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LEJARRAGA, A L (2007) A noção de trauma em Ferenczi e Winnicott

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A noção de trauma em Ferenczi e Winnicott: aproximações e diferenças
Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro 63
Cad. Psicanal., CPRJ, Rio de Janeiro, ano 29, n. 20, p. 63-80, 2007
A noção de trauma em Ferenczi e
Winnicott: aproximações e diferenças
The notion of trauma according to Ferenczi and Winnicott:
similarities and differences
Ana Lila Lejarraga1
Resumo: Este artigo aborda as noções de trauma em Ferenczi e Winnicott, com o
intuito de fazer um estudo comparativo entre essas noções. O trabalho tem como
objetivo mostrar as aproximações e diferenças entre ambas perspectivas, focando
especialmente os efeitos devastadores do trauma patogênico e as peculiares ca-
racterísticas da cisão para ambos autores.
Palavras-chave: trauma, Ferenczi, Winnicott, clivagem, agonias impensáveis, fal-
so self.
Abstract: This article deals with the notions of trauma in Ferenczi and Winnicott, and
aims at a comparative study of these two notions. The objective of this work is to show the
similarities and differences in between these two perspectives, focusing especially on the
devasting effects of pathogenic trauma, and the peculiar carachteristics of splitting for
both authors.
Keywords: trauma, Ferenczi, Winnicott, cleavage, unthinkable agonies, false self.
1. Psicanalista, membro efetivo/CPRJ, Doutora em Saúde Coletiva - IMS-UERJ, Professora adjunta
do Instituto de Psicologia - UFRJ, Autora dos livros O trauma e seus destinos (Revinter, 1996) e Paixão
e ternura (Relume-Dumará, 2002)
Situações-limite na experiência psicanalítica
Cadernos de Psicanálise, CPRJ64
Cad. Psicanal., CPRJ, Rio de Janeiro, ano 29, n. 20, p. 63-80, 2007
A proposta deste trabalho é comparar as noções de trauma em Ferenczi
e em Winnicott, assinalando suas diferenças e apontando algumas curio-
sas aproximações.
Embora as reflexões de Ferenczi sobre os traumas acompanhem toda
sua obra2, ele constrói sua famosa teoria do trauma desestruturante nos
últimos anos de sua vida (1930-33), deixando textos inconclusos e indican-
do apenas, sem desenvolver, algumas de suas intuições. Aproximadamente
três décadas depois, Winnicott teoriza sobre as noções de si-mesmo, ago-
nias impensáveis, continuidade de ser, cisão entre verdadeiro e falso self,
elementos fundamentais de sua concepção do trauma, inseparável de sua
teoria do amadurecimento humano. Ambos autores, movidos pela inquie-
tação clínica ao tratar psicanaliticamente certos casos graves – psicoses e
casos-limite – abordam os efeitos devastadores do trauma patogênico em
íntima conexão com suas propostas clínicas.
Acompanhando as teorizações de Ferenczi e Winnicott sobre a noção
de trauma, encontramos várias convergências nas suas idéias, especial-
mente no que diz respeito às características da cisão patológica – defesa
básica frente ao trauma – o que pareceria apontar para uma linha de conti-
nuidade teórica. Entretanto, não desconhecemos suas profundas diferen-
ças teóricas na concepção do sujeito ou do animal humano. Assim, nosso
intuito é o estudo da noção de trauma para esses autores, tentando indicar
suas aproximações e diferenças, sem pretender enfatizar continuidades
ou ressaltar divergências.
Noção de trauma em Ferenczi
Ferenczi inicia seu ensaio Confusão de língua entre os adultos e a criança
lembrando do peso do fator traumático “injustamente negligenciado” (1933,
p.97), resgatando a importância do fator externo, real, como fator
patogênico. O trauma se origina por um abuso, geralmente sexual3, por
parte de um adulto que se deixa levar por sua linguagem da paixão, sobre
uma criança que está na linguagem da ternura. A violência do adulto é
imprevisível e incompreensível para a criança, que reage com um medo
intenso frente à esmagadora autoridade do adulto. Isso gera uma confu-
são de línguas, porque a sexualidade infantil é lúdica, desconhecendo a
2. Ferenczi teoriza sobre as catástrofes traumáticas, tanto na evolução das espécies quanto na
constituição psíquica individual, no seu livro Thalassa Ensaio sobre a teoria da genitalidade, escrito em
1914 e só publicado em 1924 (cf. Ferenczi, 1924/1990).
3. Embora o modelo teórico da confusão de língua remeta ao abuso sexual, o abuso também pode ser,
segundo Ferenczi, um castigo físico excessivo ou a própria hipocrisia do adulto sobre a criança.
A noção de trauma em Ferenczi e Winnicott: aproximações e diferenças
Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro 65
Cad. Psicanal., CPRJ, Rio de Janeiro, ano 29, n. 20, p. 63-80, 2007
ambivalência da “luta dos sexos” e o “sentido de aniquilamento do orgas-
mo” (Ferenczi, 1933, p.106), enquanto a paixão adulta é impregnada de
culpa e de ódio, procurando a cópula e o orgasmo.
Contudo, entendemos que a noção de “confusão de língua” ultrapas-
sa seu sentido literal de ser um choque entre o erotismo violento e passional
do adulto e o erotismo terno e lúdico da criança. É uma confusão, do pon-
to de vista da criança, entre o que ela espera e precisa do adulto e a surpre-
sa pelo imprevisto. A criança não pode mais ter segurança e confiança no
adulto, porque este não respeita suas necessidades infantis de ternura4.
No seu Diário Clínico, Ferenczi afirma que “o protótipo de toda confusão é
estar ‘perdido’ quanto à confiabilidade de uma pessoa ou de uma situa-
ção. Estar perdido é: ter-se enganado; alguém, por sua atitude ou suas
palavras, fez “cintilar uma certa relação afetiva...” (1932b, p.84). A confu-
são, desse modo, alude a um desencontro entre a confiança que a criança
deposita no adulto como provedor de cuidados e ternura e a atitude do
adulto violento e insensível que não respeita as necessidades da criança5.
Entretanto, não é o ato violento praticado pelo adulto, por si só, que
torna o trauma patogênico, mas a impossibilidade da criança de dar um
sentido ao ocorrido. Quando a criança, na tentativa de compreender o que
houve, procura um outro adulto e a resposta é o silêncio, a negação do
abuso ou a desautorização das impressões infantis, a criança não pode,
com seus precários recursos psíquicos, construir uma significação sobre a
experiência vivida. Trata-se do desmentido do adulto pelo qual são inter-
ditadas “não apenas as palavras, como também a possibilidade de ambi-
güidade, de múltiplos sentidos” (Pinheiro, 1995, p.76). O desmentido,
desprovendo as palavras de sua multiplicidade e de seu valor metafórico,
impede a dúvida e a circulação de sentido. Sem a ajuda de um terceiro que
possa reconhecer o sofrimento e a perplexidade infantil, que possa mediar
para que o ocorrido tenha algum sentido e seja metabolizado psiquica-
mente, a criança fica abandonada a suas próprias forças.
A reação imediata ao trauma é uma comoção psíquica que Ferenczi
descreve como uma “agonia psíquica e física que acarreta uma dor incom-
 4. Quando Ferenczi trabalha a noção de linguagem da ternura infantil, entendemos que a ternura
remete tanto à modalidade particular do erotismo infantil, diferente do adulto, quanto à necessidade
infantil de ternura, sobretudo materna, o que é denominado de “amor objetal passivo ou estádio da
ternura” (1933, p. 103).
5. Embora a noção de confusão de língua ferencziana possa ser interpretada como o desencontro
radical entre o mundo infantil e o mundo adulto, inerente à condição humana, trabalhamos neste
texto a acepção mais restrita dessa noção, ponto de origem de um trauma patogênico, tal como é
descrita no ensaio de 1933.
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Cadernos de Psicanálise, CPRJ66
Cad. Psicanal., CPRJ, Rio de Janeiro, ano 29, n. 20, p. 63-80, 2007
preensível e insuportável” (1931, p.79). Segundo o autor, frente ao choque
traumático, produz-se sempre uma psicose passageira, uma ruptura com a
realidade, seja sob a forma de uma alucinação negativa, um “isto não acon-
teceu”, ou um “estar fora de si” – em que se perdem as referências tempo-
rais e espaciais – ou um estado de desorientação psíquica. A dor é tão extre-
ma que a criança precisa distanciar-se de si mesma, afastar-se de seu
psiquismo e de seu corpo. As descrições de Ferenczi emrelação à comoção
psíquica aludem sempre ao terror, à catástrofe, à morte. Vejamos suas pala-
vras: “Uma criança é atingida por uma agressão inevitável, conseqüência:
ela “entrega a alma” com a convicção de que esse abandono total de si mes-
ma (desmaio) significa a morte” (1932b, p.73). O desprazer causado pela
comoção é tão superlativo que não pode ser superado, exigindo uma válvu-
la de escape: “Tal possibilidade é oferecida pela autodestruição, a qual, en-
quanto fator que liberta da angústia, será preferida ao sofrimento mudo”
(Ferenczi, 1932a, p.111). Nasce, assim, a desorientação psíquica que, porque
destrói a consciência, ajuda a suportar a dor moral.
Ferenczi considera que “o ‘choque’ é equivalente à aniquilação do
sentimento de si, da capacidade de resistir, agir e pensar com vistas à defe-
sa do Si mesmo (Soi)” (1932a, p.109). Segundo ele, a própria palavra
Erschütterung – comoção psíquica – deriva de Schut, que significa “restos”
ou “destroços” e “engloba o desmoronamento, a perda de sua forma pró-
pria e a aceitação fácil e sem resistência de uma forma outorgada, ‘à ma-
neira de um saco de farinha’” (1932a, p.109).
É importante ressaltar que o desprazer provocado pela comoção trau-
mática é tão excessivo que está além do representado. Nas palavras de
Ferenczi: “Uma grande dor tem, nesse sentido, um efeito anestésico; uma
dor sem conteúdo de representação é inatingível pela consciência” (1932b,
p.64). Não se trata simplesmente de desprazer, mas de dor, de uma “gran-
de dor” que não pode se inscrever no inconsciente nem ser recalcada. Como
diz Ferenczi: “(uma das conseqüências da comoção é) que nenhum traço
mnémico subsistirá dessas impressões, mesmo no inconsciente, de sorte
que as origens da comoção são inacessíveis pela memória” (1932a, p.113).
Do trauma só restariam, assim, marcas corporais, excluídas do sistema da
memória, que reapareceriam na cena analítica como manifestações neo-
catárticas ou símbolos mnésicos corporais.
Frente à dor insuportável ou estado de quase morte produzido pelo
choque traumático, a criança vê-se obrigada a “se submeter à vontade do
agressor, a adivinhar o menor dos seus desejos, a obedecer esquecendo-se
completamente de si, e a se identificar totalmente com o agressor” (Ferenczi,
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1933, p.102). A identificação com o agressor é uma estratégia de sobrevi-
vência: como a criança não pode “romper” com o agressor – adulto ideali-
zado do qual depende – ela abre mãe de suas impressões, rompendo com
uma parte de si. Ferenczi diz que frente ao extremo sofrimento, como a
criança é incapaz de reagir aloplasticamente, a única saída é ter uma rea-
ção autoplástica. Essa modificação de si consiste em incorporar dentro de
si o agressor, identificando-se com sua culpa, o que torna a criança “ao
mesmo tempo, inocente e culpada” (1933, p.102).
A incorporação do agressor, que Ferenczi nomeia, num deslize
terminológico que contraria sua própria teoria, como “introjeção do
agressor”, produz uma verdadeira devastação egóica. A introjeção6, concei-
to teorizado por Ferenczi desde 1909, é o processo mais primário e funda-
mental da constituição e do enriquecimento egóicos. A identificação com o
agressor impossibilita o processo introjetivo e produz o movimento contrá-
rio, de empobrecimento egóico. O agressor torna-se “o posseiro do ego”
(Pinheiro, 1995, p.83), ocupando indevida e patologicamente o espaço egóico.
Um curioso processo acompanha a identificação com o agressor: o
desenvolvimento súbito na criança de faculdades emocionais e intelectu-
ais de um adulto maduro. Esse processo de amadurecimento deformado e
precoce – a progressão traumática – torna a criança um “bebê sábio”
(Ferenczi, 1933, p.104), que cuida de si e dos outros, ao preço de renunciar
a seu eu infantil e terno.
Frente ao pavor ocasionado pelo trauma, a criança vê-se obrigada a
lançar mão de uma defesa mais radical que o recalque, nomeada por
Ferenczi de “autoclivagem narcísica” (1931, p.77). A identificação com o
agressor é uma parte indissociável dessa clivagem, já que enquanto um
fragmento egóico é ocupado violentamente pelo agressor, tornando-se
culpado e artificialmente amadurecido, o outro fragmento egóico fica oculto
ou destruído.
6. A introjeção faz com que o mundo externo seja absorvido na esfera do eu, povoando o mundo
psíquico de representações e de sentido. A introjeção primitiva, mecanismo básico do psiquismo
que acontece após a projeção primitiva, estabelece o diferencial de prazer/desprazer, apropriando-
se da qualidade da pulsão. Essa qualidade introjetada vai servir de matriz às futuras identificações.
Assim, para Ferenczi, a introjeção é o processo mais básico da constituição psíquica. Torok e Abraham
apontam o deslizamento terminológico de Ferenczi no ensaio de 1933, em que é utilizado o termo
“introjeção do agressor”, quando o que acontece é justamente o contrário, a saber, que o trauma
impede a introjeção. Eles propõem denominar esse mecanismo de “incorporação do agressor”,
mantendo o sentido original dado por Ferenczi ao conceito de introjeção. Sobre isto, consultar:
Ferenczi, 1909, 1912 e Pinheiro, 1995.
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Apesar do extremo sofrimento e da experiência de quase morte vivi-
da pela criança, as “forças órficas”7 tentam desesperadamente a sobrevi-
vência, embora ao custo da autodestruição de uma parte de si e da criação
de “uma espécie de psique artificial” (Ferenczi, 1932b, p.41) que possa
cuidar “dos restos”. A clivagem compõe-se, assim, de uma “parte sensí-
vel, brutalmente destruída, e uma outra que, de certo modo, sabe tudo
mas nada sente” (1931, p.77).
A clivagem descrita por Ferenczi resulta numa radical transformação
do eu infantil, e “essa neoformação do eu é impossível sem uma prévia
destruição parcial ou total, ou sem dissolução do eu precedente” (1932b,
p.227). Não se trata, simplesmente, de uma cisão de dois fragmentos egóicos
que perdem a coesão anterior, mas de uma total mutação em que ambas
partes egóicas são totalmente modificadas. A criança que foi violentada na
sua necessidade infantil de ternura sacrifica, por um lado, uma parte de si,
se autodestruindo para poder sobreviver. Ela aniquila, pela clivagem, o pró-
prio sentimento de si, sua espontaneidade8. Por outro lado, a parte que so-
brevive é invadida pelo sentimento de culpa do agressor, tornando-se sábia
e amadurecida. Esse fragmento egóico amadurece artificialmente porque,
como um “saco de farinha”, aceita facilmente a forma imposta do exterior.
Como diz Ferenczi: “Em lugar de me afirmar, é o mundo exterior (uma von-
tade estranha) que se afirma às minhas custas, ...” (1932b, p.150). Assim,
esse fragmento se transforma radicalmente em outro e, maleável e obedien-
te, ajuda à criança a retornar ao equilíbrio perdido pela comoção traumática.
Vemos que os fragmentos egóicos, embora cindidos e afastados, guar-
dam uma relação entre si, já que a parte amadurecida se torna um “bebê
sábio” que cuida da outra parte, infantil e sensível. Ferenczi utiliza tam-
bém a expressão “anjo da guarda” (1932b, p.40) para se referir à função
protetora do fragmento egóico culpado e sábio. Não deixa de ser parado-
xal que a defesa age destruindo uma parte de si para depois proteger os
restos dessa quase morte. Esses destroços esmagados da linguagem da
ternura tendem a retornar quando encontram um ambiente acolhedor e
benévolo, ou seja, um analista que não seja hipócrita, capaz de escutar as
7. “Orpha” e “forças órficas” eram expressões utilizadas pela paciente R.N., citada por Ferenczi no
seu Diário Clínico, para se referir a “instintos vitais organizadores”, que ajudam a criança a sobreviver
à catástrofe traumática. Quando “Orpha” é convocada, o ser violentamente agredido sobrevive,
ao custoda atomização da vida psíquica e de “criar uma espécie de psique artificial para o corpo
obrigado a viver” (Frenczi, 1932b, p. 41).
8. Ferenczi faz várias referências à perda da espontaneidade como resultado da comoção traumática,
como nesta frase: “Isso nos permite entrever o que constitui o mecanismo da traumatogênese: em
primeiro lugar, a paralisia completa de toda a espontaneidade (...)” (1931, p.79).
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vozes infantis e as manifestações corporais dessa dor incomensurável que
não pôde ser integrada9.
Noção de trauma em Winnicott
Embora a noção de trauma não pareça ser um aspecto central das
teorizações winnicottianas, nem existam muitos trabalhos sobre sua obra
que destaquem essa noção10, entendemos que a idéia de trauma é
indissociável de sua concepção do amadurecimento humano.
Winnicott, pediatra e psicanalista de casos graves – psicoses e casos-
limite –, desenvolve sua teoria do processo de amadurecimento centrado
nas relações de dependência entre um indivíduo que tem uma tendência
inata para o amadurecimento e um meio-ambiente facilitador. O bebê vai
desenvolver suas potencialidades inatas para se integrar no tempo e no
espaço, para se personalizar – alojar a psique no corpo – e para estabelecer
um contato com a realidade, se o ambiente for favorável. Se os cuidados
maternos forem suficientemente bons, o bebê realiza as tarefas básicas dos
estágios iniciais do desenvolvimento, estabelecendo-se uma “continuida-
de de ser” (Winnicott, 1960a, p.53).
O centro de gravidade do ser, entretanto, não está situado no bebê e
sim na estrutura mãe-bebê como um todo. Inicialmente o bebê só existe
fundido à mãe, e essa fusão significa que mãe e bebê são um só; que o bebê
não diferencia eu e não eu e que, quando ele olha para o rosto da mãe, ele
vê a si mesmo. O bebê, na sua onipotência alimentada pela devoção ma-
terna, acredita criar o seio da mãe – porque a mãe oferece o seio na hora
em que ele o alucina – tendo repetidas vezes a experiência de ilusão de ser
o criador da realidade que desconhece como externa. Ao mesmo tempo,
constitui-se a experiência da “mutualidade” (Winnicott, 1969), uma forma
de comunicação pré-verbal, afetiva e silenciosa, baseada na confiança do
bebê no ambiente, correlativa da fidedignidade do holding materno. Esse
estado fusional inicial permite ao bebê “ser” e “estabelece o que talvez
seja a mais simples de todas as experiências, a experiência de ser”
(Winnicott, 1971a, p.114).
Talvez devido a sua extrema simplicidade, essa experiência de ser é
difícil de ser concebida racionalmente. Segundo Winnicott, a experiência
9. Excederia os limites do presente trabalho abordar a proposta clínica de Ferenczi para tratar dos
pacientes traumatizados.
10. Na sua tese de Doutorado A teoria das psicoses em D.W.Winnicott, Elsa Oliveira Dias faz um minucioso
estudo da noção de trauma na obra winnicottiana, enfatizando seu aspecto temporal (cf Dias, 1998).
Situações-limite na experiência psicanalítica
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de ser relaciona-se com os estados tranqüilos do bebê, cuja característica é
a não integração, o que permite à criança o bem-estar do sossego e a habi-
lidade de relaxar. Para poder viver os estados tranqüilos, e entregar-se ao
sossego sem que nenhuma excitação o perturbe, o lactente precisa entre-
gar-se a um ambiente totalmente confiável. A condição para isto é o cuida-
do ambiental contínuo, monótono e previsível. Como diz Winnicott: “...atra-
vés dessa continuidade da provisão ambiental, e somente através dela, o
novo bebê em dependência pode ter continuidade na linha de sua vida,
evitando-se o estabelecimento de um padrão de reagir ao imprevisível e
sempre começar de novo” (1971c, p.191).
Essa experiência de ser é uma identidade incipiente e constitui a base do
sentimento do si-mesmo11. Nas palavras de Winnicott: “Por complexa que se
torne a psicologia do sentimento do self e do estabelecimento de uma identi-
dade, à medida que o bebê cresce, nenhum sentimento de self surge, exceto na
base desse relacionamento no sentimento de SER” (1971a, p.114). Esse senti-
mento de ser, a medida em que o lactente vai se integrando e constituindo um
si-mesmo unitário (eu sou), faz o bebê sentir-se real. Para Winnicott, o ele-
mento central no sentimento do si-mesmo é o “sentir-se real” e criativo. O si-
mesmo (ou self) é um termo descritivo para designar o “sentimento de ser
subjetivo” (Abram, 2000, p.221); de ser criativo e autêntico, condição para
construir sentidos para a vida e para que esta seja digna de ser vivida. Embora
Winnicott se refira a um si-mesmo central já nos primórdios da vida, o senti-
mento de si-mesmo se forma no estágio da dependência relativa, quando o
lactente conquista o estatuto de ser uma unidade.
O si-mesmo é indissociável da idéia de impulso ou gesto espontâneo,
que se opõe à idéia de reação à intrusão, o que remete às duas modalida-
des básicas de contato entre o indivíduo e o ambiente: espontaneidade e
reatividade12. Quando o ambiente-mãe se adapta às necessidades do bebê,
o contato com o ambiente se dá a partir do gesto espontâneo do bebê e ele
pode continuar a ser, formando e fortalecendo o sentimento de si-mesmo.
Quando o ambiente falha na adaptação ao bebê, este tem que se adaptar
11. As palavras si-mesmo e self são equivalentes na teoria winnicottiana. Utilizaremos o termo si-
mesmo neste trabalho, por entender que, sendo uma categoria descritiva da linguagem cotidiana,
aproxima-nos melhor da idéia de intimidade com nós mesmos, do que é sentido como nossa
subjetividade. Só usaremos o termo self nas citações em que aparece e para referir-nos ao verdadeiro
e falso self.
12. Nas palavras de Elsa de Oliveira Dias: “Em termos do amadurecimento pessoal, a questão
fundamental que se põe, já neste início, relaciona-se com a oposição entre espontaneidade e reatividade,
oposição que estará presente, em crescente complexidade, ao longo da vida.” (Dias, 2003, p.158).
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ao ambiente, reagindo à intrusão, o que implica uma perda de espontanei-
dade e uma quebra na sua continuidade de ser.
Para Winnicott, o trauma é essa ruptura na continuidade do ser,
provocada por falhas do ambiente. Nas suas palavras: “O trauma implica
que o bebê experimentou uma ruptura na continuidade da vida, de modo
que defesas primitivas agora se organizaram contra a repetição da ‘ansie-
dade impensável’ ou contra o retorno do agudo estado confusional pró-
prio da desintegração da estrutura nascente do ego” (1971b, p.135). Desse
modo, o trauma não é tanto a intrusão do ambiente em si mesma, mas a
reação do bebê a essa intrusão, que rompe sua continuidade de ser. Essa
ruptura é vivida pelo bebê como uma “agonia impensável”13, ou seja, uma
agonia que não pode ser pensada, nem representada, nem integrada.
Como o sentimento de si-mesmo é muito precário nesses estágios
iniciais do desenvolvimento, a ruptura na continuidade de ser é vivida
como uma ameaça de aniquilamento. Como diz Winnicott: “A alternativa
a ser é reagir, e reagir interrompe o ser e o aniquila. Ser e aniquilamento
são as duas alternativas.”(1960a, p.47) As agonias impensáveis são, assim,
angústias psicóticas que dizem respeito ao ser: a ameaça não é, como na
angústia da castração, a perda da onipotência narcísica, mas o aniquila-
mento do ser, já que o bebê interrompe seu vir-a-ser14 quando reage.
Winnicott lista essas agonias impensáveis no seu famoso ensaio “O
medo do colapso”: retorno a um estado não-integrado, cair para sempre,
perda do conluio piscossomático, perda do senso do real, perda da capaci-
dade para relacionar-se com objetos e, apontando para outras possíveisagonias primitivas, ele diz “e assim por diante” (1936b, p.72). O colapso
refere-se ao “impensável estado de coisas subjacente à organização
defensiva”(1936b, p.71). Vemos que, na teorização winnicottiana, “agoni-
as impensáveis”, “colapso” e “trauma” são termos próximos e parcialmente
substituíveis, embora cada um deles enfatize diferentes aspectos de um
mesmo fenômeno. Vejamos: a expressão “agonias impensáveis” enfatiza a
radical sensação de morte psíquica que nem sequer pode ser pensada por-
que acontece numa época pré-verbal e pré-psíquica; o termo “colapso”
alude à ruptura do si-mesmo unitário e à interrupção de todos os proces-
13. Em 1963, Winnicott prefere utilizar o termo “agonia primitiva ou impensável”, já que “ansiedade
(anxiety), aqui, não é uma palavra suficientemente forte” (1963b, p.72).
14. Nas palavras de Winnicott: “A mãe que é capaz de se devotar, por um período, a essa tarefa natural,
é capaz de proteger o vir-a-ser de seu nenê. Qualquer irritação, ou falha de adaptação, causa uma
reação no lactente, e essa reação quebra esse vir-a-ser” (1963a, p.82). Para efeitos deste trabalho,
consideramos como termos indistintos “vir-a-ser” e “continuidade de ser”.
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sos básicos do amadurecimento; e o termo “trauma” refere-se também à
ruptura da continuidade de ser, enfatizando, contudo, o desencontro entre
o ambiente (fator externo) e o indivíduo.
Outra importante característica do trauma é sua imprevisibilidade,
que remete a um fator temporal. Quando os cuidados ambientais são re-
gulares e previsíveis, o bebê torna-se capaz de prever acontecimentos e
reconhecer coisas familiares, construindo uma experiência de
confiabilidade que é base dos processos de integração no tempo e no espa-
ço. O trauma é o imprevisto que obriga o bebê a estar sempre reagindo e o
impede de se temporalizar, não podendo formar memórias de um passa-
do e projetar-se num futuro, “começando tudo de novo”(1971c, p.191) sem-
pre, num presente eterno.
Para Winnicott, “a idéia de trauma envolve uma consideração de fa-
tores externos; em outras palavras, é pertinente à dependência. O trauma
é um fracasso relativo à dependência” (1965, p.113). O fracasso do trauma
é um fracasso ambiental que provoca um colapso no incipiente si-mesmo,
o que é vivido pelo bebê como uma agonia de não ser ou de perder as
bases da existência.
Embora a noção de trauma em Winnicott remeta sempre a um fator
externo – a falha ambiental – isto não significa que esse fator seja uma
falha grosseira observável ou uma violência ruidosa. A falha ambiental
pode ser extremamente sutil; por exemplo, uma mãe deprimida que, quan-
do olha para seu bebê, não consegue refletir sua identificação com ele – ser
o espelho – mas só seu humor depressivo, impedindo ao bebê uma experi-
ência de ser através da função especular e interrompendo seu vir-a-ser. O
trauma, assim, não pressupõe uma falha brutal, embora esta também pos-
sa acontecer, mas implica necessariamente uma sucessão de falhas que se
repetem, estabelecendo-se um padrão de falhas do ambiente em se adap-
tar às necessidades psíquicas do bebê. Desse modo, o trauma costuma ser,
ao menos nos momentos iniciais, sutil e silencioso, já que consiste com
mais freqüência no que não aconteceu, “quando algo poderia (e deveria)
proveitosamente ter acontecido” (Winnicott, 1963b, p.75).
Surge a questão sobre o tipo de falhas que podem ser consideradas
como traumáticas. Winnicott responde dizendo que o caráter traumático
das falhas ambientais depende do grau de amadurecimento emocional da
criança. Por exemplo, a depressão de uma mãe, que pode causar um efeito
devastador nos estágios inicias da vida de um bebê, nem chegaria a se
tornar traumática num momento posterior, em que já se desenvolveram
na criança certas capacidades emocionais e intelectuais. No seu ensaio “O
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conceito de trauma em relação ao desenvolvimento do indivíduo dentro
da família”, Winnicott propõe uma classificação de diferentes significados
do trauma de acordo com o momento no processo de desenvolvimento.
Resumidamente, temos que o primeiro tipo de trauma, no estágio da de-
pendência absoluta, implica um “colapso na área da confiabilidade no ‘meio
ambiente expectável médio’” (1965, p.113). As falhas ambientais neste es-
tágio provocam os traumas mais graves, que afetam o bebê na
confiabilidade no mundo subjetivo, na continuidade de ser e na realização
das tarefas básicas do desenvolvimento. O segundo sentido de trauma, no
início da dependência relativa, quando a mãe deve falhar gradualmente
na sua adaptação, será a falha materna na tarefa de desiludir o bebê. O
terceiro sentido de trauma implica na “quebra da fé” (1965, p.114). Trata-se
da criança que já reconhece a existência do não eu e, após ter tido cuidados
ambientais iniciais bons, o ambiente fracassa, levando a criança a não acre-
ditar mais no ambiente, o que levaria a desenvolver uma tendência anti-
social. O quarto tipo de trauma acontece quando a criança já avançou nos
processos integrativos e é capaz de ter relações de objeto como pessoa
total, se inserindo na triangulação edípica. O traumático seria, para a cri-
ança, ser ferida nessas relações. Finalmente, “o (quinto) trauma é a des-
truição da pureza da experiência individual por uma demasiada intrusão
súbita ou impredizível de fatos reais” (1965, p.114). Embora a expressão
“destruição da pureza” seja um tanto enigmática, Winnicott acrescenta que
se trata da reação de ódio gerada no indivíduo, mas que não é experienciado
como ódio, senão na forma delirante de ser odiado.
Para fins deste trabalho, interessa-nos a noção de trauma dos estági-
os iniciais, intimamente ligado às agonias impensáveis – base das psicoses
e dos casos-limite – deixando para um estudo futuro a análise dos diferen-
tes sentidos dos traumas de estágios mais desenvolvidos, que se relacio-
nariam com outras patologias.
Recapitulando, vimos que o trauma winnicottiano alude a falhas
ambientais que afetam o bebê no seu âmago: quebram sua continuidade
de ser e suscitam as agonias impensáveis. Se o ambiente não for confiável
e previsível para o bebê – embora ele desconheça a externalidade do ambi-
ente – ele reage ao imprevisto, abdicando de sua espontaneidade e
criatividade e interrompendo seu vir-a-ser. Essa ruptura é vivida pelo bebê
na forma de agonias impensáveis, que ameaçam com o aniquilamento do
ser e levam à organização das defesas mais primitivas. Nesse sentido,
Winnicott diz que a doença psicótica não é o colapso, mas a organização
defensiva relacionada às agonias impensáveis. A única saída do bebê para
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enfrentar a dor das agonias impensáveis e evitar o aniquilamento é a defe-
sa primária mais básica: a cisão (cf Dias, 1998, p.292).
Embora existam muitas defesas primitivas (invulnerabilidade, desin-
tegração, despersonalização, etc.) a cisão é uma espécie de denominador
comum de todas, participando de qualquer organização defensiva mais
complexa. A cisão – ou splitting ou clivagem – isola o si mesmo, separan-
do-o do resto do ser, para que não volte a ser ferido.
A cisão por excelência na teoria winnicottiana é a cisão entre o falso e
o verdadeiro self. Trata-se da cisão mais abrangente, na qual todos os seres
humanos estão incluídos em diversos graus, já que o falso self, na sua fun-
ção de proteção do sentimento do si-mesmo, é necessário na saúde. Por
outro lado, a cisão patológica entre falso e verdadeiro self é um dos traços
predominantes dos casos-limite (cf Dias, 1998, p.324).
O falso self patológico tem como função ocultar o verdadeiro self, para
evitar seu aniquilamento.Como a mãe falha em complementar a onipo-
tência do bebê e em responder ao gesto espontâneo dele, o bebê sobrevive
falsamente, ocultando seu incipiente si-mesmo e se submetendo às exi-
gências do ambiente. Em casos extremos, o sentimento do si-mesmo “fica
tão bem oculto que a espontaneidade não é um aspecto das experiências
vividas pelo lactente” (Winnicott, 1960b, p.134). A submissão se torna a
característica principal do falso self, fazendo da imitação sua especialida-
de. A cisão faz com que uma parte do si-mesmo se desenvolva artificial-
mente, sobre-adaptando-se às exigências da realidade em detrimento da
outra parte do si-mesmo que fica escondida e se empobrece. O falso self,
porque se desenvolve reativamente, sacrificando o sentimento de si-mes-
mo – a espontaneidade e a originalidade criativa – gera no indivíduo sen-
timentos de inutilidade e inautenticidade. Em certos casos mais graves, os
impulsos e a espontaneidade ficam tão confinados e inacessíveis pela ci-
são, que o indivíduo perde contato com estes, resultando em uma sensa-
ção de vazio e irrealidade. Quando o falso self se implanta como real, o
indivíduo perde a comunicação com seu verdadeiro self e, portanto, o fun-
damento para se sentir real, empobrecendo-se também a vida cultural e a
capacidade simbólica (cf Winnicott, 1960b, p.137).
Assim, ao mesmo tempo em que a comunicação com o núcleo mais
íntimo do si-mesmo está danificada ou quase ausente, o contato com a
realidade externa também se torna superficial e falsificado, já que exclui o
cerne do indivíduo15.
15. Contudo, Winnicott considera que até nos casos mais extremos de submissão existe uma vida
secreta criativa, já que seria impossível a total destruição da capacidade de um indivíduo para o
viver criativo (1971a, p.99).
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Aproximações e diferenças
Antes de tudo, vemos que em ambos autores o trauma remete a um
fator externo, real, seja o abuso sexual do adulto ou as falhas ambientais.
O trauma não pode ser reduzido a um excesso de excitação pulsional ou a
uma intensidade energética, como era teorizado por Freud em 192016. Isto
é evidente em Winnicott, cuja idéia de trauma é relacional, coerente com
sua concepção do processo do amadurecimento. Embora Ferenczi valori-
ze a intensidade das excitações pulsionais, trabalhando com a idéia de
pulsão de morte e de intrincações e desintrincações pulsionais, sua noção
de trauma enfatiza o peso do fator externo, já que “as forças intra-psíqui-
cas apenas representam o conflito original entre o indivíduo e o mundo exte-
rior” (Ferenczi, 1930, p.332).
Encontramos consideráveis diferenças no que diz respeito aos acon-
tecimentos empíricos que ocasionariam traumas. Em Ferenczi, o aconteci-
mento traumático é o abuso sexual por parte de um adulto sobre uma
criança. Em Winnicott, o traumático consiste no fracasso ambiental em
atender às necessidades psíquicas do infante, ou seja, as falhas em prote-
ger a continuidade de ser do bebê. Em primeiro lugar, notamos a diferença
entre o caráter sexual do trauma ferencziano – embora Ferenczi admita
que existem acontecimentos traumáticos que fogem desse modelo teórico
– e o caráter não sexual do trauma winnicottiano, já que, como vimos, a
proteção da continuidade de ser ou sua ruptura não remetem a uma ques-
tão sexual. Em segundo lugar, vemos que o trauma ferencziano é brutal,
ruidoso e violento, enquanto que o trauma winnicottiano pode ser sutil e
silencioso. Para ser mais precisos, devemos reconhecer a violência do trau-
mático para ambos autores, mas enquanto para Ferenczi tratar-se-ia de
um acontecimento de violência explícita, para Winnicott poderia não ha-
ver uma violência explícita e nem sequer um acontecimento positivo, tra-
tando-se de um “não acontecido”. Em terceiro lugar, vemos que a noção
de trauma remete a épocas diferentes do desenvolvimento para Ferenczi e
para Winnicott. Ferenczi teoriza um trauma que acontece a uma criança
ou a um infante, provocando uma ruptura de um eu já constituído. A de-
vastação egóica do trauma ferencziano pressupõe uma estruturação psí-
quica já alcançada. Em Winnicott o trauma acontece numa época precoce,
quando o bebê está iniciando seu processo de amadurecimento. Embora
Winnicott classifique diversos tipos de traumas, que aconteceriam em di-
ferentes momentos do desenvolvimento, a noção de trauma que ele teoriza
16. Sobre isto consultar: Lejarraga, 1996, cap.2.
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mais amplamente é a do trauma dos estágios iniciais, que afeta o próprio
processo integrativo, quebrando o vir-a-ser do bebê e afetando a constitui-
ção do si-mesmo17.
Ainda que as diferenças entre as duas noções de trauma sejam signi-
ficativas do ponto de vista do acontecimento empírico, se interpretarmos
a confusão de línguas como uma confusão quanto à confiabilidade, como
o próprio Ferenczi chega a afirmar, essas diferenças tendem a diminuir.
Assim, tratar-se-ia, para ambos autores, da quebra da confiança da criança
no adulto (ou ambiente) e do imprevisto desta falha. Contudo, a forma de
conceber a confiabilidade não é igual em ambos autores. Ferenczi refere-
se à confiabilidade, tanto na relação criança-adulto quanto na situação
analítica, sempre no sentido de um sujeito (infantil), com um eu estruturado,
que confia nos adultos, externos a ele, dos quais depende. Para Winnicott,
a confiabilidade na dependência absoluta, quando o ambiente não é reco-
nhecido na sua externalidade, é registrada pelo infante pelos “efeitos da
confiabilidade”(Dias, 1998, p.250). O lactente não sentiria confiança no
ambiente, desconhecido como tal, mas em seu mundo subjetivo, seguro e
previsível, que ele está começando a habitar.
Vimos também que, para ambos autores, o caráter traumático não
deriva do acontecimento empírico em si mesmo, mas das possibilidades
emocionais e intelectuais do lactente ou da criança para lidar com o mes-
mo. Ferenczi faz depender o trauma do desmentido, ou seja, da impossibi-
lidade da criança de dar um sentido ao ocorrido. Winnicott faz depender o
trauma do grau de amadurecimento do lactente, ou seja, da impossibilida-
de do bebê de suportar a falha ambiental sem que se quebre sua continui-
dade de ser.
Outro aspecto da teoria do trauma em que encontramos uma certa
proximidade conceitual, em ambos autores, é em relação à agonia
provocada pela violência do trauma. Ferenczi descreve essa agonia como
“uma grande dor...sem conteúdo de representação” (1932b, p.64) utilizan-
17. Poder-se-ia pensar que o trauma ferencziano corresponde a algum dos sentidos do trauma da
classificação winnicottiana, já que esta alude a diversos tipos de traumas que ocorrem num momento
posterior. Vejamos: no terceiro tipo de trauma, em que haveria uma “quebra da fé”, após uma
provisão ambiental suficientemente boa, podemos supor uma referência à etiologia da tendência
anti-social; no quarto tipo, em que a criança seria ferida nas relações com pessoas totais, Winnicott
refere-se aos conflitos edípicos e no quinto tipo de trauma, em que acontece uma intrusão súbita de
fatos reais, vemos uma indicação para uma possível etiologia de personalidades paranóides. As
descrições ferenczianas do trauma não parecem corresponder a esses sentidos, estando os
“traumatizados” ferenczianos muito mais próximos teoricamente do falso self patológico. Contudo,
como essa classificação está apenas esboçada na obra de Winnicott, caberia uma análise mais
aprofundada para fazer essa comparação com mais consistência.
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do sempre metáforas que aludem à idéia de morte psíquica e do que seria
insuportável ou incompreensívelpara a criança. Winnicott refere-se a “ago-
nias impensáveis”, enfatizando que tem necessidade de utilizar um termo
mais forte que “angústia ou ansiedade (anxiety)”, já que se trata de uma
agonia que diz respeito ao aniquilamento do ser. Ambos autores aludem à
idéia de morte psíquica e de aniquilamento em relação a essas agonias,
destacando o caráter de “não representação” (Ferenczi) ou “impensável”
(Winnicott). Eles apontam para um tipo de angústia que não poderia ser
concebida, representada ou simbolizada. Entendemos que eles descrevem
um tipo de angústia irredutível à angústia da castração e ao conflito edípico,
que exige uma defesa mais radical que o recalque; a cisão. Contudo, per-
manece a distinção entre as agonias impensáveis, muito precoces, que acon-
tecem numa época em que nem sequer existe um si-mesmo unitário que
possa experienciá-las, e a dor sem representação ferencziana, que aconte-
ceria numa época mais tardia. A proposta clínica de ambos autores em
relação à forma de tratar psicanaliticamente pacientes em que essas agoni-
as são muito significativas (noções de regressão, reviver, confiabilidade)
tem vários pontos de coincidência, mas excederia os limites do presente
trabalho abordá-la.
Por último, vejamos as aproximações e diferenças entre a clivagem
narcísica descrita por Ferenczi e a cisão patológica entre o verdadeiro e o
falso self. A clivagem ferencziana compõe-se, basicamente, de dois frag-
mentos: um destruído e oculto e outro que amadurece artificialmente, sub-
metido ao agressor, sábio e culpado. Para Winnicott, a cisão patológica
compõe-se de um verdadeiro si-mesmo oculto e empobrecido e um falso
self cujo traço predominante é a submissão às exigências do ambiente.
Encontramos muita semelhança entre estas teorizações, já que em
ambas descreve-se, por um lado, o quase-aniquilamento de uma parte de
si e, por outro, o desenvolvimento artificial da outra parte, numa obediên-
cia e adaptabilidade extremas em relação ao mundo exterior. Até os ter-
mos utilizados coincidem. Como vimos, Ferenczi faz referência, entre ou-
tras expressões similares, à “aniquilação do sentimento de si” (1932a, p.109),
a “criar uma espécie de psique artificial” (1932b, p.41), ao “mundo exteri-
or (uma vontade estranha) que se afirma às minhas custas,...” (1932b, p.150),
expressões que poderiam tranqüilamente ser descrições winnicottianas do
verdadeiro e do falso self. Também a relação que se estabelece entre ambos
fragmentos cindidos é significativamente similar nas duas teorias, já que
para ambos autores, um dos fragmentos – o amadurecido artificialmente
ou falso self – tem como função proteger a outra parte de si e, para exercer
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essa proteção, paga o preço de sacrificar a parte protegida e de se tornar
tão obediente e adaptável “que perde a sua forma própria” (Ferenczi, 1932a,
p109).
Entretanto, essas curiosas coincidências têm algumas restrições.
Antes de tudo, quando Ferenczi teoriza sobre a clivagem, refere-se
sempre a fragmentos do eu, sendo o eu já constituído a unidade que se
fragmenta, o que pressupõe, como vimos, uma total destruição e transfor-
mação do eu precedente. Quando Winnicott teoriza sobre a cisão entre
verdadeiro e falso self, os fragmentos cindidos são partes do si-mesmo,
categoria central no pensamento winnicottiano e inexistente no ferencziano.
Como o trauma em Winnicott é precoce, a cisão patológica entre verdadei-
ro e falso self não age cindindo um si-mesmo coeso, mas prejudicando o
próprio desenvolvimento do si-mesmo e os processos integrativos, parti-
cularmente o estabelecimento de um contato criativo com o mundo.
Além disso, encontramos diferenças em relação à parte de si oculta e
ameaçada de aniquilamento, que corresponde ao eu da linguagem da ter-
nura ferencziano e ao verdadeiro si-mesmo winnicottiano. Ainda que esse
caráter de quase-destruição e ocultamento coincida nas duas perspecti-
vas, não podemos fazer corresponder teoricamente a noção do eu da lin-
guagem da ternura, que se articula com a idéia de sexualidade infantil
terna e de estádio da ternura (amor objetal passivo) à noção de si-mesmo,
que se articula com a idéia de gesto espontâneo e de criatividade e se tor-
na, a partir da década de 60, uma das noções principais do pensamento de
Winnicott. Vemos também que o fragmento amadurecido artificialmente,
na visão ferencziana, embora coincida na submissão e na adaptabilidade
com o falso self winnicottiano, tem como traço principal a culpa, resultado
da identificação com o agressor, o que não constitui uma característica do
falso self.
Concluindo, não sabemos se Winnicott chegou a conhecer e dar conti-
nuidade a algumas das propostas e intuições de Ferenczi, mas podemos
afirmar que, apesar da diversidade de suas perspectivas teóricas, encontra-
mos interessantes pontos de aproximação em relação à noção de trauma.
Ana Lila Lejarraga
Consultório: Av. N. S. de Copacabana 195, s. 911
Copacabana – Rio de Janeiro – 22020-000
tel. (21) 2542-7333
e-mail: analila@ms.microlink.com.br
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Artigo recebido em 20 de julho de 2007
Aceito para publicação em 20 de agosto de 2007

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