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O_Espirito_e_o_Tempo_1964 - J Herculano Pires

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J. Herculano Pires 
O ESPÍRITO 
E O TEMPO
2 – J. Herculano Pires 
O ESPÍRITO E O TEMPO 
José Herculano Pires (1914 – 1979) 
Publicado originalmente em 1964 pela 
Editora Pensamento 
Digitalizada por: 
L. Neilmoris 
© 2009 ­ Brasil 
www.luzespirita.org.br
3 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
J. Herculano Pires 
O ESPÍRITO 
E O TEMPO
4 – J. Herculano Pires 
CONVITE: 
Convidamos você, que teve a opor tunidade de ler  livremente esta obra, a 
par ticipar  da nossa campanha de 
SEMEADURA DE LETRAS, 
que consiste em cada qual comprar um livro espír ita, 
ler  e depois presenteá­lo a outr em,colaborando assim na 
divulgação do Espir itismo e incentivando as pessoas à boa leitura. 
Essa ação, cer tamente, r enderá ótimos frutos. 
Abraço fr aterno e muita LUZ para todos! 
www.luzespirita.org.br
5 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
Índice 
Preliminares – pag. 8 
1ª Parte – Fase pré­histór ica – pag. 11 
I – Horizonte tribal e mediunismo primitivo 
II – Horizonte agrícola: animismo e culto dos ancestrais 
III – Horizonte civilizado: mediunismo oracular 
IV – Horizonte profético: mediunismo bíblico 
V – Horizonte espiritual: mediunidade positiva 
2ª Parte – Fase histór ica – pag. 59 
I – Emancipação espiritual do homem 
II – Ruptura dos arcabouços religiosos 
III – A invasão espiritual organizada 
IV – Antecipações doutrinárias 
V – a falange do consolador 
3ª Parte – Doutr ina Espír ita – pag. 107 
I – O triângulo de Emmanuel 
II – A ciência admirável 
III – A filosofia do Espírito 
IV – Religião em espírito e verdade 
V – Mundo de regeneração 
4ª Parte – A prática mediúnica – pag. 157 
I – Pesquisa científica da mediunidade 
II – As leis da mediunidade 
III – Antropologia espírita 
Bibliografia – pag. 194
6 – J. Herculano Pires 
A HELENA, que me fez escrever este livro. 
Aos  companheiros:  URBANO  DE  ASSIS 
XAVIER, ANSELMO GOMES e EURÍPIDES SOARES 
DA ROCHA que  empregaram o  tempo no estudo destes 
problemas, e hoje o prosseguem, no fluir da duração.
7 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
“A  História,  que  é  essencialmente  História  do  Espírito, 
transcorre ‘no tempo’. Assim, pois, ‘o desenvolvimento do espírito 
cai  no  tempo’.  Hegel,  porém,  não  se  contenta  em  afirmar  a 
‘intratempo­racialidade’ do espírito como um factum, mas trata de 
compreender a possibilidade de que o espírito caia no tempo, que é 
o ‘sensível não­sensível’. O tempo há de poder acolher o espírito, 
por  assim dizer. E  o  espírito  há  de  ser,  por  sua  vez, afim com o 
tempo e com a sua essência.” 
HEIDEGGER, crítica de Hegel, em O SER E O TEMPO.
8 – J. Herculano Pires 
PRELIMINARES 
Um século após a codificação do Espiritismo por Allan Kardec, reina ainda 
grande  incompreensão  a  respeito  da  doutrina,  de  sua  própria  natureza  e  de  sua 
finalidade.  A  codificação,  entretanto,  foi  elaborada  em  linguagem  clara,  precisa, 
sensível a todos. A lucidez natural do espírito francês, Kardec juntava a sua vocação 
e  a  sua  experiência  pedagógicas,  além  da  compreensão  de  tratar  com  matéria 
sumamente  complexa.  Vemo­lo  afirmar,  a  cada  passo,  que  desejava  escrever  de 
maneira  a  não  deixar  margem  para  interpretações,  ou  seja,  para  divergências 
interpretativas. Qual  o motivo,  então,  por  que  os  próprios  adeptos  do Espiritismo, 
ainda hoje, divergem, no  tocante a questões doutrinárias de  importância? E qual o 
motivo  por  que  os  não­espíritas  continuam  a  tratar  o  Espiritismo  com  a  maior 
incompreensão? Note­se que não nos referimos a adversários, pois estes têm a sua 
razão, mas aos “não­espíritas”. Parece­nos que a explicação, para os dois casos, é a 
mesma. O Espiritismo é uma doutrina do  futuro. À maneira do Cristianismo, abre 
caminho  no  mundo,  enfrentando  a  incompreensão  de  adeptos  e  não­adeptos.  Em 
primeiro  lugar,  há  o  problema  da  posição  da  doutrina.  Uns  a  encaram  como 
sistematização de velhas superstições; outros, como tentativa frustrada de elaboração 
científica; outros, como ciência infusa, não organizada; outros ainda, como esboço 
impreciso de filosofia religiosa; outros, como mais uma seita, entre as muitas seitas 
religiosas do mundo. 
Para a maioria de adeptos e não­adeptos, o Espiritismo se apresenta como 
simples  “crença”,  espécie  de  religião  e  superstição,  ao  mesmo  tempo,  eivada  de 
resíduos  mágicos.  Ao  contrário  de  tudo  isso,  porém,  o  Espiritismo,  segundo  a 
definição de Kardec e dos seus principais continuadores, constitui a última fase do 
processo  do  conhecimento.  Última,  não  no  sentido  de  fase  final,  mas  da  que  o 
homem pôde atingir até agora, na sua lenta evolução através do tempo. É evidente 
que  se  trata  do  conhecimento  em  sentido  geral,  não  limitado  a  um  determinado 
aspecto,  não  especializado.  Nesse  sentido  geral,  o  Espiritismo  aparece  como  uma 
síntese dos  esforços humanos para compreensão do mundo e da  vida.  Justifica­se, 
assim, que haja dificuldade para a sua compreensão, apesar da clareza da estrutura 
doutrinária da codificação. De um lado, o povo não pode abarcá­lo na sua totalidade, 
contentando­se com o seu aspecto religioso; de outro, os especialistas não admitem a
9 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
sua  natureza­sintética;  e  de  outro,  ainda,  os  preconceitos  culturais  levantam 
numerosas objeções aos seus princípios. 
No capítulo primeiro de A GÊNESE, número XVIII, Kardec explica que o 
Espiritismo,  do  ponto  de  vista  científico,  tem  por  objeto  um  dos  dois  elementos 
constitutivos  do  universo,  que  é  o  espírito.  O  outro  elemento  é  a matéria.  Como 
ambos  se  entrelaçam,  para  a  constituição  do  todo  universal,  o  Espiritismo  “toca 
forçosamente  na  maioria  das  ciências”,  ou  seja,  está  necessariamente  ligado  ao 
desenvolvimento  das  ciências.  Assim  sendo,  esclarece  o  codificador:  “Ele  não 
poderia aparecer senão depois da elaboração delas, e surgiu por força das coisas, da 
impossibilidade de tudo explicar­se somente com a ajuda das leis da matéria”. Léon 
Denis, sucessor e continuador de Kardec, observa em seu livro LE GENIE CELTIQUE 
ET LE MONDE INVISIBLE, o seguinte: “Pode dizer­se que a obra do Espiritismo é 
dupla: no plano terreno, ela tende a reunir e a fundir, numa síntese grandiosa, todas 
as  formas,  até  aqui  dispersas  e  muitas  vezes  contraditórias,  do  pensamento  e  da 
ciência. Num plano mais  amplo,  une  o visível  e  o  invisível,  essas duas  formas  da 
vida,  que,  na  realidade,  se  interpenetram  e  se  completam,  desde  o  princípio  das 
coisas”.  Logo  a  seguir,  como  prevenindo  a  objeção  de  dualismo  que  se  poderia 
fazer, Denis acentua: “No seu desenvolvimento, ele demonstra que o nosso mundo e 
o Lado­de­Lá não estão separados, mas entrosados um no outro, constituindo assim 
um todo harmônico”. 
Os  estudantes  de  Espiritismo  sabem  que  muitos  outros  trechos,  tanto  de 
Kardec  quanto  dos  seus  seguidores,  podem  ser  citados,  para  se  afirmar  a  tese  da 
natureza sintética da doutrina, bem como a sua posição, de última fase do processo 
do conhecimento. Lembramos particularmente a definição da doutrina em O QUE É 
O  ESPIRITISMO,  de  Kardec,  sobre  a  qual  voltaremos  mais  tarde.  Basta­nos,  no 
momento, esta colocação do problema, para justificar a nossa tentativa de oferecer 
uma visão histórica do desenvolvimento espiritual do homem, como a  forma mais 
apropriada de introdução ao estudo da doutrina. 
Foi o próprio Kardec quem criou a disciplina que procuramos desenvolver 
neste curso, tanto com a INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA DOUTRINA ESPÍRITA, que 
abre O LIVRO DOS ESPÍRITOS,  quanto  com o PRINCIPIANTE ESPÍRITA. O  nosso 
curso  não  dispensa,  antes  requer  o  estudo  desses  trabalhos  do  codificador. Mas  é 
evidente  que  a  introdução  a  qualquer  ramo  do  conhecimento,  como  explica  o 
filósofo  Julián Marias, no  caso  particular  da  Introdução  à Filosofia,  exige  sempre 
novas perspectivas, de acordocom o fluir do tempo. A introdução, diz Marias, é o 
“agora”, o circunstancial, o ato de introduzir alguém em alguma coisa. Essa alguma 
coisa,  seja  a  Filosofia  ou  seja  o Espiritismo,  é  uma realidade  histórica,  uma  coisa 
que  existe  de  maneira  concreta.  Sendo  o  Espiritismo  uma  realidade  histórica, 
afirmada pelo codificador e seus sucessores, tem ele o seu passado e o seu presente, 
como terá o seu futuro.
10 – J. Herculano Pires 
No  tempo  de  Kardec,  introduzir  alguém  no  estudo  do  Espiritismo  era 
introduzi­lo  numa  realidade  nascente,  numa  verdadeira  problemática  em  ebulição, 
num  processo  histórico  em  princípio  de  definição,  e  principalmente  “numa  nova 
ordem de  ideias”. Hoje,  é  introduzir esse alguém num processo  já definido, e não 
apenas numa ordem de ideias, mas também no quadro histórico em que essa ordem 
surgiu. Dessa maneira, é introduzi­lo também na própria introdução de Kardec. Esse 
o motivo por que escrevemos, para a nossa tradução de O LIVRO DOS ESPÍRITOS, 
editado  pela  LAKE,  uma  introdução  à  obra.  Sem  o  exame  histórico  do  problema 
mediúnico,  por  exemplo,  os  estudantes  de  hoje  estarão  ameaçados  de  flutuar  no 
abstrato. Introduzindo­se numa ordem de ideias, sem o conhecimento de suas raízes 
históricas,  arriscam­se  a  confundir,  como  fazem  os  leigos,  mediunismo  e 
Espiritismo,  ou  seja,  o  processo  mediúnico  de  desenvolvimento  espiritual  do 
homem,  com  o  Espiritismo.  Arriscam­se,  ainda  mais,  a  aturdir­se  com  fatos 
mediúnicos  rudimentares,  considerando­os,  por  sua  aparência  extravagante,  como 
novidade.  Por  outro  lado,  dificilmente  compreenderão  a  aparente  contradição 
existente no fato de ser o Espiritismo, ao mesmo tempo, uma doutrina moderna e um 
processo  histórico  provindo  das  eras mais  remotas da humanidade. Existe  ainda  o 
problema  religioso,  e  particularmente  o  das  ligações  do  Espiritismo  com  o 
Cristianismo, que somente uma introdução histórica pode esclarecer. 
Por  tudo  isso,  foi  que  nos  propusemos  a  dar  este  curso —  a  convite  da 
União  da Mocidade Espírita  de S.  Paulo —,  a  partir  do “horizonte  primitivo”,  ou 
seja, das manifestações mediúnicas entre os homens primitivos, examinando as fases 
históricas que nos conduziram até ao momento presente. Para isso, servimo­nos da 
bibliografia doutrinária, como fundamental, e de outros livros, de reconhecido valor 
cultural,  como  subsidiários.  Daremos  a  indicação  bibliográfica,  para  facilitar  aos 
interessados maior aprofundamento do assunto.
11 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
I PARTE 
FASE PRÉ­HISTÓRICA
12 – J. Herculano Pires 
CAPÍTULO I 
HORIZONTE TRIBAL E 
MEDIUNISMO PRIMITIVO 
1 – Mediunismo e Espiritismo 
As  ciências  sociais  têm  uma  grande  contribuição  a  dar  ao  estudo  do 
Espiritismo.  Quem  viu  isso  com  mais  clareza,  segundo  nos  parece,  foi  Ernesto 
Bozzano. O grande discípulo italiano de Herbert Spencer, profundamente ligado ao 
desenvolvimento  dos  estudos  sociológicos,  uma  vez  atraído  para  o  campo  dos 
estudos espíritas, soube aplicar a este o conhecimento adquirido em outros campos. 
Seus  trabalhos  sobre  as  manifestações  supranormais  entre  os  povos  selvagens, 
publicados na revista milanesa “Luce e Ombra”, em 1926, posteriormente reunidos 
no  livro  POPOLI  PRIMITIVI  E  MANIFESTAZIONI  SUPERNORMALI,  representam 
uma das mais poderosas contribuições para o esclarecimento histórico do problema 
espírita. Kardec já havia esclarecido que os  fatos espíritas são de todos os tempos, 
uma vez que a mediunidade é uma condição natural da espécie humana. Mas é com 
Bozzano  que  temos  a  primeira  penetração  espírita  no  exame  antropológico  e 
sociológico  do  homem  primitivo,  revelando­nos,  com  base  em  investigações 
científicas, as  formas  pré­históricas  do  fenômeno mediúnico. Aliás,  os  estudos  de 
Bozzano  levam­nos  mais  longe,  pois  revelam  também  as  origens  mediúnicas  da 
religião. 
Temos assim uma teoria espírita da gênese da crença na sobrevivência, que 
se apresenta como uma síntese das teorias opostas da teologia e da sociologia. Para 
maior clareza do nosso estudo, servimo­nos do esquema que nos fornece o chamado 
“método cultural”, dos antropólogos ingleses, aplicado por John Murphy, com pleno 
êxito, em seus estudos sobre as origens e a história das religiões. Método usado na 
antropologia cultural e no estudo das religiões comparadas, aplica­se perfeitamente 
às  necessidades  de  clareza  do  nosso  estudo.  Seu  esquema  é  constituído  pelos 
“horizontes  culturais”,  dentro  dos  quais  o  desenvolvimento  humano  pode  ser 
analisado na amplitude de cada uma das suas fases. É evidente que não vamos muito 
além do esquema. Nosso intuito não é o estudo antropológico, nem o das religiões 
comparadas,  mas  apenas  o  esclarecimento  do  problema  espírita.  Os  “horizontes 
culturais”  são  os meios  em que  se  desenvolveram as  diferentes  fases  da  evolução 
humana.
13 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
A expressão é metafórica. Chama­se, por exemplo, “horizonte primitivo”, o 
mundo do homem primitivo. A palavra horizonte mostra que devemos encarar esse 
homem dentro  dos  limites  da nossa  visão,  de  todas  as  condições  do meio  físico  e 
social  em que  ele  vivia, na  paisagem cultural  fechada  pelos  horizontes  do mundo 
primitivo.  Podemos  assim  examinar  cada  fase  em  seu meio,  cada  homem em  seu 
mundo, compreendendo­os melhor. 
O  estudo  de  Bozzano,  embora  anterior  a  esse método,  integra­se  nele.  O 
“horizonte  primitivo”  é  geralmente  dividido  em  três  formas:  o  primitivo 
propriamente  dito,  o anímico  e  o  agrícola. Em nosso  esquema,  reduzimos  as  duas 
primeiras formas a uma única: o “horizonte tribal”, que nos permite abranger numa 
visão  geral  o  problema  mediúnico  do  homem  primitivo,  e  destacamos  a  terceira 
forma,  dando­lhe  autonomia.  Isso  porque  o  “horizonte  agrícola”  tem  interesse 
especial no tocante à mediunidade. 
Assim,  nosso  esquema  da  fase  pré­histórica  do  Espiritismo  é  o  seguinte: 
horizonte  tribal,  agrícola,  civilizado,  profético  e  espiritual.  Até  o  “horizonte 
profético”,  segundo  Murphy.  O  “horizonte  espiritual”  é  uma  formulação  nova, 
exigida  pelo  Espiritismo.  O  horizonte  tribal  caracteriza­se  pelo  mediunismo 
primitivo. Adotamos  a  palavra mediunismo,  criada  por Emmanuel  para  designar a 
mediunidade  em  sua  expressão  natural,  pois  é  evidente  que  ela  corresponde  com 
precisão ao nosso objetivo. Mediunismo são as práticas empíricas da mediunidade. 
Dessa  maneira,  temos  as  formas  sucessivas  do  mediunismo  primitivo,  do 
mediunismo oracular e do mediunismo bíblico, só atingindo a mediunidade positiva 
no horizonte espiritual, que surge com o Espiritismo. Somente com o Espiritismo a 
mediunidade  se  define  como  uma  condição  natural  da  espécie  humana,  recebe  a 
designação  precisa  de  “mediunidade”  e  passa  a  ser  tratada  de maneira  racional  e 
científica.  Convém  deixar  bem  clara  a  distinção  entre  fatos  espíritas  e  doutrina 
espírita, para compreendermos o que Kardec dizia, ao afirmar que o Espiritismo está 
presente em todas as fases da história humana. Os fatos espíritas — assim chamados 
os  fenômenos  ou  as  manifestações  mediúnicas  —  são  de  todos  os  tempos.  As 
práticas  mágicas  ou  religiosas,  baseadas  nessas  manifestações,  constituem  o 
Mediunismo, pois são práticas mediúnicas. A doutrina espírita é uma interpretação 
racional  das  manifestações  mediúnicas.  Doutrina  ao  mesmo  tempo  científica, 
filosófica  e  religiosa,  pois  nenhum  desses  aspectos  pode  ser  esquecido,  quando 
tratamos  de  fenômenos  que  se  relacionam  com  a  vida  do  homem  na  terra  e  sua 
sobrevivência após a morte, sua vida e seu destino espiritual. É enorme a confusão 
feita pelos sociólogos neste assunto, seguindode maneira desprevenida a confusão 
proposital feita pelos adversários do Espiritismo. 
Os estudos sociológicos do mediunismo referem­se sempre ao espiritismo. 
Entretanto, a palavra Espiritismo, criada por Allan Kardec, em 1857, e por ele bem 
explicada na introdução de O LIVRO DOS ESPÍRITOS, designa uma doutrina por ele
14 – J. Herculano Pires 
elaborada,  com  base  na  análise  dos  fenômenos  mediúnicos  e  graças  aos 
esclarecimentos que os Espíritos lhe forneceram, a respeito dos problemas da vida e 
da  morte.  As  práticas  do  chamado  “sincretismo  religioso  afro­brasileiro”,  por 
exemplo,  não  são  espíritas.  O  sincretismo  religioso  é  um  fenômeno  sociológico 
natural.  O  Espiritismo  é  uma  doutrina.  Defrontamo­nos,  neste  ponto,  com  uma 
complexidade que também tem dado margem a confusões. Os fatos mediúnicos são 
fatos  espíritas,  assim  chamados  pelo  próprio  Kardec,  mas  não  são  Espiritismo. 
Porque  o  Espiritismo  se  serve  dos  fatos mediúnicos  como  de  uma matéria­prima, 
para a elaboração de seus princípios, ou como de uma força natural, que aproveita de 
maneira racional. Exatamente como a hidráulica se serve das quedas d’água ou do 
curso dos rios para a produção de energia. 
Esclarecidos  estes  pontos;  podemos  passar  à  análise  dos  fenômenos 
mediúnicos no horizonte tribal. 
2 – Origem sensória da crença na sobrevivência 
Bozzano  apóia­se  especialmente  nas  pesquisas  do  antropólogo  Andrew 
Lang e do etnólogo Max Freedom Long, realizadas entre as tribos da Polinésia, para 
mostrar a existência dos  fenômenos espíritas no horizonte  tribal. Serve­se  também 
de outras fontes, não esquecendo os estudos de seu mestre Herbert Spencer. Andrew 
Lang é o autor da tese espírita da origem mediúnica da religião, tese que lançou em 
seu  livro  THE  MAKING  OF  RELIGION.  Bozzano  esposa  essa  tese  e  procura 
esclarecê­la,  confrontando­a  com  a  tese  spenceriana,  na  qual  encontra,  aliás,  os 
germes da explicação espírita do problema. A primeira afirmação de Bozzano é a da 
universalidade da crença na sobrevivência. Vejamos como  ele  inicia o seu  estudo: 
“Se  consultamos as obras dos mais eminentes antropólogos e  sociólogos, notamos 
que  todos  concordam  em  reconhecer  que  a  crença  na  sobrevivência  do  espírito 
humano se mostra universal”. 
Esse  fato  é  confirmado  por  várias  citações  textuais.  A  seguir,  Bozzano 
analisa as explicações que lhe dão os sociólogos e antropólogos, para concluir pela 
inoperância das mesmas. Somente Spencer encontra intuições seguras, que são mais 
tarde desenvolvidas por Lang. Este realizou um trabalho de análise comparada dos 
fenômenos do mediunismo primitivo com as experiências metapsíquicas, concluindo 
pela  realidade  daqueles  fenômenos,  que  constituem  a  base  concreta  da  crença  na 
sobrevivência. O primeiro fato concreto a surgir no horizonte primitivo, no tocante a 
esse problema, é o da existência de uma força misteriosa que  impregna ou  imanta 
objetos e coisas, podendo atuar sobre criaturas humanas. É a força conhecida pelos 
nomes polinésicos de mana e orenda. Considerada em geral como imaginária, essa 
força  produz  os mais  estranhos  fenômenos. Bozzano  lembra  a  resposta  de Marcel
15 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
Habert a Goblet D'Alviella,  sobre a natureza  imaginária dessa  força. Dizia Habert: 
“Passa­me  pela mente  uma  nuvem  de  dúvida.  Mana  e  Orenda  não  seriam  talvez 
concepções  demasiado  abstratas,  para  podermos  considerá­las  o  princípio  de  que 
partiram os selvagens, para chegar aos espíritos?” A dúvida de Habert é considerada 
por Bozzano “fundamental  e  psicologicamente”  justa,  uma vez  que  conhecemos  a 
natureza  concreta  do  pensamento  primitivo,  incapaz  dos  processos  de  abstração 
mental  que  caracterizam  o  homem  civilizado. Mana  ou  Orenda  não  é  uma  força 
imaginária, mas uma força real, concreta, positiva, que se afirma através de ampla 
fenomenologia,  verificada  entre  as  tribos  primitivas,  nas mais  diversas  regiões  do 
mundo.  Essa  força  primitiva  corresponde  ao  ectoplasma  de  Richet,  a  força  ou 
substância  mediúnica  das  experiências  metapsíquicas,  cuja  ação  foi  estudada 
cientificamente  por  Crawford,  professor  de  mecânica  da  Universidade  Real  de 
Belfast, na Irlanda. O método comparativo, seguido por Lang, oferece­nos aí o seu 
primeiro resultado. A imaginária força dos selvagens encontra similar nas pesquisas 
dos  sábios  europeus  e  americanos,  empenhados  nos  estudos  espíritas  e 
metapsíquicos. 
O  etnólogo  Max  Freedom  Long,  que  era  também  mitólogo,  realizou 
demoradas  pesquisas  entre  as  tribos  da  Polinésia,  e  particularmente  das  ilhas  do 
Havaí,  convivendo  durante  anos  com  os  selvagens,  para  verificar  a  realidade  e  a 
natureza  dessa  força  primitiva.  Conclui  que  os  kahunas,  curandeiros  polinésios, 
consideravam  a  existência  de  três  formas  de  Mana,  ou  três  frequências,  três 
voltagens  dessa  força,  à  semelhança  da  corrente  elétrica.  A  mais  baixa  voltagem 
correspondia à força emitida pelos corpos materiais do cristal ao organismo humano; 
a  voltagem  média,  à  proveniente  da  mente  humana;  e  a  voltagem  superior,  à 
proveniente  de  uma  espécie  de  centro  espiritual  da mente  humana,  permitindo  ao 
homem  prever  o  futuro  e  realizar  fenômenos  físicos  a  distância,  bem  como 
materialização e desmaterialização de objetos. Outra curiosa conclusão de Freedom 
Long  é  a  de  que  os  kahunas  consideravam  essa  força  como  susceptível  de 
acumulação.  Os  curandeiros,  que  usavam  de  feitiçaria,  podiam  prender  espíritos 
inferiores  que,  a  seu  mando,  faziam  provisões  de  Mana  para  atuar  em  ocasiões 
oportunas.  Bozzano  mostra  que  as  conclusões  do  etnólogo  correspondem  às  de 
Andrew  Lang  e  aos  relatos  e  observações  de  numerosos  outros  estudiosos  do 
assunto, bem como de viajantes e missionários que conviveram com tribos diversas, 
em  diferentes  épocas  e  várias  regiões  do  globo.  Por  outro  lado,  estabelece  as 
relações entre essa força e o ectoplasma, o que também fizera Freedom Long. 
O  segundo  fato  concreto,  de  ordem  espírita,  do  horizonte  tribal,  é  o  da 
existência dos próprios espíritos, também universalmente afirmada. Antropólogos e 
etnólogos  costumam  estabelecer  arbitrariamente  certa  distância  de  tempo  entre  o 
aparecimento  de  um  e  outro  fato.  Bozzano,  entretanto,  rejeita  essa  tese,  para 
sustentar a simultaneidade de ambos. Lembra que nenhuma pesquisa ou observação
16 – J. Herculano Pires 
revelaram essa pretensa sucessão dos fatos, e assevera. “A verdade, pelo contrário, é 
que essas duas concepções aparecem sempre associadas”. Uma das provas está nas 
próprias conclusões de Freedom Long, onde vemos os espíritos operarem através de 
mana,  ou  seja,  servindo­se  dessa  força. A  coexistência  das  duas  concepções,  a  da 
força misteriosa  e  a  dos  espíritos,  impõe­se  também  diante  da multiplicidade  dos 
fenômenos mediúnicos no meio primitivo, onde, como acentua Bozzano, a presença 
de  “agentes  espirituais”  se  impunha,  de  maneira  positiva.  Vemos,  assim,  que  as 
superstições dos selvagens, as suas práticas mágicas, não eram nem podiam ser de 
natureza abstrata, imaginária. Decorriam, como tudo na vida primitiva, de realidades 
positivas e de fatos concretos, conhecidos naturalmente dos selvagens, como sempre 
foram e são conhecidos dos homens civilizados, em todas as épocas e em todas as 
latitudes da terra. Somente nos momentos de grande refinamento intelectual, quando 
os homens constroem o seu mundo próprio, de abstrações mentais, e se encastelam 
nas suas tentativas de explicação racional das coisas, é que essas realidades passam a 
ser negadas, por uma reduzida elite. O materialismo é, portanto, uma espécie de flor 
de estufa, artificial,  cultivada em compartimentosde vidro, que  isolam a mente da 
realidade  complexa  da  natureza.  O  aparecimento  desses  dois  fatos  espirituais  no 
horizonte  primitivo  —  a  ação  de  uma  força  misteriosa  e  a  ação  de  entidades 
espirituais  —  deve  ser  considerado,  entretanto,  juntamente  com  o  problema  do 
antropomorfismo. 
De  uma  posição  positivista,  como  a  que  Bozzano  assumia,  antes  de  se 
tomar  espírita,  esses  dois  fatos  se  explicariam  pelo  próprio  antropomorfismo.  De 
uma  posição  espírita,  entretanto,  tal  explicação  se  toma  insuficiente.  Porque  o 
antropomorfismo  é  a  característica  psíquica  do  mundo  primitivo,  a  maneira 
rudimentar  de  interpretação  da natureza  pelo  homem. Reduzir  todo  o  processo  da 
vida primitiva a esse psiquismo nascente, limitá­lo apenas à mente embrionária de 
criaturas semi­animais, é um simplismo que o Espiritismo rejeita. 
3 – Da litolatria ao politeísmo mitológico 
O antropomorfismo é uma espécie de fase preparatória do animismo. A fase 
em que o homem primitivo ainda não desenvolveu suficientemente o seu psiquismo, 
e em que interpreta todas as coisas em termos exclusivamente humanos. Quer dizer, 
aplica  ao  exterior  as  noções  rudimentares  que  possui  da  natureza  humana,  dando 
forma humana aos elementos naturais. 
Podíamos  aplicar­lhe  o  principio  de Protágoras,  o  sofista: “O homem é  a 
medida de todas as coisas”. Mas uma medida por assim dizer afetiva, sem o controle 
da razão. É pelo sentimento, e não pelo raciocínio, que o homem primitivo humaniza 
o mundo.
17 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
Estamos certamente no alvorecer da razão, e mais do que isso, no subsolo 
do processo do conhecimento. As teorias materialistas não enxergam nada mais do 
que a luta dessa razão nascente com o mundo exterior. Para elas, as manifestações 
supranormais  não  são  outra  coisa  além  de  projeções  desse  poder  psíquico,  visões 
alucinatórias  da  mente  primitiva.  Murphy,  citando  Rodolfe  Otto,  lembra  que 
estamos  diante  de  um processo  de  adoração  rudimentar,  em que  o  homem parece 
adorar­se a si mesmo nas coisas exteriores. Veremos como o antropomorfismo, por 
este aspecto, se enquadra na “lei de adoração”, que Kardec estuda em O LIVRO DOS 
ESPÍRITOS.  O  antropomorfismo  se  revela  por  duas  formas,  que  tanto  podem  ser 
sucessivas  como  simultâneas,  o  que  é  difícil  precisar.  Admitindo  que  sejam 
sucessivas,  podemos  citar  como  primeira  forma  a  vital,  ou  seja,  aquela  em  que  o 
homem primitivo  projeta  nas  coisas  o  seu  sentimento  vital,  dando  vidas  às  coisas 
inanimadas. 
A segunda forma é a volitiva, esse “segundo grau do antropomorfismo”, de 
acordo  com Murphy,  em que  o  homem projeta  também a sua  vontade,  e  por  isso 
mesmo personaliza as coisas. Neste grau já nos defrontamos com o desenvolvimento 
do animismo, a fase em que o homem vai dar não apenas vida e vontade aos objetos 
e coisas, mas a sua própria alma. Bozzano já nos mostrou o absurdo de admitir­se 
um processo  tão  complexo de abstração mental em homens primitivos. Somente a 
tese espírita pode, portanto, socorrer as teorias materialistas, que tateiam no caminho 
certo, mas não conseguem firmar­se nele. A tese espírita nos mostra que o processo 
do  antropomorfismo  é  auxiliado  pelos  fenômenos  mediúnicos.  O  simplismo  da 
projeção anímica nas coisas exteriores complica­se, com a resposta dessas coisas ao 
homem,  através  da  ação  natural  dos  espíritos. É  evidente  que  o  homem primitivo 
tem de  interpretar as coisas de acordo com as suas experiências vitais. A razão se 
forma  na  experiência.  O  homem  enquadra  o  mundo  nas  categorias  nascentes  da 
razão,  enche  essas  categorias,  como  queria Kant,  com  o  conteúdo  das  sensações. 
Mas as categorias, como explica hoje o Relativismo Crítico, e particularmente René 
Hubert,  não  são  fixas  ou  estáticas,  mas  dinâmicas.  São  a  própria  experiência  em 
movimento, e não um resultado da experiência. E essa experiência implica os fatos 
supranormais, o contato do homem primitivo com forças estranhas, como no caso de 
mana ou orenda, e com os “agentes espirituais” de que fala Bozzano. 
Podemos formular uma verdadeira escala da adoração no mundo primitivo. 
Embora  seus  graus  possam  ser  simultâneos  e  não  sucessivos,  o  simples  fato  de 
existirem esses graus, mostra que a adoração, resultando de um sentimento inato no 
homem,  desenvolve­se  num  verdadeiro  processo.  No  grau  mais  baixo,  temos  a 
litolatria  ou  adoração  de  pedras,  rochas  e  relevos  do  solo;  no  grau  seguinte,  a 
fitolatria  ou  adoração  vegetal,  de  plantas,  flores,  árvores  e  bosques;  logo  acima, a 
zoolatria  ou  adoração  de  animais;  e  somente  num grau mais  elevado,  a mitologia 
propriamente dita, com a sua forma clássica de politeísmo. O processo da adoração
18 – J. Herculano Pires 
se desenvolve, assim, a partir do reino mineral até o humano ou hominal. Cada uma 
dessas fases é ligada à outra por uma interfase, em que os elementos de adoração se 
misturam. E os resíduos das várias fases, desde a litolátrica, permanecem ainda nos 
sistemas  religiosos  da  atualidade.  O  homem  carrega  consigo  as  suas  heranças, 
através  do  tempo.  Se  encararmos  todo  esse  processo  dentro  apenas  da  teoria  do 
antropomorfismo, ou mesmo do animismo, será difícil ou impossível explicar a sua 
persistência nas  fases  superiores  do  desenvolvimento humano.  Porque  o  natural,  e 
até mesmo o dialético, no desenvolvimento, é o homem libertar­se progressivamente 
daquilo  que  o  ajudou  numa  fase  e  o  atrapalha  em  outra.  A  persistência  do 
antropomorfismo  e  do  animismo,  nas  próprias  elites  culturais  da  atualidade, 
demonstra  que neles havia alguma  coisa além da  simples projeção  do  homem nas 
coisas. Essa “alguma coisa”, como já vimos, é a presença dos “agentes espirituais” 
atuando  incessantemente  sobre  o  homem e as  comunidades humanas,  em  todas as 
fases da pré­história e da história. 
Kardec  dedicou  o  segundo  capítulo  da  terceira  parte  de  O  LIVRO  DOS 
ESPÍRITOS  à  Lei  da  Adoração.  Os  Espíritos  Superiores,  que  o  ajudaram 
mediunicamente na elaboração do livro, ensinaram­lhe que “a adoração é o resultado 
de um sentimento inato no homem”, como o sentimento da existência da divindade. 
Acrescentaram  que  ela  faz  parte  da  lei  natural,  ou  seja,  do  conjunto  de  forças 
naturais que constituem o mundo, ao qual o homem naturalmente pertence. A seguir, 
mostraram como a lei de adoração se desenvolve nas sociedades humanas, a partir 
da  adoração  exterior  de  objetos  materiais,  até  atingir  aquela  fase  superior  que 
definiram  com estas  palavras:  “A verdadeira  adoração  é  a  do  coração”.  Já  vimos, 
anteriormente,  que  esses  ensinamentos  espirituais  concordam  com  a  interpretação 
antropológica de Murphy e Rodolfe Otto, de que o antropomorfismo é uma forma de 
“adoração rudimentar”. 
Lembremos  ainda,  para  evitar  confusões,  que  os  Espíritos  não  falavam a 
Kardec  por  meio  de  visões  ou  de  outras  formas  místicas  de  revelação.  Quando 
dizemos  que  os  Espíritos  Superiores  ajudaram  Kardec  a  elaborar  O  LIVRO  DOS 
ESPÍRITOS, os chamados “homens cultos” costumam torcer o nariz, lembrando que 
também  a  Bíblia,  os  Evangelhos  e  o  Alcorão  foram  ditados  por  Deus  ou  por 
Espíritos.  Acontece,  porém,  que  as  antigas  escrituras  pertencem  às  fases  do 
mediunismo  empírico,  enquanto  a  codificação  espírita  pertence  à  fase  da 
mediunidade  positiva.  Os  Espíritos  Superiores  (superiores  em  conhecimento  e 
refinamento espiritual, precisamente como os homens superiores), conversavam com 
Kardec  e  o  auxiliavam  através  da  prática  mediúnica.  Quer  dizer:  através  de 
comunicações mediúnicas sujeitas a controle, e não de revelações místicas, aceitas 
de  maneira  emotiva.  Por  outro  lado,  quandoacentuamos  a  natureza  racional  do 
Espiritismo,  não  negamos  o  valor  do  sentimento.  O  velho  debate  filosófico  entre 
razão  e  sentimento,  traduzido  no  plano  religioso  pelo  dualismo  de  razão  e  fé,
19 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
encontra no Espiritismo a sua solução natural, pelo equilíbrio de ambos, na fórmula 
clássica de Kardec: “a fé raciocinada”. 
No  estudo  do  antropomorfismo,  com  suas  formas  rudimentares  de 
adoração, encontramos todo um esquema elucidativo do velho e debatido problema. 
Razão e fé se apresentam como as formas de contradição de um processo dialético. 
4 – Ampliação da teoria de Spencer  
O materialismo  do  século XVIII  negou  a  ação  dos  “agentes  espirituais”, 
tanto  sobre  as  comunidades  primitivas,  quanto  sobre  as  coletividades  civilizadas. 
Bozzano,  que  foi  positivista  durante  anos,  explicava  a  crença  na  sobrevivência 
através  da  teoria  de  Spencer,  o  filósofo  que  chegou  a  considerar  como  um 
Aristóteles moderno.  Em  que  pese  toda  essa  admiração,  a  realidade  inegável  dos 
fatos espíritas mostrou a Bozzanoque a tese spencereana estava errada, que não era 
possível  explicar­se  a  gênese  da  crença  universal  na  sobrevivência  por  alguns 
fenômenos  comuns,  sensoriais,  que  exigiriam  do  homem  primitivo  uma 
reelaboração  mental,  no  plano  abstrato.  Não  obstante,  Bozzano  reconheceu  que 
Spencer “pusera os pés no caminho certo”. Chega a ser emocionante a maneira por 
que  o  antigo  discípulo  corrige  o  mestre,  reconhecendo­lhe  os  méritos.  Entende 
Bozzano  que  faltou  a  Spencer  o  conhecimento  das  experiências  metapsíquicas. 
Dessa maneira, o gênio de Spencer viu­se  obrigado a  tatear no plano das ciências 
materiais.  Apesar  disso,  precisamente  por  ser  um  gênio,  Spencer  tocou  no  ponto 
central  do  problema,  indicando  os  rumos  certos  de  sua  solução.  A  crença  na 
sobrevivência  decorre  de  experiências  concretas  do  homem  primitivo,  e  não  de 
formulações  do  pensamento  abstrato.  Sua  origem  está  nas  sensações,  e  não  na 
cogitação filosófica. Esse o ponto central, que Spencer soube ver. Usando o método 
comparativo,  Bozzano  mostra  como  a  tese  de  Spencer  pode  ser  desdobrada  ou 
ampliada,  com  o  acréscimo  dos  fatos  metapsíquicos,  para  tomar­se  plenamente 
verdadeira. Vejamos como isso é possível. 
As  origens  da  crença  na  sobrevivência,  para  Spencer,  são  estes  fatos 
comuns da vida primitiva: o sonho, quando o selvagem se sentia liberto do corpo e 
agindo  em  lugar  distante;  a  sombra  que  o  seguia  nas  caminhadas  ao  sol  e  a  sua 
imagem refletida na água, quando se debruçava nas bordas de um lago; o eco de sua 
voz,  repetida  pelos  desfiladeiros  e  as  cavernas.  Bozzano  acrescenta,  ao  sonho 
comum,  o  sonho  premonitório,  que  faz  ver  com  antecedência  um  acontecimento 
futuro; ao fenômeno da sombra e do reflexo na água, os fenômenos de vidência, de 
aparição  e  de  materialização  de  espíritos;  ao  eco,  o  fenômeno  da  voz­direta.  E 
acrescenta,  ainda,  à  força  imaginária  de  mana  ou  orenda,  a  prova  concreta  das 
ectoplasmias. Como se vê, a tese spencereana desdobra­se, amplia­se, atingindo os
20 – J. Herculano Pires 
fatos metapsíquicos,  que  escapavam a Spencer. Com essa  ampliação,  a  gênese  da 
crença na  sobrevivência não  deixa  o  terreno  do  concreto, dos  fatos  sensoriais,  em 
que Spencer a colocara. Mas, ao mesmo tempo, o problema da indução, que implica 
o uso do pensamento abstrato, é substituído pela experiência imediata, mais acorde 
com  a  mentalidade  primitiva.  O  selvagem  não  precisava  induzir,  dos  vários 
fenômenos  citados  por  Spencer,  uma  supra­realidade,  pois  esta  se  impunha  a  ele 
através dos fenômenos espíritas ou metapsíquicos, direta e imediatamente. 
Quanto  ao  problema  das  ectoplasmias,  convém  lembrarmos  que  o 
ectoplasma,  emanação  fluídica  do  corpo  do  médium,  é  hoje  uma  realidade, 
cientificamente  comprovada.  Não  somente  as  experiências  clássicas  de  Richet, 
Crookes,  Schrenck­Notzing  e  outros  a  comprovaram,  como  também  e 
principalmente os estudos experimentais do Prof. W. J. Crawford, da Universidade 
de Belfast,  Irlanda, que  já  referimos. Esses  estudos  foram realizados  entre  1914  e 
1920,  com  a  médium  Kathleen  Goligher.  Verificou  Crawford  a  existência  de 
alavancas  de  ectoplasma,  produzindo  os  fenômenos  de  levitação.  Mais  tarde, 
chamou essas alavancas de “estruturas psíquicas”. 
No  TRATADO  DE  METAPSÍQUICA,  entretanto,  Richet  se  refere  a  essas 
estruturas  como  “Alavancas  de  Crawford”.  Gustavo  Geley  realizou  também 
numerosas experiências com o ectoplasma, servindo­se da médium Eva Carrière, a 
mesma  que  realizara  sessões  com  Richet,  em  Argel,  na  casa  do  General  Noel, 
produzindo as excelentes materializações de Bien Boas, um árabe. Richet publicou, 
no “Tratado”, uma fotografia dessas materializações, vendo­se o  fantasma de Bien 
Boas pairando no ar e  ligado por uma “alavanca” ao corpo da médium. Constatou 
Geley,  com o mais  rigoroso critério científico, as  formas de emanação  fluídica do 
ectoplasma, que descreveu como “uma substância esbranquiçada que sai do corpo da 
médium”. Aconselhamos os interessados neste assunto a lerem o capítulo intitulado 
“Ectoplasma”,  do  livro  HISTÓRIA  DO  ESPIRITISMO,  editado  em  português  pela 
Livraria O Pensamento, de S. Paulo, em 1960, em tradução de Júlio Abreu Filho. 
Mas  o  que  nos  interessa,  quanto  ao  ectoplasma,  neste momento,  é  a  sua 
relação  com  as  forças  mágicas  de  mana  ou  orenda.  Além  da  emanação  fluídica 
esbranquiçada, a que se refere Geley,  o ectoplasma apresenta­se  também de  forma 
invisível. Assemelha­se, então, a uma força imponderável,como o magnetismo ou a 
eletricidade. O Prof.  Imoda,  italiano, nas  experiências  de  ideopIastia,  que  realizou 
com a médium Linda Gazzera, em conjugação com Richet, expõe uma curiosa teoria 
das  três  formas  do  ectoplasma:  a  invisível,  a  fluídica­visível  e  a  concreta,  no  seu 
livro  FOTOGRAFIAS  DE  FANTASMAS.  Geley,  por  sua  vez,  constatou  que  o 
ectoplasma, em forma invisível, girava em torno das pessoas, nas sessões, antes da 
produção de fenômenos. O mais curioso, porém, é a comparação dos dados colhidos 
sobre a força mana ou orenda, na Polinésia, por Freedom Long, e as observações do 
Prof.  Crawford,  em  Belfast,  sobre  o  ectoplasma.  Verifica­se  então  a  plena
21 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
correspondência  entre  as  duas  forças.  Os  selvagens  polinésicos  diziam,  como  já 
referimos, que o ectoplasma humano é produzido pela mente. O Prof. Geley afirma, 
por sua vez, que os Espíritos, nas sessões experimentais realizadas por ele e outros 
cientistas,  na  Europa  e  na  América,  agiam  sobre  o  cérebro  dos  médiuns  e  dos 
participantes da reunião, para provocar a emanação do ectoplasma. 
A  observação  vulgar  dos  selvagens,  traduzindo  uma  simples  opinião, 
coincide,  assim,  com  a  observação  científica  de  Geley.  Como  em  tantos  outros 
casos;  a  ciência  confirma,  dessa  maneira,  um  conhecimento  vulgar,  adquirido  na 
experiência  comum.  Provocada  a  emanação,  o  ectoplasma  gira  em  torno  dos 
assistentes, flui em redor do grupo, aumentando pouco a pouco sua intensidade e sua 
força, para a final se dirigir ao médium. Liga­se ao sistema nervoso deste, formando 
aquilo que Geley considera “um suprimento”. É graças a este “suprimento” que os 
Espíritos,  chamados  por Geley  de “operadores”,  conseguem produzir,  em  seguida, 
os vários fenômenos de levitação, movimento de objetos e materialização. A teoria 
científica  do  “suprimento”  de  ectoplasma  corresponde  também  à  “superstição” 
polinésica  de  acumulação  ou  armazenamento  de mana  ou  orenda,  para  operações 
mágicas posteriores. 
Resta  acentuar  que  o  processode  seleção  do médium  e  de  realização  de 
sessões é praticamente o mesmo, entre selvagens e civilizados. Bozzano explica que 
os selvagens se utilizam de indivíduos sensitivos, depois de prová­los quanto a essa 
qualidade, e realizam suas sessões à noite ou ao entardecer, evitando a luz excessiva 
do  sol.  Freedom Long  chega  a  pormenores  curiosos. Os  selvagens  se  dispõem ao 
redor  de  uma  pequena  cabana  de  palhas,  para  cantar  e  dançar,  ao  entardecer.  O 
médium  fica  no  interior  da  cabana.  Esta  corresponde,  como  vemos,  à  cabina 
mediúnica das experiências científicas, onde o médium se livra da incidência da luz 
na sala de sessões. As experiências de Crookes, por exemplo, feitas a plena luz, com 
as famosas materializações de Katie King, eram desse tipo. A médium ficava num 
gabinete  ou  cabina,  onde  se  processa  a  elaboração  ectoplásmica.  Só  depois  de 
materializado,  o  espírito  sai  para  a  sala  iluminada.  Os  fenômenos  produzidos  nas 
selvas são naturalmente mais grosseiros, violentos  e  fortes, que  os produzidos nas 
experiências  científicas.  Isso  se  explica  pela  qualidade mental  dos  assistentes,  do 
próprio médium,  e  consequentemente  dos  “operadores”  ou  espíritos  que  atuam no 
meio selvagem. Os fenômenos do meio civilizado são mais sutis, revestindo­se, por 
vezes,  de  inegável  harmonia  e  beleza,  como  ocorria  nas materializações  de Katie 
King,  com Crookes,  e  nas  famosas  sessões  com  o médium Douglas Home,  onde 
havia encantadoras materializações de mãos. As mãos grosseiras da selva, porém, e 
as  delicadas  mãos  inglesas  das  sessões  de  Home,  revelam  a  mesma  coisa:  a 
sobrevivência do homem após a morte do corpo e a possibilidade de comunicação 
entre encarnados e desencarnados. As mãos produzidas por mana ou orenda indicam
22 – J. Herculano Pires 
aos  homens  o  mesmo  caminho  de  espiritualização  indicado  pelas  mãos  de 
ectoplasma. 
Das selvas à civilização, os Espíritos ensinam aos homens que a vida não se 
encerra no túmulo, como não principia no berço.
23 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
CAPÍTULO II 
HORIZONTE AGRÍCOLA: 
ANIMISMO E CULTO DOS 
ANCESTRAIS 
1– Racionalização anímica 
Quando estudamos o “horizonte agrícola”, ou seja, o mundo das primeiras 
formas sedentárias de vida social, vemos o animismo tribal desenvolver­se no plano 
da racionalização. Estamos naquele momento hegeliano, e por isso mesmo dialético, 
em que a razão se desenrola no processo histórico, entendido este como progresso 
do homem na terra. A domesticação de animais e de plantas, a invenção e o emprego 
de  instrumentos, a criação da  riqueza, processam­se de maneira  simultânea com o 
aumento  demográfico  e  o  desenvolvimento mental  do  homem. É  precisamente  do 
desenvolvimento  mental  que  vai  surgir  uma  consequência  curiosa:  o 
aprofundamento  da  crença  tribal  nos  espíritos,  num  sentido  de  personalização, 
envolvendo os aspectos e os elementos da natureza. 
A  experiência  concreta,  que  deu  ao  homem primitivo  o  conhecimento  da 
existência dos espíritos, alia­se agora ao uso mais amplo das categorias da razão. As 
duas formas gerais de racionalização do Universo, que aparecem nesse momento, e 
que  devem  constituir  a  base  de  todo  o  processo  de  racionalização  anímica,  são  a 
concepção  da  Terra­Mãe  e  a  do  Céu­Pai.  Essas  formas  aparecem  bem  nítidas  no 
pensamento chinês, que conservou até os nossos dias os elementos característicos do 
“horizonte  agrícola”.  O  céu  é  o  deus­pai,  que  fecunda  a  terra,  deusa­mãe.  Em 
algumas  regiões,  como  podemos  ver  no  estudo  da  civilização  egípcia,  há  uma 
inversão  de  posições:  o  céu  é  mãe  e  a  terra  é  pai.  Essa  inversão  não  tem  outra 
significação que a de maior  importância da  terra ou do céu para a vida das  tribos. 
Quando as inundações do Nilo não dependem das chuvas locais, não parecem provir 
do céu, mas das próprias entranhas da terra. Esta encarna, então, o poder fecundante, 
cabendo ao céu, tão­somente, o papel materno de proteger as plantações. Os estudos 
materialistas  confundem  o  problema  da  racionalização  com  o  da  experiência 
concreta da sobrevivência. Tomam, pois, a Nuvem por Juno, ao concluírem que o 
homem primitivo atribui à terra e ao céu uma feição humana, unicamente para tornar 
o mundo exterior acessível à compreensão racional.
24 – J. Herculano Pires 
Os estudos espíritas mostram que há uma distinção a fazer­se, nesse caso. O 
processo de  racionalização decorre da experiência concreta, e por  isso mesmo não 
pode ser encarado de maneira exclusivamente abstrata. Procuremos esclarecer isto. 
De  um  lado,  temos  a  experiência  concreta,  constituída  pelos  contatos  do  homem 
com  realidades  objetivas.  De  outro  lado,  temos  o  processo  da  racionalização  do 
mundo,  ou  seja,  de  enquadramento  dos  aspectos  e  dos  elementos  da  natureza nas 
categorias  da  razão  ou  categorias  da  experiência.  Da  mesma  maneira  porque  o 
contato  do  homem  com  o  espaço  físico  lhe  fornece  uma  medida  para  aplicar  às 
coisas exteriores — a categoria espacial, o conceito de espaço — assim também o 
contato  com  os  fenômenos  espirituais  lhe  fornece  uma  medida  espiritual,  que  é 
conceito  de  espírito.  Este  conceito  é  usado  no  processo  de  racionalização,  como 
qualquer  outro.  Mas  é  absurdo  querermos  negar  os  fatos  concretos  que  deram 
origem  à  categoria  racional,  ou  querermos  atribuir  a  essa  categoria  uma  origem 
abstrata, diferente das outras. 
Somos levados, assim, a concluir que o animismo do “horizonte agrícola” 
apresenta três aspectos distintos, quando encarados sob a luz do Espiritismo. Temos 
primeiramente o aprofundamento do animismo tribal na personalização da natureza, 
que chamaremos, Fetichismo, com os  fetiches básicos da Terra­Mãe e do Céu­Pai. 
Depois,  temos  a  fusão  da  experiência  e  da  imaginação,  com  o  desenvolvimento 
mental do homem, no progresso natural do Mediunismo. Dessa  fusão vai nascer a 
mitologia  popular,  impregnada  de  magia.  E  em  terceiro  lugar  encontramos  a 
primeira forma de religião antropomórfica, consequência da experiência concreta de 
que fala Bozzano, com o culto dos ancestrais. Deuses­lares, manes e deuses­locais, 
como  os  deuses  dos  “pomos”  egípcios,  por  exemplo,  são  entidades  reais  e  não 
formas de  racionalização. Nos deuses dos pomos  egípcios,  ou seja, das regiões do 
antigo Egito, temos já o momento de transição dos deuses reais para o processo de 
racionalização.  A  transição  se  efetua  por  uma  maneira  bastante  conhecida.  É  um 
processo de fusão, que encontramos ao longo de todo o desenvolvimento espiritual 
do homem.
O Fetichismo se funde com o Culto dos Ancestrais, através do Mediunismo. 
Os fetiches, como a terra e o céu, misturam­se aos ancestrais, identificam­se a eles, 
na  imaginação  em  desenvolvimento.  A  mente  rudimentar  não  sabe  ainda  fazer 
distinções precisas. Assim, por exemplo, Osíris, que foi um antepassado e como tal 
recebeu um culto  familiar,  transforma­se numa personificação da  terra, com o seu 
poder de fecundação, ou no próprio Nilo, cujas águas sustentam a vida. A projeção 
anímica  se  realiza,  nesse  caso,  através  de  uma  experiência  concreta.  A mitologia 
nasce  da  história,  pois  a  existência histórica  de Osíris  é  convertida  em mito,  pela 
necessidade de racionalização do mundo. 
Nada melhor  que  os  estudos  de Sir  James Frazer  sobre  o mito de Osíris, 
para nos mostrar isso. Kardec esclarece este problema, ao comentar a pergunta 521
25 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
de O LIVRO DOS ESPÍRITOS, afirmando: “Os antigos haviam feito desses Espíritos 
divindades especiais. As Musas não eram mais do que personificação alegórica dos 
Espíritos protetores das ciências e das artes, como chamavam pelos nomes de lares e 
penates os Espíritos protetores da família. Entre os modernos,as artes, as diferentes 
indústrias, as cidades, os países, têm também os seus patronos, que não são mais do 
que os Espíritos Superiores, mas com outros nomes”. 
Ao fazerem dos Espíritos “divindades especiais”, como assinala Kardec, os 
antigos procediam à racionalização do mundo, o que não quer dizer que os Espíritos 
fossem  apenas  formas  racionais.  Essas  formas,  pelo  contrário,  decorriam  de  fatos 
concretos, de  realidades naturais. Como vemos, ao  tratar do animismo primitivo  e 
seu desenvolvimento no “horizonte agrícola”, não podemos negar a existência real 
dos  espíritos,  a  pretexto  de  explicar  o mecanismo  do  processo  de  racionalização. 
Este  mecanismo  torna­se  mesmo  inexplicável,  quando  lhe  suprimimos  a  base 
concreta  dos  fatos,  como  dizia  Bozzano,  na  qual  se  encontram  os  espíritos 
comunicantes. 
Vê­se claramente a distorção da realidade, a guinada do pensamento para os 
rumos do absurdo, quando os cientistas materialistas tentam explicar o processo de 
racionalização,  ignorando  as  experiências  mediúnicas  do  homem  primitivo.  O 
Espiritismo  restabelece  a  verdade,  ao  mostrar  a  importância  do  mediunismo  no 
desenvolvimento humano. 
2 – O exemplo egípcio 
A China e a Índia são os dois países que conservaram até os nossos dias a 
estratificação  religiosa  do  horizonte  agrícola. Mas  não  são  os  únicos.  Aquilo  que 
chamamos  de  horizonte  agrícola,  o  mundo  das  grandes  civilizações  agrárias, 
constitui  uma  espécie  de  subconsciente  coletivo  das  civilizações  modernas.  Os 
resíduos mágicos, anímicos e mitológicos do horizonte tribal e do horizonte agrícola 
apresentam­se  ainda  bastante  fortes  no  inundo  contemporâneo.  Nossas  religiões 
mostram­se  poderosamente  impregnadas  desses  resíduos.  Mas  o  antigo  Egito 
oferece­nos,  talvez,  o  quadro  que  melhor  demonstra  a  passagem  dos  deuses­ 
familiares para a categoria dos deuses­cósmicos ou universais. O exemplo egípcio é 
fecundo em vários sentidos. Não só demonstra essa transformação dos deuses, como 
também  nos  fornece  as  raízes  históricas  de  vários  dogmas,  sacramentos  e 
instituições das religiões dominantes em nosso mundo. 
Já estudamos, embora rapidamente, o caso de Osíris, cuja existência real é 
transformada  em  mito.  Esse  caso  nos  coloca  numa  posição  semelhante  a  de 
Evêmero, para quem os deuses mitológicos haviam sido personagens reais. Mas é 
essa,  exatamente,  a  posição  espírita,  como  já  vimos  em  Kardec.  A  mitologia,
26 – J. Herculano Pires 
encarada atualmente  como uma  forma de  racionalização,  é  para  o Espiritismo um 
pouco mais do que isso. Porque é também uma prova da participação dos Espíritos 
na História,  ao mesmo  tempo  em  que  uma  poderosa  fonte  de  esclarecimento  dos 
problemas religiosos. Vemos no Egito duas categorias de deuses, bem definidas: a 
dos  deuses­cósmicos  e  a  dos  deuses­familiares. Na primeira,  encontramos  a  tríade 
familiar  constituída  por  Osíris,  Ísis  e  Hórus,  com  toda  a  sua  corte  de  divindades 
consanguíneas  e  de  outras  divindades.  Na  segunda,  encontramos  casos  curiosos, 
como  os  referentes  aos  deuses  Imhotep,  Amenhotep  e  Bês,  o  anão. Estes  deuses­ 
familiares oferecem­nos o exemplo de divinização cósmica e universal que justifica 
a tese evemerista. Imhotep, médico do rei Dsejer, da terceira dinastia, e Amenhotep, 
arquiteto e médico de Amenofis III, da décima oitava dinastia, passam lentamente da 
categoria  de  deuses­familiares  para  a  de  deuses­universais,  adorados  como 
entidades­terapeutas,  para  chegarem  depois  ao  limiar  da  categoria  superior  de 
deuses­cósmicos,  encarnando  a  própria  medicina  ou  os  poderes  curadores  da 
natureza. Quando vemos todo esse processo de transformação realizar­se aos nossos 
olhos, através dos estudos históricos, compreendemos a maneira por que a  família 
cósmica  de  Osíris,  Ísis  e  Hórus,  o  deus­pai,  a  deusa­mãe  e  o  deus­filho,  foram 
elevados  da  terra  ao  céu.  Assim  como  Imhotep  e  Amenhotep,  anteriormente 
adorados  na  família  real,  como  deuses­familiares,  depois  se  tornam  deuses­ 
populares, e por fim se transformam em divindades mitológicas ou deuses­cósmicos, 
assim  também aconteceu,  forçosamente, com a  família osiriana. E isso quer dizer, 
pura e simplesmente, o seguinte: que aquilo que hoje chamamos, no Espiritismo, de 
espíritos­familiares,  ou  seja,  a  manifestação  mediúnica  dos  parentes  e  amigos 
mortos, que velam pelos nossos lares, é a fonte da mitologia, a base do processo de 
racionalização e a própria origem das religiões. 
O caso do anão Bês é também bastante elucidativo. Esse anão tornou­se um 
espírito­popular, isto é, passou do culto  familiar para o culto do povo. Costumava 
aparecer  cercado  de  macacos.  Devia  ter  sido  um  anão  que  tratava  de  macacos 
sagrados. Depois de morto, seu espírito aparecia aos videntes, ou nos momentos de 
aparição mediúnica, da mesma maneira por que ele vivera. E como possuía virtudes 
que  interessavam  ao  povo,  além  de  apresentar­se  de  maneira  curiosa,  em  breve 
rompeu  os  limites  do  culto  familiar.  Os  macacos  que  o  cercavam  eram 
remanescentes  da  zoolatria,  aliás  muito  abundante  no  Egito,  onde  a  zoolatria 
imperou até o fim da civilização. O anão Bês é um caso típico de universalização de 
um  deus­familiar.  O  fato  de  não  ter  esse  processo  atingido  à  categoria  do  deus­ 
cósmico  nada  tem  de  extraordinário.  Os  processos  naturais  nem  sempre  se 
completam. Os egípcios mantiveram­se apegados à zoolatria, como os  indianos se 
mantêm até hoje. O escaravelho dos amuletos, a adoração do Boi Apis em Mênfis, 
de Ibis na bacia do Nilo, dos Crocodilos em Tebas e do Bode de Mendes no Delta, 
são exemplos da arraigada zoolatria egípcia. Mas há casos de ambivalência, como o
27 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
do Crocodilo, que era adorado em Tebas e na região do Lago Noeris, mas caçado em 
Elefantina. A zoolatria passa por uma fase de humanização, que culmina na fusão de 
elementos  animais  com as  figuras humanas. O  caso  da  deusa Hator  é  típico. Essa 
deusa, que equivale à Ceres dos romanos e à Demeter dos gregos, ora é apresentada 
com orelhas de vaca, ora com chifres, ora com o  bucrânio, ou ainda com este e  o 
sistro. 
A  lei  de adoração  de  que  fala Kardec,  evolui  dos  animais para  as  formas 
humanas, mas de maneira lenta. Os resíduos animais se conservam ainda nas figuras 
dos  deuses  antropológicos,  como  nas  próprias  imagens  de Horus,  com  cabeça  de 
falcão. A humanização dos deuses animais, que é fatal, pois a zoolatria não é mais 
que uma projeção anímica, vai implicar também a organização  familiar do panteão 
divino. Os deuses são reunidos em famílias, e a forma mais simples destas famílias é 
a tríade, constituída pelo pai, a mãe e o filho, como vimos no caso de Osíris. Essa 
tríade  familiar,  derivada  do  sistema  patriarcal  do  horizonte  agrícola,  é  uma  das 
formas mais antigas da trindade divina. O conceito de espírito, entretanto, fará sentir 
a  sua  influência  nesse  processo  de  socialização  dos  deuses.  Assim  como,  de  um 
lado, os elementos animais  serão  fundidos nas  figuras humanas das divindades, de 
outro, o conceito de espírito, ou seja, a ideia de espírito como forma sobre­humana 
de  existência,  fará  a  sua  intervenção,  em  sentido  contrário,  na  organização  das 
famílias humanas. 
Digamos  isto  de  maneira  mais  clara,  se  possível.  No  processo  de 
desenvolvimento da lei de adoração, os resíduos animais são projetados nas figuras 
humanas dos deuses, como no caso das orelhas e dos chifres da deusa Hator. Mas, 
ao  mesmo  tempo,  o  conhecimento  que  o  homem  obteve,  através  da  experiência 
mediúnica,  da  existência  de  seres  espirituais,  semelhantes  aos  seres  humanos, 
permitirá  o  agrupamento  dos  deuses  em  famílias  e  fará  que  as  famíliashumanas 
sofram a  intervenção divina. É o caso dos deuses gregos,  que se  enamoravam das 
“filhas dos homens”. O caso de Pitágoras, que não era filho de seu pai humano, mas 
do deus Apolo. O caso da teogamia egípcia, de que derivam as doutrinas teogâmicas 
das religiões cristãs. A teogamia egípcia atingiu sua forma perfeita, ou pelo menos a 
mais  definida,  com  a  rainha Hatsepshut,  cerca  de  1.500  a.  C.,  conservando  o  seu 
vigor até os Ptolomeus, no IV século a. C. Segundo essa doutrina, os Faraós eram 
portadores de dupla natureza, a humana e a divina, porque eram filhos da rainha com 
o  deus­solar.  Não  eram,  portanto,  filhos  de  um  homem,  e  nem  mesmo  de  um 
homem­deus, mas  do  próprio Deus,  que  através  de  processos  divinos  fecundava a 
rainha. 
O  conhecimento  desses  processos  históricos  é  indispensável  ao  espírita, 
para  imunizá­lo  contra  as  deturpações  místicas  ou  supersticiosas  da  doutrina,  tão 
comuns num mundo que, apesar  de  se  orgulhar  do  seu  progresso  científico,  ainda 
não se libertou de sua pesada herança mitológica.
28 – J. Herculano Pires 
3 – Os Mitos Agrários 
A  vida  agrária,  como  já  acentuamos,  marcou  profundamente  o  espírito 
humano, em seu desenvolvimento, nos rumos da civilização. Os mitos do horizonte 
agrícola exercem ainda poderosa influência em nosso mundo. Isso contribui para o 
descrédito das religiões, em face dos  estudiosos de história, e mais ainda, dos que 
tratam de mitologia. 
Osíris, por exemplo, como típico deus agrário, parece constituir uma prova 
das  origens  míticas  do  dogma  da  ressurreição.  Quando  os  cristãos  proclamam  a 
ressurreição de Cristo, os estudiosos sorriem com desdém, lembrando a ressurreição 
de Osíris. Vejamos porque. Osíris, filho da Terra e do Céu, cresce, viceja, esplende, 
e então é ceifado, retalhado ou moído, e por  fim enterrado. Mas da terra, como as 
sementes, Osíris renasce, para começar novo ciclo, semelhante ao anterior. Morto e 
espostejado por Set,  seu  irmão, é  ressuscitado por  sua esposa e  irmã, a deusa  Ísis, 
através de ritos especiais. Está bem visível a analogia agrária. Osíris é como o trigo, 
que depois da ceifa sofre a debulha, volta a ser enterrado na semeadura, e por  fim 
renasce. Às vezes, associado ao Nilo, é um deus  fluvial. Cresce com a  inundação, 
declina e morre na vazante, mas depois ressuscita e faz nascerem as plantas, com o 
poder mágico das águas. Osíris, deus­fluvial, está naturalmente ligado ao cultivo da 
terra.  No  seu  aspecto  fluvial,  porém,  apresenta­nos  um  elemento  novo,  que  é  a 
magia  da  água.  Vemos  nele  a  “água  pura”,  que  serve  para  purificar  a  terra  seca, 
estéril, poeirenta, e com ela os homens e os animais; a “água da renovação”, usada 
largamente nas abluções  sagradas  e  utilizada nas  formas  batismais,  como no  caso 
clássico de João Batista; e, por fim, a “água fecundante”, que representa a virilidade 
do deus­fluvial, fecundando a terra. Por isso, na sua mais alta expressão mitológica, 
o Nilo  flui  das mãos  de Osíris,  para  se  derramar  como  uma  bênção  sobre  a  terra 
árida. “Deus­agrário, — diz John Murphy— deus da inundação e de uma vida nova, 
a todos levava a esperança da ressurreição”. Essa esperança mantinha o prestígio do 
deus.  Assim  como  ele morrera  para  ressuscitar,  através  dos  ritos  agrários  de  Ísis, 
assim também os homens, uma vez submetidos a ritos semelhantes, ressuscitavam. 
Essa crença ingênua faz lembrar o dogma cristão, nas palavras do apóstolo 
Paulo:  “Se  não  há  ressurreição  dos  mortos,  também  Cristo  não  ressuscitou”.  (I. 
Coríntios,  15:12.)  O  sentido  osírico  da  ressurreição  cristã  toma­se  mais  evidente, 
quando  os  ritos  agrários  são  exigidos  para  que  a  alma  se  salve,  ou  seja,  para  que 
realmente  possa  ressuscitar.  Por  outro  lado,  há  um  paralelismo  histórico  bastante 
comprometedor. Osíris, graças à ressurreição, mostrou­se capaz de superar os outros 
deuses  egípcios,  da mesma maneira  por  que, mais  tarde,  graças  à  ressurreição,  o 
Cristianismo  superaria  as  demais  religiões  orientais  que  invadiram  o  Império 
Romano.  O  dogmatismo  religioso  não  consegue  furtar­se  ao  impacto  dessas
29 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
comparações. A  fé  ingênua,  imposta pela autoridade e a  tradição, derrete­se como 
cera frágil, ao fogo da razão. 
Somente  a  fé  racional,  ou  a  “fé  raciocinada”,  como  queria Kardec,  pode 
enfrentar serenamente essa análise histórica, sem perder­se na negação ou extraviar­ 
se  na  dúvida.  De  outro  lado,  a  razão  cética,  por  mais  cultivada  que  seja,  não 
consegue penetrar a essência do mito agrário. Assim como a fé necessita da luz da 
razão, esta luz, por sua vez, necessita do pavio da fé. O Espiritismo demonstra que o 
mito agrário é essencialmente analógico, nasce do poder comparativo da razão. Esse 
poder assimilou, desde a era tribal, a ressurreição humana, demonstrada pelos fatos 
mediúnicos, à ressurreição vegetal. Sem a prova material da existência do espírito, 
da sobrevivência do homem, o mito agrário se reduz ao seu aspecto analógico, não 
deixando  perceber  os motivos  profundos  da  analogia. Daí a  descrença  e  o  sorriso 
irônico dos “sábios”, que na verdade deviam esperar para sorrir mais tarde, uma vez 
que os que riem por último riem melhor. 
Agrário, também, é o mito da Virgem­Mãe, que adquire amplitude social e 
política  na  doutrina  da  teogamia  egípcia,  como  já  vimos.  A  terra,  deusa­mãe,  é 
virgem antes e depois do parto, pois não sai maculada da fecundação e está sempre 
em estado de pureza. Fecundada pelo deus celeste, floresce nas messes, embalando 
no  seu  colo materno  o Messias,  ou  seja,  o  deus­solar,  que  traz  a  luz,  a  vida  e  a 
fartura das colheitas, após o inverno. O mito agrário da Virgem­Mãe tem ainda o seu 
aspecto astronômico, à semelhança de todos os deuses­agrários, uma vez que a terra 
e o céu se conjugam no mistério da fecundação. 
A constelação da Virgem é a primeira a aparecer no céu, após o solstício do 
inverno.  Dela  nasce  o  Sol,  o  Messias.  E  a  constelação  continua  virgem,  após  o 
nascimento.  A  palavra  messe,  como  se  vê,  tem  um  grande  poder  mítico:  dela 
derivam o nome do Messias e do culto que lhe atribuem, mais tarde representado na 
liturgia da Missa. Assim também o mistério do pão e do vinho. O pão representava 
nos mistérios gregos a deusa Demeter, ou a Ceres para os romanos, mãe dos cereais. 
O vinho  representava Baco ou Dionísio,  deuses  da  alegria,  da  vida,  e  portanto  do 
espírito. Comer o pão e beber o vinho era simbolizar a fecundação da matéria pelo 
poder do espírito. A matéria impregnada pelo poder do espírito era representada, nas 
cerimônias  religiosas  pagãs,  pelo  pão  embebido  de  vinho.  Quando  os  hebreus 
chegaram  a  Canaã  encontraram  essa  prática  entre  os  cananitas.  Todo  o  horizonte 
agrícola se mostra dominado por essa simbologia mágica do pão e do vinho, de que 
o próprio Cristo se serviu, não para sujeitar os homens ao símbolo, mas para ilustrá­ 
los através dele. 
Bastam esses exemplos, para vermos a intensidade da impregnação mítica 
do  pensamento  religioso  contemporâneo.  O  Espiritismo  luta  contra  essa 
impregnação,  libertando  o  homem do  peso  esmagador  do  horizonte  agrícola,  para 
conduzi­lo ao horizonte espiritual, que Jesus anunciou à mulher samaritana.
30 – J. Herculano Pires 
4 – Jeová, Deus Agrário 
Quando estudamos  religião comparada, ou história das religiões, o  exame 
do “horizonte agrícola” nos revela a natureza agrária do deus bíblico Iavé ou Jeová. 
As  diferenças  fundamentais  existentes  entre  o Deus  bíblico  dos  hebreus  e  o Deus 
evangélico  dos  cristãos  decorre  da  diferença  de  horizontes.  Jeová  é  um  deus 
mitológico, em fase de transição para o horizonte espiritual. Nasceu, como todos os 
deuses agrários, por um processo sincrético. Nele se fundema experiência concreta 
da  sobrevivência  humana,  obtida  através  dos  fatos  mediúnicos,  e  a  exigência  de 
racionalização  do  mundo,  manifestada  nas  elaborações  mitológicas.  Ao  mesmo 
tempo, concepções várias, e até mesmo contraditórias, originadas ao longo da vida 
tribal  e  da  vida  agrícola,  também  se  misturam  nessa  figura  bíblica.  Daí  as  suas 
contradições,  que  dão  margem  a  tantas  críticas,  oriundas  da  incompreensão  do 
fenômeno  e  da  ignorância  do  processo  histórico.  Encontramos  em  Jeová,  num 
verdadeiro  conflito,  as  características  de  deus­tribal  e  deus­universal,  de  deus­ 
familiar e deus­popular, de deus­lar e deus mitológico. Como deus­tribal, Jeová é o 
guia e o protetor das tribos de Israel, e como deus­universal, pretende estender suas 
leis  a  todos  os  povos.  Como  deus­familiar,  é  o  clássico  “Deus  de Abrão,  Isaac  e 
Jacó”, protetor de uma linhagem de pastores, e como deus­popular, é o protetor de 
todos os descendentes de Abrão. Como deus­lar, é o Espírito que falava a Terá e a 
Abrão em Ur, à revelia dos deuses­nacionais dos caldeus, e como deus­mitológico, é 
aquele que declara na Bíblia “Eu sou o que sou”, tendo a terra por escabelo de seus 
pés  e  o  céu  por  morada  infinita  de  sua  grandeza  sobre­humana.  O  mesmo 
sincretismo que já estudamos no caso dos deuses egípcios aparece no deus hebraico. 
Se  a  deusa  Hator,  por  exemplo,  tinha  orelhas  de  vaca,  Jeová  ordena 
matanças, misturando  em  sua  natureza  características  humanas  e  divinas.  Protege 
especialmente  um povo,  uma  raça,  com  ferocidade  tribal,  e  se  não  exige mais  os 
antigos sacrifícios humanos, entretanto exige os sacrifícios animais e vegetais. Suas 
monumentais  narinas,  embora  invisíveis,  dilatam­se  gulosas,  como  as  de  Moloc, 
aspirando  o  fumo  dos  sacrifícios.  No  Templo  de  Jerusalém,  à  maneira  do  que 
acontecia  com  os  templos  gregos,  havia  locais  especiais  para  os  sacrifícios 
sangrentos  e  os  incruentos. Assim  como Pitágoras,  vegetariano,  podia  oferecer  ao 
deus  Apoio,  na  ara  especial  do  templo,  sacrifícios  vegetais,  assim  também  os 
hebreus podiam escolher a espécie de homenagens que deviam prestar a Jeová. 
A  história  dos  sacrifícios  ainda  está  por  ser  escrita,  embora  muito  já  se 
tenha escrito a respeito. No dia em que a tivermos, na extensão e na profundidade 
necessárias, veremos uma nova confirmação histórica do desenvolvimento da lei de 
adoração. Dos sacrifícios humanos passamos aos de animais, destes aos vegetais, e 
destes  aos  cilícios,  às  penitências  e  aos  simples  ritos  devocionais.  Correrá muita 
água por baixo das pontes, antes que Paulo, apóstolo, possa proclamar, apoiado no
31 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
ensino espiritual de Jesus, que existe um culto racional, consistente em oferecermos 
a  Deus  nosso  próprio  corpo,  como  “Hóstia  imaculada”.  No  entanto,  Jeová  já 
proclamara:  “Misericórdia  quero,  e  não  sacrifício”,  demonstrando  a  sua  evolução 
irrevogável para o “horizonte espiritual”, que raiaria mais tarde. 
Muitos estudiosos estranham a afirmação espírita de que o Deus bíblico é o 
mesmo Deus de Jesus. Fazendo uma distinção, que nos parece natural e necessária, 
entre a Bíblia, como Velho Testamento, e os Evangelhos, corno Novo Testamento, 
diremos que o Deus bíblico é o mesmo Deus evangélico. As diferenças entre ambos 
se  explicam  através  da  lei  de  evolução.  Se  os  homens  do  horizonte  agrícola  não 
podiam  conceber  o  Deus­único  senão  por  uma  forma  sincrética,  uma  mistura  de 
Deus e de Homem, os do horizonte espiritual irão concebê­lo de maneira mais pura. 
Não  se  trata,  porém,  de  dois  Deuses,  e  sim  de  um  mesmo  Deus,  visto  de  duas 
maneiras. Por trás de todas as formas de Deus, encontra­se uma realidade única, que 
é o próprio Deus.  Isso  o que permitia a  Jesus dizer­se filho de Jeová e ao mesmo 
tempo  apontar  o  seu  Pai  como  pai  universal,  em  espírito  e  verdade.  Da  mesma 
maneira,  os  princípios  fundamentais  da  Bíblia  não  são  negados, mas  confirmados 
pelos  Evangelhos.  A  Lei  não  é  destruída, mas  confirmada. Mais  de  uma  vez  nos 
servirá  de  esclarecimento  a  afirmação  de  Paulo:  “A  lei  era  o  pedagogo,  para  nos 
conduzir  a  Cristo”.  A  Torá  judaica  não  valia  pelas  suas  normas  exteriores  e 
transitórias,  circunstanciais,  mas  pela  sua  substância.  Essa  substância  é  que 
prevalece, sendo confirmada por Jesus, nos dois mandamentos principais: “Amar a 
Deus sobre  todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”. O processo histórico 
não  é  contraditório, mas  progressivo.  Quando não  sabemos  enxergar  as  linhas  da 
evolução,  em  seu  desenvolvimento  natural,  enxergamos  apenas  as  aparentes 
contradições das coisas. Assim como a ideia de Deus evolui com os homens, desde a 
litolatria  até  as  formas  mitológicas,  e  destas  à  concepção  espiritual  que  hoje 
aceitamos,  assim  também  os  princípios  e  os  postulados  bíblicos  vão  atingir  sua 
verdadeira expressão nos Evangelhos, e por fim sua espiritualização no Espiritismo. 
Há  um  encadeamento  perfeito  no  processo  histórico,  que  não  podemos 
perder  de  vista. Graças a  esse  encadeamento  os Espíritos  puderam dizer  a Kardec 
que o Espiritismo é o restabelecimento do Cristianismo, o que vale dizer: a última 
fase  do  desenvolvimento  histórico  do  Cristianismo.  Quando  sabemos  que  este 
originou­se  no  solo  do  Judaísmo,  representando  um  desenvolvimento  natural  da 
religião  judaica,  então  compreendemos  que  o  Espiritismo,  como  queria  Kardec  e 
como sustentava Léon Denis, é o ponto mais alto que podemos atingir, até hoje, em 
nossa  evolução  religiosa.  Jeová,  o  deus­agrário,  transforma­se  no  Pai  evangélico, 
para chegar à “Inteligência Suprema”, no Espiritismo. Jeová se depura, e com ele se 
depuram os ritos do seu culto, que por fim se transformam na “adoração em espírito 
e verdade”, de que falava Jesus.
32 – J. Herculano Pires 
O horizonte agrícola permanece subjacente em nossa mentalidade moderna. 
Ainda não conseguimos libertar­nos de suas fórmulas agrárias, de seus deuses e seus 
cultos,  carregados  de  sacrifícios  animais  e  vegetais.  O  “horizonte  civilizado” 
desenvolve­se sob  os signos agrícolas. Mas virá, por  fim, o momento de  transição 
para  o  “horizonte  espiritual”,  que  assinalará  uma  fase  de  transcendência  na  vida 
humana.
33 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
CAPÍTULO III 
HORIZONTE CIVILIZADO: 
MEDIUNISMO ORACULAR 
1 – Os estados teológicos 
Os  grandes  impérios  da  antiguidade,  as  chamadas  civilizações  orientais, 
passaram  lentamente  do  horizonte  agrícola  para  o  horizonte  civilizado.  O mesmo 
aconteceu  com  os  impérios  ocidentais,  que  constituiriam mais  tarde  a  civilização 
clássica  greco­romana.  Os  gregos,  e  posteriormente  os  romanos,  tiveram  bem 
marcado o seu horizonte agrícola. Roma nunca se  livrou das marcas profundas da 
sua origem camponesa. Mas antes que a Grécia e Roma superassem a fase agrária, já 
as civilizações orientais haviam desenvolvido todo um ciclo evolutivo, atingindo o 
horizonte civilizado, com as gigantescas estruturas de seus Estados Teológicos. 
Realmente,  os  grandes  impérios  do  Egito,  da  Assíria,  da  Babilônia,  da 
China, os reinos da índia, o pequeno reino de Israel, o fabuloso império da Pérsia, 
constituem verdadeiros Estados Teológicos, em que o humano e o divino se fundem 
e  se  confundem,  numa  estrutura  única.  A  Pérsia  vai  assinalar  o  apogeu  das 
civilizações  orientais,  que  encontrarão  na  sua  grandeza  e  no  seu  esplendor,  ao 
mesmo  tempo,  a  síntese  e  o  arremate  desse  espantoso  ciclo  evolutivo.  O  império 
persa será o último elo da grande cadeia, e com ele começará uma fase nova, cujo 
desenvolvimento, entretanto, caberá aos gregos e aos romanos: a fase de libertação 
do Estadodo domínio teológico. Essa libertação não se processará com rapidez, mas 
de maneira lenta. Assim, a própria civilização grega, e sua herdeira direta, a romana, 
apresentarão ainda, no horizonte civilizado, acentuado aspecto teológico. Mas com 
os persas já se inicia a separação dos dois poderes, o político e o religioso. Curioso 
notar­se  que  essa  separação,  iniciada  pelos  persas  no  terreno  da  educação,  vai 
projetar­se na Grécia em duas formas diferentes de estrutura estatal: Esparta será o 
Estado Político por excelência, com a religião submetida aos interesses temporais, e 
Atenas o Estado Teológico, dominado pelos deuses, mas já impulsionado, graças ao 
desenvolvimento econômico e cultural, nos rumos da emancipação política. Esparta 
recebe, por assim dizer, a herança persa como um impacto, que a modela de maneira 
rígida. Atenas, pelo contrário, absorve lentamente a contribuição persa e a reelabora 
através da crítica. A separação dos dois poderes, o civil e o religioso, se acentuará 
em  Atenas  com  o  desenvolvimento  da  democracia.  Esparta  oporá  ao  domínio
34 – J. Herculano Pires 
teológico a  supremacia estatal. Atenas, pelo contrário, oporá a  reflexão crítica e o 
individualismo, ou seja, os direitos do homem, como indivíduo. 
Os Estados Teológicos das civilizações orientais nos oferecem, portanto, o 
primeiro panorama desse novo ciclo da evolução humana, que chamamos horizonte 
civilizado. Analisando esses Estados, verificaremos que sua estrutura é herdada do 
horizonte  tribal.  O  monarca  egípcio,  babilônico,  hindu  ou  chinês,  é  um  cacique 
tribal, cujas dimensões  foram aumentadas quase ao infinito. Suas prerrogativas são 
as mesmas  da  vida  tribal:  domínio  absoluto  sobre  o  povo,  que  o  deve  respeitar  e 
adorar, como a um deus. A evolução econômica e técnica do horizonte agrícola, que 
determinaram  acentuado  desenvolvimento  do  animismo,  darão  estrutura  racional, 
mais  sutil  e  complexa,  a  essas  prerrogativas.  Mas  as  civilizações  orientais, 
dominadas  pelo  absolutismo  tribal,  serão  estruturas  teológicas  asfixiantes,  em que 
não haverá lugar para o indivíduo. O homem civilizado, à maneira do homem­tribal, 
será  apenas  uma  peça  da  gigantesca  engrenagem  do  Estado  Teológico,  que  lhe 
determinará,  de maneira  irrevogável,  as  formas  de  pensar e  de  sentir. O  estatismo 
espartano  será  uma  espécie  de  reação  política  a  esse  absolutismo  teológico,  mas 
servindo­se do mesmo processo de absorção. Somente a democracia ateniense abrirá 
possibilidades  a  um  individualismo,  tão  novo  e  tão  fascinante,  que  acabará  por 
embriagá­la, fazendo­a perder­se nos excessos do liberalismo. 
Nos  Estados  Teológicos,  a  estrutura  política  assemelha­se  à  estrutura 
metafísica ou divina. A Religião e o Estado se modelam reciprocamente, uma sobre 
o  outro,  e  vice­versa.  A  classe  sacerdotal,  racionalmente  organizada,  elabora  os 
mitos no plano intelectual, criando a teologia, estruturando ritualismo, estabelecendo 
a genealogia dos deuses e as formas de relações entre estes e os homens. A teogamia 
egípcia,  de  que  já  tratamos,  é  um  dos  mais  perfeitos  exemplos  dessas  formas  de 
relações: a genealogia divina se prolonga na genealogia humana dos faraós, graças à 
fecundação da rainha por um deus. Amalgamados assim os dois poderes, o temporal, 
o  divino,  na  própria  carne  dos  monarcas,  os  Estados  Teológicos  tornam­se 
monolíticos. Ainda  na Grécia  vemos  isso:  a  figura humana  de Zeus,  na  sua  corte 
olímpica,  refletindo  no  espaço  a  estrutura  política  da nação. Murphy  acentua  esse 
aspecto do horizonte civilizado, da seguinte maneira: “No horizonte que chamamos 
civilizado, a religião reflete o sistema político e social: é em geral politeísta, com um 
grupo de deuses semelhante ao Senado de uma República ou, mais frequentemente, 
à  corte  de  um  monarca  supremo  e  mais  ou  menos  autocrata.  Os  deuses  são 
principalmente  as  forças  da natureza,  como  anteriormente,  sob  horizonte  agrícola, 
mas,  agora,  mais  profundamente  personalizadas  e  dotadas  de  uma  realidade 
dramática,  que  resulta  do  progresso  da  reflexão  mental,  entre  as  classes  que 
dispuseram de lazer nessas antigas nações civilizadas”. 
Os Espíritos presentes nesse horizonte — devemos acentuar, por nossa vez 
—  são  ainda  os  da  tribo  e  os  do  horizonte  agrícola,  mas  enriquecidos  pela
35 – O ESPÍRITO E O TEMPO 
experiência  e  pelo  desenvolvimento  do  pensamento  abstrato.  Um  novo  Espírito, 
entretanto, marcará  esse  horizonte. Murphy  considera  o  seu  aparecimento,  e  com 
razão,  como  “acontecimento  de  imensa  importância”.  Trata­se  do  “Espírito 
Civilizado”,  como  o  chama  Murphy,  ou  o  que  poderíamos  chamar  Espírito  de 
Civilização. Esse Espírito se caracteriza por três funções especiais: a capacidade de 
formulação  de  conceitos  abstratos,  de  formulação  de  juízos  éticos  e morais,  e  de 
formulação de princípios jurídicos. Dessas funções surgirá o indivíduo, como a mais 
bela afirmação do horizonte civilizado. 
Como vemos, o homem se  liberta de si mesmo, da sua condição humana, 
construída  penosamente  através  das  estruturas  sociais  do  horizonte  tribal  e  do 
horizonte agrícola, procurando uma forma mais precisa de definição de sua natureza. 
Na  organização  tribal,  ele  se  libertou  da  condição  animal  e  do  jugo  absoluto  das 
forças da natureza, para elaborar a  sua condição própria. Na organização agrícola, 
ele aprendeu a dominar a natureza e submetê­la ao seu serviço, mas caiu prisioneiro 
da  estrutura  social.  No  horizonte  civilizado,  ele  começa  a  romper  os  liames  da 
organização social, para descobrir­se a si mesmo, o que só fará quando se tornar um 
indivíduo.  A  evolução  do  Espírito  está  bem  clara  nesse  imenso  processo  de 
desenvolvimento histórico da humanidade. O homem se eleva progressivamente da 
selva  à  civilização,  através  de  períodos  históricos  que  podem  ser  definidos  como 
“horizontes”, ou seja, como universos próprios, nos quais os diferentes poderes da 
espécie  vão  sendo  treinados  em  conjunto,  até  que  o  desenvolvimento  da  razão 
favoreça  o  processo  de  individualização.  Primeiramente,  o  homem  se  destaca  da 
natureza através do conjunto tribal; depois, reafirma a sua independência através dos 
conjuntos  mais  amplos  das  civilizações  agrárias;  e,  depois,  ainda,  constrói  os 
conjuntos  mais  complexos  das  grandes  civilizações  orientais.  Nestes  conjuntos, 
porém,  o  homem  descobre  a  possibilidade  de  destacar­se  individualmente  da 
estrutura social. O espírito humano se afirma como individualidade, como entidade 
autônoma, capaz de superar não somente a natureza, mas a própria humanidade. 
2 – O espírito de civilização 
O homem supera a Natureza desde o momento em que  se  torna capaz de 
organizar­se em sociedade. Nesse momento, ele deixa de ser o animal gregário das 
cavernas,  para  adquirir  uma  nova  natureza,  tornando­se  o  animal  político  de 
Aristóteles,  ou  seja:  um  ser  social. Dessa maneira,  o  ser  biológico  é  superado  por 
uma  forma  nova  de  ser.  O  desenvolvimento  humano  é  um  processo  de 
transcendência.  Cada  fase  do  processo  representa  uma  superação  da  anterior. 
Superar a Natureza, portanto, não quer dizer apenas dominá­la, adquirir poder sobre 
as  coisas  exteriores,  mas  superar­se  a  si  mesmo.  Quando  falamos  da  Natureza,
36 – J. Herculano Pires 
referimo­nos, em geral, ao binômio Homem­Natureza, que é um contraste dialético. 
De  um  lado  colocamos  o Homem,  como um poder  oposto  ao  que  se  encontra  do 
outro  lado,  representando  o  mundo  exterior.  Essa,  entretanto,  é  uma  concepção 
simplista, pois a verdade é bem mais complexa. O Homem não se opõe à Natureza 
como  uma  potência  contrária,  mas  como  parte  dela  mesma.  A  oposição  não

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