a  religião  fundada  na  promessa  do  Cristo:  é  o  Terceiro 
Testamento anunciado aos homens”. E esclarece, a seguir: “O que é novo, portanto, 
no  Espiritismo,  em  relação  à  religião  cristã,  é  a  explanação  mais  lógica  e  mais 
profundamente moral dos Evangelhos, no que eles possuem desde há dois mil anos”. 
E  a  propósito  da  incompreensão  da  natureza  tríplice  do  Espiritismo, 
particularmente  dos  seus  aspectos  científico  e  religioso,  Moreil  formula  a 
observação aguda e  oportuna de que, para os sábios  e para os  teólogos, a  religião 
espírita é um absurdo. “Uns e outros — acentua ele — acham bons pretextos para 
menosprezar a religiosidade do Espiritismo, como se a verdade fosse dogmática ou 
ateísta”. 
4 – A Falange do Consolador  
Desde  a  promessa  de  Jesus,  no  Evangelho  de  João,  até  a  vinda  do 
Consolador,  podemos  ver,  através  da História,  o  trabalho bimilenar de  preparação 
que  se  realizou,  para  o  seu  cumprimento.  Bastaria  isso  para  nos  mostrar  a 
importância daquele momento em que o Espírito da Verdade se  identificou para o 
Prof.  Rivail.  Após  dois  mil  anos  de  fermentação  histórica,  de  doloroso 
amadurecimento do homem, de criminosas deformações da mensagem cristã, afinal 
se  tomava  possível  o  restabelecimento  dos  ensinos  fundamentais  em  sua  pureza 
primitiva. De um lado, o Espírito da Verdade se apresentava aos homens, à frente de 
elevadas entidades espirituais, que voltavam à terra para completar a obra do Cristo; 
de  outro.  lado,  Allan  Kardec  se  colocava  a  postos,  à  frente  de  criaturas 
espiritualizadas,  dispostas  a  colaborarem  na  imensa  tarefa.  O  Céu  e  a  Terra  se 
encontravam e  se  davam as mãos. A Falange  do Consolador  não  era  apenas  uma 
graça que descia do alto, mas também uma equipe de trabalhadores humanos, que se 
elevava para recebê­la. A própria  intimidade,  logo estabelecida entre o Espírito da 
Verdade  e Allan Kardec,  as  relações  afetivas  que  se  desenvolveram  entre  ambos,
105 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
prolongando­se  na  consolidação  de  uma  profunda  confiança  espiritual,  através  de 
quinze anos de  intensa atividade, é  suficiente para mostrar­nos quanto se achavam 
integrados no mesmo esforço, para a consecução do mesmo objetivo. 
Se  o  Espírito  da  Verdade  comandava,  por  assim  dizer,  as  atividades  no 
plano  espiritual,  Allan  Kardec  fazia  o  mesmo  no  plano  material.  A  Falange  do 
Consolador se apresentava, portanto, como aquele grande exército espiritual, de que 
nos fala Conan Doyle, que tinha à frente uma turma de batedores. Desta vez, porém, 
os batedores estavam encarnados, constituíam a ponta­de­lança, a vanguarda terrena. 
E  seu  chefe,  seu  comandante,  seu  orientador,  era  o  Prof.  Rivail,  um  homem  de 
cinquenta  anos  de  idade,  largamente  experimentado,  duramente  provado, 
intensamente preparado para a grande missão. Somente ele, com o discernimento, a 
serenidade, a acuidade espiritual, o desprendimento, a isenção de ânimo, a coragem 
e a profunda cultura que o caracterizavam, podia colocar­se à frente da equipe que 
enfrentaria o “velho mundo”, eriçado de preconceitos e ambições, para fazer nascer 
entre os homens a alvorada de um “mundo novo”,  irradiante de compreensão e de 
amor. As pessoas  que,  dotadas  de  uma  certa  cultura,  entusiasmam­se  hoje  com as 
possibilidades  da  época,  e  pretendem  reformar  a  obra  de  Kardec,  refundi­la,  ou 
mesmo substituí­la por suas elucubrações pessoais ou por instruções particulares que 
recebem  de  espíritos  pseudo­sábios,  deviam  meditar  um  pouco  sobre  a  grandeza 
daquele momento em que o Espírito da Verdade se revelou ao Prof. Rivail. O que 
então se cumpria era uma promessa do Cristo, através de todo um imenso processo 
de amadurecimento espiritual do homem terreno. Kardec era apenas o  instrumento 
necessário  à  elaboração  do  Terceiro  Testamento,  da  codificação  da  Terceira 
Revelação, e nunca, jamais, como ele mesmo acentuou, um Revelador, um Profeta, 
um Messias, ou ainda um Filósofo, que por si mesmo elaborasse um novo sistema de 
pensamento. 
De outro lado, o Espírito da Verdade não se dizia o detentor exclusivo da 
Verdade,  nem  o  Revelador  Espiritual,  mas  o  orientador  dos  trabalhos  de  toda  a 
Falange do Consolador. Ao lado do Espírito da Verdade encontramos toda a plêiade 
de entidades espirituais que subscrevem a mensagem publicada nos “Prolegômenos” 
de  O  LIVRO  DOS  ESPÍRITOS,  e  as  demais,  que  aparecem  como  autoras  das 
numerosas  mensagens  transcritas  nesse  livro,  bem  como  em  O  EVANGELHO 
SEGUNDO O ESPIRITISMO e nas outras obras da codificação. 
Além  dessas  entidades,  as  que  não  transmitiram mensagens  diretas, mas 
auxiliaram  o  advento  do  Espiritismo,  em  todo  o  mundo,  através  de  operações 
invisíveis, mas tão importantes, ou mais ainda, do que as visíveis e ostensivas. Ao 
lado  de  Allan  Kardec,  encontramos  os  seus  colaboradores,  desde  os  que  foram 
incumbidos de despertar­lhe a atenção para os fenômenos, e a que já aludimos várias 
vezes, até os médiuns que mais diretamente o serviram, como as meninas Baudin, a 
Srta.  Japhet,  a  Srta.  Ermance  Dufaux,  Camille  Flammarion,  Victorien  Sardou,
106 – J . Herculano Pires 
Tiedeman­Manthèse,  Henri  Sausse,  o  editor  Didier,  Gabriel  Delanne,  os 
companheiros  da  Sociedade  Espírita  de  Paris,  aquela  que  foi  sua  companheira  de 
vida e de lutas, Amèlie Boudet, e tantos outros, inclusive os que, fora de França, em 
todas as partes do mundo, se dispuseram a auxiliá­lo na grande batalha. 
Nem  todos  os  componentes  da Falange  do Consolador, na  sua  vanguarda 
encarnada,  exerceram  funções  de  destaque.  Entretanto,  quantos  trabalhadores 
humildes,  que  passaram  despercebidos  aos  olhos  humanos,  brilham  felizes  nas 
constelações espirituais. À maneira do que se deu com a divulgação do Cristianismo, 
conhecemos  um  grupo  de  espíritos  que  desempenharam  atividades  evidentes  e 
ocuparam  posições  de  grande  responsabilidade  no  trabalho  missionário,  mas 
desconhecemos  milhares  de  criaturas  que,  por  toda  parte,  executaram  tarefas  de 
importância fundamental, na obscuridade e na humildade. Da mesma maneira, não 
conhecemos  a  extensão  dos  trabalhos  espirituais,  desenvolvidos  no  espaço,  e 
ignoramos os nomes, até mesmo, dos principais Espíritos a  serviço da causa. Mas 
que importam os nomes, se cada qual, no espaço e na terra, teve a sua recompensa 
na  própria  oportunidade  de  trabalho? O  importante  é  procurarmos  compreender  o 
que foi esse momento histórico e espiritual do advento do Consolador. 
A  publicação  de O  LIVRO DOS  ESPÍRITOS,  em  primeiraedição,  a  18  de 
abril de 1857, em Paris, marca o primeiro impacto da Doutrina Espírita no século. 
Não  é  ainda  o  livro  definitivo,  em  sua  forma acabada,  que  só  virá  a  tomar  com a 
segunda edição. Mas é o primeiro clarão da grande alvorada. Depois, virão O LIVRO 
DOS MÉDIUNS;  em  1861,  desenvolvendo  e  completando  o  livrinho  INSTRUÇÕES 
PRÁTICAS;  O  EVANGELHO  SEGUNDO  O  ESPIRITISMO,  em  1864,  tendo  nessa 
primeira edição o título de “Imitação do Evangelho Segundo o Espiritismo"; O CÉU 
E  O  INFERNO,  em  1865;  A  GÊNESE,  Os  Milagres  e  as  Predições,  Segundo  o 
Espiritismo", em 1868. Com esse livro, concluía a Codificação. No ano seguinte, a 
31  de  março,  Allan  Kardec  deixaria  o  mundo,  encerrando  sua  missão.  Mas 
encerrando­a apenas no tocante àquela existência, pois o seu trabalho se prolongaria 
pelos  séculos,  e  os  próprios  Espíritos  o  advertiram  da  necessidade  de  uma  nova 
encarnação, para prosseguimento da obra iniciada.
107 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
III PARTE 
DOUTRINA ESPÍRITA
108 – J . Herculano Pires 
CAPÍTULO I 
O TRIÂNGULO DE EMMANUEL 
1 – Doutrina Tríplice 
A compreensão do Universo e da Vida não pode ser simples, pois o objeto 
dessa  compreensão  é  extremamente  complexo.  Encará­lo  através  das  ciências 
equivale a vê­lo apenas em sua aparência exterior: a realidade física. Reduzi­lo a um 
sistema  filosófico  é  submetê­lo  aos  caprichos  da  nossa  interpretação:  a  realidade 
representativa mental. Senti­lo através de uma síntese estética, conceptual­emotiva, 
de ordem mística e, portanto religiosa, sem as necessárias relações anteriores, é cair 
no fideísmo­dogmático. 
As  funções  da  consciência  são  consideradas,  desde Kant,  como  tríplices: 
temos primeiramente as funções teóricas, que nos permitem elaborar, com os dados 
sensíveis,  uma  concepção  do  real;  depois, as  funções  práticas,  que  estabelecem  as 
nossas  relações  com  o  objeto,  permitindo­nos  interpretar  a  realidade  concebida  e 
estabelecer as nossas normas de ação e de conduta; e, por fim, as funções estéticas, 
que permitem a simbiose sujeito­objeto, a  fusão afetiva­racional do homem com o 
duplo objeto Mundo­Vida. 
O  Relativismo­Crítico,  com  Octave  Hamelin  e  René  Hubert,  abriu  em 
nossos  dias  as  perspectivas  dessa  compreensão  dialética  da  consciência.  Nessa 
fecunda corrente neokantiana do pensamento francês atual, de que Hubert se  fez o 
corifeu no plano da filosofia pedagógica, podemos encontrar a explicação filosófica 
da natureza tríplice do Espiritismo. Assim como o homem individual, para atingir a 
plenitude do seu desenvolvimento consciencial, deve  realizar a  síntese estética das 
funções  teóricas  e  práticas  da  consciência —  atingindo  a  concepção  religiosa  do 
objeto Mundo­Vida assim a coletividade humana, no seu desenvolvimento cultural, 
terá de atingir a síntese da sociedade de consciências. 
Por mais  que  procuremos  negar  essa  dialética  da  consciência,  ou  dar­lhe 
uma  interpretação  diversa,  nunca  poderemos  fugir  à  realidade  dos  fatos,  que  nos 
mostra o homem, na História,  tomando conhecimento do mundo pela experiência, 
agindo sobre ele através de uma concepção ou representação, e procurando dominá­ 
lo  através  de  uma  síntese  afetiva, moral  ou  religiosa.  Aqueles,  portanto,  que  não 
compreendem a natureza  tríplice  do Espiritismo,  ou  tentam reduzi­la  apenas  a  um 
dos seus aspectos, praticam uma violência contra a doutrina.
109 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
Os  que,  fora  do  Espiritismo,  condenam  o  que  costumam  chamar  de 
duplicidade científico­religiosa, ou lhe negam a natureza filosófica, estão agindo de 
má­fé, muitas vezes na defesa de interesses próprios, sectários ou profissionais, ou 
revelam ignorar o processo do conhecimento, sua diversidade dialética no plano da 
análise  ou  da  razão,  e  sua  unidade  sintética  no  momento  vital  da  fusão  afetiva. 
Tomando  para  exemplo  uma  expressão  kantiana,  podemos  esclarecer  melhor  o 
assunto  ao  dizer  que  o  homem  precisa:  primeiro,  conhecer,  para  depois  agir.  O 
selvagem que derruba uma árvore e  faz uma canoa, antes de qualquer coisa tomou 
conhecimento  do  meio  físico  em  que  vive,  conheceu  a  árvore  e  sua  natureza, 
conheceu o rio e sua natureza, conheceu a sua própria natureza de homem, o que lhe 
permitiu agir. Mas, no momentomesmo da ação, ao abater o tronco e trabalhá­lo, o 
selvagem estabelece uma relação profunda e afetiva entre ele e o objeto que modela. 
É  essa  a  reciprocidade  dialética  vista  por Hegel  e  sistematizada  por Marx  em  sua 
teoria  do  valor.  Modificando  o  mundo,  o  homem  se  modifica;  aperfeiçoando  o 
mundo,  ele  próprio  se  aperfeiçoa.  O  momento  exato  da  modificação,  do 
aperfeiçoamento, é também o da síntese afetiva, o da religião. Por isso, as religiões 
primitivas se caracterizam pelo “fazer”, se representam pelo “feito”, pelo fetiche. E 
ainda por  isso  o  relativismo­crítico  entende que a  síntese afetiva  ou  religiosa é de 
natureza estética, é uma síntese estética. Embora desenvolvendo­se “livre do espírito 
de sistema”, como queria Kardec, a Filosofia Espírita se enquadra necessariamente 
nas  exigências  fundamentais  da  consciência  e  procede  na  linha  dessas  exigências. 
Seu  fundamento, portanto, constitui­se dos dados da experiência, elaborados numa 
representação  teórica.  Sua  estrutura  resulta  dos  dados  da  ação,  elaborados  na 
representação prática das normas de conduta e atividade, dos princípios que levam, 
como acentua Kardec, às consequências morais. Sua realização, porém, encontra­se 
na fusão do saber e da ação, nesse momento vital em que o Espiritismo exige todo o 
ser  do  adepto  e  o  absorve  numa  síntese  afetiva,  emocional,  em  que  razão  e 
sentimento, mente e coração, alma e corpo, consciência e mundo, se unificam, numa 
expressão de religião cósmica, universal, e por isso mesmo, de religião “em espírito 
e verdade”.
Eis  aqui  uma  das  razões  porque  o  Espiritismo,  segundo  a  afirmação  de 
Kardec  em  A  GÊNESE,  não  podia  constituir­se  em  doutrina  antes  do 
desenvolvimento das ciências. Não podia surgir, aparecer no mundo, oferecer­se à 
compreensão  dos  homens.  Os  dados  da  Ciência  —  com  “c”  maiúsculo,  como 
entidade  que  abrange  a  variedade  dos  campos  e  objetos  científicos  —  eram 
indispensáveis ao conhecimento do mundo e da vida, e portanto à elaboração de uma 
representação teórica capaz de fundir­se com a representação prática da experiência 
vital. 
Porque o homem vive antes de conhecer e compreender, e por isso mesmo 
a sua experiência vital, desenvolvendo­se, criou uma distância e um desajuste entre a
110 – J . Herculano Pires 
razão e o sentimento. O materialismo representa esse desajuste no plano da razão, e 
o  religiosismo  o  representa  no  plano  da  ação.  Somente  o  avanço  das  ciências 
permitiu vencer­se a distância e restabelecer­se o equilíbrio, reajustar­se a razão e o 
sentimento.  Não  obstante,  esse  reajustamento  não  se  efetua  mecanicamente,  mas 
dialeticamente, através da dinâmica das oposições. Daí a luta entre espiritualismo e 
materialismo, a oposição do materialista ao espiritualista. É claro que a  razão está 
com o espiritualista, no tocante ao fundamental, mas no tocante ao momentâneo, ao 
imediato,  ao  “agora”  existencial,  ela  está  com o materialista. O Espiritismo  surge 
como  o  mediador,  o  instrumento  teórico­prático,  e,  portanto,  estético,  do 
reajustamento necessário. 
Não  somente  a  sua  elaboração  mas  a  sua  própria  compreensão  pelos 
homens  dependia  da  evolução  espiritual  da  humanidade.  E  a  prova  aí  está,  bem 
clara, na  incompreensão da natureza  tríplice do Espiritismo, revelada não somente 
pelos  seus  adversários,  mas  também  por  muitos  dos  seus  adeptos,  inclusive 
intelectuais.  O  primeiro  passo  a  darmos,  portanto,na  compreensão  da  Doutrina 
Espírita,  após  o  estudo  histórico  dos  seus  antecedentes  e  da  sua  elaboração,  é  no 
sentido dessa visão global, que no­la apresenta como doutrina tríplice. 
2 – O homem trino 
As investigações e os estudos psicológicos nos mostram o desenvolvimento 
do homem como um processo psicogenético. Os dados da Psicologia da Criança e da 
Psicologia da Adolescência, partindo da indiferenciação psíquica das primeiras fases 
da  infância,  levam­nos à definição do “eu” e à elaboração da personalidade, como 
afirmação da consciência, em sua plenitude, no “agora” existencial. Mas todos esses 
dados,  ao  contrário  do  que  pretendem as  correntes  de  pensamento materialista  ou 
positivista, comprovam o pressuposto religioso e filosófico da existência do espírito. 
A própria ontologia  fenomenológica do existencialismo sartreano não pode  fugir a 
essa  realidade,  ao  colocar  o  problema  do  ser  na  existência  como  um 
desenvolvimento dialético do “em si” hegeliano. 
A fase  infantil de  indiferenciação psíquica é exatamente aquela em que  o 
ser,  na  sua  forma  apriorística,  como  “em  si”,  e  portanto  na  sua  anterioridade 
espiritual,  luta  para  se  integrar  na  existência.  Essa  luta  se  resolve  na  progressiva 
definição  do  “eu”,  isto  é,  no  domínio  progressivo  do  instrumento  físico  da 
manifestação,  pelo  espírito  que  nele  se manifesta.  A  elaboração  da  personalidade 
atual, muito longe de ser um processo improvisado e imediato, revela a presença de 
uma herança psíquica, e portanto de elementos anteriores.que em vão o materialismo 
cientifico pretende reduzir às leis da hereditariedade biológica. Essa herança é, antes 
de  tudo,  como  afirma  René  Hubert,  “uma  realidade  subjetiva  individual  e
111 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
irredutível”, portanto uma consciência, um espírito, que não se elabora no presente, 
mas apenas reelabora os instrumentos da sua manifestação atual. 
O  Espiritismo  esclarece  o  que  podemos  chamar  “a  mecânica  dessa 
manifestação”,  através  de  uma  concepção  trinária  do  homem.  O  elemento 
fundamental da evolução psicogenética é o espírito, o próprio ser que se projeta na 
existência. Nele está o poder que aglutina os demais elementos, que os coordena e os 
põe  em  desenvolvimento.  Em  segundo  lugar  aparece  o  perispírito  ou  corpo 
espiritual, duplicata energética do corpo físico, ou o modelo energético deste, como 
queria Claude Bernard. E em terceiro lugar, o próprio corpo físico, resultante de um 
verdadeiro  processo  dialético,  síntese  orgânica  do  espírito  e  do  perispírito,  que 
permite  a  presença  do  ser  na  existência.  Essa  concepção  não  foi  decalcada  de 
nenhuma  outra, mas  resultou  das  experiências  e  dos  diálogos  de  Kardec  com  os 
Espíritos,  numa  época  e  num  país  em  que  as  concepções  místicas  orientais  não 
encontravam clima para florescer. 
Convém ressaltar, ainda, que as experiências mediúnicas de Kardec foram 
confirmadas por experimentações científicas, realizadas por cientistas não­espíritas. 
O homem se apresenta, assim, como a conjugação de três entidades distintas, numa 
única manifestação. E isso levanta a ponta do véu que encobre o mistério da trindade 
divina, revelando mais profundamente a natureza antropomórfica do velho dogma, 
presente em todas as grandes religiões antigas. Por outro lado, essa concepção nos 
faz  compreender  a  existência,  no  plano  coletivo,  de  uma  fase  de  misticismo 
indiferenciado,  ou  de  indiferenciação  mística,  em  que  a  realidade  espiritual, 
confundida  com  a  material,  assemelha­se  à  indiferenciação  psíquica  das  fases 
infantis, no  plano  individual. O dogmatismo  então  se  explica,  da mesma maneira, 
como a necessidade de elaboração racional da realidade, que se exprime através do 
apriorismo absolutista da intuição. O dogma de fé das religiões equivale ao “quero” 
irracional das crianças, que querem e exigem, mesmo sem saberem por quê. 
As  três  funções  da  consciência — a  teórica,  a  prática  e  a estética — têm 
suas  raízes,  portanto,  na  própria  estrutura  tríplice  do  homem.  Se  definirmos  a 
primeira dessas funções como sendo a razão, o esquema de representações teóricas 
da  realidade  objetiva,  compreenderemos  que  o  homem,  antes  de  conhecer  e 
compreender, vive e experimenta. Essa vivência, que lhe dá a experiência vital, da 
qual  decorrem  as  categorias  da  razão,  pelo  fato  mesmo  de  se  desenvolver  num 
processo,  de  se  desdobrar,  separa  a  razão  do  sentimento,  estabelece  dois  planos 
distintos na consciência. O que estava fundido na indiferenciação psíquica, separa­ 
se, ao diferenciar­se. A seguir, o desenvolvimento da razão, absorvendo o interesse 
do homem pelo conhecimento do mundo, provoca a alienação do espírito. É assim 
que  o  materialismo  aparece,  na  História,  como  uma  flor  de  estufa,  um  produto 
artificial  da  razão,  elaborado  pelas  elites  intelectuais,  sem  jamais  penetrar  as 
camadas profundas da vida social. É por isso que nunca houve, e jamais haverá, um
112 – J . Herculano Pires 
povo  materialista  e  ateu.  As  fases  racionais  de  descrença  nada  mais  são  do  que 
momentos de desequilíbrio, que acabam reconduzindo os homens ao espiritualismo, 
através da síntese estética. 
A  concepção  espírita  do  homem,  como  unidade  trina,  tanto  se  opõe  ao 
dualismo religioso, quanto ao monismo materialista e ao pluralismo ocultista. Não 
obstante,  como  essa  concepção  é  uma  síntese  estética,  nela  encontramos  os 
elementos opostos, reduzidos ao equilíbrio da fusão. Assim, quando Kardec define a 
alma  como  sendo  o  espírito­encarnado,  temos  a  dualidade  alma­corpo;  quando 
define o corpo como produção ou projeção do próprio espírito, temos o monismo; e 
quando define o espírito como entidade independente, possuindo as diversas funções 
da consciência e capaz de projetá­las por várias maneiras, no plano espiritual e no 
plano material,  temos  o  pluralismo. Os  vários  corpos  da  concepção  septenária  do 
ocultismo  apresentam­se  como  simples  peças  do  mecanismo  de  manifestação  do 
espírito.  As  pessoas  que  consideram  simplista  a  concepção  trinária  do  homem,  e 
preferem  a  septenária,  tendem  para  o  pluralismo  afetivo.  As  que,  ao  contrário,  a 
consideram  complexa,  e  preferem  a  concepção  monista,  de  tipo  heckeliano  ou 
marxista, tendem para o monismo materialista. 
O homem trino é, portanto, uma concepção típica do Espiritismo, resultante 
da síntese dialética que se processou no desenvolvimento histórico da humanidade. 
Uma  concepção  que  assinala  a maturidade  espiritual do  homem,  pois  representa a 
superação  das  fases  de  sincretismo  afetivo  e  de  egocentrismo  racional,  tanto 
existentes no indivíduo, quanto na espécie. 
3 – Pluralismo e monismo 
O  homem  trino,  constituído  de  espírito,  perispírito  e  corpo,  segundo  a 
concepção  espírita,  não  é  entretanto  uma  entidade  dualista  ou  pluralista.  Pelo 
contrário,  sua  natureza  é  monista,  no  sentido  unitário,  original,  da  expressão.  O 
homem trino é essencialmente uno, porque é espírito, e só este o define como ser. O 
perispírito  e  o  corpo  físico  não  são  mais  do  que  os  instrumentos  da  sua 
manifestação.  No  fenômeno  da  morte,  temos  o  aniquilamento  do  corpo  físico, 
seguido da sobrevivência pelo perispírito. Este também pode ser aniquilado, e a ele 
sobreviverá  o  espírito,  que  o  reconstruirá  quando  necessário,  como  também 
reconstruirá o corpo físico. 
Há  duas  espécies  de  objeção  filosófica,  que  os  pensadores  modernos, 
apoiados  na  concepção  científica,  opõem  a  essa  concepção  espírita  do  homem. A 
primeira é a do dualismo. Entendem que o homem do Espiritismo é o mesmo das 
religiões  dualistas,  implicando  a  dicotomia  alma­corpo.  A  segunda  é  a  do 
pluralismo, decorrenteda sua constituição tríplice. A essas duas espécies de objeção
113 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
a resposta se encontra na própria doutrina. O Espiritismo é uma concepção monista 
do  universo,  pois  apresenta  como  fundamento  de  toda  a  pluralidade  existencial  a 
realidade única do espírito. 
Não  há  dúvida  que  as  dicotomias  alma­corpo  e  Deus­mundo  aparecem 
nessa concepção. E a afirmação da sua natureza monista se torna mais complexa e 
difícil, quando, saindo do plano individual, para o universal, encontramos a negação 
do  panteísmo. Kardec  afirma,  no  primeiro  capítulo  de O  LIVRO DOS  ESPÍRITOS, 
comentando  a  concepção  de  Deus  formulada  pelos  espíritos:  “A  inteligência  de 
Deus se revela nas suas obras, como a de um pintor no seu quadro; mas as obras de 
Deus  não  são  o  próprio  Deus,  como  o  quadro  não  é  o  pintor  que  o  concebeu  e 
executou”. A distinção é precisa. Deus é o obreiro, o universo é a sua obra. Mas não 
devemos  esquecer  que  a  analogia  é  apenas  uma  forma  de  esclarecimento,  uma 
ilustração de processos que não podem ser descritos com precisão. Se o pudessem, a 
analogia  seria  dispensável.  Podemos  dizer  que  Deus  está  para  o  universo  assim 
como o espírito está para o corpo. De qualquer maneira, o corpo é uma projeção do 
espírito  na  matéria,  é  obra  do  espírito.  Por  isso  mesmo,  não  é  o  espírito.  Não 
obstante, só existe e só vive em função do espírito, penetrado por ele, submetido às 
suas  leis. Na vida  física, identificamos o espírito pelo corpo. E mesmo depois que 
este  perece,  é  ainda  através  da  sua  forma  que  identificamos  o  espírito,  nos 
fenômenos de vidência, de aparição e de materialização. 
Na  própria  vida  espiritual,  nas  regiões  próximas  da  densidade  física,  é  a 
forma perispiritual do corpo que serve para identificação do espírito. Esta  sintonia 
perfeita, esta união que se resolve em identidade, ou esta unidade substancial, para 
falarmos com Aristóteles, tanto existe no plano individual, quanto no universal. Dela 
decorre  a  confusão  entre  a  alma  e  o  corpo,  de  que  tratou Descartes,  e  a  confusão 
entre  Deus  e  o  Universo,  que  atingiu  em  Espinosa  sua  mais  refinada  expressão. 
Entendem  alguns  críticos  do  Espiritismo  que  essas  dicotomias  são  resíduos  da 
formação  religiosa  de  Kardec.  Outros  entendem  que  a  separação  entre  Deus  e  o 
Universo  decorre  da  impossibilidade  de  uma  definição  de  Deus,  como  Alma­do­ 
Mundo,  sem  lhe  ferir  a  perfectibilidade.  Nem  uma,  nem  outra  coisa.  Kardec 
interrogou os espíritos, que sustentaram, como vemos nas perguntas e respostas de O 
LIVRO DOS ESPÍRITOS, a independência de Deus em relação ao Universo. Kardec 
debateu o problema com os seus instrutores ou informantes espirituais, e só depois 
disso  chegou  à  formulação  do  princípio  doutrinário  que  estabelece  a  aparente 
dicotomia, por ter concluído pela impossibilidade lógica de tomarmos o efeito pela 
causa. Além disso, o próprio exame da questão, no plano empírico, nos mostra uma 
sequência  indisfarçável de ação e  reação. Assim como a árvore nasce da semente, 
cujo impulso vital específico é um mistério para a ciência humana, e assim como o 
homem,  em  sua  forma  corpórea  procede  do  embrião,  todas  as  coisas materiais  se 
originam de impulsos ocultos, movidos por intenções claramente determinadas. Há,
114 – J . Herculano Pires 
pois,  uma  zona  de  intenção,  subjacente  no  mundo  material,  que  por  si  mesma 
determina a diferença entre os dois planos: o visível e o invisível. Apesar disso, ou 
por isso mesmo, o dualismo e o pluralismo não são mais do que aparência, uma vez 
que espírito e matéria se confundem na exigência de sua própria reciprocidade. 
Assim,  o  homem é  ao mesmo  tempo  espírito  e  corpo,  pois  o  corpo  nada 
mais é que a manifestação do espírito. Kardec leva mais longe a definição monista 
do universo, chegando a declarar, no primeiro capítulo da segunda parte de O LIVRO 
DOS  ESPÍRITOS:  “Dizemos  que  os  espíritos  são  imateriais,  porque  a  sua  essência 
difere de  tudo o que conhecemos”. Os próprios espíritos  lhe declararam que não é 
bem  certo  chamar  o  espírito  de  imaterial,  acentuando:  “Imaterial  não  é  o  termo 
apropriado;  incorpóreo,  seria mais  exato, pois deves compreender que,  sendo uma 
criação, o espírito deve ser alguma coisa”. 
Como  vemos,  o  dualismo  e  o  pluralismo  estão  refutados  pela  própria 
doutrina, que se apresenta de maneira tríplice, fundada numa concepção tríplice do 
universo e do homem, mas tendo a sua triplicidade como simples estrutura funcional 
de um todo, que é único, do qual tudo procede e ao qual tudo reverte. Não é outra a 
concepção monista do materialismo científico, com a única diferença de encarar a 
unidade pelo  lado de  fora, que é o dos  efeitos,  ou da manifestação. O Espiritismo 
encara essa unidade do lado de dentro, ou a partir das causas, que afinal se resumem 
numa  causa  única. O homem  trino  é  uno,  como  o  universo  trino  é  uno  e  una  é  a 
doutrina tríplice que os explica. 
4 – Triângulo de forças 
A  constituição  tríplice  do  Universo,  nos  seus  aspectos  fundamentais, 
revelados  em  O  LIVRO  DOS  ESPÍRITOS,  na  seguinte  trindade  universal:  Deus, 
Espírito e Matéria, reflete­se naturalmente na constituição tríplice do Homem, como 
espírito,  perispírito  e  corpo.  Correspondendo  a  essa  natureza  trina,  a  consciência 
humana apresenta as suas três funções estruturais: a teórica, a prática e a estética. A 
essas  funções, e portanto à própria constituição do Homem, e do Universo em que 
vivemos,  terá  de  corresponder,  inevitavelmente,  a  síntese  do  conhecimento,  que 
representa  uma  exigência  do  espírito,  uma  aspiração  do  ser  humano  em  seu 
desenvolvimento  espiritual,  e,  por  fim,  uma  necessidade  da  evolução.  Na  busca 
incessante dessa síntese, a inteligência se inclina, como  já vimos, ora para um, ora 
para outro dos aspectos fundamentais da consciência. Somente com a realização da 
síntese nela própria, quando ela mesma atingir a unidade necessária, com a fusão da 
consciência teórica e da consciência prática na consciência estética, se torna possível 
a  síntese  universal,  ou  o  conhecimento  global,  que  abrange  ao  mesmo  tempo  as 
funções internas e externas da consciência: a afetividade, a volição e a inteligência.
115 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
Esse conhecimento global apresenta, necessariamente, uma forma  tríplice, 
na  sua  manifestação,  mas  repousa,  internamente,  sobre  a  unidade  do  ser.  Esta 
unidade,  por  sua  vez,  tem  a  sua  representação  externa,  que  podemos  chamar  de 
Sabedoria, ou mesmo de Conhecimento, ou ainda de Doutrina. Ao longo da História, 
e  em  relação  com os  graus  de  evolução  de  cada momento  histórico,  essa  unidade 
tomou  os  mais  diversos  nomes,  desde  a  Magia  dos  tempos  primitivos  até  os 
Mistérios orientais, a Filosofia grega e a Ciência moderna. Hoje, porém, o nome que 
a  define,  para  todos  aqueles  que  compreenderam  o  processo  do  seu 
desenvolvimento, é apenas este: Doutrina Espírita. Porque entre todas as formas de 
saber,  entre  todas  as  formulações  teórico­práticas  da  realidade  universal,  somente 
ela, a Doutrina Espírita, apresenta essa estrutura, ao mesmo tempo una e trina, que 
corresponde à estrutura da consciência e do universo. 
Somente no Espiritismo, portanto — no sentido que Kardec deu ao termo, 
por ele criado e posto em circulação —, encontramos essa unidade tríplice do saber, 
em que ciência, filosofia e religião, embora mantendo cada qual a sua autonomia, se 
fundem num todo dinâmico, em que livremente se processa a simbiose, necessária à 
produção da síntese. Mas como é possível essa harmonia do “todo dinâmico”, num 
mundo  em  que  cada  uma  das  formas  do  conhecimento  revela  a  tendência  de 
absorver as demais? Nenhuma explicaçãonos parece mais feliz, mais precisa e mais 
didática, do que a formulada pelo espírito de Emmanuel, no livro O CONSOLADOR, 
recebido mediunicamente por Francisco Cândido Xavier. Interpelado a respeito do 
aspecto tríplice da doutrina, o espírito respondeu nestes termos: “Podemos tomar o 
Espiritismo,  simbolizado  desse modo,  como  um  triângulo  de  forças  espirituais.  A 
ciência  e  a  filosofia  vinculam  à  terra  essa  figura  simbólica,  porém,  a  religião  é  o 
ângulo divino, que a  liga ao céu. No seu aspecto científico e  filosófico, a doutrina 
será  sempre  um  campo  de  investigações  humanas,  como  outros  movimentos 
coletivos, de natureza intelectual, que visam ao aperfeiçoamento da humanidade. No 
aspecto  religioso,  todavia,  repousa  a  sua  grandeza  divina,  por  constituir  a 
restauração do Evangelho de Jesus Cristo, estabelecendo a  renovação definitiva do 
homem, para a grandeza do seu imenso futuro espiritual”. 
Voltamos,  assim,  um  século  depois,  a  ouvir  dos  Espíritos,  como  ouvira 
Kardec,  a  afirmação  da  natureza  tríplice  do  Espiritismo.  E  a  harmonia  do  “todo 
dinâmico” se revela não somente possível, porque, antes de tudo, necessário. De um 
lado,  as  investigações  científicas  da  fenomenologia  espírita  e  a  sua  interpretação 
filosófica, dão ao homem a segurança do conhecimento positivo da espiritualidade. 
De outro  lado, a prática moral, decorrente dos princípios de uma religião racional, 
apoiada na ciência e na filosofia, assegura­lhe o futuro espiritual, ao mesmo tempo 
em que lhe garante a tranquilidade no presente material, ou no “agora” existencial. 
O  homem  se  encontra  a  si mesmo,  no  triângulo  de  forças  da  concepção 
espírita.  A  pesquisa  científica  demonstra­lhe  a  realidade  espiritual  da  vida,
116 – J . Herculano Pires 
rompendo  o  véu  das  aparências  físicas;  a  cogitação  filosófica  desvenda­lhe  as 
perspectivas  da  vida  espiritual,  em  seu  processo  dialético,  através  do  tempo  e  do 
espaço; a  fé  raciocinada, consciente, da religião em espírito e  verdade, abre­lhe as 
vias  de  comunicação  com  os  poderes  conscientes  que  o  auxiliam  na  ascensão 
evolutiva. Assentado na terra, o triângulo de forças do Espiritismo pode parecer uma 
construção puramente terrena. Daí as acusações de materialismo, que lhe fazem as 
religiões  de  estilo  antigo,  de  estrutura  lógico­aristotélica,  e  portanto  de  natureza 
dedutiva. 
Pelo contrário, a estrutura lógica do Espiritismo é baconiana, e sua natureza 
é indutiva. Pela indução científica, o homem parte de um ângulo terreno da doutrina 
para  outro,  também  terreno,  que  é  o  da  cogitação  filosófica.  Mas  desses  dois 
ângulos,  em  que  se  exercita  o  poder  de  cognição  do  espírito  encarnado,  este  se 
arremete  em direção  ao  infinito,  pelo  ângulo  celeste  da  fé,  através  da  religião  em 
espírito e verdade. A religião dedutiva faz Deus baixar à terra e materializar­se em 
ritos e objetos; a religião indutiva faz o homem subir ao céu e desmaterializar­se, em 
razão  e  amor,  para  encontrar  a  Deus.  Mas  há  outro  aspecto,  ainda  no  plano  das 
comparações  lógicas,  que  desmente a acusação  de materialismo:  é  que  o  processo 
indutivo, como sempre, é antecedido pela dedução, que ele verifica, para aprovar ou 
rejeitar a sua validade. No caso espírita, a dedução é a mesma das religiões antigas, 
mas submetida à verificação indutiva. A verdade suprema, que baixa do céu, confere 
com a verdade humana, que sobe da terra. Esse o aspecto mais elevado da simbiose 
doutrinária, que permite a síntese do conhecimento. E é por isso que a fé raciocinada 
do Espiritismo substitui a fé dogmática ou cega das religiões dedutivas.
117 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
CAPÍTULO II 
A CIÊNCIA ADMIRÁVEL 
1 – Os caminhos da ciência 
Assim como a religião pode ser de natureza dedutiva ou indutiva, também a 
ciência  pode  seguir  um  desses  caminhos.  As  ciências  da  antiguidade  podem  ser 
consideradas  de  natureza  dedutiva.  Partiam  de  princípios  gerais,  de  ensinos 
tradicionais,  para  aplicações  dedutivas  a  casos  particulares.  O  exemplo  mais 
esclarecedor  deste  tipo  de  ciência  é  o  que  nos  oferece  o  princípio  teológico  da 
“ciência  infusa”, que é  recebida sem aprendizagem. Adão, o “primeiro homem”, a 
teria  recebido,  e  também  Jesus Cristo,  como homem,  a  possuía  sem  ter  estudado. 
Ciência revelada, que vem do Alto, inspiração divina, que o homem recebe e aplica 
às coisas da terra. A tradição escolástica medieval é o exemplo clássico da ciência 
dedutiva,  aristotélica,  contra  a  qual  se  processou  a  revolução  indutiva  de  Francis 
Bacon  e  a  revolução  racionalista  de René Descartes. A  experiência  baconiana  e a 
razão  cartesiana  representam  as  duas  reações  contra  a  autoridade  da Mística  e  da 
Tradição,  despertando  o  homem  para  a  necessidade  de  verificar  a  exatidão  e  a 
segurança de seus pretensos conhecimentos. 
Dois  poderes  foram  postos  em  choque,  de  maneira  definitiva,  por  essas 
duas  formas  de  reação:  o  poder  da  Mística  Oriental,  que  se  apresentava  como 
revelação divina, e o poder da Tradição Aristotélica, que se definia como sujeição da 
razão humana àquela revelação. A partir daquilo que podemos chamar “a revolução 
metódica”, ou ainda “a revolução do método” — pois tanto Bacon quanto Descartes 
partiram da necessidade de um método para a conquista do conhecimento verdadeiro 
— os caminhos da ciência foram modificados. Já não bastavam a sanção das antigas 
escrituras  sagradas,  dos  livros  de  Aristóteles  ou  da  tradição  cultural,  para  que  a 
ciência  se  impusesse  e  pudesse  ser  transmitida  como  verdade.  Cabia  ao  homem 
equacionar de novo os velhos problemas, para encontrar as soluções mais seguras. 
Já vimos o que isso representa, no processo geral da evolução humana. Mas 
o  que  agora  nos  importa  é  colocar  nesse  quadro  o  problema  da  ciência  espírita. 
Tomemos para exemplo a classificação das ciências, de Augusto Comte, que data da 
época  de Kardec. Vemos  que  ela  se  constitui  de  seis  ciências,  correspondentes  às 
fases da evolução fixadas na lei dos três estados. 
São as seguintes:
118 – J . Herculano Pires 
1ª)  a  Matemática,  de  tipo  dedutivo,  a  mais  antiga  e  a  mais  simples,  ao 
mesmo tempo que a mais abstrata; 
2ª)  a  Astronomia,  que  não  poderia  aparecer  sem  o  desenvolvimento  da 
matemática; 
3ª)  a  Física,  que  decorre  da  existência das  duas anteriores,  e  que  embora 
tendo por objeto o concreto, depende dos conceitos abstratos da matemática; 
4ª) a Química, que não poderia existir sem o aparecimento das anteriores; 
5ª) a Biologia, que parece nascer diretamente das duas últimas; 
6ª)  a  Sociologia,  que  é  ao mesmo  tempo uma  física,  uma química  e  uma 
biologia social, e por isso mesmo a mais complexa e a mais recente das ciências. 
Para  Comte,  não  existia  a  Psicologia,  uma  vez  que  a  alma  se  explicava 
como  simples  consequência  do  dinamismo  orgânico.  A  Sociologia,  rainha  das 
ciências, representava o acabamento do edifício do saber. Não obstante, no volume 
quarto da REVUE SPIRITE, de abril de 1858, Kardec publica, precedido de breve 
comentário, interessante trecho dá carta que lhe dirigira um leitor, perguntando­lhe 
se um novo período não  estava surgindo para as ciências, com a  investigação dos 
fenômenos  espíritas.  Kardec  concorda  com  o  missivista,  admitindo  que  o 
Espiritismo iniciou o “período psicológico”. Podemos dizer que a visão comteana do 
desenvolvimento científico limitou­se ao plano existencial, e, portanto do concreto, 
do material. Da Matemática à Sociologia,  tudo se passa no campo das  leis  físicas, 
materiais.  Daí  a  razão  por  que  Comte  não  admitia  a  Psicologia,  pois  esta,  na 
verdade,  nada mais  era  que  o  estudo  de  um  epifenômeno:  o  conjunto  de  reaçõesorgânicas da matéria. Ao referir­se a um “período psicológico”, que se iniciava com 
o  Espiritismo,  Kardec  acentuou  a  importância  moral  do  mesmo.  O  homem  se 
destacava  da  matéria,  libertava­se  da  estrutura  fatalista  das  leis  físicas,  para 
recuperar, no próprio desenvolvimento das ciências, a sua natureza extrafísica. 
Convém  lembrarmos  a  “lei  dos  três  estados”,  que  o Espiritismo modifica 
para “lei dos quatro estados”. Segundo o Positivismo, a evolução humana teria sido 
realizada  através  de  três  fases:  a  teológica,  a metafísica  e  a  positiva,  sendo  que  a 
primeira corresponderia à mentalidade mitológica; a segunda, a do desenvolvimento 
do pensamento abstrato; a terceira, a do desenvolvimento das ciências. Já estudamos 
essas  fases  na  sequência  dos  horizontes  culturais.  Kardec  acrescenta  a  fase 
psicológica,  em  que  as  ciências  se  abrem  para  a  descoberta  e  a  afirmação  do 
psiquismo como fenômeno (e não mais como simples epifenômeno), reconhecendo­ 
lhe  a  autonomia  e  a  realidade  positiva,  verificável,  susceptível  de  comprovação 
experimental. Vemos a confirmação desse pensamento de Kardec ao longo de toda a 
sua obra. 
O Espiritismo é apresentado como ciência, porque, explica o mestre em A 
GÊNESE,  capítulo  primeiro:  “Como  meio  de  elaboração,  o  Espiritismo  procede
119 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
exatamente  da  mesma  maneira  que  as  ciências  positivas,  aplicando  o  método 
experimental”. E  logo mais, no mesmo período,  item 14: “As  ciências  só  fizeram 
progressos  importantes  depois  que  basearam  os  seus  estudos  no  método 
experimental. Até então, acreditava­se que esse método só  era aplicável à matéria, 
ao passo que o é também às coisas metafísicas”. Essa posição de Kardec está hoje 
confirmada  pelo  desenvolvimento  da  Parapsicologia,  a  primeira  ciência  positiva, 
segundo  afirma  o  Prof.  Joseph  Banks  Rhine,  da  Duke  University,  EUA, 
cognominado “Pai da Parapsicologia”, a romper os  limites da concepção  física do 
Universo  e  a  provar  a  existência  do  extrafísico.  Como  se  o  Espiritismo  já  não  o 
tivesse feito. 
Com  o  Espiritismo,  portanto,  a  ciência  mais  complexa,  a  da  alma,  que 
Augusto  Comte  não  considerava  possível,  abandonou  também  o  caminho  das 
deduções, como o fizeram as anteriores, para entrar no caminho das induções. É da 
observação  dos  fatos  positivos  que  o  Espiritismo  parte  para  a  comprovação  da 
realidade extrafísica. Kardec ainda afirma, no mesmo período citado: “Não foram os 
fatos  que  confirmaram,  a  posteriori,  a  teoria,  mas  a  teoria  que  veio, 
subsequentemente, explicar e resumir os fatos”. 
2 – Dualidade na unidade 
Chegamos assim a uma constatação curiosa: o desenvolvimento científico 
leva as próprias ciências à dicotomia que elas insistentemente rejeitam. A dualidade 
cartesiana, hoje considerada herética, tanto nas ciências quanto na filosofia, volta a 
se impor, no momento mesmo em que as ciências parecem dominar soberanamente 
o  mundo  do  conhecimento.  Quando  a  realidade  extrafísica  era  mais  fortemente 
repudiada,  para  sustentar­se,  como  base  única  da  certeza  do  conhecimento  e  da 
segurança  do  homem,  apenas  a  realidade  física,  eis  que  esta  se  desmorona,  ao 
impacto  das  investigações  parapsicológicas,  que  nada  mais  são  do  que  o 
desenvolvimento,  no  plano material,  das  pesquisas  espíritas  e metapsíquicas. Mas 
além  desse  impacto,  outro  ainda  mais  forte  vem  atingir  a  sólida  muralha  dos 
conceitos  físicos:  a  própria  Física,  para  progredir,  se  desfaz  em  Energética.  O 
desenvolvimento  da  Física  Nuclear  nada  mais  é  do  que  a  negação  da  matéria, 
segundo as próprias expressões de Albert Einstein, Arthur Compton, e outros físicos 
eminentes. Assim, em dois sentidos diversos: nas ciências do homem e nas ciências 
da natureza,  o Materialismo  e  o Positivismo  se  desfazem, como  simples miragens 
científicas. E, em lugar de ambos, impõe­se a realidade da Ciência Espírita. 
Kardec afirmou, há mais de cem anos, em O LIVRO DOS ESPÍRITOS, com a 
serenidade do homem que realmente sabia o que estava escrevendo: “O Espiritismo 
é  a  ciência nova  que  vem  revelar aos  homens,  por meio  de  provas  irrecusáveis,  a
120 – J . Herculano Pires 
existência  e  a  natureza  do  mundo  espiritual,  bem  como  as  suas  relações  com  o 
mundo corpóreo”. Vemos isso no item 5 do capítulo 1° do livro citado. E logo mais, 
no item 8, acentuou: “A Ciência e a Religião são as duas alavancas da inteligência 
humana. Uma revela as leis do mundo material, e a outra as do mundo moral, tendo, 
no  entanto,  umas  e  outras,  o  mesmo  princípio:  Deus;  razão  porque  não  podem 
contradizer­se”. 
Como ciência nova, última da escala das ciências, o Espiritismo abre uma 
nova era na história do conhecimento. E como todas as eras novas, esta se apresenta 
confusa,  aparentemente  cheia  de  contradições.  A  primeira  e  a  mais  forte  dessas 
contradições,  a  que  mais  perturba  os  homens  de  ciência,  é  precisamente  a  da 
dicotomia a que já nos referimos. Como admitir­se, depois dos próprios esforços de 
Einstein  para  provar  a  unidade  das  leis  naturais,  através  de  sua  teoria  do  campo 
unificado, a dualidade que ora se apresenta? Temos então dois campos: um físico e 
outro extrafísico; e consequentemente duas formas de ciências, as físicas e as não­ 
físicas? Voltamos  à  dualidade  cartesiana,  ou  o  que  parece  ainda  pior, à  dualidade 
primitiva  das  superstições  tribais  ou  do  período  metafísico?  Kardec  explica,  nos 
capítulos VII e VIII da “Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita”, que “a ciência 
propriamente dita, ou seja, as chamadas ciências positivas, têm por objeto a matéria. 
O  Espiritismo,  entretanto,  tem  por  objeto  o  Espírito,  ou  princípio  inteligente  do 
Universo”. E  acrescenta:  “A  ciência  propriamente  dita,  como  ciência,  é,  portanto, 
incompetente  para  se  pronunciar  a  respeito  da  questão  do  Espiritismo:  não  lhe 
compete ocupar­se do assunto, e o seu julgamento, qualquer que ele seja, favorável 
ou não, não teria nenhuma importância”. É que, enquanto o Espiritismo é uma forma 
de  concepção  geral  do  Universo  e  da  Vida,  as  ciências  não  podem  abranger  o 
conjunto.  Que  fazem  elas,  senão  enfrentar  os  problemas  concernentes  ao  plano 
existencial?  Quando  estamos  nesse  plano,  encarado  apenas  como  o  da  realidade 
física, não percebemos o outro. Aliás, a própria fragmentação da Ciência, em tantas 
ciências  quantos  os  campos  específicos  que  tiveram  de  enfrentar,  obrigou­as  a 
buscar uma forma de reunificação no plano filosófico, com a Filosofia das Ciências. 
Não  é  esta,  também,  uma  forma  de  volta  à Metafísica,  embora  com  os  dados  da 
Física?  A  dicotomia,  como  se  vê,  é  um  fantasma  permanente,  que  nenhum 
exorcismo científico conseguiu afastar. 
Os  esforços  do  Reflexiologismo  russo  e  do  Condutismo  norte­americano 
em  Psicologia,  para  reduzirem  o  psiquismo  a  um  simples  epifenômeno,  foram 
superados  violentamente  pelo  desenvolvimento  da  Psicanálise  e  do  que  hoje 
denominamos  Psicologia  Profunda.  Os  esforços  da  Física,  para  dominar  todo  o 
campo das ciências, naturais e humanas, foram inúteis, quando ela mesma superou 
os  seus  próprios  quadros,  revelando  a  inexistência  da matéria  como  tal. Mas  essa 
mesma revelação, que para as ciências positivas parece um golpe de morte, para o 
Espiritismo  não  é  mais  do  que  a  confirmação  da  unidade  na  dualidade,  que  ele
121 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
sustentou desde o princípio. Não há dualidade, mas multiplicidade, pluralismo, uma 
riqueza infinita e inconcebível de planos de manifestação, mas esta manifestação é a 
de  uma  realidade  única,  a  espiritual,  princípio  e  fundamento  de  tudo.  Por  isso, 
Kardecadvertiu que a Ciência e a Religião têm um mesmo princípio e não podem 
contradizer­se. 
Compreendendo essa verdade, mas em plena era metafísica, a Escolástica 
medieval quis subordinar a revelação científica, então entendida como filosófica, à 
dogmática  teológica.  Não  sendo  possível  nem  admissível  a  contradição,  a  ciência 
humana tinha de servir à ciência divina, e a filosofia devia conservar­se na posição 
de serva da teologia. Basta pensarmos na divisão do conhecimento humano, feita por 
Santo  Agostinho,  em  “iluminação”  e  “experiência”,  para  entendermos  a 
subordinação  lógica  da  razão  à  revelação. Mas Kardec  demonstra  a  existência  de 
duas  formas  de  revelação:  a  divina  e  a  humana,  ambas  conjugadas  num  mesmo 
processo cognitivo. A raiz, aliás, se mostra no próprio plano etimológico: revelar é 
apenas  pôr  às  claras  o  que  estava  oculto,  e  isso,  tanto  no  referente  às  coisas 
materiais, quanto às espirituais. Ainda aqui, a dualidade na unidade. Mas nem por 
isso podemos deixar de respeitar a dualidade, como uma realidade que se impõe à 
condição  humana.  E  assim  como,  nas  próprias  ciências  positivas,  encontramos  a 
multiplicidade de objetos e métodos, — não apenas dualidade, mas multiplicidade 
—  assim  também,  no  tocante  ao  Espiritismo,  como  ciência  do  espiritual,  e  às 
ciências positivas, como ciência do material,  temos de considerar a necessidade de 
métodos  diferentes,  para  objetos  diversos. É  o  problema da moderna  ontologia do 
objeto.  Da  mesma  maneira  por  que  os  métodos  da  experimentação  física  não 
serviram à pesquisa psicológica ou sociológica, os métodos científicos positivos são 
insuficientes  para  a  investigação  espírita.  A  ciência  espírita  tem  os  seus  próprios 
métodos. E tanto isso é necessário e cientificamente válido, que, atualmente, a Física 
se desdobra em Física Nuclear ou Para­Física, e a Psicologia em Parapsicologia. 
3 – Espírito e matéria 
A  ciência  espírita  não  procede  por  exclusão,  mas  procura  a  síntese.  As 
ciências  positivas,  até  agora,  procederam  por  exclusão.  Não  podendo  admitir  a 
existência do espírito, deixaram­no à margem das suas cogitações, e acabaram por 
tentar excluí­lo definitivamente da realidade universal. Apesar disso, tiveram sempre 
de admiti­lo, na forma de um epifenômeno. Não era possível negar a evidência do 
espírito, tanto no processo individual da manifestação humana, quanto no processo 
coletivo,  da  vida  social. Daí  o  aparecimento  da Psicologia,  que  os mais  renitentes 
materialistas procuraram reduzir à Fisiologia, e o aparecimento da Sociologia, que 
acabou exigindo a formulação de uma Para­Sociologia, com a Psicologia Social.
122 – J . Herculano Pires 
Espírito e matéria, como sustenta a ciência espírita, são duas constantes da 
realidade universal. Por isso, Kardec declara no item 16 do capítulo primeiro de A 
GÊNESE: “O Espiritismo e a Ciência se completam reciprocamente. A Ciência, sem 
o Espiritismo, não pode explicar certos fenômenos, somente pelas leis da matéria. O 
Espiritismo,  sem  a  Ciência,  careceria  de  apoio  e  confirmação”.  Ao  fazer  essa 
declaração,  Kardec  teve  em  mira  o  pensamento  positivo  e  a  possibilidade  de 
comprovar­se a existência do espírito através dos  fenômenos físicos. Seria possível 
essa comprovação? 
Tanto o Espiritismo, como a Ciência Psíquica inglesa e a Metapsíquica de 
Richet  já  o  demonstraram,  no  século  passado.  Hoje,  coube  à  Parapsicologia 
reafirmar  aquelas  demonstrações  e  procurar  aprofundá­las,  dentro  das  próprias 
exigências  metodológicas  das  ciências  positivas.  Que  estas  exigências  não  se 
adaptam à natureza diversa do objeto, como dizia Kardec, também se comprova. As 
investigações  parapsicológicas  apenas  arranham o  litoral  do  imenso  continente  do 
espírito,  e  a  todo  o  momento  se  emaranham  em  dúvidas  e  controvérsias.  Mas  o 
espírito  se  afirma,  independentemente  das  interpretações  diversas,  como  uma 
realidade  fenomênica.  Parece  haver  uma  contradição  nessa  curiosa  posição  da 
fenomenologia paranormal. Mas a contradição decorre apenas da posição mental dos 
pesquisadores.  Porque,  se  a  realidade  se  constitui  de  espírito  e  matéria,  e  se  o 
espírito se manifesta no existencial através da matéria, a própria realidade nada mais 
é do que uma manifestação paranormal. Tudo quanto existe é fenômeno, mas o é em 
função do númeno kantiano, da essência espiritual que se manifesta na existência. 
Dizer,  pois,  que  o  Espiritismo,  em  vez  de  espiritualizar  os  homens,  materializa 
espíritos, é  simplesmente sofismar. Não se pode espiritualizar os homens sem  lhes 
dar  a  consciência  de  sua  natureza  espiritual,  não  através  de  uma  imposição 
dogmática, hoje inadequada e perigosa — que leva a maioria das pessoas à dúvida 
ou ao ceticismo —, mas através da prova científica. 
Como ciência do espírito, e portanto do elemento espiritual constitutivo do 
Universo, o Espiritismo procede de maneira analítica, no plano fenomênico. Mas, ao 
se elevar às conclusões indutivas, atinge, natural e fatalmente, o plano da síntese. É 
esse  o  motivo  porque  Richet  considerou  Kardec  excessivamente  crente,  ingênuo, 
precipitado.  Para  o  fisiologista  que  era  Richet,  a  síntese  das  verificações 
fenomênicas não  poderia  jamais  superar  o  plano  da  realidade  fisiológica. Teria  de 
ser  uma  síntese  parcial,  uma  conclusão  tirada  apenas  dos  dados  positivos,  que  no 
caso  seriam  os  dados  materiais  da  investigação.  Para  o  espírita  Kardec,  dava­se 
exatamente  o  contrário.  A  síntese  tinha  de  ser  completa,  uma  vez  que  os  dados 
materiais  revelavam a  presença  do  espiritual,  a  sua manifestação.  Impõe­se,  neste 
caso, a observação de Descartes, de que é mais fácil conhecermos o nosso espírito 
do  que  o  nosso  corpo.  A  realidade  espiritual  nos  é mais  acessível,  porque  é  a  da 
nossa  própria  natureza.  A  realidade  material  é­nos  estranha  e  quase  inacessível.
123 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
Quando  o  cientista  da  matéria  observa  os  fenômenos,  procurando  explicações  no 
plano  dos  seus  conceitos  habituais,  acaba  emaranhando­se  nas  dúvidas  e 
perplexidades que aturdiram tantos investigadores. Quando, porém, como no caso de 
William Crookes ou Alfred Russell Wallace, o cientista da matéria não se esquece 
da  sua  natureza  espiritual,  a  realidade  transparece  nos  dados  materiais  da 
investigação. 
Nosso  conhecimento  das  coisas  materiais  é  extremamente  mutável,  em 
virtude da própria natureza mutável dessas coisas. Mas o nosso conhecimento de nós 
mesmos,  ou  das  coisas  espirituais,  é  estável,  e  podemos  mesmo  considerá­lo 
imutável.  Porque  esse  conhecimento  nos  é  dado  por  intuição  direta,  por  uma 
percepção que coincide com a própria natureza do percipiente. Sujeito e objeto se 
confundem  no  processo  da  relação  cognitiva.  Tocamos  de  novo  o  problema  que 
dividiu  os  filósofos  jônicos  e  eleatas,  na  Grécia  clássica:  a  realidade  móvel  de 
Heráclito e a estável de Zenon. O que nos mostra, mais uma vez, a acuidade intuitiva 
dos gregos, pois os dois aspectos universais continuam a aturdir­nos. 
Certas  pessoas  querem  negar  a  natureza  científica  do  Espiritismo,  por 
considerarem a  “crença” espiritual uma  simples  superstição. Alegam que  desde  as 
eras mais remotas os homens acreditaram em espíritos. Mas não é o fato de sempre 
haverem acreditado o que importa, e sim o fato das próprias investigações científicas 
modernas  confirmarem  essa  crença.  Enquanto,  por  exemplo,  a  concepção 
geocêntrica  do Universo,  tão  arraigada,  teve  de modificar­se,  diante  da  evidência 
científica, a concepção espiritual do homem, pelo contrário, mostra­se irredutível. A 
ciência espírita, só tem motivos para firmar­se nos seus conceitos, e não para cederaos conceitos mutáveis das ciências materiais. 
4 – Sementes de fogo 
Podemos  dizer,  diante  da  validade  dos  princípios  espirituais,  afirmados  e 
reafirmados  através  do  tempo,  como dizia Descartes:  “temos  em nós  sementes  de 
ciências,  como  o  sílex  tem  sementes  de  fogo”.  Kardec  citou,  na  Introdução  de O 
EVANGELHO  SEGUNDO O  ESPIRITISMO,  Sócrates  e  Platão  como  precursores  da 
Doutrina.  Essa  citação  não  nos  impede,  pelo  contrário  nos  estimula,  a  verificar  a 
existência  de  outros  precursores  no  campo  da  ciência  e  da  filosofia,  antigas  e 
modernas.  Entre  eles,  não  há  dúvida  que  devemos  colocar  René  Descartes,  na 
própria França em que surgiria mais tarde o Consolador. Na noite de 10 para 11 de 
novembro  de  1619,  Descartes,  então  jovem  soldado  acampado  em  Ulm;  na 
Alemanha,  sentiu­se  tomado  por  intensas  agitações.  Seu  amigo,  biógrafo  e 
correspondente,  o  Abade  Baillet,  diria  mais  tarde  que  ele:  “entregou­se  a  uma
124 – J . Herculano Pires 
espécie de entusiasmo, dispondo de tal maneira do seu espírito já cansado, que o pôs 
em estado de receber as impressões dos sonhos e das visões”. 
De  fato,  Descartes,  que  se  preocupava  demasiado  com  a  incerteza  dos 
conhecimentos humanos, transmitidos tradicionalmente, deitou­se para dormir e teve 
nada menos de três sonhos, que considerou bastante significativos. O mais curioso é 
que esses sonhos já lhe haviam sido preditos pelo Demônio, que à maneira do que se 
verificava com Sócrates, o advertia de coisas por acontecer. A  importância desses 
sonhos, como sempre acontece quando se trata de ocorrências paranormais, não foi 
até hoje apreciada pelos historiadores e pelos intérpretes do filósofo. Mas Descartes 
declarou que eles lhe haviam revelado “os fundamentos da ciência admirável”, uma 
espécie  de  conhecimento  universal,  válido  para  todos  os  homens  e  em  todos  os 
tempos.  Essa  ciência  não  seria  elaborada  apenas  por  ele,  pois  tratava­se  de  “uma 
obra imensa, que não poderia ser feita por um só”. Comentando o episódio, acentua 
Gilbert Mury: “Esse homem voluntarioso e  frio tem qualquer coisa de um profeta. 
Anuncia a Boa Nova. Escolheu a rota da sabedoria, e nela permanecerá”. 
Descartes  sentiu­se  de  tal maneira  empolgado  pelos  sonhos  que  acreditou 
haver sido inspirado pelo Espírito da Verdade. O Abade Baillet registra esse fato em 
sua biografia do  filósofo. Foi  tal a clareza da  intuição recebida, em forma onírica, 
que Descartes se considerou capaz de pulverizar a velha e falsa ciência escolástica, 
que  lhe haviam  impingido  desde  criança.  Pediu  a Deus  que  o  amparasse,  que  lhe 
desse forças para realizar a tarefa que lhe cabia, na grande obra a ser desenvolvida. 
Rogou a Deus que o confirmasse no propósito de elaborar um método seguro para a 
boa direção do espírito humano. E desse episódio originou­se toda a sua obra, que 
abriu os caminhos da ciência moderna. Não tinha Descartes, nessa ocasião, mais do 
que  23  anos.  Julgou­se,  por  isso  mesmo,  demasiado  jovem  para  tão  grande  e 
perigosa  empreitada.  Não  obstante,  como  um  verdadeiro  vidente,  empenhou,  dali 
por diante, todos os seus esforços, no sentido de adquirir conhecimentos e condições 
para o trabalho entrevisto. E dezoito anos depois lançou o DISCURSO DO MÉTODO, 
que rasgaria os novos caminhos da ciência. 
Cauteloso,  diante  dos  perigos  que  ameaçavam  os  pensadores  livres  da 
época,  Descartes  não  deixou,  entretanto,  de  cumprir  o  seu  trabalho,  que Espinosa 
prosseguiria mais tarde, e que mais tarde ainda se completaria com a dedicação de 
Kardec. A epopeia do cogito, realizada no silêncio da meditação, é uma indicação de 
rumos à nova ciência. Descartes mergulhou em si mesmo, negando toda a realidade 
material, inclusive a do próprio corpo, na procura de alguma realidade positiva, que 
se  afirmasse  por  si  mesma,  de  maneira  indubitável.  Foi  então  que  descobriu  a 
realidade  inegável cio  espírito, proclamando, no  limiar da nova era: “Cógito, ergo 
sum”, ou seja: “Penso, logo existo”. 
E no mesmo instante em que reconheceu essa verdade, julgou­se isolado do 
universo,  perdido  em  si mesmo.  Só  podia  afirmar  a  sua  própria  existência.  Nada
125 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
mais  sabia, nem podia  saber. A maneira  por  que Descartes  retoma  contato  com a 
realidade exterior é outra indicação de rumos. Descobre no fundo do cogito, no seu 
próprio  pensamento,  a  realidade  suprema de Deus. Essa  descoberta  lhe  devolve  o 
Universo perdido. O filósofo da negação se converte no cientista da afirmação. Deus 
existe  e  o  Universo  é  real.  Espinosa  escreverá  a  ÉTICA,  mais  tarde,  sua  obra 
máxima, a partir de uma premissa fixada por Descartes: a existência de Deus. 
É  fácil  compreendermos  que  a  ciência  admirável  tinha  um  fundamento 
sólido,  poderoso  e  amplo,  que  a  ciência materialista  rejeitou  posteriormente. Mas, 
depois disso, quando a ciência admirável conseguiu, apesar da repulsa dos homens, 
novamente  firmar­se em França, o  fez de braços abertos para todos  os  fragmentos 
em  que  se  partira  a  ciência  da  matéria.  Este  é  um  tema  que  os  estudiosos  do 
Espiritismo precisam desenvolver. Num curso de introdução doutrinária, é bom que 
o coloquemos, a título de orientação para os estudantes e de sugestão para as  suas 
futuras  investigações. A chamada revolução cartesiana  foi precursora da revolução 
espírita. A ciência admirável de Descartes é a mesma ciência espiritual de Kardec, 
ainda em desenvolvimento, por muito tempo, em nosso planeta.
126 – J . Herculano Pires 
CAPÍTULO III 
A FILOSOFIA DO ESPÍRITO 
1 – O Espiritismo e a tradição filosófica 
A Filosofia Espírita se apresenta, no quadro geral das doutrinas filosóficas, 
e  consequentemente  na  própria  História  da  Filosofia,  como  uma  das  formas  do 
Espiritualismo.  No  capítulo  primeiro  da  “Introdução  ao  Estudo  da  Doutrina 
Espírita”,  que  inicia  O  LIVRO  DOS  ESPÍRITOS,  Kardec  acentua:  “Como 
especialidade,  O  LIVRO  DOS  ESPÍRITOS  contém  a  doutrina  espírita;  como 
generalidade, liga­se à doutrina espiritualista, da qual apresenta uma das fases. Essa 
a razão por que traz sobre o título as palavras: Filosofia Espiritualista”. A definição 
de Kardec é absolutamente precisa. O VOCABULAIRE TECHNIQUE ET CRITIQUE 
DE LA PHILOSOPHIE, de André Lalande, ao consignar a Filosofia Espírita, com a 
denominação de Espiritismo, acentua o seu caráter espiritualista. A seguir, ao tratar 
do  termo  spiritualisme,  esclarece  que  é  impróprio  chamar­se  o  Espiritismo  de 
Espiritualismo, como o fizeram e fazem os ingleses, e às vezes os alemães. Porque o 
Espiritismo é apenas uma espécie do gênero Espiritualismo, como o Marxismo, por 
exemplo, é apenas uma espécie do gênero Materialismo. 
A  tradição  filosófica  é  quase  toda  espiritualista.  Referimo­nos  hoje  a 
doutrinas materialistas do passado, mas a verdade histórica não nos autoriza a tanto. 
As correntes gregas e helenísticas chamadas de materialistas, na verdade são apenas 
naturalistas.  Melhor  lhes  cabe  a  designação  clássica  de  hilozoístas,  ou  seja,  de 
filosofias  da  matéria­viva,  animada  por  um  princípio  espiritual  que  escapa  aos 
sentidos  dos  observadores.  Os  filósofos  gregos,  que  antecederam  as  grandes 
correntes  espiritualistas  da  fase  socrática,  são  contemporâneos  dos  eleáticos  e  dos 
pitagóricos,  que construíram a metafísica  grega,  cuja  essência  é  o Ser,  ou  “aquele 
que é”, segundo a definição de Parmênides. 
As  filosofias  atômicas  de  Leucipo  e  Demócrito  estão  muito  longe  do 
materialismo  atual:  são  intuitivas  e  racionais.  Os  sofistas  gregos  são  “homens  de 
razão”,  que  procuram  pensar  de  maneira  utilitária  e  acabam  por  se  perder  na 
abstração  das  palavras.  Os  materialistas  constituem,  na  História  da  Filosofia,correntes  modernas  de  pensamento.  O  que  encontramos  na  antiguidade  é  uma 
posição  objetivista,  diante  dos  problemas  do mundo  e  da  vida, mas  assim mesmo 
impregnada  de  metafísica.  Harald  Hoffding,  por  exemplo,  estabelece  a  seguinte 
diferença:  considera  “materialismo  primitivo”  o  dos  filósofos  antigos,  em
127 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
comparação  com  o  materialismo  moderno.  André  Lalande  acentua  a  natureza 
metafísica  do  chamado materialismo  antigo. A própria  concepção  de matéria, nos 
gregos, é de natureza ontológica, como também acentua Lalande, advertindo ainda 
que devemos ter em conta as modificações semânticas, ao enfrentar a “tendência à 
sistematização” do pensamento filosófico. 
A  tradição  filosófica  é,  portanto,  espiritualista.  As  grandes  questões  da 
Filosofia são metafísicas e não físicas. O materialismo surge com o desenvolvimento 
do pensamento científico, e isso se explica pela natureza das ciências, que nada mais 
são  do  que  a  racionalização  das  técnicas. Voltadas  para  o  domínio  da matéria,  as 
ciências fizeram o pensamento descer da metafísica para a física. Daí a explicação 
de Augusto Comte, de que “o materialismo é a doutrina que explica o superior pelo 
inferior”. 
O  Espiritismo,  no  seu  aspecto  filosófico,  enquadra­se  rigorosamente  na 
tradição filosófica. É uma filosofia do espírito, que parte da essência espiritual para 
explicar  a  existência  material.  Por  isso,  Kardec  citou  Platão  como  precursor  do 
Espiritismo:  o  mito  da  caverna,  da  filosofia  platônica,  é  uma  alegoria  espírita, 
mostrando  a  natureza  efêmera  e  irreal  da matéria,  em  face  da  brilhante  realidade 
espiritual.  Maurice  Blondel  explica  que  o  termo  Espiritualismo  só  apareceu  no 
século  XVII,  empregado  pelos  teólogos,  para  designar  o  falso  misticismo,  os 
exageros de espiritualidade ou religiosidade. Era um termo pejorativo. Esse fato nos 
mostra  a  natureza  espiritual  da  tradição  filosófica,  onde  jamais  aparece  a 
discriminação  moderna  de  espiritualistas  e  materialistas.  Blondel  acentua  que  o 
termo  Espiritualista  passou  a  ser  utilizado,  na  época  moderna,  por  “pessoas  que 
mantêm comércio com os espíritos e não se contentam de ser espíritas, talvez porque 
o título de Espiritualista tem sido melhor empregado”. 
A verdade, porém, não é essa. A aplicação do termo Espiritualista tem sido 
apenas um equívoco, pois o termo Espiritismo só apareceu com Kardec, em meados 
do  século  XIX.  Anteriormente  a  Kardec,  o  uso  do  termo  Espiritualista  era 
obrigatório. É natural  que,  posteriormente,  os  ingleses  e  os  norte­americanos,  que 
não adotaram a obra de Kardec, continuassem a utilizar­se da velha e  insuficiente 
designação. 
2 – O problema do conhecimento 
Já  vimos,  nos  capítulos  anteriores,  que  o  problema  do  conhecimento  se 
apresenta  como  um  processo  histórico,  que  se  desenvolve  através  de  fases 
sucessivas, precisamente definidas. O que dissemos da  tradição  filosófica  reafirma 
essa tese. Ao estudar os horizontes culturais, vimos que o conhecimento positivo só
128 – J . Herculano Pires 
se  tornou  possível  com  a  superação  das  fases  anímica,  mítica  e  religiosa,  no 
momento em que as ciências começaram a desenvolver­se. 
Kardec explica, no capítulo primeiro de A GÊNESE, que  o Espiritismo só 
poderia  aparecer  depois  do  desenvolvimento  das  ciências. Que  diríamos  disso,  ao 
lembrar que as ciências,  segundo vimos acima, deram origem ao materialismo? A 
Filosofia  Espírita  é  dialética:  explica  a  realidade  através  das  suas  próprias 
contradições.  O  aparecimento  das  ciências  e  seu  desenvolvimento  colocaram  o 
homem  diante  da  realidade  objetiva.  Essa  realidade  afugentou  os  fantasmas  da 
superstição, mas ao mesmo tempo facilitou a compreensão do fenômeno mediúnico. 
Se, por um lado, as pessoas mais apegadas ao plano físico negaram a existência de 
vida além da matéria, por outro lado, as pessoas mais desapegadas foram capazes de 
interpretar  a  mediunidade  de  maneira  racional.  A  consequência  apresentou­se  de 
maneira  dupla:  surgiu  o  materialismo,  mas  surgiu  também  o  espiritualismo 
científico. 
O  Espiritismo  se  apresenta,  assim,  como  um  processo  gnoseológico 
especial,  ou  seja,  como  uma  forma  especial  do  processo  do  conhecimento. 
Superadas  as  fases  anteriores  da  evolução,  o  homem  se  torna  apto  a  captar  a 
realidade de maneira mais intensa. Desapareceram os embaraços da superstição, e o 
campo visual  do  homem  se  tomou mais  claro  e mais  amplo. Liberto  do  temor  de 
Deus  e  do  Diabo,  o  homem  se  reconhece  a  si  mesmo  como  uma  inteligência 
autônoma, atuante na matéria. Ao reconhecer isso, percebe que a dualidade espírito­ 
matéria, anteriormente percebida de maneira confusa, esclarece­se. 
A inteligência humana é um poder atuante, que supera também o mistério 
da morte. O desenvolvimento e o treinamento da razão através da Idade Média, e a 
consequente eclosão do racionalismo na Renascença, liberto da ganga das emoções 
primitivas  e  das  elaborações  teológicas  do  misticismo,  conferem  ao  homem  a 
maturidade suficiente para enfrentar a realidade como ela é. Os fenômenos anímicos 
e  mediúnicos  do  passado  podem  agora  ser  examinados  de  maneira  racional.  A 
captação da realidade já não é mais emocional. As categorias da razão definiram­se 
e aguçaram­se, permitindo uma captação direta do “aqui” e do “agora” existenciais, 
sem a mescla das sensações  confusas e das emoções  turbilhonantes do passado. A 
razão,  dominando  o  caos  das  sensações  e  das  emoções,  equaciona  de  novo  a 
realidade psicofísica: põe o psiquismo humano e a realidade exterior sobre a mesa, 
para uma avaliação direta. Surge, em consequência dessa nova forma de captação e 
de julgamento do real, uma nova concepção do mundo. Essa concepção é ao mesmo 
tempo  crítica  e  genética.  Do  ponto  de  vista  crítico,  ela  julga  o  passado,  a  antiga 
concepção  e  a  antiga  posição  do  homem  diante  do  mundo.  Do  ponto  de  vista 
genético, ela constrói uma nova concepção e uma nova posição. Lembrando ainda a 
lei dos três Estados, de Augusto Comte, poderemos dizer que a nova concepção se 
apresenta  como  uma  síntese  da  oposição  dialética  entre  o  “estado  teológico”  e  o
129 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
“estado positivo”. Por isso mesmo é que a dualidade de consequências, a que acima 
nos referimos, teria fatalmente de ocorrer. 
Ao sair do “estado teológico” e entrar no "estado positivo", o homem tinha 
fatalmente  de  elaborar  a  sua  concepção  positiva  do mundo,  ou  seja,  a  concepção 
materialista.  No  mesmo  instante,  porém,  esta  concepção  surgia  como  oposição  à 
concepção  teológica.  O  processo  dialético  se  completa  na  síntese  espírita:  a 
concepção  espírita  do  mundo  reúne  o  misticismo  teológico  e  o  cientificismo 
positivo. Daí a sua natureza de espiritualismo­científico. Julgar o mundo é avaliá­lo. 
A concepção espírita equivale, portanto, a uma reavaliação do mundo. Diante dela, 
os  antigos  valores  estão  peremptos,  superados.  Também  para  a  concepção 
materialista,  os  antigos  valores  tinham  perecido.  O  materialismo  substituíra  os 
valores espirituais e morais pelos valores utilitários. Mas o Espiritismo reformula os 
dois campos e modifica a posição de ambos. Os valores espirituais são reconduzidos 
ao primado do espírito, mas os valores morais e materiais não são desprezados ou 
subestimados, como na antiga Mística. 
Há  um novo  critério  valorativo:  a  lei  de  evolução. Este  critério  substitui, 
por  um  processo  de  síntese  dialética,  os  dois  critérios  que  anteriormente  se 
opunham:  o  salvacionista  e  o  pragmático.  A  salvação  não  está  mais  na  fuga  ao 
utilitário, mas no bom uso do utilitário, em favor da evolução. A axiologiaespírita 
não é antropológica. Sua escala de valores não funciona em relação ao homem, mas 
à realidade universal. É o que vemos, por exemplo, nesta afirmação de Kardec, em 
seu comentário ao item 236 de O LIVRO DOS ESPÍRITOS: “Nada existe de inútil na 
Natureza; cada coisa tem a sua finalidade, a sua destinação”. As coisas valem, não 
em referência aos interesses passageiros do homem, mas em referência ao processo 
cósmico  de  evolução,  dentro  do  qual  o  homem  se  encontra  como  uma  forma 
passageira do Espírito. Este é imortal, e por isso mesmo sabe que as circunstâncias 
não  podem  determinar  uma  escala  real  de  valores.  O  próprio  homem  vale  pelo 
quanto evolui, e não pelo que é ou pelo que aparenta ser, num dado momento. Essa 
nova axiologia tem suas consequências no plano da cosmologia e da cosmogonia. 
Na  cosmologia,  Kardec  afirma:  “Todas  as  leis  da  Natureza  são  leis 
divinas”. (cap. I de O LIVRO DOS ESPÍRITOS) A estrutura de leis naturais do cosmos 
não  se  restringe  ao  plano  físico,  porque  é  uma  estrutura  global,  que  abrange, 
segundo os termos da moderna ontologia do objeto, todas as regiões ontológicas. A 
cosmologia espírita é íntegra, e não dualista. É um todo, em que não há sobrenatural 
e  natural,  pois  o  cosmos  é  um processo  único. Na  cosmogonia  é  que  vai  surgir  o 
dualismo, porque o cosmos aparece como criação. 
Temos então a dualidade Criador e Criatura. Mas essa dualidade, mesmo no 
plano cosmogônico, que pertence à religião espírita, explica­se como causa e efeito, 
numa espécie de polaridade, que, segundo advertem os Espíritos, nossa inteligência 
atual não consegue apreender em sua verdadeira natureza. Não obstante, a evolução
130 – J . Herculano Pires 
nos assegura, desde já, que a compreensão se tornará possível no futuro, pois é dado 
ao homem saber, na proporção em que ele cresce espiritualmente. Chegamos assim a 
um aspecto  da  teoria  espírita  do  conhecimento  que  é  de  fundamental  importância, 
porque  resolve  naturalmente  o  velho  problema  filosófico  dos  limites  do  saber,  e 
resolve até mesmo o impasse a que, nesse terreno, chegou o pensamento kantiano. 
Para a Filosofia Espírita, não há zonas interditas ao conhecimento humano. O saber 
metafísico é tão possível quanto o racional. A própria razão transcende os limites de 
suas categorias, na proporção em que novas experiências lhe vão sendo acessíveis. O 
homem é um processo, e na proporção em que se desenvolve, supera­se a si mesmo, 
superando as suas limitações. A interdição às zonas superiores do conhecimento não 
decorre de nenhuma determinação misteriosa, e nem mesmo de qualquer espécie de 
incapacidade, mas apenas da falta de crescimento, de desenvolvimento, de evolução 
e maturação do homem. 
O  problema  das  origens  é,  por  enquanto,  de  ordem  religiosa,  ou  como 
Kardec prefere dizer: moral. Deus criou o mundo, mas como e por que, ainda não o 
podemos saber. O que sabemos,  sem dúvida possível, é que o mundo existe e nós 
existimos nele. A Filosofia Espírita parte dessa realidade existencial, para investigar 
as  suas  dimensões,  que  não  se  restringem ao  simples  existir, mas  se  ampliam no 
evoluir, no vir­a­ser. O que sabemos é que o homem, como todas as coisas, evolui, e 
que o destino do homem é transcender­se a si mesmo. 
3 – Determinismo e livre­arbítrio 
Colocados  assim  os  termos  da  equação  filosófica,  enfrentamo­nos 
novamente com o velho problema do determinismo e do  livre­arbítrio. Admitida a 
existência de Deus, como “inteligência suprema e causa primária de todas as coisas” 
— admitida  essa  existência  com a mesma  evidência  com  que  ela  se  apresenta no 
hegelianismo e no cartesianismo — e admitida, da mesma maneira, a existência de 
urna lei geral de evolução, a que tudo se submete, inclusive o homem, resta saber se 
estamos ou não diante da estrutura rígida do pensamento espinosiano. 
Há  liberdade  para  esse  homem  que  amadurece,  que  tem  de  amadurecer, 
queira  ou  não  queira,  no  processo  evolutivo?  À  primeira  vista,  a  liberdade  é 
impossível. O Espiritismo parece ter dito antes do poeta Rainer Maria Rilke: “Deus 
nos  faz  amadurecer,  mesmo  que  não  o  queiramos”.  E  realmente  o  disse.  Mas 
acrescentou: “Sem o  livre­arbítrio, o homem seria urna máquina”.  (Item 843 de O 
LIVRO DOS ESPÍRITOS.) 
O  homem  é  livre  de  pensar,  querer  e  agir, mas  sua  liberdade  é  limitada 
pelas  suas  próprias  condições  de  ser.  O  simples  fato  de  existir  é  uma  condição. 
Dentro dessa condição, porém, o homem é livre: pode ser útil ou inútil, bom ou mau,
131 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
segundo  a  sua  própria  determinação. Existe,  pois,  uma dialética  do  determinismo, 
que é ao mesmo tempo a dialética da liberdade. Podemos colocar assim o problema: 
há um determinismo subjetivo, que é o da vontade do homem, e um determinismo 
objetivo,  que  é  o  das  condições  de  sua  própria  existência.  Da  oposição  constante 
dessas duas vontades, a do homem e a das coisas, resulta a liberdade­relativa da sua 
possibilidade de opção e ação. O item 844 de O LIVRO DOS ESPÍRITOS nos propõe 
essa tese de maneira simples, ao tratar do desenvolvimento infantil: “Nas primeiras 
fases da vida a liberdade é quase nula; ela se desenvolve e muda de objeto com as 
faculdades. Estando os pensamentos da criança em relação com as necessidades da 
sua idade, ela aplica o seu livre­arbítrio às coisas que lhe são necessárias”. Isso nos 
mostra que o homem não amadurece como o fruto, mas como espírito. Na proporção 
em que a criança amadurece, ela deixa de ser criança, para tornar­se adulto. Assim, o 
homem,  na  proporção  em  que  amadurece,  deixa  de  ser  homem —  essa  criatura 
humana, contraditória e falível, enleada nas ilusões da vida física — para tornar­se 
Espírito. A morte, em vez de ser a frustração do existencialismo sartreano, ou o fim 
da  vida,  ou  ainda  o  momento  de  mergulhar  no  desconhecido,  de  toda  a  tradição 
religiosa, apresenta­se como o momento de maturação e de alforria. Morrer, como o 
disse  Victor  Hugo,  não  é  morrer,  mas  simplesmente  mudar­se.  A  mudança  do 
homem,  entretanto,  não  é  completa.  Ele  não  deixa  de  ser  o  que  é.  Sua  essência 
permanece  a  mesma.  Perdendo  a  condição  existencial  terrena,  ele  passa 
imediatamente  para  a  condição  existencial  psíquica. Nessa outra  condição,  terá  de 
enfrentar  o  mesmo  processo  de  oposição  dialética:  de  um  lado,  o  determinismo 
subjetivo da sua vontade, do seu próprio querer; de outro, o determinismo objetivo 
das circunstâncias. Nestas circunstâncias, porém, avultam as consequências de seus 
atos na vida física. O que ele fez, a maneira por que pensou, quis, sentiu e agiu, toda 
a trama das suas próprias ações, agora o enleia. 
Como se vê, sua liberdade ampliou­se, pois é ele quem agora se limita no 
exterior. As circunstâncias em que se encontra foram determinadas pela sua própria 
vontade.  Isso  lhe  desperta  a  compreensão  de  sua  capacidade  de  agir,  e 
consequentemente  de  sua  responsabilidade.  É  então  que  ele  deseja  voltar  à 
existência física, ao mundo em que gerou o seu próprio mundo espiritual, a fim de 
reformar a sua obra. E já então, ao voltar, aqui mesmo, no mundo material, ele não 
vem  enfrentar  apenas  a  vontade  estranha  das  coisas,  mas  também  a  sua  própria 
vontade, representada nas circunstâncias de uma vida apropriada às necessidades do 
seu posterior, desenvolvimento. É assim que, pouco a pouco, o livre­arbítrio supera 
o  determinismo.  A  liberdade  de  se  determinar  a  si  próprio  confere  ao  homem  o 
poder de criar. Ele cria o seu próprio mundo, as suas formas de vida, o seu destino. 
A princípio, o faz de maneira quase inconsciente, como a criança que se queima na 
chama da vela, por querer pegá­la. Mas, depois, as experiências o acordam para a 
plenitude  consciencial  de  que  ele  deve  desfrutar,  segundoo  seu  destino  natural.
132 – J . Herculano Pires 
Porque  o  destino  do  homem,  no  sentido  geral  de  sua  posição  no  Universo,  é  ser 
deus.  Não  no  sentido  de  igualar­se  à  Inteligência  Suprema,  mas  de  atingir  a 
compreensão  dessa  Inteligência,  integrar­se  no  seu  plano  de  vida  e  pensamento, 
participar  de  sua  plenitude.  Assim,  podemos  dizer  que  o  homem  constrói  o  seu 
destino no plano do contingente, mas no plano do transcendente o seu destino já está 
determinado pelas leis universais. 
Mas será apenas o homem que tem esse destino transcendente? E os demais 
seres da Criação, para e por que existem? 
O Espiritismo nos reponde que o Universo é constituído de dois elementos 
fundamentais, as duas substâncias cartesianas — a  rés cogitans e a  rés extensa — 
ou,  em  termos  espíritas:  o  elemento  inteligente  e  o  elemento material.  Ainda  em 
termos  cartesianos, mas  já  no  plano  do  pensamento  de Espinosa,  vemos  que  essa 
dualidade  se  resolve  numa  espécie  de  monismo  tridimensional:  inteligência  e 
matéria decorrem de uma fonte única, a que estão subordinadas, e que é Deus. Por 
isso que Deus é inteligência e causa. Como causa, o é de todas as coisas. Deus não é 
assim  uma  concepção  antropomórfica, mas  a  hipóstase  de  Plotino.  O  Universo  é 
hipostático: primeiro, a hipóstase divina, que é Deus; depois, a hipóstase inteligente, 
que  é  o  Espírito;  e,  por  fim,  a  hipóstase  material,  que  é  a  Matéria.  Essas  três 
hipóstases  não  estão,  porém,  separadas,  como  as  da  concepção  plotiniana. 
Constituem apenas aspectos de um mesmo  todo. E o que é mais curioso, aspectos 
interpenetrados. É assim que Deus está em tudo e tudo está em Deus, que a matéria 
existe desde o início e que espírito e matéria estão sempre relacionados. 
Como na doutrina de forma e matéria, em Aristóteles, o espírito informa a 
matéria, e esta, por sua vez, manifesta o espírito, e toda essa interação se realiza em 
Deus, porque pela sua vontade e sob poder constante de suas leis. O fluido universal, 
na mecânica cósmica, e o fluido vital, na mecânica biológica, são resultado dialético 
e ao mesmo tempo o elemento de aglutinação de espírito e matéria. Assim, todos os 
seres,  desde  a  região  ontológica  mineral —  segundo  a  terminologia  da  moderna 
ontologia — até a região vegetal, a animal e a hominal, estão  todos  integrados no 
mesmo processo e submetidos às mesmas leis e ao mesmo destino. É o que vemos, 
por  exemplo,  no  final  da  resposta  do  item  540  de O  LIVRO DOS  ESPÍRITOS:  “É 
assim que tudo se encadeia na Natureza, desde o átomo primitivo até o arcanjo, pois 
ele mesmo começou pelo átomo. Admirável  lei de harmonia, que o  vosso espírito 
limitado ainda não pode abranger no seu conjunto!” 
Bastaria perguntar como se explica a finalidade desse imenso processo. Em 
que  resultaria, afinal,  esse  desenvolvimento  constante  de  tudo,  de  todas  as  coisas, 
nos rumos da perfeição e da inteligência? A pergunta, como responderia Gonzague 
Truc,  não  pode  ser  respondida  pela  Filosofia,  porque  pertence  à  Mística.  Mas  o 
Espiritismo,  que  admite  o  desenvolvimento  da  Filosofia  até  o  plano  da  antiga 
Mística  e  além  dela  —  uma  vez  que  admite  o  desenvolvimento  ilimitado  da
133 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
capacidade  humana  de  compreender —  responde  com  a  nossa  incapacidade  atual 
para  abarcar  a  complexidade  e  as  consequências  do  processo  cósmico,  dentro  do 
qual  nos  encontramos.  Do  nosso  ponto  de  vista  atual,  demasiado  restrito, 
condicionado pela estreiteza de nossas mentes, em funcionamento na aparelhagem 
de cérebros animais, é  impossível a compreensão daquilo que poderíamos chamar, 
nos  termos  da  filosofia  aristotélica,  as  causas  finais.  Quando  saímos  do  plano  do 
pensamento, para examinar o problema à luz das nossas possibilidades de expressão 
verbal,  maior  ainda  se  revela  a  nossa  incapacidade,  diante  de  suas  dimensões 
conceptuais. 
As  deficiências  da  linguagem  humana,  assinaladas  por  Kardec  na 
“Introdução  ao  Estudo  da  Doutrina  Espírita”,  mostram  quanto  seria  vã  a  nossa 
pretensão  de  investigar  o  princípio  e  o  fim  das  coisas.  Mas  ao  mesmo  tempo,  o 
Espiritismo nos  acena  com as  possibilidades  futuras, mostrando­nos  como,  a  cada 
giro  da  Terra  sobre  si  mesma,  o  nosso  avanço  no  tempo  equivale  ao 
desenvolvimento psíquico. Compete a cada um de nós, e a todos nós em conjunto, 
superarmos  as  nossas  limitações,  pelo  nosso  desenvolvimento  próprio  e  pelo 
desenvolvimento da Civilização. 
4 – O homem no mundo 
A  unidade  essencial  das  leis  que  regem  o  mundo  oferece  à  cosmovisão 
espírita  uma  integridade  absoluta.  O  cosmos  é  uma  unidade  orgânica.  O  homem, 
integrado  nessa  unidade,  participando  intimamente  dela,  deixa  de  ser  a  oposição 
espiritual ao mundo material, que as formas clássicas de religião e de  filosofia nos 
apresentaram. 
O homem está no mundo como parte do mundo. Sua posição de “projecto”, 
descoberta pelo existencialismo, coincide com a posição do próprio mundo em que 
se integra. O “aqui” e o “agora” assumem importância e significação maiores que as 
das concepções existenciais, porque o “aqui” e o “agora” espíritas não estão apenas 
carregados de passado  e prenhes do presente, mas  representam unidades sintéticas 
de tempo e espaço. O lugar e o momento que passam equivale ao point­d'optique da 
expressão  feliz  de Victor Hugo,  no  Prefácio  de  Cromwell:  é  aí,  nesse  pequeno  e 
translúcido espelho, que se refletem o passado, o presente e o futuro não somente do 
homem, mas de todo o cosmos. Deus fala ao homem através de suas leis. Estas, que 
são  eternas,  representam  a  presença  do  imutável  no  mutável,  da  eternidade  na 
transitoriedade. 
O momento que passa não é uma ilha no tempo, nem um ponto no espaço, 
mas um fluir: o fluir da duração. Se o homem o compreender e o sentir, estará pleno 
de  felicidade.  É  o  que  vemos  no  item  614  de O  LIVRO  DOS  ESPÍRITOS:  “A  lei
134 – J . Herculano Pires 
natural  é  a  lei  de  Deus;  a  única  verdadeira  para  a  felicidade  do  homem.  Ela  lhe 
indica  o  que  ele  deve  fazer  ou  não  fazer,  e  ele  só  se  torna  infeliz  porque  dela  se 
afasta”. E no  item 617 esclarece: “Todas as  leis da Natureza são  leis divinas, pois 
Deus é  o autor de  todas as coisas. O sábio estuda as  leis da matéria; o homem de 
bem, as da alma, e as segue”. 
A  razão  dos  sofrimentos  e  da  infelicidade,  do  desespero  humano,  é 
simplesmente a violação das leis. Os espíritos foram criados “simples e ignorantes, 
ou seja, sem conhecimento” (item 114 — O LIVRO DOS ESPÍRITOS) e se destinam à 
perfeição,  onde  atingirão  “a  felicidade  eterna,  sem  perturbações”.  Se  todos 
seguissem  naturalmente  as  leis  de Deus,  atingiriam  a  perfeição  sem  dificuldades. 
Mas há um momento de queda. Não o de Adão e Eva no Paraíso, mas o de cada um 
diante  de  si  mesmo,  no  processo  natural  do  desenvolvimento.  A  aquisição  do 
conhecimento gera perturbações. Uns se deixam levar pelas fascinações exteriores e 
pelo  incitamento de  outros, desligando­se das  leis naturais e criando suas próprias 
leis, as da conduta artificial. “Esta é a grande figura da queda do homem e do pecado 
original: uns cederam à tentação e outros a resistiram”, diz o item 122 de O LIVRO 
DOS ESPÍRITOS. 
Isso, entretanto, não quer dizer que uns se perderam e outros se salvaram. O 
próprio  desvio  das  leis naturais  é  uma  experiência  proveitosa.  Porque  os Espíritos 
devem  conseguir  a  plenitude  de  consciência  e.  conquistar  a  sabedoria,  que  só  é 
possível através do uso do livre­arbítrio. Por mais que um Espírito se desvie, um dia 
chegará em que ele terá de voltar à integração nas leis naturais. Esse é o momento da 
“religião”, da volta do Espírito à integração cósmica.O item 126 de O LIVRO DOS 
ESPÍRITOS explica: “Deus contempla os extraviados com o mesmo olhar, e os ama a 
todos do mesmo modo”. Por outro lado, os que seguiram as leis não escaparam ao 
processo evolutivo. Apenas, nele integrados, podem segui­lo tranquilamente, em vez 
de lutarem contra a correnteza e sofrerem as consequências da luta. 
O homem no mundo é, portanto, um Espírito em evolução. Bom ou mau, 
virtuoso ou criminoso, pecador ou santo, ele está “agora” e “aqui” para desenvolver­ 
se, para realizar­se. Qual o tipo humano ou divino que lhe pode servir de exemplo? 
O item 625 responde: “Vede Jesus”, e Kardec explica: “Jesus é para o homem o tipo 
da perfeição moral a que pode aspirar a humanidade na Terra”. Por que Jesus e não 
Buda?  Porque  o  primeiro  ensina  ao  homem  viver  plenamente  no  “aqui”  e  no 
“agora”, enfrentar o mundo em vez de fugir a ele, realizar­se no presente em vez de 
protelar  a  realização  enclausurando­se  e  furtando­se  às  experiências  da  vida.  O 
homem está no mundo para vivê­lo. Ë a  lei. Só através dessa vivência ele atingirá 
Deus. Fugir ao mundo para refugiar­se na ilusão contemplativa é desertar da batalha 
necessária. 
As  religiões  são  formas  de  reintegração  do  homem  nas  leis  naturais, 
instituições  sociais  em  que  se  condensam  as  intuições  espirituais  que  indicam  ao
135 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
homem o caminho de volta a Deus. Sistemas pedagógicos, destinados à reeducação 
das  coletividades  transviadas.  Não  obstante,  esses  mesmos  sistemas  sofrem  as 
influências negativas dos Espíritos que se afastaram das leis. Por isso, eles também 
evoluem. As  formas  religiosas  se  sucedem no  tempo, até  o momento  em que  elas 
mesmas  deverão  desaparecer,  cedendo  lugar  à  religião  pura,  sem  templos  nem 
formalismos, à religião em espírito e verdade, que cada consciência professará por si 
mesma,  independente de sistemas dogmáticos e  organizações sacerdotais. A  lei de 
adoração, lei natural, será o fundamento dessa religião assistemática, que o homem 
do  futuro  instituirá na Terra. O  trabalho  é  lei  natural  (item 674),  e  através  dele  o 
homem progride.  Fugir ao  trabalho  é  transgredir  a  lei. Trabalhar  é modificar­se  e 
modificar o mundo, estabelecer a interação necessária para o progresso geral. 
A lei de igualdade e a lei de liberdade, unindo os homens, deverão conduzi­ 
los à prática da fraternidade. Esta se traduzirá plenamente na lei de justiça, amor e 
caridade,  que  estabelecerá  na  Terra  um  mundo  superior  ao  de  injustiça,  ódio  e 
egoísmo, em que hoje vivemos. “O amor e a caridade — ensina Kardec (Comentário 
ao  item 886) —  são  o  complemento  da  lei  de  justiça,  porque  amar  ao  próximo  é 
fazer­lhe todo o bem possível, que desejaríamos que nos fosse feito. Tal é o sentido 
das palavras de Jesus: amai­vos uns aos outros”. 
A Filosofia Espírita desemboca, assim, na Moral Espírita, que não é outra 
senão  a  própria  moral  evangélica,  racionalmente  explicada,  inteiramente 
desembaraçada  das  interpretações  teológicas  e místicas.  Essa moral  não  é  apenas 
individual, mas também coletiva. O bem reinará sobre a Terra, e afirma o item 1.019 
de O  LIVRO  DOS  ESPÍRITOS,  prevendo  o  advento  de  um  novo  mundo,  que  será 
construído por uma humanidade regenerada. Caminhamos para lá, através de todas 
as dificuldades e vicissitudes do presente. E é no presente que temos a oportunidade 
de preparar o futuro. A moral espírita se traduz, assim, na prática incessante do bem, 
única maneira de vivermos bem na atualidade e criarmos o bem para o futuro.
136 – J . Herculano Pires 
CAPÍTULO IV 
RELIGIÃO EM 
ESPÍRITO E VERDADE 
1 – O Espiritismo e as religiões 
A  posição  do  Espiritismo,  em  face  das  religiões,  foi  definida  desde  o 
princípio, ou seja, desde a publicação de O LIVRO DOS ESPÍRITOS. A terceira parte 
do livro tem o título de “Leis Morais”, e começa pela afirmação: “A lei natural é a 
lei de Deus”, que equivale ao reconhecimento da unidade divina de todas as leis que 
regem o Universo. Note­se que Kardec e  os Espíritos  referem­se à  lei de Deus no 
singular,  como  lei  única,  e  nela  incluem  as  leis morais,  no  plural.  Assim,  as  leis 
morais são espécies de um gênero, que é a lei natural. Mas como esta não é a lei da 
Natureza,  e  sim  a  lei  de  Deus,  não  estamos  diante  de  uma  concepção  monista 
natural, mas de uma concepção monista de ordem ética. 
As  religiões,  como  fenômenos  éticos,  formas  de  educação  moral  das 
coletividades humanas, nada mais  são do que processos diferenciados,  segundo as 
necessidades circunstanciais e temporais da evolução, pelos quais as leis morais se 
manifestam no plano social. Vejamos a explicação de Kardec, no comentário que fez 
ao  item 617 de O LIVRO DOS ESPÍRITOS:  “Entre as  leis divinas, umas regulam o 
movimento  e  as  relações  da  matéria  bruta:  essas  são  as  leis  físicas;  seu  estudo 
pertence ao domínio da ciência. As outras concernem especialmente ao homem em 
si mesmo, e às suas relações com Deus e com os seus semelhantes. Compreendem as 
regras da vida do corpo, tanto quanto as da vida da alma: essas são as leis morais”. 
Dessa maneira,  o  Espiritismo nos  oferece  a  visão  global  do  Universo,  num  vasto 
sistema de relações, que unem todas as coisas, desde a matéria bruta até à divindade, 
ou seja, desde o plano material até o espiritual. 
As  religiões,  nesse  amplo  contexto,  são  como  fragmentações  temporárias 
do  processo  único  da  evolução  humana.  Essa  compreensão  histórica  permite  ao 
Espiritismo  encarar  as  religiões,  não  como  adversárias,  mas  como  formas 
progressivas  do  esclarecimento  espiritual do  homem, que  atinge na atualidade  um 
momento crítico, de passagem para um plano superior. Daí a afirmação de Kardec, 
feita em O LIVRO DOS ESPÍRITOS e repetida em outras obras, particularmente em O 
QUE É O ESPIRITISMO, de que este, na verdade, é o maior auxiliar das religiões. 
Auxiliar em que sentido?
137 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
Primeiro,  no  sentido  de  fornecer  às  religiões,  entrincheiradas  em  seus 
dogmas de fé, as armas racionais de que necessitam, para enfrentar o racionalismo 
materialista,  e  especialmente  as  armas  experimentais,  com  que  sustentar  os  seus 
princípios  espirituais diante  das  ciências. Depois, no  sentido  de  que  o Espiritismo 
não é nem pretende ser uma religião social, pelo que não disputa um lugar entre as 
igrejas e as seitas, mas quer apenas ajudar as religiões a completarem a sua obra de 
espiritualização  do  mundo.  A  finalidade  das  religiões  é  arrancar  o  homem  da 
animalidade  e  levá­lo  à  moralidade.  O  Espiritismo  vem  contribuir  para  que  essa 
finalidade  seja  atingida.  Nisto  se  repete  e  se  confirma  o  que  o  Cristo  declarou,  a 
propósito de sua própria missão, ao dizer que não vinha revogar a lei e os profetas, 
mas dar­lhes cumprimento. 
Como  desenvolvimento  natural  do  Cristianismo,  o  Espiritismo  prossegue 
nesse mesmo rumo. Sua finalidade não é combater, contrariar, negar. ou destruir as 
religiões, mas auxiliá­las. Para auxiliá­las, porém, não pode o Espiritismo endossar 
os  seus  erros,  o  seu  apego  aos  formalismos  religiosos,  a  sua  aderência  às 
circunstâncias.  Porque  tudo  isso  diminui  e  enfraquece  as  religiões,  expondo­as  ao 
perigo do  fracasso, diante das próprias  leis evolutivas, que  impulsionam o homem 
para além das suas convenções  circunstanciais. O Espiritismo, assim, não condena 
as religiões. Considera que todas elas  são boas — o que é  sempre contestado com 
violência pelo espírito de sectarismo — mas pretende que, para continuarem boas, 
não  estacionem  nos  estágios  inferiores,  já  superados  pela  evolução  'humana. 
Justamente por isso, o Espiritismo se apresenta, aos espíritos formalistas e sectários, 
como um adversário perigoso, que parece querer infiltrar­se nas estruturas religiosase  miná­las,  para  destruí­las.  Era  o  que  parecia  o  Cristianismo  primitivo,  para  os 
judeus,  gregos  e  romanos.  Não  obstante,  os  ensinos  de  Jesus  não  visavam  à 
destruição, mas ao esclarecimento e à libertação do pensamento religioso da época. 
Podem alegar  os  religiosos  atuais  que  os  espíritas  os  combatem, às  vezes 
com  violência.  O  mesmo  faziam  os  cristãos  primitivos,  em  relação  às  religiões 
antigas. Mas  essa  atitude  agressiva  não  decorre  dos  princípios  doutrinários,  e  sim 
das  circunstâncias  sociais  em que  se  encontram os  inovadores,  diante  da  tradição. 
Por  outro  lado,  é  preciso  considerar  que  a  agressividade  das  religiões  para  com o 
Espiritismo é uma constante histórica, determinada pela própria natureza social das 
religiões  organizadas  ou  positivas.  Nada  mais  compreensível  que  o  revide  dos 
espíritas, quando ainda não suficientemente integrados nos seus próprios princípios. 
No  capítulo  segundo da  terceira  parte  de O LIVRO DOS ESPÍRITOS,  item 
653,  temos  a  explicação  e  a  justificação  da  existência  das  religiões  formalistas. 
Kardec  estuda,  através  de  perguntas  aos  Espíritos,  a  lei  de  adoração,  que  é  o 
fundamento e a  razão de ser de  todo  o processo  religioso. Desse diálogo  resulta a 
posição  espírita  bem  definida:  “A  verdadeira  adoração  é  a  do  coração”.  Não 
obstante,  a  adoração  exterior,  através  do  culto  religioso,  por  mais  complicado  e
138 – J . Herculano Pires 
material que este se apresente, desde que praticada com sinceridade, corresponde a 
uma necessidade evolutiva dos espíritos a ela afeiçoados. Negar a esses Espíritos a 
possibilidade de praticarem a adoração exterior seria tão prejudicial, quanto admitir 
que  os  Espíritos  que  já  superaram  essa  fase  continuassem  apegados  a  cultos 
materiais. A cada qual, segundo as suas condições evolutivas. 
O princípio  da  tolerância  substitui,  portanto, no Espiritismo,  o  sistema de 
intolerância que marca estranhamente a tradição religiosa. As religiões, pregando o 
amor,  promoveram  a  discórdia.  Ainda  hoje  podemos  sentir  a  agressividade  do 
chamado espírito­religioso, na intolerância fanática das condenações religiosas. Por 
isso,  Kardec,  esclareceu,  em  O  EVANGELHO  SEGUNDO  O  ESPIRITISMO,  que  o 
princípio  religioso  da  doutrina  não  era  o  de  salvação  pela  fé,  e  nem mesmo  pela 
verdade, mas pela caridade. A fé é sempre interpretada de maneira particular, como 
a dogmática de determinada igreja a apresenta. A verdade é sempre condicionada às 
interpretações sectárias. Mas a caridade, no seu mais amplo sentido, como a fórmula 
do  amor  ao  próximo  ensinada  pelo Cristo,  supera  todas  as  limitações  formais.  A 
salvação espírita não está na adesão a princípios e sistemas, mas na prática do amor. 
2 – Panteísmo espírita 
Uma  das  acusações  constantemente  formuladas  ao  Espiritismo  pelos 
religiosos, e particularmente pelos teólogos, é a de panteísmo. Segundo afirmam, de 
modo  geral,  o  Espiritismo  seria  uma  concepção  materialista  do  mundo,  por 
confundir  o Criador  com a Criação.  Já  vimos  que  essa  acusação  é  infundada. Ao 
tratar  da  Filosofia  Espírita,  verificamos  que  a  cosmologia  e  a  cosmogonia 
doutrinárias não permitem essa confusão. Anteriormente, verificamos que o próprio 
Kardec  dedicou  um  capítulo  ao  problema,  em  O  LIVRO  DOS  ESPÍRITOS, 
esclarecendo  a  posição  do  Espiritismo. Não  obstante,  convém  analisarmos  alguns 
aspectos da questão, para melhor definirmos o nosso pensamento a respeito. 
Segundo  a  etimologia,  e  de  acordo  com  o  emprego  tradicional  do  termo, 
panteísmo  é  uma  concepção  monista  do  mundo,  que  pode  ser  traduzida  na 
expressão:  tudo  é Deus. Espinosa  foi  o  sistematizador  filosófico  dessa  concepção. 
Deus é a realidade única, da qual todas as coisas não são mais do que emanações. 
Mas  existe  o  chamado  panteísmo  materialista,  não  obstante  a  contradição  dos 
termos. Segundo a concepção de D'Holbach, por exemplo, a realidade primária é o 
Mundo,  e  Deus  é  a  suma  do  Mundo,  ou  seja,  o  resultado  do  conjunto  de  leis 
universais. Com razão se diz que não se trata propriamente de panteísmo, apesar do 
emprego tradicional da classificação. 
Essas  duas  formas  de  panteísmo  são  rejeitadas  pelo  Espiritismo.  Kardec 
argumenta,  no  comentário  ao  item  16  de  O  LIVRO  DOS  ESPÍRITOS,  que  não
139 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
sabemos tudo o que Deus é, “mas sabemos o que ele não pode ser”. Forma precisa 
de definir a posição espírita. Deus não pode ser confundido com o mundo, da mesma 
maneira por que um artista não pode ser confundido com as suas obras. Assim como 
as obras exprimem a inteligência e a intenção pessoal do artista, nas várias direções 
seguidas  pela  sua  inspiração,  as  obras  de Deus  o  revelam  ao  nosso  entendimento, 
mas não podemos confundi­las com o seu Autor. 
O Espiritismo, portanto, não pode ser considerado como nenhuma forma de 
panteísmo, no sentido absoluto que se dá ao termo. Apesar disso, podemos dizer que 
existe  uma  forma  de  panteísmo­espírita,  se  entendermos  a  palavra  em  sentido 
relativo. Essa  forma,  porém, não  é  privativa  do Espiritismo. Aparece  em  todas  as 
concepções  religiosas,  pois  todas  as  religiões  consideram universal  a  presença  de 
Deus, que se manifesta na natureza inteira e “está em todas as coisas”. É conhecida a 
afirmação do apóstolo Paulo, de que vivemos em Deus e nele nos movemos. Essa 
fórmula encontra correspondência no pensamento grego e no pensamento romano: o 
racionalismo dos primeiros e o juridismo dos segundos constituem sistemas de leis 
universais,  presididos  por  uma  inteligência  suprema.  Quanto  ao  judaísmo,  o 
providencialismo bíblico é uma forma ainda mais efetiva de panteísmo conceptual. 
Mas  fora  do  âmbito  da  tradição  ocidental  vamos  encontrar  a  mesma  concepção, 
tanto  nas  religiões  indianas,  quanto  na  própria  religião­filosófica  ou  civil  do 
confucionismo, bem como entre os egípcios, os mesopotâmicos e os persas. 
A presença universal de Deus é uma forma relativa de panteísmo, que nos 
mostra  o  Universo  em  relação  estreita  com  Deus,  a  Criação  ligada  ao  Criador. 
Mesmo  no  panteísmo  espinosiano,  é  necessário  compreendermos  o  panteísmo  de 
maneira  mais  conceptual  do  que  real,  ou  seja,  num  plano  antes  teórico  do  que 
prático. Porque Espinosa fazia a distinção entre o que chamava “natureza naturata”, 
ou material, e “natureza naturans”, ou inteligente. Deus, para ele, era esta última, o 
que  pode  ser  entendido,  do  ponto  de  vista  espírita,  como  uma  confusão  entre  o 
princípio­inteligente  e Deus.  Ou  seja,  Espinosa  confundiu  a  segunda  hipóstase  do 
Universo,  o  Espírito,  com  a  primeira,  que  é  Deus.  O  Espiritismo  não  faz  essa 
confusão, admitindo apenas a imanência de Deus no Universo, como consequência 
de sua própria transcendência. Não é fácil compreendermos esse processo, sem uma 
definição  dos  termos.  Mas  quando  procuramos  examiná­los,  tudo  se  torna  mais 
claro. Imanente é aquilo que está compreendido na própria natureza, como elemento 
intrínseco,  pertencente  a  sua  constituição  e  determinante  do  seu  destino.  Dessa 
maneira, o panteísmo tem sido considerado uma teoria da imanência de Deus. Não 
obstante,  a  própria  teologia  católica  considera  as  aspirações  religiosas  do  homem 
como  decorrência  da  imanência  de  Deus  na  alma.  E  o  Cristianismo  evangélico 
estabelece o princípio da imanência de Deus em nós mesmos. 
Como  poderíamos  entender,  assim,  a  imanência  daquilo  que  é 
transcendente, que está acima e além do mundo e dos homens? Este problema tem
140 – J . Herculano Pires 
provocado  grande  celeuma  no  campo  teológico,  mas  a  posição  espírita  é  de  tal 
maneira  clara,  que  a  podemoscompreender  sem  maiores  dificuldades.  Kardec  a 
colocou  em  termos  de  causa  e  efeito:  não  há  efeito  inteligente  sem  uma  causa 
inteligente.  Ora,  se  Deus  é  a  inteligência  suprema  e  causa  primária  de  todas  as 
coisas, a transcendência de Deus é a própria causa da sua imanência. Ou seja: Deus, 
como  criador,  está  presente  na  Criação,  através  de  suas  leis,  que  representam  ao 
mesmo tempo a ligação de todas as coisas ao seu poder e a possibilidade de elevação 
de  todas  as  coisas  à  sua  perfeição.  A  lei  de  evolução  explica  a  imanência,  como 
consequência lógica e necessária da transcendência. As disputas teológicas decorrem 
mais do formalismo em que o problema é colocado, do que das dificuldades lógicas 
ou filosóficas existente no mesmo. 
O  panteísmo­espírita  não  seria mais,  portanto,  do  que  a  consideração  da 
presença  de  Deus  em  todas  as  coisas,  através  de  suas  leis,  e  particularmente  na 
consciência humana. No item 626 de O LIVRO DOS ESPÍRITOS vemos a afirmação 
de que as leis divinas “estão escritas por toda parte”. Esse o motivo por que: “todos 
os homens que meditaram sobre a sabedoria puderam compreendê­las e ensiná­las”. 
Reafirma ainda esse item: “Estando as leis divinas escritas no livro da Natureza, o 
homem  pôde  conhecê­las  sempre  que  desejou  procurá­las.  Eis  porque  os  seus 
princípios foram proclamados em todos os tempos, pelos homens de bem, e também 
porque encontramos os seus elementos na doutrina moral de todos os povos saídos 
da  barbárie,  mas  incompletos,  ou  alterados  pela  ignorância  e  a  superstição”.  O 
relativismo panteísta está bem claro nesta proposição. 
A  presença  de  Deus,  e  portanto  a  sua  imanência,  não  se  restringe  à 
consciência humana, mas estende­se a toda a natureza. Todas as religiões admitem 
esse princípio, de uma ou de outra forma, principalmente quando pretendem oferecer 
as  provas  da  existência de Deus. O Espiritismo o  esclarece,  de maneira  simples  e 
precisa, retirando­o da névoa das discussões teológicas e colocando­o sob a luz dos 
princípios lógicos. Ainda neste terreno controvertido, como vemos, o Espiritismo se 
apresenta com todo o seu poder de esclarecimento. 
3 – Teologia espírita 
Falar de teologia espírita é escandalizar alguns setores doutrinários, que só 
compreendem  o  Espiritismo  como  filosofia  de  bases  científicas  e  consequências 
morais.  Mas  num  curso  de  introdução  doutrinária  não  podemos  fazer  concessões 
nesse  terreno.  A  palavra  teologia  tem  um  sentido  etimológico  e  usual  bastante 
conhecido  e  claro:  é  a  Ciência  de Deus,  ou,  numa  interpretação mais  humilde,  o 
estudo de Deus. 
Não  importa  que a  tradição  católica a  considere  como  a Ciência  de Deus 
revelada pelo Cristo e conservada pela Igreja. Lalande a define assim: “Ciência de
141 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
Deus, de seus atributos e de suas relações com o mundo e o homem”. Nessa acepção 
filosófica é que ela nos interessa, do ponto de vista espírita, e que dela não podemos 
prescindir, para um conhecimento geral da doutrina. 
Já vimos que O LIVRO DOS ESPÍRITOS começa pela definição de Deus, e 
portanto como um tratado teológico. Sua primeira pergunta é esta: “O que é Deus?” 
E a primeira resposta dada pelos Espíritos está formulada como, a pedra angular da 
teologia espírita: “Deus é a inteligência Suprema, causa primária de todas as coisas”. 
Todo  o  primeiro  capítulo  do  livro  básico  do Espiritismo  é  dedicado  ao  estudo  de 
Deus. Um capítulo teológico, portanto. Mas não ficamos nisso. A teologia espírita se 
estende por toda a codificação. E nem poderia ser de outra maneira, uma vez que o 
Espiritismo,  na  sua  condição  de  filosofia  espiritualista,  tem  por  fundamento  a 
existência de Deus e suas relações com o homem. Após a afirmação da existência, o 
LIVRO  DOS  ESPÍRITOS  trata  do  problema  dos  atributos  de  Deus.  A  seguir,  das 
relações de Deus  com o mundo e com os homens. Esse problema das relações vai 
ser amplamente desenvolvido por Kardec, não só na continuidade do  livro básico, 
mas também nas demais obras da Codificação. 
Há alguns livros escritos especialmente para esclarecer o assunto, como O 
EVANGELHO  SEGUNDO  O  ESPIRITISMO,  A  GÊNESE,  OS  MILAGRES  E  AS 
PREDIÇÕES  e  O  CÉU  E  O  INFERNO.  Livros  teológicos,  no  pleno  sentido  da 
definição de Lalande, que nos dão toda a estrutura de uma teologia racional, abrindo 
perspectivas para desenvolvimentos em várias direções: o  estudo da concepção de 
Deus  através  dos  tempos;  das  relações  dessa  concepção  com  a  moral;  do 
desenvolvimento  do  ateísmo  e  do  sentimento  religioso  no  mundo  moderno;  das 
possibilidades espíritas da compreensão de Deus  e do desenvolvimento da mística 
espírita,  ou  seja,  da  experiência  psicológica  da  prece  e  do  consequente 
desenvolvimento do sentimento de Deus entre os espíritas; dos atributos de Deus em 
relação com o processo evolutivo; e assim por diante. 
Vemos,  pela  simples  citação  dessas  possibilidades,  que  dois  problemas 
fundamentais da teologia clássica foram postos de lado: o da natureza de Deus e o 
da  Criação  do  Mundo.  Realmente,  esses  problemas  são  considerados  pelo 
Espiritismo  como  limítrofes  do  incognoscível.  Nesse  ponto,  aliás,  o  Espiritismo 
coincide  com  a  posição  de  Espinosa,  para  quem Deus  possuía  dois  atributos  que 
conhecemos:  o  espírito  e  a  matéria,  e  muitos  outros  que  escapam  às  nossas 
possibilidades de conhecimento. 
Mas  não  é  por  não  tratarmos  desses  problemas  que  podemos  negar  a 
existência  de  uma  teologia  espírita,  racional,  e  livre  do  espírito  de  sistema,  como 
afirmava Kardec,  a  respeito  da  filosofia  espírita. A  teologia  espírita  é,  portanto,  a 
parte da doutrina que trata de Deus, que procura estudá­lo, dentro das limitações da 
nossa  capacidade  cognitiva.  Começa  com  um  axioma:  a  existência  de Deus. Mas 
este  axioma  se  evidencia  de  maneira  matemática,  por  uma  sequência  lógica  que
142 – J . Herculano Pires 
podemos  seguir  nesta  afirmação:  “Deus  existe,  não  o  podeis  duvidar,  e  isso  é  o 
essencial”.  (Item  14  de  O  LIVRO  DOS  ESPÍRITOS)  Analisando  esta  assertiva, 
encontramos o seguinte: 
1°)  a  afirmação  pura  e  simples  de  Deus,  como  verdade  suprema,  que 
antecede a nossa razão e a ela se impõe; 
2º) a afirmação de um atributo de Deus, que é a sua existência, ou seja a sua 
imanência; 
3°) a afirmação de que não podemos duvidar dele e de sua existência, não 
porque estejamos proibidos de fazê­lo, mas porque há uma impossibilidade lógica de 
duvidar; 
4°) a afirmação de que “isso é o essencial”, ou seja, de que, no nosso estado 
atual de evolução, não precisamos de mais do que essa compreensão, que nos basta. 
Poderíamos  argumentar  que  essa  posição  teológica  é  absurda,  principalmente 
quando falamos de uma teologia racional. 
Partimos  de  um  dogma  de  fé,  que  se  impõe  à  nossa  consciência.  Não  se 
trata,  porém,  de  um  dogma  de  fé,  e  sim  de  um  axioma  matemático.  As  coisas 
evidentes se impõem pela sua própria evidência. Não podemos negar a existência de 
Deus, porque, como dizia Descartes, isso equivaleria a negar a existência do sol em 
nosso  sistema  planetário.  Muito  antes  dos  homens  saberem  o  que  era  o  sol,  não 
podiam negá­lo. E hoje mesmo continuamos cercados de evidências que escapam à 
nossa  inteligência. Apesar do  grande  avanço  das  ciências  da  vida, não  sabemos  o 
que é a vida. E todas as ciências partem sempre de axiomas, de evidências que lhes 
servem  de  base,  e  sobre  as  quais  constroem  os  seus  sistemas  racionais,  como  as 
religiões constroem a sua dogmática. 
A  posição  espírita,  portanto,  nada  tem  de  estranho.  Está  perfeitamente 
enquadrada  nos  limites  gerais  do  conhecimento  humano,  sujeita  aos  mesmos 
princípiosque regem o desenvolvimento das ciências, da filosofia e das religiões. A 
teologia espírita implica ainda a existência da revelação. Nas relações entre Deus e o 
homem existe  a possibilidade  do  diálogo. O homem pode  receber  informações  de 
Deus a respeito de problemas que a sua razão não alcança. É o que vemos no item 
20 de O LIVRO DOS ESPÍRITOS, quando Kardec pergunta se é possível a revelação 
de coisas que escapam à  investigação científica. Os Espíritos  respondem: “Sim, se 
Deus  o  julgar  útil,  pode  revelar  aquilo  que  a,  ciência não  consegue  apreender”. E 
Kardec comenta: “É através dessas  comunicações que  o homem recebe, dentro de 
certos  limites,  o  conhecimento  do  seu  passado  e  do  seu  destino  futuro”. Mas,  por 
outro  lado,  existe  a  revelação  humana,  aquela  que  não  é  uma  oferta  de  Deus  ao 
homem, mas uma conquista deste, através de sua evolução. “A ciência lhe foi dada 
para o seu adiantamento em todos os sentidos”, afirma o item 19, e Kardec reafirma 
em A  GÊNESE,  capítulo  primeiro,  essa  duplicidade  da  revelação,  considerada  do 
ponto de vista espírita.
143 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
Assim,  pela  sua  própria  natureza,  ao  mesmo  tempo  divina  e  humana,  a 
teologia espírita confirma a sua racionalidade. 
4 – Cristianismo e Espiritismo 
A  religião  espiritual  se  define  pela  superação  do  social.  Johann Heinrich 
Pestalozzi, mestre  de Kardec,  considerava  a  existência  de  três  tipos  de  religião:  a 
animal  ou  primitiva,  a  social  ou  positiva,  e  a  espiritual  ou  moral.  A  esta  última 
preferia  chamar  simplesmente moralidade,  a  fim de  não  confundi­la  com  as  duas 
formas anteriores. 
Kardec  recebeu  dos  Espíritos  a  confirmação  dessa  teoria  pestalozziana. 
Todo O LIVRO DOS ESPÍRITOS a confirma, ensinando uma religião pura, desprovida 
de  exigências  materiais  para  o  culto,  de  investiduras  sacerdotais,  e 
consequentemente  de  organização  social  em  forma  de  igreja.  As  comunicações 
particulares que Kardec recebia, como já vimos, e que figuraram posteriormente em 
OBRAS  PÓSTUMAS,  acentuavam  a  importância  espiritual  da  nova  doutrina,  como 
restabelecimento  do  Cristianismo  em  espírito  e  verdade.  Em  O  EVANGELHO 
SEGUNDO O ESPIRITISMO o problema foi esclarecido em definitivo. No item 673 
de  O  LIVRO  DOS  ESPÍRITOS,  vemos  como  o  problema  da  religião  espiritual  é 
colocado  pelos  Espíritos,  de  maneira  incisiva,  condenando  o  apego  às 
exterioridades.  É  a  seguinte  a  resposta  dada  a  uma  pergunta  de  Kardec:  “Deus 
abençoa sempre os que praticam o bem. Amparar os pobres e os aflitos é o melhor 
meio  de  homenageá­lo.  Já  vos  disse,  por  isso  mesmo,  que  Deus  desaprova  as 
cerimônias que fazeis para as vossas preces, pois há muito dinheiro que poderia ser 
empregado mais utilmente do que o é. O homem que se prende à exterioridade e não 
ao coração, é um espírito de vista estreita: julgai se Deus deve se importar mais com 
a forma do que com o fundo”. No capítulo nono das “Conclusões” de O LIVRO DOS 
ESPÍRITOS é o próprio Kardec quem declara: “Jesus veio mostrar aos homens a rota 
do  verdadeiro  bem.  Por  que  o  enviara  para  relembrar  a  sua  lei  esquecida,  não 
enviaria hoje os Espíritos, para novamente a lembrarem, e de maneira mais precisa, 
agora que os homens a esquecem, para  tudo sacrificarem ao  orgulho e à cupidez? 
Quem ousaria pôr limites ao poder de Deus e determinar os seus caminhos? Quem 
dirá que os tempos preditos não são chegados, como o afirmam os Espíritos, e que 
não  alcançamos  aqueles  em  que  as  verdades  mal  compreendidas,  ou  falsamente 
interpretadas, devem ser ostensivamente reveladas ao gênero humano, para acelerar 
o seu adiantamento?” 
No  item  625  vemos  a  ligação  direta  que  O  LIVRO  DOS  ESPÍRITOS 
estabelece  entre  Cristianismo  e  Espiritismo.  Os  Espíritos  apontam  Jesus  como  o 
modelo que o homem deve seguir na terra, e Kardec comenta, de maneira incisiva:
144 – J . Herculano Pires 
“Jesus é para o homem o tipo da perfeição moral a que a humanidade pode pretender 
na  terra.  Deus  no­lo  oferece  como  o  mais  perfeito  modelo,  e  a  doutrina  que  ele 
ensinou é a mais pura expressão da sua  lei, porque ele estava animado do espírito 
divino, e foi o ser mais puro que já apareceu sobre a terra”. A seguir, no item 627, a 
ligação histórica e espiritual se completa pela voz dos Espíritos: “O ensino de Jesus 
era  frequentemente alegórico, em forma de parábolas, porque ele  falava de acordo 
com a época e os lugares. Faz­se hoje necessário que a verdade seja inteligível para 
todos. É preciso, pois, explicar e desenvolver essas  leis,  tão poucos são  os que as 
compreendem, e menos ainda os que as praticam. Nossa missão é a de espertar os 
olhos e os ouvidos, para confundir os orgulhosos e desmascarar os hipócritas: os que 
afetam  exteriormente  a  virtude  e  a  religião,  para  ocultar  as  suas  torpezas.  O 
ensinamento  dos Espíritos  deve  ser  claro  e  sem  equívocos,  a  fim de  que ninguém 
possa  pretextar  ignorância,  e  cada  um possa  julgá­lo  e  apreciá­lo  com  sua  própria 
razão. Estamos  encarregados  de  preparar  o Reino  de Deus  anunciado  por  Jesus,  e 
por isso é necessário que ninguém possa interpretar a lei de Deus ao sabor das suas 
paixões, nem falsear o sentido de uma lei que é toda amor e caridade”. 
O Espiritismo aparece nesse  trecho de O LIVRO DOS ESPÍRITOS,  como o 
continuador natural do Cristianismo, confirmando o que estudamos anteriormente a 
respeito. Sua missão é a de restabelecer o ensino do Cristo e efetivá­lo nos corações 
e  nas  consciências,  já  amadurecidas  pela  evolução,  preparando  assim  o  Reino  de 
Deus, ou seja, levando o Cristianismo às suas últimas consequências. Assim. quando 
Kardec nos apresenta o Espiritismo como a  religião em espírito e verdade, porque 
sendo o cumprimento da promessa do Consolador, em O EVANGELHO SEGUNDO O 
ESPIRITISMO, nada mais faz do que confirmar o que já havia sido anunciado em O 
LIVRO DOS ESPÍRITOS. 
No  capítulo  sexto  de  O  EVANGELHO  SEGUNDO  O  ESPIRITISMO, 
comentando  o  advento  do  Consolador,  Kardec  assinala:  “Assim,  o  Espiritismo 
realiza  o  que  Jesus  disse  do Consolador Prometido:  conhecimento  das  coisas,  que 
faz o homem saber de onde vem, para onde vai e porque está na terra; reevocação 
dos verdadeiros princípios da lei de Deus; e consolação pela fé e pela esperança”. A 
análise  desse  pequeno  trecho  oferece­nos,  ao  mesmo  tempo,  a  confirmação  da 
ligação histórica entre o Cristianismo e o Espiritismo, e os traços característicos da 
religião  em  espírito  e  verdade.  O  Consolador  vem  para  esclarecer  os  homens,  e 
assim  consolá­los  através  do  conhecimento.  Religião  sem  dogmas,  sem  culto 
exterior,  sem  sacerdócio,  sem  apego material,  sem  intenção  de  domínio  político  e 
social,  pode  explicar  livremente  ao  homem  que  ele  é  um  espírito  em  evolução, 
responsável  direto  pelos  seus  atos,  e  portanto  pelos  seus  fracassos  ou  as  suas 
vitórias. Pode dizer­lhe que, tendo vindo do mundo espiritual, voltará a esse mundo 
após a vida terrena, tão naturalmente como as borboletas se livram dos casulos, e lá 
responderá  pelos  seus  erros  e  os  acertos,  sem  a  mediação  de  sacramentos  ou
145 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
cerimônias materiais de espécie alguma. Sua permanência na terra pode também ser 
explicada sem alegoria, pela simples necessidade da evolução espiritual. 
A  reevocação  dos  verdadeiros  princípios  da  lei  de  Deus  equivale  ao 
restabelecimento  dos  ensinos  do  Cristo.  A  palavra  francesa  do  texto  original  é 
rappel, que tem sido traduzida por lembrança. A tradução mais fiel é a que oferece a 
ideia  de  restabelecimento,  como  o  faz  a  palavra  reevocação.  Essa  ideia  está  de 
acordo com o texto de Kardec e com a promessa do texto evangélico. Reevocar os 
verdadeiros

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