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HISTÓRIA LOCAL: O RECONHECIMENTO DA IDENTIDADE PELO CAMINHO DA INSIGNIFICÂNCIA Márcia de Almeida Gonçalves1 Uma cidade, um campo, de longe são uma cidade e um campo, mas à medida que nos aproximamos são casas , árvores, telhas, folhas, capins, formigas, pernas de formigas, até o infinito. Tudo isso está envolto no nome campo. Blaise Pascal O subtítulo proposto para nossas reflexões acerca da História Local é, na sua qualidade primeira, uma chave de leitura. É também, como complemento dessa perspectiva de entendimento, uma provocação, vale acrescentar, tomada de empréstimo das ponderações do historiador John Lewis Gaddis, no seu livro The landscape of History, versão em português para a edição brasileira sob o título Paisagens da História. Como os historiadores mapeiam o passado 2. Para Gaddis, “o estabelecimento da identidade requer o reconhecimento de nossa relativa insignificância no grande esquema das coisas”. Este seria, no seu entender, um dos significados da maturidade nas relações humanas e mais, do próprio valor de uso da consciência histórica. Citando as idéias de outro historiador, Geoffrey Elton, John Gaddis afirma que “o caminho da insignificância” conforma um aprendizado capaz de fazer com que sujeitos humanos, tão viciosamente inclinados a relacionar o mundo para si mesmos, passem a relacionar-se com o mundo3. Nesses termos, cabe então precisar que nossa chave de leitura nos guia na direção do desafio de pensar e conceber a História Local como campo de produção de uma consciência histórica, cujos usos, valores e sentidos nos interessa diagnosticar. Antes de enfrentarmos tal desafio, julgamos necessário realizar alguns esclarecimentos acerca da história e da memória de nossas proposições sobre história local. O uso da primeira pessoa do plural nesse texto/exposição não é mera formalidade acadêmica ou vício defensivo apagador de rastros individuais. O pronome nós, a interferir na inflexão dos verbos, traduz o pertencimento das idéias em discussão a um 1 Professora da UERJ e da PUC-RJ. 2 John Lewis Gaddis. Paisagens da História. Como os historiadores mapeiam o passado. Trad. de Marisa Rocha Motta. Rio de Janeiro: Campus, 2003. 3 Cf. John Lewis Gaddis. Op. cit., p. 20. grupo de pesquisa formado, originalmente, pelos idos de 1995, na Faculdade de Formação de Professores, campus regional da UERJ, situado no município de São Gonçalo4. Talvez não seja esse o espaço de historiar uma experiência de trabalho que já beira quase o seu primeiro decênio de trajetória. Vale, contudo, frisar alguns aspectos do passo a passo de reflexões, práticas e realizações que, no seu desenho atual, ocupam quatro professores – Luís Reznik, coordenador do projeto, a mim, Márcia Gonçalves, Alix P. S. de Oliveira e Marcelo Magalhães -, ex-alunos, bolsistas do PROATEC – Rui Aniceto e Henrique Mendonça -, e cerca de quatorze alunos, distribuídos em atividades variadas que o projeto, hoje intitulado História de São Gonçalo: memória e identidade, engloba5. No passo a passo de nossas investigações, a associação entre a história de São Gonçalo e o local, como eixo de problematizações, não se estabeleceu a priori, tendo sido articulada a partir de uma intensa complementaridade entre o fazer das práticas de pesquisa e as dúvidas e definições teóricas e conceituais que informaram, tanto quanto foram informadas, por essas mesmas práticas de pesquisa. Pensar e escrever sobre a História de São Gonçalo nos levou à história local, na mesma medida que nossas indagações sobre o local redimensionaram possibilidades de narrar histórias de um lugar chamado São Gonçalo. Talvez por isso nossa concepção sobre história local, como anteriormente anunciada, tenha se sedimentado sobre a perspectiva de compreendê-la como uma determinada consciência histórica, em especial, na dimensão de um saber ordenado e ordenador e que, nessa qualidade, condiciona a própria percepção das experiências de vida partilhadas por determinados sujeitos6. 4 O município de São Gonçalo é hoje um dos mais populosos do Estado do Rio de Janeiro, possuindo cerca de um milhão de habitantes. Integra a região metropolitana, ocupando, ao lado de Niterói, a orla oriental da Baía de Guanabara. São Gonçalo sofreu, no decorrer da segunda metade do século XX, um intenso, acelerado e desordenado processo de crescimento urbano e populacional. 5 Entre os produtos e publicações elaborados pelo projeto em questão, cabe destacar: - Márcia de Almeida Gonçalves e Luís Reznik (org.). Guia de fontes para a história de São Gonçalo. São Gonçalo: UERJ, 1999. - Luís Reznik, Haydee da Graça F. Figueiredo e Márcia de Almeida Gonçalves. Imagens de São Gonçalo. São Gonçalo: UERJ, 2001. (Catálogo de exposição fotográfica). A exposição itinerou por escolas da rede municipal de São Gonçalo, tendo sido acompanhada por um caderno de atividades pedagógicas, sob a coordenação da Prof ª Haydee Figueiredo. - Luís Reznik (org). O intelectual e a cidade. Luiz Palmier e a São Gonçalo moderna. Rio de Janeiro: Eduerj, 2003. A publicação acompanhou a exposição fotográfica intitulada Luiz Palmier – o intelectual e a cidade. 6 A discussão sobre o conceito de consciência histórica não se esgota nessa única perspectiva. Entre os textos que nos auxiliaram, além do já citado livro de John Lewis Gaddis, vale acrescentar: Retomemos, então, o desafio que orienta nossas reflexões nesse texto/exposição. Se a história local produz uma determinada consciência histórica, a mesma pressupõe, como toda consciência, como todo saber sobre algo, usos, valores e sentidos. Não pretendendo esgotá-los, nos limitaremos a inventariar algumas proposições que, esperamos, fomentem o debate e a troca de idéias sobre o tema. A história, enquanto conceito polissêmico, remete a dois grandes sentidos, quais sejam, a história como experiência, a história como conhecimento7. O adjetivo local, por sua vez, responde por uma qualificação que estabelece a circunscrição de um lugar. Esse sentido se manifesta mais claramente no uso do verbo localizar, qual seja, situar algo em um lugar, o que, por outro lado, nos leva a uma ação. A história local é, em intrínseca complementaridade, conjunto de experiências de sujeitos em um lugar e também, o conhecimento sobre o conjunto dessas experiências. Um autor, em particular, nos auxilia no desenvolvimento dessas argumentações: Alain Bourdin e seu livro intitulado A questão local8. Em suas indagações sobre o objeto local, Bourdin, em grande parte interessado em caracterizar efeitos e marcas da mundialização de valores culturais, em especial, quanto às práticas políticas, privilegia o local como categoria de análise de processos nos quais se manifesta a relação entre ação e lugar. Nesses termos, o local seria um recorte eleito por aquele que desejasse refletir sobre as experiências de sujeitos humanos em espaços sociais delimitados pelas proporções do que o saber matemático, no estabelecimento de medições e grandezas, identifica como a unidade. Diferentemente da lógica matemática, contudo, o recorte do local, para sociólogos, historiadores, antropólogos e tantos outros estudiosos de sujeitos humanos em suas vidas mundanas, não segue rigidamente os ditames de uma classificação ordenadora de sua extensão. Nas suas materialidades históricas, e exatamente pelas múltiplas variações que essas assumem, o que é reconhecido e identificado como pertencente ao âmbito local possui configurações diversificadas. A título de exemplificação, o local pode ser associado a uma aldeia, a uma cidade, a um bairro, a uma instituição – escolas, universidades, hospitais -, e como escolha por vezesHans-Georg Gadamer. O problema da consciência histórica. Organização de Pierre Fruchon. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1998. Jörn Rüsen. Razão histórica. Teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001. 7 Cf. Ilmar R. de Mattos e Selma R. de Mattos. “História: uma palavra, múltiplas significações”. In Ensinar e aprender História, hoje. Mimeo. 8 Alain Bourdin. A questão local. Trad. de Orlando dos Santos Reis. Rio de janeiro: DP&A, 2001. recorrente, a um espaço político-administrativo, como distritos, freguesias, paróquias, municipalidades. A despeito das variações, como destaca Alain Bourdin, o local é um lugar de sociabilidades marcado pela proximidade e pela contigüidade das relações entre os sujeitos que as estabelecem e talvez, por isso, seu uso, entre sociólogos, em muito tenha sido articulado ao conceito de comunidade9. Usar o local como categoria de análise centrada nas relações entre ação e lugar, como nos sugere Alain Bourdin, é, no nosso entender, uma tentativa de dar conta da enorme variação histórica que o qualificativo local passou a designar, não só ao longo do próprio uso acadêmico dessa circunscrição, mas, em especial, em função de nossa contemporaneidade de sociedades em rede. Nos limites de nossos objetivos nesse texto/exposição, não caberiam maiores digressões sobre uma história dos usos acadêmicos do conceito de local. De todo, em alguma medida, é sobre esse pano de fundo, talvez ainda por ser melhor desenhado, no que se refere a escrita da história do Brasil, no Brasil, que repousem nossos questionamentos e interrogações. Alain Bourdin propõe chaves conceituais e teóricas para categorizar o local pautando-se, no mais das vezes, nos estudos de autores sobre comunidades rurais na França. Por outro lado, explicita que uma reflexão sobre o objeto local, nos últimos trinta anos, se estabeleceu em estreita conexão com os estudos sobre os efeitos da globalização, destacando, entre eles, os revisionismos e debates sobre a questão nacional 10. A nós interessa, no entanto, destacar uma concepção de história local que a entenda como conhecimento histórico produtor de uma consciência acerca das relações entre as ações de sujeitos individuais e/ou coletivos em um lugar, dimensionado em sua ordem de grandeza como uma unidade. O estabelecimento desses lugares/unidades, por seu turno, se materializa na ação dos homens no mundo, ou seja, no curso de suas experiências históricas, nas quais se inserem os atos de nomear, leia-se identificar e localizar, os lugares onde se vive. Se o local condiciona e é condicionado pelas experiências de vida de sujeitos individuais e coletivos, se é, enquanto unidade, campo onde se estabelecem relações marcadas pela proximidade e pela contigüidade, a possibilidade de estudá-lo e conhecê- lo está hoje profundamente vinculada ao conceito de escala de observação. 9 Cf. Zygmunt Bauman. Comunidade; a busca por segurança no mundo atual. Trad. de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. 10 Cf. Alain Bourdin. Op. cit., pp. 25-92. De uso alargado entre geógrafos e cartógrafos, a escala de observação é o alicerce que fundamenta grande parte das operações cognitivas associadas à produção do conhecimento histórico. No caso das escolhas procedidas pelo historiador, a explicitação epistemológica de seus procedimentos teóricos e metodológicos tornou-se, em tempos hodiernos, um caminho de garantia das mazelas e paradoxos de seu ofício. É, nesses termos, por um lado, que o uso do conceito de escala de observação adquire significação ao viabilizar a construção de uma abordagem requalificadora de adjetivos – nacional, regional, local, individual, macrossocial, microssocial - há muito empregados pelos que gostam de contar histórias. O uso do conceito de escala de observação, por seu turno, adquiriu problematizações detalhadas, em especial, entre autores associados à micro-história. Termo imputado a historiadores italianos - Carlo Ginzburg e Giovanni Levi -, fundadores da revista intitulada Quaderne Storici, e diretores da coleção Microstorie, publicada pela Editora Einaudi, na década de oitenta11, a micro-história acabou por adquirir status de variante, com contornos muito próprios, entre os caminhos até então trilhados por autores afinados com a construção de uma história social e cultural centrada em recortes mais circunscritos de análise das relações sociais. Segundo esse ponto de vista, enfoques sobre as histórias particulares de indivíduos, vilarejos, grupos específicos - entre instituições, associações e classes - passaram a ser privilegiados entre os objetos e objetivos dos que procuraram valorizar o “micro”. Mais do que uma diferenciação em termos de objetos de estudo, a micro- história definiu-se por escolhas metodológicas que, hoje, passaram a ser mais discutidas por seus realizadores, entusiastas e críticos12. Para Jacques Revel, ela deve ser encarada como um sintoma historiográfico, pois constitui-se, na prática, como uma espécie de reação contra certas metodologias e eixos conceituais consagrados por produções dimensionadas pelo paradigma de uma inteligibilidade global do social. O questionamento desses pressupostos, trouxe, entre outras contribuições, o ato de submeter certos recortes de análise até então consagrados pelos métodos de quantificação - a paróquia, o conjunto regional, a cidade, a profissão - 11 Cf. Jacques Revel. “Microanálise e construção do social”. In Jogos de escalas. A experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1988, p.16. Ver também Giovanni Levi. “Sobre a micro-história”. In Peter Burke(org). A escrita da história. Novas perspectivas. São Paulo: Editora da UNESP, 1992. p. 135. 12 Para uma abordagem sintética acerca dessas polêmicas ver: Ronaldo Vainfas. Micro-história. Os protagonistas anônimos da História. Rio de Janeiro: Campus, 2002. a revisões do uso dessas categorias13. Assim a preferência pela construção de séries, em particular na demografia histórica, onde somente a correlação de diversos dados isolados sustentaria reflexões sobre aspectos da vida social, veio a ser relativizada sob o prisma de valorização de casos particulares e únicos. Revel acrescenta que a micro-história pautou-se na mudança das escalas de análise, com isso produzindo diferentes efeitos de conhecimento. Como no uso de uma lente objetiva, em fotografia, o enquadramento do objeto focado não se limita a mera ampliação ou redução do mesmo, mas a própria maneira de apresentar sua forma. Em uma outra perspectiva, a arte e as técnicas cartográficas não consistem apenas em apresentar em diversos tamanhos uma paisagem que se quer fixa e constante, a escolha da escala e sua explicitação é a chave de criação e de leitura para os conteúdos desse tipo de representação, e de apropriação cognitiva, do espaço geográfico14. Guardando as devidas diferenças, o trabalho do historiador poderia ser apresentado como uma espécie de cartografia do social. A imagem pode ser já um tanto desgastada, mas nos serve. Nesse papel, o espaço a ser conhecido teria fronteiras largas, fluídas e móveis: o social. Precisar as fronteiras dos inúmeros lugares sociais nos quais os sujeitos históricos protagonizam seus dramas e misérias humanas é, no nosso ponto de vista, uma das tarefas fundamentais do historiador, e pode vir a ser balizada pela escolha de uma escala de observação, desde que a mesma esteja subordinada a um determinado efeito de conhecimento perseguido pelo investigador. Ao esquadrinhar vestígios de experiências passadas, o historiador as elabora, sob intencionalidades diversas, como um efeito cognitivo, um algo a dizer, sob a forma de uma narrativa, que nos aproxima e nos afastadesse outro, o passado, que se quis conhecer. Ao delimitar lugares sociais de sujeitos e coletividades, ao circunscrever efeitos de conhecimento próprios, o conceito de escala de observação nos insere no entendimento de que uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas, como os gregos reconheceram, “a fronteira é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente”15. Ao elegermos o local como perspectiva de abordagem para as histórias de São Gonçalo estabelecemos um recorte, uma fronteira onde algo começou a se fazer presente: sociabilidades diversas, em temporalidades e territorialidades variadas, 13 Cf. Jacques Revel. Op. cit.. pp.16-19. 14 Idem. p.20. 15 Martin Heidegger. “Building, Dwelling, Thinking”. Apud Homi K. Bhabha. O local da cultura. Belo Horizonte, Ed da UFMG, 1998, p. 19. passaram a ganhar forma, retratadas que eram na busca de outros efeitos de conhecimento. Nesse ponto de nossa reflexão, uma interrogação se faz necessária. Em que medida a eleição do local, sob a ênfase da valorização das escalas microscópicas de abordagem das relações sociais, se antagoniza ou desqualifica escolhas centradas em outras perspectivas, como as delegadas às histórias da nação? A resposta para essa questão nos encaminha, por um lado, para o deslocamento da noção de história nacional, e por outro nos remete a discussão de outros conceitos fundamentais para o ofício do historiador, são eles: memória e identidade. Segundo Benedict Anderson, a nação pode ser compreendida como uma comunidade imaginada 16, construída e utilizada, como categoria central, por tantas narrativas históricas oitocentistas fundadoras de identidades, cuja circunscrição e reprodução figuraram como garantias supremas do que poderíamos denominar de processo de naturalização das entidades nacionais, sob a unidade tripartida do Estado, do Território e do Povo. Seguindo as ponderações de Ernest Renan17, toda unidade nacional, entendida como ética de partilha de valores culturais, e também como pilar de sustentação de Estados nacionais, foi estabelecida brutalmente, e na dependência direta da sedimentação de esquecimentos e lembranças – leiam-se, registros e apagamentos de memória -, atualizados pela escrita da história. Na tríade história-memória-identidade, identificamos a chave de compreensão e de deslocamento da escala da nação como categoria privilegiada das produções historiográficas acadêmicas e didáticas. Uma chave que nos permite responder a interrogação anteriormente proposta, asseverando que não existe antagonismo entre abordagens centradas nos recortes do local e do nacional, mas sim complementaridades, fundamentais, no nosso ponto de vista, para a formalização de críticas às diversas éticas de pertencimento que regem nossas inserções existenciais. Em tempos de gobalizações e mundializações, onde fronteiras culturais cada vez mais se deslocam numa vertiginosa circulação de idéias, valores, práticas e comportamentos, nos parece relevante enfocar as análises sobre as relações entre o local e o nacional como um dos caminhos de esquadrinhamento das identidades sociais. 16 Benedict Anderson. Imagined Communities. Reflections on the origin and spread of nationalism. Revised edition. London-New York: Verso, 1991. 17 Ernest Renan. “O que é uma nação?” In Maria Helena Rouanet (org). Nacionalidade em questão. UERJ: Instituto de Letras, 1997. pp. 12-43 ( Cadernos da Pós/Letras, nº 19). Nesse ponto o conceito de escala de observação retorna com todas as suas possibilidades de aplicação e nos faz, mais uma vez, dialogar com os interlocutores da micro-história: (...) não existe portanto hiato, menos ainda oposição, entre história local e história global. O que a experiência de um indivíduo, de um grupo, de um espaço permite perceber é uma modulação particular da história global. Particular e original, pois o que o ponto de vista micro-histórico oferece à observação não é uma versão atenuada, ou parcial, ou mutilada, de realidades macrossociais: é (...) uma versão diferente.18 Nesses termos, podemos concluir que a ênfase sobre a história local não se opõe às histórias nacionais. O recorte sobre a história local apenas designa uma delimitação temática mais ou menos inclusiva, em função das redes de interdependência e sociabilidade entre determinados atores, no lugar escolhido. A eleição da história local não diminui ou reduz ou simplifica o número de aspectos, variantes e interferentes de uma trama social. No recorte priorizador do local, cada detalhe mais ou menos aparente pode adquirir significação própria, o que não ocorre em uma abordagem centrada em planos mais macroscópicos de análise. As análises sobre história local permitem redimensionar a aparente dicotomia entre centro/periferia, deslocando tais categorias por intermédio da noção de rede e dos jogos de negociação, apropriação e circulação que informam as relações entre grupos e indivíduos, em especial, no campo das micropolíticas do quotidiano, espaços marcados pela proximidade e pela contigüidade das relações. Em especial, no curso de nossas indagações sobre os que viveram e vivem em terras gonçalenses, a história local constituiu-se como um campo privilegiado de investigação do traçado e da configuração das relações de poder entre grupos, instituições e indivíduos e, por conseguinte, dos processos movediços de sedimentação das identidades sociais. Como afirmamos anteriormente, e essa é uma proposição que gostaríamos de frisar, o recorte do local propicia outros efeitos de conhecimento que, na suas diferenças e especificidades, deslocam hierarquias e sobreposições entre o nacional e o regional, recortes tradicionalmente utilizados pelas narrativas da historiografia acadêmica. É preciso, contudo, evitar que a história local seja tomada como uma panacéia, espécie de resolução para os inevitáveis impasses e escolhas que envolvem a escrita da história. Equívoco de iguais proporções seria supor o recorte do local como substitutivo do nacional e do regional. O local, o regional e o nacional, na nossa perspectiva de análise, deixam de possuir uma relação meramente inclusiva, para se constituírem em modulações, cujos sentidos e valores, cabe, entre outros, aos historiadores diagnosticar e redimensionar. Nessas modulações, a história local pode viabilizar uma outra escrita para a história do Brasil, pondo em xeque a própria construção da categoria Brasil como unidade territorial, política, nacional. Nesse ponto, a história local emoldura, na sua narrativa, outros lugares de ação para sujeitos situados nas margens de certos locus de exercício de poder, ostentados por uma escrita da história comprometida com a fundação de uma consciência nacional. Nessa proposição, diríamos, não há nenhuma novidade. Outros, aliás, já a constataram. Alguns, inclusive, a materializaram, em belos trabalhos. Exemplos atuais são: o livro organizado pelos professores Flávio Gomes e Mary Del Priore, Os senhores dos rios. Amazônia, margens e histórias, e a obra, resultado de seminário temático, intitulada Brasil: formação do Estado e da Nação, dirigida pelo professor István Jancsó19. Em ambas, a despeito de todas as diferenças conceituais e metodológicas, encontramos narrativas historiográficas inventoras de outros brasis, ou melhor, encontramos maneiras de contar histórias sobre sujeitos variados que viveram nas terras de um lugar, em algum momento, batizado de Brasil. Olhado sob determinadas escalas de observação, o nome do lugar Brasil pode vir a ser, como nos sugere Blaise Pascal, na epígrafe que abre esse nosso texto/exposição, um universo plural. Se na historiografia acadêmica, o uso dos recortes do local e do regional já informa outras modulações para a história nacional, noâmbito da historiografia didática tais modulações ocorrem em iniciativas, sem dúvida numerosas e valiosas, mas que, em função da dispersão e do isolamento, acabam por não adquirir o merecido reconhecimento institucional, carecendo de um diálogo interdisciplinar viabilizador do maior refinamento das discussões conceituais e metodológicas que toda escrita da história pressupõe e exige. 18 Cf. Jacques Revel. “Microanálise e construção do social”. Op. cit. p. 28. 19 Cf. Mary Del Priore e Flávio Gomes (org.). Os senhores dos rios. Amazônia, margens e histórias. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003. István Jancsó (org.). Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo: Hucitec, 2003. Nesses termos, no nosso entendimento, o desafio maior da história local hoje é o de produzir outra pedagogia da história, em especial, uma historiografia didática que incorpore o local, parta dele e nisso valorize um caminho de sensibilização que configure a consciência histórica, na sua materialidade historiográfica, como possibilidade de “reconhecer a identidade pelo caminho da insignificância”. Crianças, jovens e adultos, sensibilizados, por intermédio de uma reflexão sobre o local, unidade próxima e contígua, historicizando e problematizando o sentido de suas identidades, relacionando-se com o mundo de forma crítica, mudando, ou não, enquanto sujeitos, a própria vida.
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